Resenha

Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues.

Carlos Alexandre Ratton de Freitas [a]
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil

Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues.

Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 63, pp. 248-254, 2022

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

CAROZZI A., CARVALHO H., OLIVEIRA J., RATTON C.. Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues.. 2021. São Leopoldo. Ed. UNISINOS. 488pp.. 9786587032160

Nota bibliográfica

Como citar: CAROZZI, A.; CARVALHO, H.; OLIVEIRA, J.; RATTON, C. (Orgs.). Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2021. Resenha de: RATTON, C. A. Nota bibliográfica. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 63, p. 248-254, out./dez. 2022

Esta é uma ocasião de celebração, de festa, de homenagem, de honraria. O livro lançado em 2021, um Festschrift, está sendo oferecido por um total de mais de 30 acadêmicos, entre brasileiros e estrangeiros, ao professor Ivan Domingues do Departamento de Filosofia da UFMG, com intento de comemorar sua carreira e sua contribuição – ele, professor, pesquisador, autor e com desempenho institucional local, no âmbito da Universidade (a fundação e a coordenação do curso de Doutorado em Filosofia, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT e do Núcleo de Estudos Contemporâneos – NEPC, dentre outras coisas) e nacional (na elaboração do Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG-2011-2020) da Capes, bem como na participação do Comitê de Assessoramento de Filosofia do CNPq, por exemplo); enfim, ao meu ver, um intelectual fortemente ocupado com as agendas da filosofia, da ciência e da instituição acadêmica há exatos 46 anos.

Para dar conta de uma carreira sabidamente plural e profícua, o livro Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues se vale de um núcleo principal formado por 25 capítulos, onde os autores dialogam direta ou indiretamente com as ideias formuladas pelo próprio homenageado e expostas em livros, artigos etc., valendo-se delas; mas também, de outra maneira, abordando e investigando temas que estiveram dentro do horizonte de seus interesses, submetendo-os a um desenvolvimento mais autoral, quer dizer, apresentando resultados próprios, mas sempre com alguma conexão com o homenageado. Tais capítulos se distribuem em torno de seis segmentos: I – Conhecimento; II – Tecnologia; III – Ética; IV – História da Filosofia; V – Filosofia no Brasil; VI – Vida intelectual. Esses segmentos reúnem os temas gerais sobre os quais Ivan Domingues se debruçou ao longo da vida – são, aliás, como o tronco da árvore que sugestivamente figura na capa do livro[2], dando vez a ramos fortes que se espalham em várias direções (problemas, linhas investigativas, ideias, teses). Além do mais, o livro se vale de uma Cronologia e de uma Entrevista que fornecem ferramentas e pistas da biobibliografia do ilustre Professor, auxiliando o leitor a adentrar em seu pensamento. Especialmente a Entrevista, ao dar voz a colegas e ao homenageado, o qual, ao ser questionado, desenvolve reflexões acerca de assuntos variados sabidamente difíceis e espinhosos, porém importantes para a compreensão da realidade contemporânea, como a inteligência artificial, a relação do ser humano com a técnica, a pós-graduação no Brasil, a filosofia brasileira, o intelectual público, dentre outros. A obra, ainda que calcada maiormente na área de filosofia – e neste ponto é representativo o Prefácio de Marcelo Fernandes de Aquino –, possui uma proposta que atende aos acadêmicos e estudantes de várias áreas, sendo plural em suas contribuições, a exemplo das participações com capítulo de Clélio Campolina (economista), e com perguntas de Sérgio Pena (médico-geneticista) e Francisco César de Sá Barreto (físico). Certamente, esta é uma consequência do legado interdisciplinar cultivado pelo próprio Ivan Domingues nas frentes do IEAT e do NEPC, órgãos acima mencionados nos quais ele atuou.

Pergunta-se, consequentemente: quais sentidos da homenagem podemos captar com o livro? A meu ver, dois sentidos se mostram e devem ser retidos, um subjetivo e outro objetivo.

No que toca o sentido subjetivo (sempre com o âmbito acadêmico em mente), envolvendo minhas relações pessoais com meu professor e orientador, gostaria de ressaltar algumas características próprias do nosso homenageado. Em particular, venho me relacionando com ele de várias formas ao longo do tempo: como seu orientando nos cursos de Mestrado e Doutorado em Filosofia, seu aluno na Pós-Graduação, seu estagiário lecionando matérias nos cursos de Graduação em Filosofia e em Ciências Sociais e, por fim, como seu estagiário executando funções administrativas e de pesquisa (colaborador) no Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo. Isso dá um total de pouco mais de dez anos de relações e de vivências. Uma experiência que, academicamente, cobre as esferas da pesquisa, do ensino e do trabalho. Tendo por base toda essa experiência pessoal, mas também em acordo com o que muitos outros pensam, em especial Anna Carozzi (colega organizadora do livro e sua atual doutoranda), saúda-se e felicita-se nosso mestre por ser um professor atento e rigoroso; alguém que, entretanto, exige não a excepcionalidade do aluno, mas que se compromete com o desenvolvimento e a expansão de sua intelectualidade, mais ainda, com o cultivo integral de sua educação. Para Lilian Godoy, autora de um dos capítulos do livro, a função da “orientação” do estudante parece se dilatar na figura de Ivan Domingues, que frequentemente continua desempenhando um papel na vida de seus orientandos, com estímulos de diversos tipos e apontando caminhos, mesmo após concluída a dissertação ou tese. Já David Emanuel Coelho também assevera algo semelhante, quer dizer, que o mestre se ocupa do estudante ou do orientando em todas as suas etapas de formação, chegando o pupilo a reconhecer com grande júbilo: “foi com ele que aprendi a filosofar e a ser filósofo”.

Ademais, ainda nesse registro, gostaria de deixar consignado que nas aulas por ele ministradas, sob a sua orientação e lendo os seus textos, tomamos contato com um intelectual para quem sempre é possível conduzir mais adiante a análise dos fatos e dos fenômenos a serem estudados. A leitura e a compreensão dos textos requerem paciência segundo Ivan Domingues. Nessa mesma toada, os autores merecem uma interpretação cuidadosa e sem precipitação. Além disso, na companhia do mestre são abolidas as respostas preconcebidas, as modas teóricas e os preconceitos intelectuais. E percebe-se que esse estado de coisas é alcançado, em grande medida, porque ele não cultivou filiações a escolas e filósofos particulares, mas porque, ao contrário, frequentou uma gama extraordinária de autores, temas e enfoques, sem, no entanto, cair no ecletismo e seus males. Isso afasta, em uma outra perspectiva, os mimetismos indesejáveis de jargões e de posturas, assim como as blindagens a autores prediletos, algo tão comum na academia. Tudo fica factualmente submetido à crítica e ao questionamento. E, seja quando Ivan Domingues está exercendo a docência, a orientação ou realizando a pesquisa, ao fim e ao cabo distingue-se sua voz nítida (própria) e sua contribuição na construção de um pensamento brasileiro independente.

Já acerca do viés objetivo e do sentido propriamente intelectual da celebração, ou seja, distante de apreciações individuais ou pessoais, gostaria de apontar que os chamados “livros de homenagem” modernos, tal como este endereçado ao ilustre Professor da UFMG, correspondem a um gênero literário surgido na Alemanha, antes da Primeira Guerra Mundial, sob a alcunha de Festschrift .fest = celebração + schrift = escritos), ou alternativamente, em latim, Liber amicorum (livro de amigos), para designar na academia um comemorativo, um memorial, um tributo a uma pessoa que alcança distinção em seu meio. No passado, normalmente, os livros de tributo foram dirigidos a cientistas, em especial físicos, e a profissionais das humanidades (filólogos e linguistas). Posteriormente, essa tradição da homenagem migrou da Alemanha para os EUA, alterando em muitos casos a sua designação para Essays in Honour of... (Ensaios em honra a...) e Essays Presented to... (Ensaios apresentados a...), como é possível observar nos títulos das publicações. Da mesma forma, na França se opta ora pela palavra Festschrift ora por uma tradução, no caso, Mélanges (Miscelânia). Hoje as “publicações de celebração” ganharam as várias partes do mundo, assim como parecem ter sido adotadas por todas as áreas acadêmicas. No Brasil, pelo que consta, a publicação mais antiga do gênero é de 1984, justamente em filosofia: Pela filosofia: homenagem a Tarcísio Meirelles Padilha = Pour la philosophie: Festschrift, Mélanges, livro organizado por Hans Ludwig Lippmann com textos principalmente em português e lançado pela Editora Pallas (Sociedade Gráfica Vida Doméstica), do Rio de Janeiro. A esta seguiram outras, com este título ou não, como as homenagens a Cirne Lima, Padre Henrique Vaz, José Henrique Santos, Guido de Almeida & Raul Landim, Marilena Chaui, Sérgio Cardoso e vários outros, especialmente no Rio Grande do Sul. É de destaque em outras áreas do conhecimento o Festschrift in Honor of Rogério Cerqueira Leite, de 1991, livro organizado por Cylon Eudóxio Tricot Gonçalves da Silva, Minko Balkanski e J. M. Worlock. Publicado não em território nacional, porém em Singapura, pela World Scientific Publishing Company e em língua inglesa, a obra, em todo caso, contribuiu ainda na década de noventa – ou seja, quando a tradição da homenagem no Brasil está apenas se esboçando – para o reconhecimento da importância de um brasileiro na área da física, como pesquisador com carreira no famoso Laboratórios Bell, nos EUA, e posteriormente enquanto professor e pesquisador da Unicamp.

E qual é a força que subjaz o livro ofertado ao filósofo mineiro Ivan Domingues, cujas ideias se perpetuam nos colegas, estudantes e ouvintes, e cujo trabalho de uma vida ajudou a consolidar a profissionalização da filosofia no país e, mais recentemente, a indagar a própria filosofia, apreendendo sua origem em nossas terras e inquirindo sobre seus legados e perspectivas?[3] Certamente não é apenas o regozijo de uma premiação. A meu ver, atento ao que o sociólogo norte-americano Irving Louis Horowitz afirma, penso que o livro de homenagem persiste e se multiplica porque ele não é apenas retrospectivo, mas prospectivo. Isso quer dizer que os livros de tributo a alguém, os Festschriften, são um chamado para mais trabalho, uma reunião de mais esforço e energia, um chamado para a melhoria da aprendizagem de uma disciplina, de uma ciência, de uma visão artística ou de uma posição intelectual[4]. Sendo assim, além de prestar tributo, tais obras fornecem uma visão e um estudo atual de temas importantes.

Concluo considerando que, de um modo geral, os Festschriften mesclam o altruísmo intelectual daqueles que se mobilizam nesse tipo de homenagem – e aqui, em nome também dos organizadores do volume, a saber, Anna Carozzi, Helder Carvalho e Jelson Oliveira, agradeço a todos os autores que escreveram um capítulo para o livro, aos intelectuais que formularam uma questão para a Entrevista e à Editora Unisinos, pela generosidade em se associar ao projeto – com uma vida e uma carreira norteadoras em determinada área do conhecimento, e neste caso, em filosofia, com a vida e a carreira de Ivan Domingues.

Referências

DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

BALKANSKI, M.; GONÇALVES SILVA, C. E. T.; WORLOCK, J. M. Festschrift in Honor of Rogério Cerqueira Leite. Singapore, New Jersey, London, Hong Kong: World Scientific Publishing Company, 1991.

HOROWITZ, I. L. Communicating Ideas: The Politics of Scholarly Publishing. New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1991.

LEWIS, R. Festschriften Honor Exceptional Scientific Careers, Scholarly Influences. The scientist – exploring life, inspiring innovation (Sep 1, 1996). Disponível em: https://www.the-scientist.com/profession/festschriften-honor-exceptional-scientific-careers-scholarly-influences-57891

LIPPMANN, H. L. et al. Pela filosofia: homenagem a Tarcísio Meirelles Padilha = Pour la philosophie : Festschrift, Mélanges. Rio de Janeiro: Editora Pallas, S.A., 1984.

WAQUET, F. « Les « mélanges »: honneur et gratitude dans l'Université contemporaine ». Revue d’histoire moderne & contemporaine, n. 53-3, p. 100-121, 2006/3. DOI: 10.3917/rhmc.533.0100. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-d-histoire-moderne-et-contemporaine-2006-3-page-100.htm

Mídia digital

Canal Memória Filosofia UFMG. Homenagem ao Prof. Ivan Domingues (solenidade de aposentadoria e lançamento presencial do livro Minas e horizontes do pensamento). Youtube, 31/03/22. Disponível em: https://youtu.be/RYSmcu8iT4o. Acesso em: 01 jun. 2022.

Canal Memória Filosofia UFMG. Live de lançamento (virtual) do livro Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan Domingues. Youtube, 29/10/21. Disponível em: https://youtu.be/aG4qLES7esU. Acesso em: 01 jun. 2022.

Notas

[2] A arte da capa se deve ao bordado do grupo mineiro Matizes Dumont (ou As Bordadeiras de Pirapora, como são mais conhecidas). Trata-se de um bordado sobre o desenho de Demóstenes Dumont Vargas, intitulado Bordando no Tecido da Vida, do livro Harmonia das cores nos fios do bordado-alquimias na vida de uma bordadeira. Cf. a imagem em: https://www.matizesdumont.com/products/bordando-no-tecido-da-vida?_pos=1&_sid=f7140a0d9&_ss=r
[3] Ver DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
[4] HOROWITZ, I. L. Communicating Ideas: The Politics of Scholarly Publishing. New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1991. 2ª ed. p. 237.

Notas de autor

[a] CARF é doutor em filosofia
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