Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Entre a República dos Modernos e a Autoridade dos Antigos (considerações sobre o fenômeno da autoridade)
On authority (a political phenomenon according to Hannah Arendt)
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 741-763, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana

Dossiê


Recepção: 02 Dezembro 2020

Aprovação: 12 Novembro 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.060.DS01

Resumo: O artigo pretende iluminar algumas das perplexidades enfrentadas pelas instituições políticas, na modernidade ou em tempos antigos, para garantir um espaço próprio onde as pessoas possam exercer seu poder de liberdade. Começando com os revolucionários americanos, passando pelos modos gregos e romanos de lidar com o problema, nós abordamos as análises de Hannah Arendt na tentativa de estruturar uma possível resposta de sua obra para este desafiante convite ao pensamento.

Palavras-chave: Revolução, Roma, Autoridade, Liberdade, Arendt.

Abstract: This article intends to highlight some perplexities faced by political institutions either in modern era or in ancient times to safeguard a proper space wherein people might exercise the power of liberty. Beginning with the American revolutionaries, passing through the Greeks and Romans ways to deal with the problem arised, we approach Arendt´s analysis in order to frame a possible answer of her work for this challenging invitation to thinking.

Keywords: Revolution, Rome, Authority, Liberty, Arendt.

Sobre a Revolução e os limites do campo da ação

Consta que após o encerramento de uma das sessões de deliberação da Convenção Constitucional de 1787 na Filadélfia, uma senhora de sobrenome Powel, angustiada com seu futuro, tenha se aproximado de Benjamin Franklin lhe perguntando: “Bem, Doutor, o que temos para nós, uma República ou uma Monarquia?” Sem maiores hesitações, Franklin então lhe respondera: “uma República, se você conseguir mantê-la.” Mais de dois séculos depois, estas palavras conservam seu peso de ação e fundação em torno da gravidade de um novo corpo político, pautado inteiramente em uma nova concepção de poder e autoridade, que consiga desprender-se da ideia de soberania e superar uma antropologia pessimista situada no contexto de abertura para as sociedades de massas.

Os Estados Unidos são um país cujo processo de formação se confunde com a história de sua própria nação e prosperidade. Desde o primeiro ato da Revolução Americana em 1776, no dia 4 de julho, seus “Founding Fathers” declaravam direitos exclusivos sobre os territórios da América do Norte e concretizavam um processo de separação gradual da ex-colônia de sua antiga metrópole, abrindo à civilização ocidental a possibilidade, outra vez mais desde o período Renascentista, de um regime republicano como forma de governo dos vivos. Baseados em noções autoevidentes de que todos os homens são criados iguais, possuindo ex parte populi direitos inalienáveis à vida, liberdade e procura da felicidade, Thomas Jefferson e sua Declaração de Independência sinalizavam o despertar de um novo começo: a experiência norte-americana livre, republicana e democrática que antecedia em seu phatos revolucionário a existência do próprio governo. Doravante, dentro de um espaço político no qual as pessoas, como livres e iguais, poderiam tomar suas preocupações comuns em suas próprias mãos, a liberdade pública estaria garantida às próximas gerações através da criação de uma constitutio libertatis.

É bem verdade que a consolidação de seu sistema político teve de esperar mais de uma década até a aprovação da Constituição da Filadélfia em 1789. Ao mesmo tempo, conforme a tese de Hannah Arendt, fora em meio a esse espaço temporal que pudemos observar o retorno de uma experiência de liberdade há muito esquecida, se não perdida, no interior da tradição de pensamento político ocidental. O processo de defesa e argumentação da Constituição ao longo desses treze anos, que culminou na formação de uma União forte entre as colônias, centralizada e poderosa ao permitir uma sustentação nacional sólida para o porvir, possibilitou a seus atores, enquanto durou, a manifestação pública e o debate de opiniões numa atuação em concerto raras vezes vista em nossa civilização. Daí seu caráter singular e o experimento de felicidade pública testemunhado pelos Pais Fundadores, que feito fata Morgana, como Arendt gostava de comparar, apareceu e desapareceu inesperadamente na história; e daí também seus elogios reservados a uma forma de poder que resultou da capacidade humana de agir em conjunto e a um governo que restava sobre a opinião da humanidade, na fórmula de Madison1.

Pois de acordo com a concepção arendtiana, por estranho que possa aparecer a nossos olhos modernos, as pessoas historicamente costumam encontrar sua verdadeira realização no mundo político, e não no retraimento da vida privada. Para indivíduos como Thomas Jefferson, Madison, Adams ou Benjamin Franklin, a vida congressual, o élan revolucionário, as alegrias do discurso e da arte da persuasão isentos de violência ou coerção, seriam ocasiões em que pudessem encontrar algo que redimisse a vida humana da futilidade cíclica do nascimento, reprodução e morte. Sem essa possibilidade, essa paixão pela distinção de que falava John Adams, suas existências estariam fadadas à homogeneidade e indiferenciação típicas do ciclo biológico da vida em busca da prosperidade e riqueza individuais, numa repetição sem fim de geração a geração. Já no espaço público da pluralidade vivenciado no processo de debate legislativo de elaboração da Constituição, por contraste, a humanidade lhes legaria a chance única de transcender o labor animal e modelos orgânicos de concepção da política, ao tomarem a iniciativa que rompe no espaço público e permanece indefinidamente na memória e história das próximas gerações. Assim, sua Revolução exprimiria a coincidência entre a ideia de liberdade e a ideia de um novo começo, tendo por conteúdo a liberdade política de participação nos assuntos públicos e exigindo a edificação de um mundo comum. Sabe-se que este processo de defesa da Constituição foi responsável pela produção de alguns dos textos mais clássicos de ciência política e organização de governo publicados em Os Federalistas. Neles, mais do que o destino ou a prosperidade da futura nação, estava em jogo também a forma de organização republicana em ampla escala, recaindo sobre os norte-americanos a tarefa de provar, mediante seu exemplo, que era viável instituir e manter um governo nestes moldes.

Logo, mais do que depender unicamente do desiderato de seus fundadores, a república estaria refém outrossim da construção de um arcabouço institucional firme e acabado para a afirmação da liberdade, que deveria ser preservado e aperfeiçoado continuamente pelas gerações vindouras. Mas como sustentar acesa a chama do espírito de uma revolução que feito fogo fátuo irrompe e desaparece no instante de seu próprio aparecimento sem deixar resíduos? De que maneira preservar aberto o palco no qual direitos políticos e virtudes republicanas possam vir à tona? Em outras palavras, se foi atravessando a necessidade política de conferir estabilidade à aposta revolucionária que os Founding Fathers encontraram-se diante do fenômeno da autoridade política e sua capacidade de estruturação de um projeto comum - na qual a continuidade de uma civilização estabelecida “somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros” -, como fazer para institucionalizar na política esse tipo de ação, entendendo-se por institucionalização um resultado capaz de perpassar o percurso temporal de seus atores e ser renovado continuamente pelas novas filiações? (ARENDT, 2003, p. 128)2.

Este último ponto - o fato de os Estados Unidos terem constituído um caso democrático de fundação expresso em seu constitucionalismo - foi objeto de exame por parte do espírito de Jefferson quando da elaboração da Constituição e posteriormente motivo das mais acaloradas decisões judiciais da Suprema Corte americana, órgão onde se encontra até hoje a autoridade de interpretação judicial e salvaguarda dos valores antepassados consagrados na letra de sua Constituição. Enquanto Madison possa ser apontado como defensor da importância dos vínculos constitucionais através de gerações, Jefferson por sua vez insurgia-se contra qualquer limitação do governo dos vivos propondo inclusive a alteração periódica da constituição, assim que se encontrasse obsoleta, acompanhando o desenrolar dos tempos e a evolução do espírito humano.

Querelas à parte entre os Pais Fundadores do constitucionalismo moderno, a interrogação primacial de que partimos neste artigo consiste justamente nos apontamentos de Arendt acerca da constitucionalização da política, dado que essa tarefa é dupla: fundar um novo corpo político, a República, e preservar o espírito de onde provém sua própria fundação. Isto é, fazer de tal maneira que o princípio de ação que emerge com a Revolução Americana continue no futuro a inspirar os jovens por seus atos. Eis a dimensão simbólica e imaginativa presente no momento passado de sua fundação. À primeira vista, assim como Jefferson, parece que o interesse arendtiano numa estrutura constitucional falsificaria aquilo que ambos mais prezavam no espaço público. Posto que indenegável sua preocupação com momentos fundacionais, tudo se passa como se estes fossem valorizados mais como fins em si mesmos do que vistos como estruturas gravitacionais para a ação futura. Da mesma maneira, também é possível percebermos certo tom de desapontamento em alguns de seus ensaios toda vez que menciona o papel e o legado das constituições para a organização das massas nas sociedades contemporâneas.

As Invasões Bárbaras

Para Arendt, o principal fator de ameaça à estabilidade política mundana é o processo de secularização que atravessa a política ocidental desde os primeiros sinais de corrosão da tradição que informava os direitos de legitimidade do poder nos tempos antigos. Ao eliminar-se a religião da vida pública, com o processo de separação entre a Igreja e o Estado, removeram-se ao mesmo turno as sanções religiosas da política promovendo o desaparecimento do fenômeno político que a Igreja Católica Romana adquirira como herdeira do Império Romano: a autoridade. A crise da autoridade é a marca da era moderna e sua ausência, no contexto de Estados laicos, significou o declínio de um dos alicerces de sustentação do Ocidente. Não possuindo mais base fenomênica no mundo moderno, seu descaminho equivaleu à perda de permanência e segurança na política. Somente quando as revoluções modernas do século XVIII se sucederam, um novo começo pôde passar a ser pensado e o curso futuro dos acontecimentos, cair consequentemente em suspenso. Pois quando a soberania do moderno Estado-nação substituiu as formas absolutistas de organização do Estado, baseadas ainda na teoria do direito divino, a necessidade de um ato de fundação duradouro, uma novus ordo seclorum por obra dos homens de ação, abriu-se num horizonte ameaçado justamente de esquecimento. Com a derrocada da tradição e seus valores, perdemos também o fio de Ariadne que nos guiava com segurança nos vastos labirintos do passado; e esse fio exercera por sua vez o papel de cadeia “que aguilhoou cada sucessiva geração a um aspecto determinado do passado”, viabilizando então o fenômeno da autoridade: a produção continuada de significados que remetem a uma mesma corrente de sentidos (ARENDT, 2003, p. 130). Daí a sensação de perda de sentido - e a consequente atomização típica do indivíduo no mundo moderno - e de ausência de unidade de significação comungada politicamente. Pois sem a âncora da tradição, toda uma dimensão temporal do passado foi colocada em perigo: a ameaça de esquecimento da profundidade e grandeza da existência humana.

Tal olvido se deveu a uma má compreensão das noções de poder e autoridade que teria como causa fundamental a alteração que temos experimentado em nossa relação moderna com o tempo. Se a liberdade é um fenômeno essencialmente espacial, tendo como corolário a falta de moderação (hybris e thymós) ligada à imprevisibilidade inerente à sua atividade, a autoridade se relaciona com o tempo. Seu caráter temporal estaria atado à sua essência derivativa de uma fundação capaz de manter a duração de um mundo comum. Enquanto o espaço público viabiliza a convivência com nossos pares, a vigência da autoridade e da tradição à qual está ligado permitiria que estabelecêssemos laços duradouros com nossos antecessores e sucessores. Da concepção antiga de história, segundo a qual esta se daria em um movimento cíclico, passamos a um estágio diferente de seu ciclo em que a tradição política foi reinaugurada através de um fenômeno até então desconhecido anteriormente. Introduzindo um hiato no fio contínuo de percepção da história, o fenômeno moderno da secularização e suas revoluções instauraram, portanto, uma nova consciência histórica e uma nova relação com o passado em que este, na expressão de Tocqueville, deixou de iluminar o futuro e nosso pensamento passou a vaguear em trevas. Com o vazio deixado aberto pela secularização, a confiança na sagrada sanção da política desaparecera trazendo novos problemas para a convivência humana. Assim, em Da Revolução, sua obra mais constitucionalista, ela chega a afirmar que, na forma que a República americana assumira, não havia mais espaço reservado para o exercício daquelas qualidades que haviam servido justamente para edificá-la:

se a fundação era o objetivo e o fim da revolução, então o espírito revolucionário não seria simplesmente o espírito de dar início a alguma coisa nova, mas de principiar algo permanente e duradouro; uma instituição permanente, que englobasse esse espírito e o estimulasse a novos empreendimentos, estaria sentenciando seu próprio fracasso. Disso, infelizmente, se pode depreender que nada ameaça mais perigosamente e mais profundamente as aquisições da revolução do que o espírito que as suscitou. Seria a liberdade, na sua acepção mais exaltada, ou seja, a liberdade de agir, o preço a ser pago pela fundação? [...] a revolução, embora tivesse dado liberdade ao povo, não conseguira proporcionar um espaço onde essa liberdade pudesse ser exercida (ARENDT, 1963, p. 186-188).

Ora, a questão revolucionária por excelência sempre fora a questão da fundação do novo e sua institucionalização, e jamais a miséria ou a limitação do poder. Mas desde que na modernidade a ruptura com o passado e a tradição conduziu-nos a uma perspectiva na qual os vínculos sociais e geracionais passaram a emanar de projetos de futuro, a dificuldade de equacionar uma obediência dos vivos na qual as pessoas mantenham sua liberdade - e a autoridade é justamente o fenômeno político que soluciona essa delicada equação necessária para o governo funcionar - persistiu como resíduo deixado pelo constitucionalismo americano. A incompreensão da natureza da Revolução, e posteriormente seu esquecimento, conduziram à perda do espírito presente em seus Pais Fundadores e à transformação de seus princípios políticos em valores sociais. Pois toda vez que as revoluções apareceram na cena política, fomos tentados a interpretá-las conforme as imagens da Revolução Francesa, impregnadas pelo problema da prosperidade e pobreza, bem como de libertação do absolutismo. Enquanto em Da Revolução as análises de Arendt se encontravam emaranhadas em meio às dificuldades enfrentadas pelos próprios revolucionários, em outros ensaios ela assevera a imprevisibilidade intrínseca ao próprio conceito de liberdade como razão de ser para o problema da instabilidade política3. A menos que possamos construir uma empresa, uma nova ordem secular em que a contribuição positiva de cada um de nós receba seu lugar e relação com outros, estaremos fadados a repetir o destino da Revolução Francesa: Napoleão.

Uma das teses mais capitais dos escritos arendtianos diz respeito ao mútuo pertencimento dos homens ao mundo (construído pelo homo faber) e da rede da ação e palavra (típicas do zoon politikon). O nó fulcral de suas argumentações aponta justamente para a diferenciação entre essas noções que englobam sua concepção de ação: o zoon politikon, aquele que se engaja responsavelmente nos assuntos políticos exercendo a liberdade pública inter homines esse; e o homo faber que responde inter homines desinere pela construção e duração de estruturas artificiais, mais rígidas e duráveis do que as ações que acomoda; que resistem ao tempo e são capazes de abrigar um espaço público. Pois aquilo de que o animal político mais necessita é que sua grandeza seja percebida em palco público e suas ações dignas de lembrança. Mas seus ditos e feitos podem cair em esquecimento tão logo não sejamos capazes de salvaguardá-los sob os auspícios de instituições públicas.

Sabemos, contudo, que desde a publicação de A Condição Humana um remédio necessário para o problema da instabilidade política possa estar contido na capacidade humana de realizar promessas, de comprometimento público diante de outros, frente às desconhecidas exigências das circunstâncias futuras. Conquanto seja legítimo encarar Abraão como seu descobridor, o poder de prometer pode ser remontado ao sistema jurídico romano de inviolabilidade dos tratados, pacta sunt servanda, em que os próprios deuses serviam como garantia sancionadora em caso de descumprimento de acordos feitos com os povos bárbaros conquistados. Situada na raiz de todos os pactos estabelecidos, a promessa de um futuro comum redimiria a ação de sua intrínseca imprevisibilidade devida à falta de confiabilidade dos atores, que não podem antecipar hoje as consequências de seus atos dentro de uma comunidade de iguais. Longe de consistir num cálculo probabilístico de planejamento e antecipação do futuro, ela estabeleceria simplesmente “ilhas de previsibilidade” e balizas de confiança que permanecem dentro de “um oceano de incertezas.” Ao mesmo tempo, sempre que os homens têm êxito em manter intacto o poder que emerge entre eles, dirá Arendt, eles já se encontram dentro do processo de fundação de algo novo no mundo. Ao referir-se a um espaço político de concertação humana, a faculdade de realizar promessas se torna necessária para outorgar validade e esperança a seus afazeres. Se os gregos costumavam alojá-la dentro do último dos males da caixa de Pandora, Arendt acredita que a esperança romana de um futuro comum resultante da promessa ative também a capacidade de construção do mundo.

Vincular-se e prometer, combinar e pactuar são os meios pelos quais o poder é mantido em existência; sempre que os homens têm êxito em manter intacto o poder que nasceu entre eles durante o curso de qualquer ato ou feito particulares, eles já estão no processo de fundação, de Constituição de uma estrutura mundana estável para abrigar, por assim dizer, seu poder combinado de ação. Há um elemento da capacidade humana de construção do mundo na faculdade de fazer e manter promessas. Assim como as promessas e acordos lidam com o futuro e provêem estabilidade ao oceano de instabilidade futura onde o imprevisível pode irromper de todos os lados, assim a capacidade humana de Constituição, de fundação e de construção do mundo concernem não tanto a nós mesmos e a nosso tempo na terra quanto a nosso “sucessor” e à “posteridade” (ARENDT, 1963, p. 175).

Pois assim como uma promessa, uma constituição surgiria para abrigar nossa liberdade, ao mesmo tempo criando o novo - o poder político - cuja importância e objetividade consistiriam em mitigar a imprevisibilidade aberta pelas ações humanas. Nesse sentido, a Constituição não teria outra meta senão a conservação do poder, não podendo ser desvencilhada de sua fundação ou da experiência política concreta de que emergiu. Tal como Benjamim Franklin já advertira à senhora Powel, o relevante no ato de prometer não reside apenas na gramática de sua ação, mas na sintaxe de poder que emerge da tarefa de sua manutenção. A autoridade de uma constituição não seria produto da força ou violência de seus formuladores, mas residiria na boa vontade de todos em tratar o evento da fundação e seu corpo de leis enquanto um ponto gravitacional de referência para toda a política subsequente. Como uma tarefa em andamento, ela seria como a redação de um artigo para quem o escreve, um work in progress sempre a esperar a feliz interpretação de suas mensagens num processo de construção e reconstrução que se faz a partir de sua releitura. Logo, a constituição não precisa se tornar necessariamente objeto de referência e adoração “quase sagrada” como para os americanos, mas, sim, de aperfeiçoamento e emendas, aumento e conservação de autoridade mediante a renovação dos pactos; ultrapassando assim em duração o tempo de vida de seus Pais Fundadores. Justamente por não se apoiar numa relação privada de mando e coerção, a autoridade da Constituição pode ser compreendida como algo que não anula a liberdade de ação, mas apenas restringe sua imprevisibilidade e típica falta de moderação (thymós). A força e o vigor primeiros de que é proveniente apenas aumentam e confirmam as experiências dos indivíduos na medida em que a autoridade, na fórmula de Mommsen, é mais que um conselho e menos que uma ordem, situando-se num horizonte entre a persuasão política e as relações de mando e obediência.

Mas ainda que os Estados Unidos tenham feito o esforço constitucional de unir os dois elementos do espírito revolucionário, a novidade, a capacidade de começar, com a estabilidade, corremos sempre o risco inerente à preocupação de seus Pais Fundadores: a instabilidade política de não sermos capazes de legar às gerações vindouras o legado prometido de duração em nossas promessas. Sob outras palavras, a maior ameaça à Constituição acabada emergiu precisamente da mentalidade daqueles que a fizeram existir. De maneira mais estranha, eles deram liberdade ao povo, mas pouco espaço em seu sistema representativo para que ele em seu nome próprio a exercesse. Disto também segue outro corolário: que os padrões de autoridade que devam prevalecer, ao se edificar como homo faber um mundo novo de coisas que habitaremos, possam perder sua validade e se tornem potencialmente perigosos ao serem aplicados ao mesmo mundo livre projetado. À proporção da transferência de felicidade pública, que antes pertencia ao povo, para seus representantes numa democracia indireta, abandonava-se por outro lado a felicidade de participar ativamente do poder em prol dos sonhos futuros de prosperidade laboral e consumo de massas que ameaçavam a estabilidade da estrutura política almejada.

Na impossibilidade de darmos uma resposta cabal a este problema que assalta a organização republicana no contexto das sociedades de massa, a questão da autoridade, propomos no restante desse artigo resgatar como solução parcial o itinerário subjacente que levou Arendt a tratar dos impasses da nascente república americana: a Grécia antiga e Roma. A questão que nos importuna agora consiste em que, embora o espírito revolucionário tenha trazido consigo fagulhas de liberdade pública vivenciadas antigamente por gregos e romanos, seu tesouro tenha sido perdido por não se encontrar para ele uma instituição apropriada, na medida em que passava a se afastar do exemplo dos antigos mediante a típica engrenagem de seu sistema representativo bicameral. Sem desconsiderarmos os variados registros helênicos que propiciaram a Arendt sua base de interpretação da política, serão as características da antiga Roma que lhe servirão de inspiração para como tornar estável e duradoura uma República. Em várias de suas passagens sobre o pensamento antigo acerca do que foi o fenômeno político de autoridade, acreditamos encontrar janelas de imaginário que abram ao pensamento possíveis soluções para o problema da fundação de um novo corpo político em nossos tempos. Fica-nos a impressão de que seu conceito de ação dependa de um acesso diferenciado ao passado, que se esconde nas entrelinhas da tradição de nosso pensamento político, e que fundamentaria a capacidade dos indivíduos de agir. Arendt acredita que a perda da trindade romana, baseada no amálgama sacro entre a religião, autoridade e tradição, rompa com uma continuidade com o passado, tornando-o fragmentado e exigindo um novo método para sua compreensão. Não à toa suas análises apoiam-se na fecundidade quase cega do modelo romano adotado pelos Federalistas, ao fazerem derivar de seu começo a estabilidade e a autoridade de todo o corpo político.

Se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de natureza política, e que o famoso “Declínio do Ocidente” consiste fundamentalmente no declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza. [...] Como quer que seja, as revoluções que habitualmente consideramos como sendo rupturas radicais com a tradição, surgem em nosso contexto como acontecimentos nos quais as ações dos homens ainda se inspiraram nas origens dessa tradição, dela haurindo sua maior força. As revoluções parecem ser a única salvação que essa tradição romana-ocidental providencia para as emergências (ARENDT, 2003, p. 185-186).

Com as palavras da citação acima, fica-nos a tendência de diagnosticar a faceta mais conservadora do pensamento arendtiano a justificar seu detour por Roma. Pois se de acordo com suas análises desde As Origens do Totalitarismo estávamos habituados a pensar no fracasso da tradição de pensamento político ocidental em salvaguardar a dimensão radical do mal introduzido na civilização, em Da Revolução e em outros ensaios como “O que é autoridade?” e “Crise na Cultura” a tradição aparece justamente como aquilo de que mais necessitamos para fundar o novo. O aparente paradoxo de pensarmos o novo com determinações oriundas do velho, bem como o desafio ao pensamento suscitado à literatura de comentadores, tem sido objeto de controvérsias calorosas na mesma medida em que fora tema de debate e discussão pelos Pais Fundadores da República americana. Mas afinal de qual tradição nos fala Arendt? Existiriam duas tradições, uma de pensamento político a ser descartada e outra a iluminar o futuro com seu passado? 4 A seguir o espírito e a letra de suas considerações, nosso posicionamento consiste em afirmar que só existira uma única tradição. Pois se a filosofia grega de Platão e Aristóteles buscou exemplos retirados da vida privada e administração doméstica da oikia para justificar conceitualmente uma noção de autoridade, serão os romanos que alcançarão uma fundamentação política interpretando suas experiências a partir de noções gregas. Entrevemos que tal imbróglio se deva ao fato de os romanos terem escolhido os gregos como seu povo gêmeo, inventando a noção política de autoridade ao estabelecerem um vínculo de sua existência histórica a um mesmo empreendimento original: uma guerra de aniquilação como veremos na sequência5.

Na tentativa de acompanharmos seu raciocínio genealógico, as questões da artificialidade da ação e sua ausência de institucionalização na Grécia antiga serão analisadas à luz das experiências romanas de autoridade e fundação. Ambas as últimas colocam a vinculação da ação com um momento histórico constitutivo da civilização ocidental e expressam a política enquanto um “aumentar” deste momento fundador que seria a base do conceito arendtiano de autoridade. Seguindo nossa autora, esse “aumento” também estaria presente na própria raiz epistemológica da palavra - auctoritas, augere - em que crescer significava dirigir-se ao passado. Ao contrário de nossa perspectiva moderna, que projeta nosso engrandecimento e desenvolvimento sempre para o futuro, os romanos acreditavam que a noção de autoridade impunha a exigência de enaltecer a experiência primeira de fundação de sua República. Assim, o Senado, invenção tipicamente romana, obtinha seu prestígio e legitimidade maiores por descendência e transmissão daqueles que haviam lançado no passado suas fundações. Se potestas in populi, auctoritas in Senatu sit. Dado que a fundação da “cidade eterna” constituía uma experiência única e irrepetível, a preocupação por parte dos vivos em conquistar a permanência daquilo que fora originado por seus antepassados, ligando-o às gerações futuras, ressignificava o gesto primevo de lançamento das bases políticas de Roma. Daí o caráter sacro que marca desde o início e para todo o sempre a medida de suas ações futuras; ao reapresentar um excesso de significação, expresso em formas mitológicas tal qual a epopeia Eneida de Virgílio, que possibilita a continuidade duradoura de novos significados relativos ao ato de fundação6.

Pois, diferentemente de Atenas, Roma formulou a ideia de contrato entre povos e detinha uma noção de futuro: o direito sem o qual a própria institucionalização seria impossível. A solução para os problemas que os afligiam no contato com os estrangeiros originou o conceito de direito e a extraordinária importância que o pensamento romano deu à formulação das leis. Elas surgiram porque um tratado deveria ser firmado entre seus habitantes originais, os “maiores” que haviam lançado suas fundações, e os recém-chegados, de modo a incorporar a orbe inteira a um sistema de tratados que aumentava seu prestígio e imponência. Para Arendt, a politização romana do espaço entre a pluralidade de povos marcou o início do mundo ocidental enquanto separado dos povos bárbaros, na medida em que toda lei cria justamente um espaço no qual é válida e em que podemos nos mover em liberdade. A durabilidade temporal de suas instituições, desde o nascimento da República até os estertores do Império, logrou emprestar às coisas do mundo uma relativa independência dos homens que as produziram, fornecendo a eles ao mesmo tempo o critério de sua objetividade e permanência. Embora caro seja o exemplo americano de participação horizontal na política e de fundação republicana, argumentamos que sem a existência de um corpo político que se situe verticalmente acima da persuasão exemplar, reinventado pelos americanos com a criação legal de sua Suprema Corte, não será possível revivermos uma esfera política sem sermos confrontados novamente com os problemas elementares da convivência humana e suas necessidades vitais. Pois afinal, no dizer de Hannah Arendt, “nenhuma revolução, por mais que tenha aberto os portões para as massas populares, jamais foi por elas iniciada”. As revoluções “são a consequência, e nunca a causa da decadência da autoridade política” inventada pelos romanos (ARENDT, 1963, p. 92-93).

O resgate da dimensão política antiga

“Lembra-te romano de que esta será a tua missão: governar as nações; manter a paz sob a lei; poupar os vencidos; esmagar os soberbos.” (Virgílio)

“A República é só uma palavra!” (Caio Julio César)

Diversos são os porquês que conduziram Hannah Arendt a uma reavaliação da política no mundo antigo à margem das experiências modernas. Mas um deles, contudo, se sobressai diante dos demais: a questão da guerra e as ondas de terror que percorreram o mundo do século XX. E se a questão da guerra e seus corolários de aniquilação do mundo assolam seu pensamento desde As Origens do Totalitarismo de 1951, no ambiente de Guerra Fria da década de 1950, prévio à coexistência pacífica entre as duas grandes superpotências, eles se tornam a bola da vez dos escritos arendtianos para explicar a adesão das massas ao sistema totalitário, aonde o fenômeno da autoridade política já parecia ter desaparecido por completo de nossa civilização. Temas comuns que perpassam a redação de breves artigos como Sonho e pesadelo, A Europa e a bomba atômica e A ameaça do conformismo, todos publicados em periódicos de grande circulação, são o horror que se estende além de toda imaginação e a indignação própria como reação individual à percepção do significado de uma guerra total7.

O fato é que a possibilidade de extermínio de povos inteiros e a destruição total de civilizações pareciam impossíveis a princípio desde os dias de Roma até os primeiros estágios da idade moderna. Do significado da palavra romana “clemência” tão famosa na Antiguidade, parcere subiectis, a indulgência para com os vencidos através da qual se organizou um mundo inteiro dentro e fora de suas possessões (Urbe et Orbi), ao retiro e isolamento do homem moderno no interior de si mesmo, seria impensável a existência de uma guerra de proporções mundanamente incalculáveis. Mas desta vez os limites à ação violenta do homem foram ultrapassados de tal modo que a lição romana de que a destruição causada pela força bruta deveria ser sempre parcial à vitória fora esquecida8. Quando os objetivos de guerra já não são limitados e quando em nossos tempos a política de equilíbrio de poderes entre as nações já não se revela mais eficaz, sob o risco de que o conflito termine não com um tratado de paz entre os beligerantes, mas com a destruição física e política do inimigo, a guerra deixa de ser a ultima ratio de negociações e começa a extrapolar as fronteiras da própria política. Assim, os limites inerentes à ação violenta e à ira de Aquiles (Menin) são transgredidos e o comportamento civilizado que a humanidade exige de si mesma é desrespeitado. Com o intuito precisamente de contemplar o significado político de uma guerra de aniquilação que outra vez mais nos ameaça - e sem jamais apelar a noções retiradas do arcabouço do moderno jus in bello ou recorrer a noções jusnaturalistas como a de “direitos inalienáveis” do homem - Hannah Arendt escolheu simplesmente olhar o passado a fim de nele encontrar raízes que esclareçam, em primeiro, nosso “pecado mortal da política”: a inédita possibilidade de massacre de um “povo inteiro e sua constituição política, que contêm em si mesmos em potencial - uma intenção, no caso da constituição - de imortalidade” (ARENDT, 2008a, p. 221). E em segundo, que a violência aplicada doravante não se dirige mais

apenas a coisas que foram produzidas [...] mas também a uma realidade histórica e política alojada nesse mundo de produtos, realidade que não pode ser reconstruída por não ser ela própria um produto. Quando um povo perde a sua liberdade política, perde a sua realidade política, ainda que consiga sobreviver fisicamente (ARENDT, 2008a, p. 221).

As citações acima foram retiradas de um livro nunca em vida publicado por Arendt intitulado A Promessa da Política. Ao redigi-lo diante da ameaça de guerra de aniquilação iminente com a escalada nuclear entre as superpotências durante os estágios iniciais da Guerra Fria, seu leitmotiv consistia basicamente na comparação ente os paradigmas gregos e romanos em resposta à guerra de aniquilação. Sabemos que o arquétipo de tal guerra fora elaborado por Homero em sua Ilíada; ou seja, a guerra de Tróia cujos vitoriosos micênicos foram considerados os antecedentes dos gregos e os vencidos troianos ancestrais dos romanos. Seguindo a leitura de Arendt, pela glorificação desta guerra, gregos e romanos definiram com suas diferenças e similitudes o verdadeiro significado da política e seu lugar na história.

A respeito dos gregos, ela nos recorda que Homero foi considerado a fonte enciclopédica básica da Paideia humana, o educador por excelência sempre a narrar os acontecimentos com a mesma imparcialidade desde que relatou os ditos e feitos do vitorioso Aquiles bem como do derrotado Heitor, tratando-os com igual reverência. Esse extraordinário sentido homérico de justiça e retidão não corresponderia à objetividade da ciência moderna destituída de valores subjetivos, mas a uma postura política perfeitamente isenta em face de interesses particulares que marcou o fazer histórico na Antiguidade. A despeito de nossa crença moderna na possibilidade de um juízo de valor acerca do curso dos eventos históricos que paire sobre os ares do convívio humano, o olhar homérico consistiria em muito mais do que apenas colocarmos de lado nossos interesses privados, perdendo assim nosso interesse pelo mundo e pelas coisas que se sucedem nele. Pois sua capacidade e juízo de gosto em ver o mesmo evento sob vários pontos de vista, assevera Arendt, permanecia inserida no mundo humano e revelava a percepção política mais ampla de todos os olhares sob os quais uma ação poderia ser julgada. Ou seja, olhares sob os quais toda vitória pudesse se mostrar tão equívoca quanto a de Aquiles e toda derrota tão louvável quanto a de Heitor. De alguma maneira, tal isenção e pluralidade presente na escrita de um homo faber como Homero, e depois reencontrada em Heródoto e Tucídides, apagaria a aniquilação dos diferentes ao reconstruir um mundo conferindo um significado póstumo às ações dos vencidos9.

Todavia, tamanho esforço grego em transformar guerras de aniquilação em guerras políticas, ainda que contivesse uma mentalidade alargada ao salvaguardar do esquecimento os ditos e feitos de gregos e troianos, permaneceu refém dos limites próprios à memória poética e histórica que o círculo de cada cidade reservava a seus cidadãos. Confinada dentro dos muros de uma polis, a política grega não se estendia para além de suas bordas na relação com outros povos ou cidades. Além disso, ao invés de louvar os gregos sem demais reservas por sua capacidade pública de observação e juízo dos acontecimentos, Arendt também aponta que foi a figura de Aquiles e seu thymós, em seu “incessante esforço de distinção [...] que se converteu em padrão distintivo gregos em sua polis como tipo humano” à custa de todos os outros fatores (ARENDT, A Promessa da política, p. 233). Ao mesmo tempo em que o empreendimento grego de transformar guerras de aniquilação em guerras políticas nunca fora tão profundo quanto na recordação homérica, ela afirma que ao final foi a incapacidade de operar justamente essa transformação que levou à ruína as cidades-estados da Grécia Antiga. Pois tal enobrecimento pedagógico do homem pela narrativa da Guerra de Troia, ao se restringir ao espaço da ágora homérica no interior de cada cidade, encontrou seus limites para os gregos na relação que mantinham exteriormente com outros Estados. Se a política para os gregos, devido à transposição do ethos guerreiro de Aquiles para o discurso, sempre fora vista no interior de cada cidade como a continuação da guerra pelos meios da persuasão e do combate agonístico; na esfera do que hoje compreendemos por política externa, a negociação e a conclusão de tratados foram entendidas pelos gregos como a mera continuação da guerra por outros meios: os meandros diplomáticos da astúcia e do engodo, tão típicos da metis de Ulisses. Daí Arendt afirmar que a guerra para os gregos pertencia a uma esfera não política. Desde que a política diz menção não apenas à relação dos homens entre si, mas ao mundo que surge entre eles e permanece para além deles, os gregos deterão uma compreensão da política bem ao contrário dos romanos, para quem a política começará justamente na criação de uma promessa comum, pacta sunt servanda, com seus antigos inimigos.

Ipso facto, enquanto a glória da imortalidade conquistada pelos gregos no campo de ação significava estritamente o brilho das grandes realizações que revelava a areté, a excelência individual do agente, os romanos ampliarão tal noção com o intuito de conferir posteridade a ela, estendendo-a ao cuidado com o mundo e sua reputação (auctoritas) e linhagem de descendentes (potestas): a garantia de sua imortalidade terrena. Tamanha diferenciação se encontra na raiz da fundação de Roma e na elaboração de sua experiência de autoridade, na medida em que se consideravam descendentes não de Rômulo, mas de Eneias - valoroso guerreiro troiano tão louvado na Ilíada quanto Heitor. A genialidade política romana se distinguia pelo fato de eles se declararem herdeiros dos troianos e assumirem a tarefa de Eneias: desfazer a derrota de Heitor e a aniquilação de Troia em seu solo de italiotas. Invertendo-se as relações do poema de Homero na lenda de Virgílio sobre a fundação da “cidade eterna”, os romanos deduziam sua existência política de uma derrota da qual retiraram a refundação da antiga Troia e um novo lar para seus deuses. Ao assumirem o ponto de vista moral dos vencidos e conscientemente atribuindo sua própria existência política a uma derrota seguida de uma nova fundação, os romanos estavam aptos a reconhecerem a causa dos derrotados mediante um novo tratado.

É como se uma realidade plena e consumada tivesse se estabelecido ao lado da ambigüidade e imparcialidade poéticas e espirituais do poema de Homero, como se algo que nunca fora realizado na história e aparentemente não pudesse se realizar tivesse enfim se realizado: a plena justiça para com a causa dos derrotados, não no julgamento da posteridade, que sempre foi capaz de dizer, como Catão, “victix causa diis placuit sed victa Catoni” (a causa do vitorioso agradou aos deuses, mas a do derrotado agradou a Catão), mas no curso da própria história (ARENDT, 2008a, p. 235-236).

Remetendo sua existência histórica e política a essa repetição da Guerra de Troia na planície do Lácio e inventando um novo desfecho para que ela não terminasse novamente na aniquilação dos vencidos, e sim num perdão que se consuma na aliança ou tratado com eles - da qual emergirá a experiência política da autoridade -, os romanos remediaram a principal deficiência da perspectiva política grega. Como continuação natural de toda guerra, os tratados de Roma assinalavam com sua bona fides “o desenvolvimento da política no lugar exato onde ela atingira o seu limite e chegado a seu fim entre os gregos” (ARENDT, 2008a, p. 240). Vinculando diferentes povos e incorporando a causa dos vencidos ao processo histórico de construção da civilização romana e ao curso da história, isto é, ao movimento da ação em seu futuro, os tratados de paz propiciavam o surgimento e a continuidade de um novo mundo compartilhado sob os auspícios da autoridade e fundação de Roma. Assim também, compreendendo a atividade legislativa como pertencente à esfera política, a lei romana das Doze Tábuas resultou de um contrato entre os patrícios (“maiores” ou “originais) e os plebeus (“novos” ou “recém-chegados”). Se os primeiros comporão a autoridade do Senado romano e os segundos a capacidade de iniciativa própria à potestas in populi, é forçoso reconhecer que a res publica romana surgirá desse laço duradouro entre partes anteriormente hostis.

Resumindo, o empreendimento de Homero seria equivalente a um mero resgate póstumo dos vencidos sem conferir a eles a dignidade moral própria à sua perspectiva, como o farão os romanos em sua política externa com os povos bárbaros a serem civilizados, incorporando a orbe inteira a um sistema de tratados e alianças que compunha a societas romana. Pois um resgate próprio aos vencidos nunca fez parte da perspectiva política grega. Uma das razões para tanto se devia ao fato de os gregos situarem a atividade legislativa na esfera pré-política das ações de um homo faber, identificando legislação e arquitetura, sem perceberem que ela poderia pertencer à esfera do zoon politikon e providenciar ao mesmo tempo, com base em sua capacidade de prometer, um remédio para sua fragilidade. Será isto justamente o que os romanos jamais irão negligenciar mediante sua faculdade de perdão. Tipicamente romano, pois, era estender a mentalidade à causa dos antagonistas de sua existência - com a devida exceção à soberba dos cartaginenses que não perdoavam nunca e jamais cumpriam suas promessas - e reconhecer a qualidade moral que justificava seu não sacrifício ao serem mantidos vivos em prol da expansão, augere, e auctoritas de Roma. A longevidade de suas instituições, bem como a expansão territorial conquistada historicamente até o período da dinastia dos Antoninos, fora devida justamente à gravitas romana, uma arraigada seriedade que definia os traços característicos do ethos de seu povo. Devido a esse traço característico da mentalidade romana, é muito provável que os gregos, com seu aspecto agonístico de afirmação das individualidades, considerassem os romanos um povo tedioso ou até mesmo sem imaginação; na medida em que a noção de gravitas sustentava a obediência à autoridade através da qual a destreza de Roma não residia em sua grandeza específica, mas na capacidade de fazer cumprir suas leis e promessas ao redor do mundo, tal como difundida na mitologia romana e expressa na epígrafe de Virgílio a este item. Ipso facto, o preço pago por esse aumento de autoridade romana por meio de sua capacidade sem precedentes de formar alianças foi justamente a perda da imparcialidade grega e homérica. Numa palavra, impossível a plena justiça à causa dos derrotados sem também a glorificação dos vencedores. Daí por diante, quanto maior a autoridade, a gravitas romana e o respeito aos seus ancestrais, menor a capacidade cosmopolita de registrar historiograficamente a diferença de outros povos a partir de seus próprios pontos de vista. A causa moral dos vencidos servira aos romanos como meio de expansão de sua auctoritas: ab urbe condita, mas não como mentalidade alargada. 10

A título de curiosidade residual sobre as peculiaridades que distinguem gregos de romanos, é válido registrar que também os romanos sofreram com os excessos resultantes da afirmação individual do ator no campo da ação, à custa dos fatores de institucionalização mundana. Embora tenham sido o povo que inventou a noção política de autoridade e a criação do Senado, eles enfrentaram crises institucionais durante os estertores de sua República. Personagens históricas que marcaram a passagem da república ao império, como o ditador Julio César, testemunharam a dificuldade em reconhecer as instituições romanas como entidades autônomas, encarando-as como instrumentos próprios ao jogo de forças político que compõe a iniciativa humana, mas não sua autoridade. Não fosse a genialidade política de seu sucessor Augusto ao formular a ideia de principado para salvaguardar a societas de Roma sob outro regime, César poderia muito bem ter destruído as instituições da república, na busca incessante pela glória e esplendor de seus feitos individuais. Em sua ânsia e luta thimótica de reconhecimento pela grandeza de suas ações, César mais se aparentava à hybris grega e ao herói Aquiles, que às expensas de todos os interesses públicos afirmava sua individualidade, do que aos antecessores romanos fundadores da res publica e da civilização romana no Lácio. Ou seja, um grego na Roma antiga, entre outros tantos ditadores durante a crise institucional que caracterizou o fim de sua República.

Conclusão

Vimos de abordar as questões que atravessaram o constitucionalismo moderno desde a fundação da República norte-americana, passando pelo modo grego e romano de tratar os limites inerentes à esfera da ação discursiva. Tendo em vista nossas considerações terem se debruçado sobre o mundo de ação e discurso criado na teia de relações humanas, e o risco contemporâneo dele se esvair conjuntamente ao mundo criado por artefatos humanos, foi nosso objetivo extrair deles uma lição dupla: o significado da política e o lugar que ela deveria ocupar na história em nossos tempos. Da primeira pudemos retirar com Hannah Arendt uma noção grega alargada de justiça; ao passo que da segunda, uma concepção romana e moral do curso dos eventos históricos. Neles foi possível reencontrar também, ademais da angústia que afligia o espírito dos Pais Fundadores da Revolução americana, a associação entre o sistema de relações estabelecido pela palavra e ação (zoon politikon) e o mundo produzido pelo homem capaz de dotá-lo de durabilidade (homo faber). Enquanto os gregos identificavam a legislação a uma fabricação, os romanos em contraposição terão a singularidade de identificar legislação e fundação política em termos de ação situada dentro da esfera humana da pluralidade.

Haja vista a ação nunca ter sido o começo de alguma coisa ou um sequer um meio para um fim, aprendemos que desde o mundo antigo ela sempre fora uma categoria coletiva implicando a existência de um projeto comum. Ela se tornou um meio para um fim somente quando em nossos tempos perdeu a capacidade de exposição de “quem” o agente é; ou seja, uma abertura que não pode lançar mão de si sem estar inserida previamente na pluralidade capaz de abrigá-la e dotá-la de sentido. Isto acontece, diz Arendt, sempre que os laços entre as pessoas estão perdidos ou se encontram em estado inoperante. Em meio ao terror totalitário de destruição das relações inter-humanas, é o mundo surgido entre os seres humanos que se encontra em desabrigo diante da ineficácia dos códigos morais e teorias políticas ao tentarem excluir em nossa época a possibilidade de uma nova guerra de aniquilação das instituições que, ao mesmo tempo, abrigam nosso mundo. Ora, mas fora precisamente dentro do domínio político grego do falar e do agir que essa qualidade pessoal de exposição do zoon politikon se pôs em evidência, na qual o “quem” se manifestava sempre mais que as qualidades e talentos individuais que possa possuir. A este respeito, o domínio público se opõe ao domínio no qual o homo faber se movimenta, aonde o que importa são o talento e a qualidade dos objetos que fabrica a partir de seu retiro. Mas o espírito público de gosto, que inspirara ao mesmo tempo as ações desde os revolucionários americanos, jamais julgava essa qualidade; ele apenas tentava conferir-lhe uma significação humanística tendo como tarefa servir de juiz e mediador entre as atividades fabris e políticas que se opõem de infinitas maneiras. Se de um Pórcio Catão Arendt irá retirar futuramente em sua última obra, A Vida do Espírito, a epígrafe que lhe servirá como exemplo introdutório para esclarecer o funcionamento do juízo público, da oponibilidade entre o homo faber e o zoon politikon ela irá retirar a lição da humanitas romana que aprendera com Cícero11.

Na tentativa, portanto, de recuperar o tempo perdido e um critério de redenção para a futilidade da ação, Arendt reencontrou em exemplos retirados da História e da Poesia, alheios à tradição de pensamento político ocidental posto que imperativos à reconstrução do mundo, maneiras de “enobrecimento pedagógico” necessário para a interpretação do significado da política, bem como de seu lugar no espírito daqueles que virão a este mundo depois de nós. De tal modo que, em nossa impossibilidade ou descrença em refazer novas instituições que abriguem outra vez o espaço da liberdade, no contexto hodierno marcado pela luta pela sobrevivência e choques corporais, acreditamos que seu inusitado detour da antiguidade romana ao pensamento grego, e vice-versa, se encontre justificado pela necessidade de dotar as ações humanas novamente de sentido.

Referências

ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

ARENDT, H. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008a.

ARENDT, H. Compreender. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008b.

ARENDT, H. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1963.

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003.

HANSEN, P. Hannah Arendt: Politics, History and Citizenship. San Francisco: Stanford University Press, 1994.

Notas

1 “[O]s homens da Revolução Americana permaneceram homens de ação do princípio ao fim, da Declaração de Independência à organização da Constituição. Seu sólido realismo nunca foi submetido à experiência da comparação, seu senso comum nunca foi exposto à absurda esperança de que o homem, que o cristianismo tinha como pecador e corrupto por natureza, podia ainda revelar-se um anjo.” [...] “O que a Revolução Americana efetivamente fez foi trazer a nova experiência americana e a nova concepção americana de poder para o domínio público.” (ARENDT, 1963, p. 75;133).
2 Embora a citação retirada esteja incluída na redação do ensaio “O que é autoridade?” de Arendt, ela recorda ao mesmo tempo a situação de crise na educação na América, tema de outro ensaio de Entre o Passado e o Futuro, que revelava no contexto de ausência de autoridade da década de 1950 sua incapacidade de abrigar e preparar os jovens para o mundo dos adultos.
3 Vide como exemplos seu ensaio sobre A Europa e a Bomba Atômica em que afirma: “As leis garantem ainda menos a liberdade do que a justiça; um arcabouço jurídico que pretenda garantir a permanência da liberdade não só mataria qualquer vida política como também aboliria inclusive aquela margem de imprevisibilidade sem a qual não pode existir liberdade.” (ARENDT, A Europa e a Bomba Atômica, em Compreender, 2008b, p. 436) e as passagens de A Condição Humana: “A fragilidade das leis e instituições humanas e, de modo geral, de todo assunto relativo à coexistência dos homens, decorre da condição humana da natalidade, e independe integralmente da fragilidade da natureza humana. As cercas que inscrevem a propriedade privada e protegem os limites de cada domicílio, as fronteiras territoriais que protegem e tornam possível a identidade física de um povo, e as leis que protegem e tornam possível sua existência política, têm enorme importância para a estabilidade dos negócios humanos precisamente porque nenhum princípio limitador e protetor resulta das atividades que transcorrem na própria esfera dos negócios humanos. [...] Contudo, embora as várias limitações e fronteiras que encontramos em todo corpo político possam oferecer certa proteção contra a tendência, inerente à ação, de violar todos os limites, são totalmente impotentes para neutralizar-lhes a segunda característica relevante: sua inerente imprevisibilidade.” (ARENDT, 2009, p. 204).
4 A título de curiosidade entre tantos comentadores que se debruçam sobre a questão sem poderem dar uma resposta cabal à angústia do leitor, consultar a bela obra de Philip Hansen: Hannah Arendt: Politics, History and Citizenship (1994).
5 A experiência política de autoridade entre os romanos era tão abrangente que se estendia para além da esfera política. A civilização helênica, através de sua expansão pelas realizações militares de Alexandre, foi sendo absorvida pelas conquistas militares romanas a partir do século II a.C. Os romanos não demoraram a perceber todas as ricas influências da cultura grega. De tal maneira que o povo grego derrotado é escolhido como autoridade, sobretudo em matéria literária com suas epopeias reescritas pela pena de Ovídio, Horácio e Virgílio. O curioso a notar é que os filósofos gregos se tornarão autoridade nas mãos justamente dos romanos com a absorção do pensamento de Stoa desde a República até o Alto Império; mas só nos estertores do Baixo Império, com Santo Agostinho, encontrarão finalmente sua forte influência na tradição de pensamento político-ocidental.
6 Conforme Arendt: “A autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos” (ARENDT, 2003, p. 164).
7 Guerra total neste contexto entendida como a destruição física de nosso habitat, o planeta Terra, desencadeada pelas ações sem freios da tecnologia nuclear e suas bombas atômicas. Segundo a tese de Arendt, desde que emprestamos à natureza a imprevisibilidade própria às nossas ações, estamos à mercê da destruição física dos artefatos mundanos que herdamos e que constituem o último bastião de objetividade e permanência neste mundo.
8 A título de curiosidade, é em Da República de Cícero que encontramos a primeira noção de guerra justa. Bem aos moldes romanos, a guerra seria justificada como meio para a obtenção da paz posto que as leis fossem inoperantes no estado de guerra.
9 “É de crucial importância que o canto de Homero não se cale a respeito do homem vencido, que testemunhe tanto em favor de Heitor quanto de Aquiles e que, embora estivessem ambas irrevogavelmente predeterminadas por decreto dos deuses, a vitória dos gregos e a derrota dos troianos não fizessem de Aquiles o maior e de Heitor o menor, a causa grega mais justa e a autodefesa de Troia menos justa. Homero celebra essa guerra de aniquilação [...] de modo a desfazer [...] essa guerra de aniquilação” (ARENDT, 2008a, p. 223-224).
10 A antiga virtude da clementia romana, relacionada com o ideal de educação do homem bondoso e cultivado nas letras e na moral assimilada da Grécia antiga (humanitas), mantinha relação de oposição com a noção de gravitas: a serenidade e compostura diante dos mos maiorum e da res publica. Será Cícero quem empregará a noção de humanitas como acumulação de civilidade, gosto, refinamento e saber. Ela significaria aquilo que torna o homem profundamente humano, o respeito pela pessoa humana e pelos outros e que se perpetua mesmo com sua morte. Ela atribui dignidade ao homem, fazendo-o humanus e politus, ajustando-se às suas gravitas, auctoritas e dignitas, atitudes de caráter romano. Exemplo de opositor ferrenho a essa assimilação do pensamento grego por Cícero pode ser encontrado na figura de Marco Pórcio Catão, cuja facção senatorial tentou impedir a invasão maciça da cultura e costumes gregos, que somadas às mudanças políticas inevitáveis da expansão da República romana, poderiam corromper as bases políticas de Roma e de seu regime aristocrático.
11 Vide o final do ensaio Crise na Cultura contido no corpus de Entre o Passado e o Futuro (ARENDT, 2003).


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por