Dossiê

“É a verdade uma mulher?”: Nietzsche contra a tradição filosóficaa

“Is truth a woman?”: Nietzsche against the philosophical tradition

"¿Es la verdad una mujer?": Nietzsche contra la tradición filosófica

Marcelo Leandro dos Santos
Universidade do Vale do Taquari, Brasil

“É a verdade uma mulher?”: Nietzsche contra a tradição filosóficaa

Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 787-807, 2021

Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 12 Abril 2021

Aprovação: 07 Outubro 2021

Resumo: O traço polêmico da escrita de Nietzsche faz com que seu pensamento seja muitas vezes incompreendido ou marginalizado pela expectativa tradicional com que se costuma abordar textos filosóficos. Justamente em razão de seu estilo provocador, Nietzsche se qualifica como filósofo contrário à tradição. Seu caráter metafórico, que sempre abre margem ao risco de imprecisão e ao erro, mostra-se potente como discurso que critica a estabilidade dos métodos tradicionais da filosofia. Será aqui analisada a gravidade do recurso metafórico proposto por Nietzsche no seu empreendimento de desqualificar a tradição filosófica. De uma forma direta, serão avaliados os signos nietzschianos envolvidos na consideração de que os filósofos da tradição seriam inaptos para lidar com a verdade caso ela fosse considerada uma mulher, em função de sua decorrente negação do corpo na filosofia.

Palavras-chave: Nietzsche, Tradição, Metáfora, Mulher, Corpo.

Abstract: The polemical feature of Nietzsche's writing makes his thinking often misunderstood or marginalized by the traditional expectation with which philosophical texts are usually addressed. Precisely because of his provocative style, Nietzsche is qualified as a philosopher contrary to tradition. Its metaphorical character, which always opens the door to the risk of inaccuracy and error, is potent as a discourse that criticizes the stability of traditional methods of philosophy. It will be analyzed here the gravity of the metaphorical resource proposed by Nietzsche in his undertaking to disqualify the philosophical tradition. In a direct way, the Nietzschean signs involved will be evaluated in the consideration that the philosophers of the tradition would be incapable to deal with the truth if it was considered a woman, due to their consequent denial of the body in the philosophy.

Keywords: Nietzsche, Tradition, Metaphor, Woman, Body.

Resumen: El rasgo controvertido de la escritura de Nietzsche hace que su pensamiento a menudo sea malinterpretado o marginado por la expectativa tradicional con la que se acostumbra abordar los textos filosóficos. Precisamente por su estilo provocador, Nietzsche se califica a sí mismo como un filósofo contrario a la tradición. Su carácter metafórico, que siempre deja lugar al riesgo de imprecisiones y errores, resulta potente como discurso que critica la estabilidad de los métodos tradicionales de la filosofía. Aquí se analiza la severidad del recurso metafórico propuesto por Nietzsche en su afán por descalificar la tradición filosófica. De manera directa, se evaluarán los signos nietzscheanos involucrados en considerar que los filósofos de la tradición no podrían tratar con la verdad si se la considerara mujer, debido a su consiguiente negación del cuerpo en la filosofía.

Palabras clave: Nietzsche, Tradición, Metáfora, Mujer, Cuerpo.

Um corpo corajoso para a exterioridade do filosofar

“Toda a obra de Nietzsche é uma tipologia construída artisticamente que corporifica o seu pensamento.” (MURICY, 2017, p. 29).

A partir de seus estudos sobre Nietzsche, Gilles Deleuze parte da assertiva de que a filosofia tem contado, em boa escala, com comentadores da interioridade1. Se essa observação fosse estendida a toda tradição filosófica, Deleuze certamente consideraria Nietzsche como exceção. Claro, não sem antes reconhecer Espinosa como o precursor de tal exceção. O Nietzsche de Deleuze é, por oposição à tradição, o pensador da exterioridade que bateu insistentemente às portas do século XX. Mas como Nietzsche se apresenta com essa característica? O que significa, basicamente, essa exterioridade?

Há várias formas de tentar entender a exterioridade que Deleuze sinaliza em Nietzsche. Esse entendimento passa pela compreensão de certo atrevimento atribuído ao pensamento, somado à consideração do corpo como tema filosófico que foi histórica e culturalmente recalcado. Esses modelos nietzschianos situam o pensamento no movimento contrário ao comentário, à análise ou à celebração da interioridade. Filosofar, para Nietzsche, é de algum modo experimentar-se, o que tem pouco a ver com atingir determinados prazeres, exceto o prazer existencial de estar em constante exposição a riscos e perigos - a existência trágica. Não se trata, portanto, de uma defesa do hedonismo. Apresenta-se um plano coerente: “Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência” (NIETZSCHE, 1995, p. 53). Assim, experienciação é um critério nietzschiano, abrindo-se como método próprio do filosofar. Ele nega, portanto, a filosofia das interioridades e das essências, que sempre demandou a ontologia como método. Perpassa seu pensamento a denúncia de que desde a antiga Grécia tais práticas extirparam a dimensão trágica da existência. Em aproximação a Montaigne (e seus Ensaios), Katia Muricy escreve:

Quanto mais céticos, tanto mais críticos serão os filósofos de um novo pensamento, os “experimenta dores” por quem Nietzsche anseia para levar a cabo seu projeto de transvaloração. Como Montaigne, que se vê “sempre em aprendizagem e em prova”, Nietzsche reclama para si “o perigoso privilégio de poder viver por experiência, e oferecer-se à aventura”, ele, que pretende uma filosofia experimental. (MURICY, 2017, p. 20).

Embora a Filosofia tenha atravessado o Romantismo flertando com o trágico, Nietzsche acreditava que esse movimento era ainda tímido. Faltava o exercício intelectual que envolvesse o corpo, na medida em que, no jogo de afetos no qual Nietzsche percebe a vida, viver nunca deveria ser confundido com sua mera conservação. Deleuze detecta muito bem essa linha argumentativa de Nietzsche ao usar a frase atribuída a Deshayes, de que viver não é sobreviver2. Também faz parte da análise deleuziana a percepção de que “o que define um corpo é a relação entre forças dominantes e forças dominadas” (DELEUZE, 2018, p. 56).

Nesse contexto, ser um filósofo, ou vir a ser, exige a coragem de assumir-se como força corpórea; de saber, como Espinosa, o que pode um corpo3. Aqui se tem um ponto de sustentação na filosofia de Nietzsche. Assim, ele faz uma idealização do filósofo, que, sob inspiração da vida de Zaratustra, deve sempre pertencer à classe intuitiva. O filósofo deve saber intuir. E essa pretensão vai longe. Por exemplo, na sua análise autobiográfica, Nietzsche destaca em tom profético: “Algum dia serão necessárias instituições onde se viva e se ensine tal como entendo o viver e o ensinar: talvez se criem até cátedras para interpretação do Zaratustra” (NIETZSCHE, 1995, p. 52). Seu Zaratustra foi esculpido como aquele que investe o próprio corpo no filosofar:

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. “Eu” - dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior - no que não queres acreditar - é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu. (NIETZSCHE, 1990, p. 51).

Essa passagem do capítulo de Assim falou Zaratustra intitulado “Dos desprezadores do corpo” situa muito bem as pretensões filosóficas de Nietzsche, colocando-se em contraposição necessária à tradição da interioridade. A tradição está impregnada pela negação do corpo, na medida em que considera que esse “eu” não tem nenhuma objetividade material e corpórea como sustentação última, fazendo supor que a experiência é irrelevante ou, na melhor das hipóteses, secundária para o pensamento. O contexto cartesiano está claro nessa passagem, na medida em que Nietzsche aponta uma espécie de equívoco metodológico em estabelecer esse tipo de “eu” como ponto de partida filosófica. Sabe-se que uma das permutas de Descartes ao pensamento moderno é a dissociação entre corpo e espírito. Nietzsche enxerga nessa dissociação uma barreira arbitrária à possibilidade integral de conhecimento, ou seja, uma limitação imposta à experiência, um rebaixamento das forças vitais. O escrito nietzschiano mostra-se novamente na condição de relevo conceitual, como observado por Muricy:

A escrita exige, em Montaigne e em Nietzsche, esse solo comum, paradoxal em sua construída espontaneidade às an típodas da escrita more geometrica de Descartes, da forma argumentativa ou sistemática. O eu é uma multiplicidade de percepções cambiantes e contra ditórias que exige a prontidão dessa escrita rápida para ser fixado provisoriamente nas palavras que o constituem e o dessubstancializam. (MURICY, 2017, p. 21)4.

A necessidade de impor limites não é considerada por Nietzsche - como talvez pudesse ser na filosofia aristotélica - como ato de coragem. Nietzsche não entra em contradição com a dimensão trágica da híbris. Dionisíaco, ele despreza o equilíbrio e a moderação, fórmulas que funcionaram como referência para o viver desde a época clássica, mas cujos efeitos colaterais ainda não tinham sido muito bem elaborados até Nietzsche. Aqui se abre uma senda que Freud soube desbravar com destreza.

Reivindicar uma percepção integrada com o corpo tem muito a ver com o tipo de escrita produzida por Nietzsche. Autointitulando-se pensador póstumo, filósofo do futuro, extemporâneo, é possível entender sua obsessão pelo escrito como o corpo da posteridade. A tematização da exteriorização reforça as próprias expectativas que Nietzsche sustentava com o filosofar. Ao referir-se à integralidade do pensamento, que deve considerar o corpo, ele também está pensando em tentativas de cura para o corpo habituado à tradição. Ou, quem sabe, uma espécie de metamorfose: o abandono da velha carcaça esculpida pela metafísica ou pelo cristianismo, na qual ressentimento e filisteísmo são entendidos como resíduos visuais, máscaras apegadas ao rosto moderno. Assim, essa saída nunca é promovida dentro dos valores que ainda tremulam agonizantemente na contemporaneidade de Nietzsche. Há a necessidade de considerar o porvir. Aliás, esse é o sentido geral que as três metamorfoses do espírito trazem a Zaratustra: camelo, leão, criança; figurando a efetivação de uma transvaloração dos valores5. Essa inserção do prefixo trans representa um marco filosófico que restitui dignidade a muitos sentidos excluídos ou negligenciados pela tradição, embora apresentada algumas vezes por Nietzsche de modo bruto e controverso. Em função disso, é sempre válida a contextualização de Nietzsche como pensador de ambiguidades, como atesta Christoph Türcke:

“Eu não suporto nada ambíguo”, diz Nietzsche, referindo-se à sua ruptura com Wagner. A respeito de si mesmo, porém, diz ele: “eu, o último discípulo e iniciado do deus Dioniso”, tendo em mente Dioniso como o “grande ambíguo”. Duas confissões memoráveis, que, conquanto verdadeiras, se contradizem mutuamente. O pensamento de Nietzsche é pródigo em ambiguidade, e ele não suportava nada ambíguo. Ele não se suportava a si mesmo. Nós não precisaríamos nos ocupar com isto, se não houvesse uma grave semelhança entre o modo como ele não se suportava e o modo como o mundo moderno ameaça não se suportar. Não está ainda decidido se em seu destino se realizou antecipadamente o destino de toda uma época, ou se na megalomania dos seus últimos dias se encontra mais verdade do que ele mesmo podia saber. Contudo, ainda é tempo de impedir isto. Para tanto, é necessário não se deixar afundar nos abismos que Nietzsche escava, não se perder nas confusões nas quais ele se envolve. É necessário, porém, abrir-se-lhes sem reservas. Quem aqui fecha os olhos depressa demais, não se exporá seriamente aos abismos que se mostram sempre mais claramente na situação do mundo atual. Quem, porém, goza a tontura nos abismos nietzscheanos como se fora um êxtase, este já iniciou sua viagem em direção à catástrofe. (TÜRCKE, 1993, p. 7-8).

No contexto de Nietzsche a cura é terrena, sendo o sentido da terra um alvo filosófico. Essa assertiva tem seu fundamento no discurso de Zaratustra que coloca em contraste a tradição filosófica e a expectativa de uma nova humanidade, que, obviamente, exigirá um novo comportamento filosófico:

Vede, eu vos ensino o super-homem! O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: “que o super-homem seja o sentido da terra!” Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles, que o saibam ou não. Desprezadores da vida, são eles, e moribundos, envenenados por seu próprio veneno, dos quais a terra está cansada; que desapareçam, pois, de uma vez! (NIETZSCHE, 1990, p. 30).

As imponderabilidades do corpo, envolvendo suas tensões, estão sempre sendo consideradas a partir de uma filosofia que leva em conta a experienciação e atua na exteriorização, por meio do escrito que se lança ao futuro. Tudo que é anterior ou contemporâneo a Nietzsche se apresenta - para ele - como superado. Na medida em que esse escrito, ao voltar-se para a filosofia clássica, expõe a pessoalidade de quem está filosofando, isto é, de quem ainda está habituado com o que ficou para trás, o próprio escrito nietzschiano atesta seu teor de inviabilidade para interpretações pela tradição da interioridade.

A exterioridade que o escrito enfim lança é corpórea por aludir ao que é forte, ao que é vital, ao que, também, ambígua e paradoxalmente, o próprio Nietzsche sente sucumbir em seu corpo doente. As filosofias tradicionais nunca tiveram semelhante preocupação, pois originalmente dedicaram-se ao trabalho intelectual como basicamente espiritual.

Ademais, um escrito para o exterior é um escrito que flerta com o leitor, que, de alguma maneira, procura provocar certa perturbação. Nesse sentido, a tentativa de sedução também surge como tensão do corpo. Zaratustra é transfigurado em arqueiro. A flechada que pretende atingir o leitor não provém apenas da tensão do arco, mas do corpo tensionado do arqueiro. O leitor de filosofia, na percepção de Nietzsche, não pode ser tratado com indiferença. Seu leitor não é um simples “eu”, mas um corpo que sente a filosofia. Com sua filosofia terrena, Nietzsche provoca um verdadeiro tumulto filosófico.

No prólogo de Além do bem e do mal, Nietzsche providencialmente tenta delimitar o posicionamento dos filósofos da tradição como sendo impotentes nas suas próprias competências. Nessa mesma linha, todo o primeiro capítulo da referida obra versa sobre o procedimento preconceituoso dos filósofos. Portanto, ele denuncia não apenas o dogmatismo desses pensadores, mas a improficiência de seus métodos de abordagem.

Uma característica da força retórica do escrito de Nietzsche é colocar o método dos outros pensadores em contraste com o seu, evocando critérios próprios para o filosofar. Sua provocação, portanto, consiste em afirmar que os filósofos tradicionais se mostraram incapazes de um verdadeiro trabalho filosófico, pois, afinal, vivem a separação entre pensador e filosofia, entre si mesmos e a meta comum do estudo, que seria, de modo amplo, a verdade. Para esses filósofos, portanto, filosofar representaria a busca e a consequente conquista da verdade. Ao falar sobre os preconceitos dos filósofos, Nietzsche percebe a negação do viver como implícita à filosofia destes. Argumento através do qual ele identifica os filósofos clássicos como sendo aqueles que encurralam a vida à condição de sequência do ideal. Isso está diretamente relacionado com a repulsa nietzschiana a uma possibilidade existencial de mera sobrevivência ou autoconservação. Os critérios de seu filosofar justificam suficientemente a depreciação que ele faz da filosofia alheia. Tratando-se de uma força retórica, a tensão de sua linguagem visa expor a força, a natureza, de tais filósofos.

Para produzir essa distinção e diferença, Nietzsche segue lançando mão de seu estilo muito próprio e poderoso. Ao contar com a condição de artista que escreve, usando de maneira excelente a malha textual, a velha cisma de Nietzsche em relação aos filósofos da tradição busca argumentos para não se tornar gratuita. Esses argumentos com apelo metafórico, mesmo escapando à linguagem filosófica, não deixam de denunciar o método ineficaz dos filósofos que visa criticar.

A tradição e seus filósofos da interioridade

Nietzsche ataca os filósofos da tradição tendo como uma das principais alegações a negação do corpo. A partir dessa negação ele também pressupõe inabilidades nesses filósofos. Os filósofos da tradição contam com significativa falta de jogo de cintura. Eles podem ser considerados incapazes para a dança, valendo-se de medidas propriamente nietzschianas, inspiradas no espírito dionisíaco, que sustenta a expectativa de apenas confiar em um deus que saiba dançar. O estado dionisíaco é percebido como improvável pelos filósofos inspecionados por Nietzsche, que continua com suas regras particulares para promover essa sua inspeção geral da filosofia. Ele envolve os filósofos da tradição como se fossem interlocutores fantasmas. O interessante é que toda essa perturbação, que pode até ser caracterizada como doentia, não deixa de ser intelectualmente profícua.

Com esse tipo de análise, Nietzsche aborda também o comportamento de quem faz a filosofia, partindo da dimensão pessoal como grande lente de aumento para o próprio entendimento filosófico. O lado pessoal volta a tomar relevo quando se questiona sobre as condições de vida desses filósofos. A ameaça é de que verrugas do ascetismo brotarão nos textos deles; e o que o leitor e filólogo Nietzsche - intérprete da história da filosofia - quer a todo custo é rechaçar elementos de baixa vitalidade, que possam perdurar no futuro como paradeiro filosófico-cultural. Com isso, o escrito nietzschiano já efetua sua própria crítica a uma potencialidade represada, que se presta a seu próprio regozijo. Atualmente, nem seria mais o caso de dizer que todos são um pouco cristãos, um pouco filisteus, um pouco burgueses; mas, acima de tudo, que estão firmados em uma individualidade que grita alto quando ferida, isto é, quando não se vê permitida a alimentar seu próprio círculo vicioso - que não representa a expansão do poder - mas apenas sua ilusória manutenção. A contemporaneidade não suporta mais o signo do desprendimento; e nesse momento cabe a analogia do andarilho, com a permuta que a máscara nietzschiana presta como recurso à individualidade.

É fundamental relembrar que Nietzsche pretende salvar seu novo corpo - o escrito - da ameaça de contaminação, já que seu corpo presente - sua finitude humana - está definitivamente comprometido com o declínio. Todo o filosofar do corpo se compromete com a promoção da cura em alguma medida. Um corpo sempre demanda mais saúde, mesmo que nessa busca fracasse constantemente. Vício e cura pertencem a um mesmo círculo, e é somente desde uma perspectiva valorativa que eles se diferenciam.

Reprovar o comportamento dos filósofos clássicos é, portanto, uma tarefa na qual Nietzsche se empenha com afinco, também por estes estarem estigmatizados a seu tempo. Isso significa que o prognóstico de Nietzsche, em relação a um futuro filosófico e por decorrência, a toda uma cultura, tenderia a não tornar contemporâneos os pensamentos de tais filósofos. Uma extemporaneidade afirmativa a estes não se aplicaria, considerando critérios nietzschianos.

Saudáveis ou não, a diferença é de que “eles” - os filósofos da tradição - não elaboram prognósticos. Ademais, não teriam interesse nem necessidade para isso, uma vez considerado o fato de estarem assentados na celebração de sua própria intelectualidade. Nietzsche, ao contrário, sente, no mínimo, uma necessidade de expectativa de mudança no futuro a partir de seus limites definitivos de doente e outsider intelectual. Também, por isso, entende-se por que esses filósofos são perseguidos por Nietzsche. Eles representam correntes que seriam, de alguma maneira, inimigas da cura. É contra essas correntes que Nietzsche se indispõe em sua filosofia, que, por ser experiencial, assenta-se na vitalidade. Como Scarlett Marton acentua: “ele [Nietzsche] elege como inimigos seus o pensar metafísico e a religião cristã, a moral do ressentimento e a cultura filisteia” (MARTON, 2001, p. 25). Deve ser entendido que esses elementos não aparecem de maneira isolada e distinta na cultura, uma vez que o homem contemporâneo, ao qual Nietzsche se referia como “europeu de hoje”, já agrega esses elementos de maneira completamente singular.

Dessa forma, Nietzsche vê o trabalho filosófico clássico comprometido com algo que impossibilita aquilo que ele, de uma maneira ou outra, está continuamente buscando: a cura. Pode ser tanto a sua cura, como a cura da Europa (um de seus nomes para cultura), o que, aliás, torna problemática sua recepção filosófica para fins políticos.

A verdade equiparada a uma mulher

Assim, estacionados e dogmatizados, os filósofos clássicos produzem uma filosofia inapta para a verdade. Nunca foi intenção de Nietzsche dissertar sobre a verdade. Aliás, para ele, tal empreitada deriva de um preconceito moral6. A partir dessa perspectiva, Nietzsche permite que se pense a filosofia como uma dama tratada com certo descaso, enquanto os filósofos se preocuparam em preservar distâncias eruditas tolamente desproporcionais. Também a ciência partilha de semelhante carência. Dessa forma, o segredo dessas damas pertenceria, de maneira óbvia, ao universo feminino não explorado:

Supondo que a verdade seja uma mulher - não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar - e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo [...] Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tem apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram [...] A filosofia dos dogmáticos foi, temos esperança, apenas uma promessa através dos milênios. (NIETZSCHE, 1998, p. 7).

Artista retórico, Nietzsche pergunta se com um determinado comportamento seria possível uma determinada conquista. E ele mesmo dá uma resposta definitivamente negativa. Observando o modo de vida desses filósofos clássicos, ele os considera ascéticos e, em boa medida, assépticos.

É feita, portanto, uma clara referência negativa àqueles que sempre se propuseram a abordar a filosofia de uma maneira demasiado ríspida. Evidentemente, há o exagero na exposição dos filósofos clássicos por parte de Nietzsche, em que eles são apontados num contexto que tramita entre ironia e ridicularização, em um mesmo tom pejorativo com que são tratados no parágrafo 345 de A Gaia Ciência, “Moral como problema”:

A falta de personalidade sempre se vinga; uma personalidade adelgaçada, enfraquecida, apagada, que nega e renega a si mesma, não serve para nada de bom - muito menos para a filosofia. A “abnegação” não tem valor, seja no céu ou na terra; todos os grandes problemas exigem o grande amor, e deste são capazes somente os espíritos fortes, redondos, seguros, que se apoiam firmemente em si mesmos. Faz considerável diferença que um pensador se coloque pessoalmente ante seus problemas, de modo a neles achar seu destino, sua miséria e também sua felicidade maior, ou então “impessoalmente”: isto é, que saiba tocá-los e apreendê-los somente com os tentáculos da fria e curiosa reflexão. Nesse último caso, nada se conseguirá, podemos estar certos: pois os grandes problemas, ainda quando se deixam tocar, não se deixam agarrar por fracotes com sangue de barata, este é seu gosto desde tempos imemoriais - um gosto, aliás, que partilham com todas as mulherezinhas valentes. (NIETZSCHE, 2001, p. 237).

Os filósofos da tradição - quase todos na visão de Nietzsche - nunca souberam lidar com os “grandes problemas”, dos quais sempre evitaram e desviaram, de modo similar ao gosto das “mulherezinhas valentes”. Se num primeiro momento há uma espécie de elogio à mulher, nessa passagem de Gaia ciência se pode notar o tom sexista e discriminatório da linguagem de Nietzsche. Há uma compreensão implícita em seu pensamento de desprezo ao potencial intelectual da mulher. Nessa separação entre mulher e homem, cabe ao último o papel da virilidade, como aquele que corteja o sexo oposto. O discurso do corpo atesta a força dominante sobre a força dominada7. Os limites metafóricos usados por Nietzsche revisitam sua dimensão problemática. É possível alegar a seu favor que essa metáfora está inserida no contexto cultural da época. Porém, sua percepção preconceituosa em relação à mulher também se apresenta em outros momentos de sua obra; mulheres, para quem ele aconselha aos homens, por exemplo, nunca esquecer o chicote quando encontrá-las. Não há razão para se negar o caráter depreciativo da imagem da mulher expresso na série de aforismos curtos do capítulo intitulado “Máximas e interlúdios”, de Além do bem e do mal. Em especial, pode-se destacar: “Quando uma mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo errado com sua sexualidade. Já a esterilidade predispõe a uma certa masculinidade do gosto; pois o homem é, permitam-me lembrar, ‘o animal estéril’” (NIETZSCHE, 1998, p. 79).

Nietzsche demonstra ser adepto da virilização da cultura, que deve suprimir as influências feminizantes. Nos signos da força nietzschiana, os valores intermediados pelas mulheres resultam decadentes.

Para além do imaginário anedótico que povoa o pensamento nietzschiano, é importante destacar esses dois pontos ambivalentes na sua percepção da mulher. Embora se empenhe em criticar os filósofos tradicionais, mostra-se um filho da tradição normalizada por traços masculinos, os quais predestinam à mulher um lugar imutável, sancionando definitivamente suas capacidades intelectuais, alimentando a polaridade dos papéis sexuais. Não há dúvidas de que a mulher que começa a emancipar-se no século XX ainda assusta Nietzsche. Lembrando o que dissera certa vez Virginia Woolf: “A história da oposição dos homens à emancipação das mulheres é talvez mais interessante do que a própria história da emancipação das mulheres”8.

Filosofia como metáfora da sedução

O uso do termo mulher como outro nome para a verdade funciona apenas metaforicamente na condição de dama a ser cortejada. A pessoalidade dos filósofos da tradição é atacada no sentido que é colocada em xeque sua habilidade de cortejar. A metáfora é válida somente como denúncia de que uma filosofia da interioridade não se aproxima da verdade. Nietzsche, sub-repticiamente, dá a entender que a verdade tem mais afinidade com o corpo, com a sedução, com a exterioridade do filosofar. Nesse raciocínio, os filósofos da interioridade são aqueles que não sabem seduzir. Há aqui espaço para uma crítica à masculinidade tóxica em Nietzsche e que o associa a uma tradição misógina, na medida em que a mulher seria o sexo a ser seduzido. Nessa lógica vitalista, “o masculino será alcançado como o próprio humano universal” (FLORES, 2004, p. 228).

Esse reconhecimento ilustra o que o próprio Nietzsche pretende com todo o seu tempero excêntrico de sua última fase filosófica. Dentro do escrito excessivo, ele procura diferenciar o empreendimento filosófico a partir de duas metodologias distintas: interior e exterior. Em consequência, ao identificar essas metodologias, localiza o “nós” e o “eles” da história da filosofia. É nessa medida que o tom profético é o próprio seletor de quem tem “condições” de experienciar toda a proposta retórico-filosófica de Nietzsche. Aí estão envolvidos o flerte e o jogo de sedução, num paralelo à constante luta de diferenças naturais simbolizadas pelos elementos masculino e feminino, por exemplo. A metáfora coloca apenas a questão da incapacidade da sedução, que Nietzsche considera fundamental para a filosofia. Os preconceitos de Nietzsche continuam existindo à revelia desse acerto.

Dessa forma, mesmo ao se considerar em Ecce Homo, de maneira petulante, “o primeiro psicólogo do eterno-feminino”9, deve-se atentar que uma tal consideração não se dá apenas por conta de suas aspirações dionisíacas, isto é, por fanatismo ao dionisismo.

Como então Nietzsche deixaria de pensar apenas em filosofia do futuro, afirmando não encontrar leitores em seu tempo, sem estabelecer autoritariamente que sua própria filosofia se apresentava como inaugural? Todo o discurso delirante do exagero, com seu ápice em Ecce homo, atrai, seduz e flerta. Isso é exteriorização. Essa é a diferença que tem o propósito, já intencionado por Nietzsche, de estabelecer a filosofia inaugural conjugada na primeira pessoa do plural como prelúdio a uma filosofia do futuro. Essa filosofia se coloca contra a filosofia do passado, pensada sempre a partir de uma metodologia que Nietzsche consideraria ultrapassada se fosse apresentada como única possibilidade filosófica. Ele associa a tradição ao desânimo e ao tédio. A respeito da impossibilidade de uma intensidade proposta ao extemporâneo, inibe-se a possibilidade de uma máscara ou assinatura forte a partir da filosofia tradicional. Ele quer reiterar as razões pelas quais uma filosofia da tradição já não serve mais.

As pessoas responsáveis por esse método ultrapassado são conjugadas necessariamente na terceira pessoa do plural. Nesse caso, a referência é sempre a um terceiro a quem não se dirige a interlocução de maneira direta, portanto, alguém de quem apenas se pode falar, comentar, ironizar, ridicularizar.

Como expectativa para a obra Além do bem e do mal, Nietzsche também comenta que tipo de humanidade - o modelo masculino na metáfora da relação com a mulher - deve segurar nas mãos um tal livro que se pretende inaugural. A importância dessa obra, considerado o peso de ter como subtítulo “Prelúdio a uma filosofia do futuro”, é muito bem analisada por Daniel Halévy, que, em seu trabalho biográfico sobre Nietzsche, evidencia a situação pessoal que leva Nietzsche a empenhar-se em um livro significativo para registro de sua filosofia. Halévy considera que Nietzsche pensava em algo que fosse significativo como o seu peculiar sistema. Notoriamente, esse caminho não pôde ser traçado e um outro sonho editorial, a Vontade de poder, guardou historicamente esse tom de tentativa sistemática, unicamente por permanecer incompleto, incógnito. Na conturbada opinião de Nietzsche, o público estava acostumado apenas a esperar por sistemas filosóficos, e, na tentativa de fazer perdurar sua filosofia, ele teria chegado inclusive a pensar nessa possibilidade10.

No que diz respeito à maneira sexista como Nietzsche se refere à mulher, cabe a seus intérpretes o compromisso de não reproduzir uma conceitualização ou generalização sobre a mulher. Há de saber destrinchar a dimensão falaciosa dos discursos nietzschianos. Se ele opõe mulher e homem é fundamental a observação de Deleuze, na tematização de que “o que uma vontade quer é afirmar a sua diferença” (DELEUZE, 2018, p. 18):

O conceito de força é, portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com uma outra força. Sob este aspecto, a força chama-se uma vontade. A vontade (vontade de potência) é o elemento diferencial da força. Daí resulta uma nova concepção da filosofia da vontade, pois a vontade não se exerce misteriosamente sobre músculos ou sobre nervos, menos ainda sobre uma matéria em geral, mas necessariamente sobre uma outra vontade. O verdadeiro problema não está na relação do querer com o involuntário, e sim na relação de uma vontade que comanda com uma vontade que obedece, e que obedece mais ou menos. (DELEUZE, 2018, p. 15).

Assim, a seguinte citação abre as portas para a extemporaneidade como tema próximo do tipo-força nobre ou aristocrático, ou seja, também aquele que é capaz de partilhar a leitura dos escritos nietzschianos, no reconhecimento não apenas da intensidade, mas contando com os elementos que o corajoso Zaratustra traz consigo. Como Genealogia da moral e Além do bem e do mal são obras que se complementam, visto que a Genealogia é praticamente autoexplicativa da “filosofia do futuro” (livro mais sistemático de Nietzsche11), faz-se valer, então, o que o contexto desse escrito está enunciando:

Este livro (1886) é, em todo o essencial, uma crítica da modernidade, não excluídas as ciências modernas, mesmo a política moderna, juntamente com indicações para um tipo antitético que é o menos moderno possível, um tipo nobre, que diz Sim. Nesse sentido, o livro é uma escola do gentilhomme, entendido o conceito de maneira mais espiritual e radical do que nunca. É preciso ter dentro de si coragem para simplesmente suportá-lo, é preciso não haver aprendido a temer... Todas as coisas de que uma época se orgulha são percebidas como contrárias a esse tipo, como más maneiras quase, por exemplo, a famosa “objetividade”, a “compaixão pelo sofredor”, o “sentido histórico”, com sua submissão face ao gosto alheio, com seu arrastar-se ante os petits faits, a “cientificidade” (NIETZSCHE, 1995, p. 97).

Ora, a que mais se prestaria uma “escola do gentilhomme” (entendida na sugestão de Nietzsche, de uma maneira mais espiritual e radical do que nunca) se nela não se aprendesse sobre mulheres?

No caso sugerido de que realmente a verdade devesse ser tratada como uma mulher, o complemento nietzschiano é o de ter a permissão de que a sensualidade (que implica tensão, tumulto e jogo de diferenças) faça parte agora do procedimento filosófico.

Implodindo as metodologias da interioridade, Nietzsche quer dizer que a verdade não espera desvelamento em algum tempo regresso. Ora, se a verdade é terrena a partir de uma realidade que se relaciona de forma tautológica com a terra, configurando o mundo sensível do discurso antiplatônico de Nietzsche, então, o olhar para o corpo da história somente faz sentido caso se procure os pontos de clivagem onde essa própria verdade terrena fora negligenciada. Assim, se Nietzsche imagina um novo ser humano por vir (Übermensch), que passe a olhar para esse sentido, significa que a própria história ocidental de uma filosofia antropocêntrica não teria passado de um grande equívoco.

Sob essa ótica, Michel Foucault também recorre a uma “desontologização” da noção que a cultura ocidental possui de verdade. Foucault assim o faz em uma tentativa de desconectar a verdade da questão ontológica da origem. Este é o percurso que percebe Foucault no escrito nietzschiano:

Nova crueldade da história que coage a inverter a relação e abandonar a busca “adolescente”: atrás da verdade sempre recente, avara e comedida, existe a proliferação milenar dos erros. Mas não acreditemos mais “que a verdade permaneça verdadeira quando se lhe arranca o véu; já vivemos bastante para crer nisto” (Citado de Nietzsche contra Wagner “Epílogo” § 2). A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida, porque o longo cozimento da história a tornou inalterável (Ver GC § 265 e 110). E, além disto, a questão da verdade, o direito que ela se dá de refutar o erro de se opor à aparência, a maneira pela qual alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois reservada apenas aos homens de piedade, em seguida, retirada para um mundo fora de alcance, onde desempenhou ao mesmo tempo o papel de consolação e de imperativo, rejeitada enfim como ideia inútil, supérflua, por toda parte contradita - tudo isto não é uma história, a história de um erro que tem o nome de verdade? A verdade e seu reino originário tiveram a sua história na história. Mal saímos dela, “na hora da sombra mais curta” quando a luz não parece mais vir do fundo do céu e dos primeiros momentos do dia (Ver CI, “Como o mundo-verdade se tornou enfim em uma fábula”). (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Os procedimentos que tentaram tornar inquebrantáveis a verdade e seu valor são aterrorizados pelo estilo nietzschiano. Isso faz parte também de sua estratégia de guerra contra os filósofos clássicos, uma vez que ele entende que o próprio comportamento desses filósofos em relação à vida compromete a elaboração que esses fazem da verdade, ligando-a a uma questão metafísica. A esse respeito, Eric Clémens também situa Nietzsche em confronto com a tradição do pensamento:

As redes de implicações do gesto nietzschiano fazem-no desdobrar-se imediatamente: em solapamentos produtivos e em marcas históricas desses solapamentos. Se a história, conceito metafísico, grego e judeu, cristão, for sempre a história do sentido, quebrar a verdade quebra a história, em outras palavras, produz aquilo cujo conceito foi sempre a clausura: uma brisura. O gesto introdutório de Nietzsche é sempre duplo: a crítica da verdade divide-se com a brisura da história. Eis por que, entre estas redes que se encadeiam, aquela que percorre os tecidos da história (de seu conceito) produz em profundeza o exorbitante do texto nietzschiano: a história “em geral” [...] Fantasma ou delírio? [...] Para além de bem e mal, no gesto duplo de Nietzsche (a crítica com a brisura), o desmoronamento da moral abre para maior perspectiva histórica. (CLÉMENS, 1985, p. 194).12

Portanto, a argumentação nietzschiana defende que a verdade não espera um comportamento assentado em uma pacificidade irrestrita. Ela está muito mais próxima de entregar um convite - um piscar de olhos, talvez uma insinuação - a um novo procedimento, ao desafio que passaria a valer na filosofia e na ciência de um modo mais amplo. Um tal gesto acabaria implicando, de forma definitiva, o abandono de uma maneira de se observar a História da humanidade. Em relação a esse abandono, Nietzsche apresentará suas forças, seu aparato específico, enfim, que poderá ser visualizado de melhor forma com o entendimento do procedimento genealógico, pois especular que intensidade de vida aplicam aqueles que fizeram a história da filosofia já configura esforço genealógico. Aliás, essa natureza de “especulação” é também promovida principalmente na Terceira dissertação de Genealogia da Moral, intitulada “O que significam ideais ascéticos?”

Considerações finais

É inviável manter-se na expectativa de que Nietzsche tivesse deixado para a posteridade um método “seguro” no relacionamento com a verdade. A verdade, para ele, é sinalizada como o próprio empreendimento dos valores. Isto é, uma questão de valores e suas origens, não mais a disposição desses valores e suas manipulações. Sem assim observar, esperar-se-ia o trivial e não seria então necessário discutir o estilo de sua escrita como determinante em seu filosofar. A consonância com o tradicional está rompida. É assim que o espaço de Nietzsche é diferencialmente enigmático e, ao mesmo tempo, fecundo. É nesse sentido que Deleuze vê razão de se pensar Nietzsche a partir da partilha do enunciado.

Com a analogia entre verdade e mulher, Nietzsche pretende dizer que não basta apenas o escrutínio da tradição para entendê-la. Necessita-se de um envolvimento mais intenso; necessita-se de intimidade; necessita-se da articulação da partilha, dos relacionamentos entre “nós”, que implica uma philia própria. Nunca será a possibilidade de uma seita, mas a possibilidade de se viver situações que se enunciem e possam ser suportadas de serem vividas por quem também se disporia a não falsificar determinadas circunstâncias da vida. À falsificação já se propuseram os filósofos dogmáticos:

Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. Mas agora que está superado, agora que a Europa respira novamente após o pesadelo, e pode ao menos gozar um sono mais sadio, somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília, os herdeiros de toda a força engendrada no combate a esse erro. Certamente significou pôr a verdade de ponta-cabeça e negar a perspectiva, a condição básica de toda vida, falar do espírito e do bem tal como fez Platão. (NIETZSCHE, 1998, p. 8).

Na passagem acima é direta a menção de tarefa filosófica aplicada ao “nós”, na qual a idealização platônica é tratada como franca inimiga. De fato, para Nietzsche toda a cultura ocidental vive sob essas idealizações. Note-se que Europa é o nome que ele dá para a cultura ocidental, principalmente nessa fase de sua produção filosófica.

Como esporádicas tentativas de saída, de exteriorização da influência da idealização platônica na vida, Nietzsche então menciona:

[...] sim, pode-se mesmo perguntar como médico: “De onde vem essa enfermidade no mais belo rebento da Antiguidade, em Platão? O malvado Sócrates o teria mesmo corrompido? Teria sido mesmo Sócrates o corruptor da juventude? E teria então merecido a cicuta?”. - Mas a luta contra Platão, ou, para dizê-lo de modo mais simples e para o “povo”, a luta contra a pressão cristã-eclesiática de milênios - pois cristianismo é platonismo para o “povo” - produziu na Europa uma magnífica tensão do espírito, como até então não havia na terra: com um arco assim teso, pode-se agora mirar nos alvos mais distantes. Sem dúvida, o homem europeu sente essa tensão como uma miséria; e por duas vezes já se tentou em grande estilo distender o arco, a primeira com o jesuitismo, a segunda com a Ilustração democrática - a qual pôde realmente conseguir, com ajuda da liberdade de imprensa e da leitura de jornais, que o espírito não mais sentisse facilmente a si mesmo como “necessidade”! [...] Mas nós, que não somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres, nós ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta... (NIETZSCHE, 1998, p. 8).

O arco, a tensão do arco, o arqueiro, a tarefa, a meta: signos de Nietzsche para o filosofar. E esses signos estão diretamente contextualizados no movimento que não suporta o código. Os jesuítas, os democratas ou os alemães (em alusão a qualquer nacionalismo político) já são encarados por Nietzsche como propostas comprometidas em agir dentro de códigos específicos e, por isso, não podem representar uma filosofia voltada à exterioridade.

Nitidamente, o “nós” reaparece na condição de bons europeus, que não sacrificam a cultura e também nada sacrificam em nome dela, como faria talvez o último homem, ainda que este último homem “estacionasse” nesse sacrifício da cultura. Além do mais, com a qualificação direta de “espíritos livres, muito livres”, esses filósofos na primeira pessoa do plural não apenas inauguram uma metodologia própria em suas mãos de arqueiros, mas ainda se mostram impossibilitados para um empreendimento codificável. Voltando ao tema proposto por Deleuze, o enunciado somente pode se dar dessa maneira livre, o que antes, nem mesmo as tentativas dos movimentos identificados por Nietzsche (que, é claro, historicamente não seriam somente esses) teriam conseguido.

Assim, a filosofia do futuro pensada por Nietzsche - uma filosofia de arqueiros, pois tem de ser certeira - pode falar diretamente como filosofia do forte, do nobre ou do aristocrata. Nietzsche, em suas tentativas de vitalizar ainda mais o texto com elementos de grandiloquência, quer ver a possibilidade de sua filosofia preservada, apelando aos recursos extemporâneos.

É na extemporaneidade que as máscaras de intensidade são emprestadas ao leitor ou ao filósofo; e na hipótese deleuziana, a qualquer vivente que se lançasse ao enunciado. A prova de fogo de Nietzsche é a suportação dessas máscaras. Trata-se de um critério já descrito por Deleuze: “a arte de interpretar deve ser também uma arte de atravessar as máscaras, e descobrir quem se mascara e por que, e com que sentido se conserva uma máscara remodelando-a” (DELEUZE, 2018, p. 14). Se o leitor não as suportar, significa, para Nietzsche, que não entenderá seu escrito, não vivenciará o enunciado, não fará parte do “nós”, não poderá, por fim, filosofar como o hoje espera. Ao contrário, o leitor ainda envolto na tradição permanecerá preso a eruditismos, e suas leituras se confrontarão com a realidade apenas para uma espécie de autoafirmação, dentro de projetos de vida que não suportam o aspecto perecível da existência. Assim, Nietzsche imagina que a tradição filosófica projete a impossibilidade de “um viver” no sentido afirmativo do amor fati. Sem esforço, pode-se notar que o nomadismo de Deleuze é familiar ao aspecto perecível da existência.

Com a impossibilidade de apelo à instituição, ao código ou à lei, a filosofia nietzschiana se presta a exteriorizar a metáfora, com toda a instabilidade possível. A metáfora transfere o sentido à vida e seu potencial experiencial, que se dá ao luxo de apenas usar como contraste a tradição filosófica e metafísica para corroborar sua sentença. Nietzsche ao empunhar a metáfora heteronormativa, não se desprende da tradição sexista. Mas é seu risco, seu flerte à contradição. No seu argumento vitalista e corpóreo, que mulher se deixaria seduzir por um homem que permanece de “braços cruzados, triste e sem ânimo”? Cabe às mulheres e aos homens do século XXI saberem usar a força adequada para segurar em suas mãos o peso dos escritos nietzschianos.

Referências

CLÉMENS, E. Da leitura à história extemporânea. In: MARTON, S. (org.). Nietzsche hoje?. Trad. Milton Nascimento e Sônia Salzstein Goldberg. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 193-201.

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: n-1 edições, 2018.

DELEUZE, G. Pensamento nômade. In: MARTON, S. (org.). Nietzsche hoje?. Trad. Milton Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 56-67.

FLORES, M. B. R. O pensamento antifeminista: a querela dos sexos. História Revista, v. 9, n. 2, p. 227-252, jul./dez. 2004.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1999.

HALÉVY, D. Nietzsche. Porto: Inova, 1968.

MARTON, S. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

MURICY, K. Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico. Rio de Janeiro: Zazie, 2017.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.

NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

TÜRCKE, C. O louco: Nietzsche e a mania da razão. Trad. Antônio Celiomar Pinto de Lima. Petrópolis: Vozes, 1993.

Notas

a O presente artigo compõe algumas atualizações de reflexões iniciadas na minha dissertação de mestrado, SANTOS, M. L. Ensaio sobre a legitimidade do enunciado nietzschiano para uma filosofia afirmativa da vida. Porto Alegre: PUCRS, 2003.
4 Ainda sobre pontos comuns na escrita autobiográfica entre Montaigne e Nietzsche, assinala Muricy (2017, p. 17): “Livro decisivo [Ensaios] para a elaboração do Ecce homo — ambos não sendo nem confissão, nem viagem interior em busca da solidez de um sujeito. São, antes de tudo, uma construção filosófica na qual a escrita de si pretende transfigurar a forma tradicional da autobiografia para evidenciar um pensamento em que a unicidade do eu, a noção de ser, o dualismo corpo e alma são contestados no paradoxo de seus próprios termos. Retomada da tra dição da ‘arte de viver’, de uma estética da existên cia, onde o corpo, lavado da soturna introspecção cristã, brilha como um sol na cena principal”.
8 Cf. FLORES, 2004.
9 Cf. NIETZSCHE, 1995, p. 58-59.
10 Cf. HALÉVY, 1968, p. 269-291.
11 Cf. DELEUZE, 2018.
12 A respeito do sentido do termo brisura (aportuguesamento do francês brisure), ressalta-se que ele deve ser entendido dentro da observação de Jacques Derrida, como ausência produtiva de um rastro na grande massa de conexões da história. Brisura não pode ser nem junção, nem ruptura. Trata-se de um estado intermediário, da diferença na qualidade de articulação.
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