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O “lamarckismo” de Freud e a polarização das interpretações
Marcelo Galletti Ferretti
Marcelo Galletti Ferretti
O “lamarckismo” de Freud e a polarização das interpretações
Freud’s “Lamarckism” and the polarization of interpretations
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 846-860, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana
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Resumo: Frequentemente se aponta o “lamarckismo” de Freud. Nas poucas vezes em que foi empreendida com algum rigor historiográfico, a investigação desse traço se prestou ora a denunciar o caráter pseudocientífico da psicanálise, ora a defender o lugar periférico, tardio e, por conseguinte, dispensável de tal “lamarckismo” na obra freudiana. Essas posições devem ser matizadas. Este artigo pretende realizar essa tarefa procurando desfazer os anacronismos que o termo “lamarckismo” abriga e remontar às influentes visões de Ernest Jones, Frank Sulloway e Lucille Ritvo sobre a questão.

Palavras-chave: Freud, Lamarckismo, Hereditariedade, Evolução, Anacronismo.

Abstract: Freud's “Lamarckism” is frequently pointed out. In the few times in which the investigation of this subject was undertaken with some historiographical rigor, the results were the denouncement of the pseudoscientific character of psychoanalysis or the defense of the peripheral, late and, therefore, dispensable place of such “Lamarckism”. These positions need to be nuanced. This article intends to accomplish this task, seeking to undo the anachronisms of the term “Lamarckism” and to examine the influential accounts of Ernest Jones, Frank Sulloway and Lucille Ritvo of Freud's “Lamarckism”.

Keywords: Freud, Lamarckism, Heredity, Evolution, Anachronism.

Carátula del artículo

Dossiê

O “lamarckismo” de Freud e a polarização das interpretações

Freud’s “Lamarckism” and the polarization of interpretations

Marcelo Galletti Ferretti
Fundação Getúlio Vargas, Brazil
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 846-860, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 03 Outubro 2020

Aprovação: 06 Setembro 2021

Introdução

Nos comentários sobre a relação da psicanálise com as doutrinas evolucionárias, é mais do que frequente nos deparamos com a designação “lamarckista” para se referir a Freud. Ela se baseia exclusivamente, na grande maioria dos casos, na insistência do autor na herança dos caracteres adquiridos, popularmente atribuída ao evolucionista francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, chevalier de Lamarck. Sobretudo a partir dos anos 1910, tornou-se mais claro o peso dessa herança nos textos freudianos, quando neles as especulações acerca do passado remoto da humanidade passaram a ocupar lugar axial. A tenacidade com que Freud a sustentou chamou a atenção de seus leitores, então e depois, especialmente pelo fato de se tratar de uma concepção supostamente sem lastro para os evolucionistas da época e repudiada, acreditava-se, por seu maior baluarte, Charles Darwin.

Tal designação e as assunções ligadas a ela envolvem uma série de equívocos e mal-entendidos que devem ser elucidados. De modo geral, nas poucas vezes em que foi empreendida com algum rigor historiográfico, a investigação do “lamarckismo” de Freud se prestou ora a denunciar o caráter pseudocientífico da psicanálise, ora a defender o lugar periférico e dispensável de tal assunto. Grosso modo, essas foram as posições, respectivamente, de Sulloway (1979/1992) e Ritvo (1992), em cuja pesquisa foram elaboradas as reflexões mais referidas e abrangentes sobre essa questão até o momento. Elas nos ofereceram elucidações históricas determinantes, mas suas conclusões devem ser matizadas, visto que, pautadas sempre pelo referencial “darwiniano”, levaram a uma compreensão bastante parcial da psicanálise freudiana: como saber ou ilegítimo ou incólume a ideias de Lamarck. Tais compreensões impediram que se enxergasse com nitidez a razão do interesse de Freud pelo naturalista francês e, por conseguinte, a peculiaridade da psicanálise nesse aspecto.

Dessa forma, este artigo pretende mostrar por que se trata de conclusões equivocadas e que efeitos obliterantes elas acabam por exercer. Para tanto, é preciso, antes de tudo, desfazer os anacronismos que o termo “lamarckismo” abriga. Feito isso, pode-se recuperar a ressonância deles na literatura de comentário psicanalítica, o que nos conduz à leitura de Ernest Jones sobre o “lamarckismo” de seu biografado na obra Sigmund Freud: Life and Work. Seus equívocos e suas interpretações se mostraram muito influentes, motivo pelo qual é imperativo remontar a eles. Por fim, é preciso indicar como as conclusões de Sulloway (1979/1992) e Ritvo (1992) operaram, em alguma medida, sob o diapasão de Jones.

Espera-se que esse percurso traga mais elementos historiográficos capazes de contribuir para a superação de interpretações tão polarizadas da teoria freudiana - ao menos no que diz respeito às que envolvam apropriações evolucionárias. Como mostraram Simanke e Caropreso (2016), a historiografia da psicanálise foi dominada por visões binárias, que ora idealizaram as realizações de Freud - por isso, chamadas de “hagiográficas” -, ora as consideraram pseudociência resultante de uma mistura entre más intenções, ingenuidade e autoengano de seu criador - donde a denominação “difamatórias”. Ambas, contudo, gravitaram em torno de um mesmo “discurso da excepcionalidade” (SIMANKE; CAROPRESO, 2016, p. 23), defendido pelas visões hagiográficas, que pressupuseram um eterno caráter radical e revolucionário da psicanálise, e reativamente atacado pelas visões difamatórias, as quais recorreram a todos os recursos disponíveis, inclusive calúnias, a fim de refutar as idealizações. Conforme recordam os autores em questão, Sulloway é, ele mesmo, um dos grandes representantes da visão difamatória, a despeito de ter realizado valoroso trabalho historiográfico. Ritvo, por outro lado, como se procurará mostrar, lança algumas conclusões que, embora não possam ser diretamente remetidas à visão hagiográfica, guardam certa semelhança com ela. Assim, tem-se a expectativa de que a matização das conclusões de Sulloway e Ritvo contribua para a desconstrução de tal binarismo.

O termo “lamarckismo” e seus anacronismos

Conforme sintetizou certa vez o biólogo Stephen Jay Gould, “lamarckismo” é um “nome mais curto, embora historicamente incorreto [...]” (GOULD, 1989, p. 65). Em geral, é usado para designar o que ficou conhecido como herança dos caracteres adquiridos, a qual rezava que mudanças (morfológicas, funcionais, comportamentais) verificadas no organismo ao longo de sua vida podiam ser herdadas. Possui, porém, um espectro bem mais amplo de sentidos, ganhos à medida que os biólogos foram se apropriando dele. Gliboff (2011) os recupera, desde a apropriação do divulgador da teoria da evolução no mundo germânico, Ernst Haeckel, passando pela dos opositores de Lamarck, como August Weissman, a de seus defensores, os chamados neolamarckianos e psicolamarckianos, e, por fim, a daqueles que buscaram renovar o pensamento do naturalista francês no século XX. Esse arco de apropriações mostra que as teorias as quais hoje são postas sob o rótulo de “lamarckismo” não seriam reconhecidas como tais nem pelo próprio Lamarck nem por seus apoiadores de primeira hora (GLIBOFF, 2011, p. 45); e que se trata de um termo não apenas ambíguo como ainda carregado emocional e ideologicamente - quando não uma espécie de palavrão (“L-word”) (TANGHE, 2019).

De todo modo, a história e, em especial, a consciência popular retiveram Lamarck pela ideia da transmissão dos caracteres adquiridos. Algo curioso, pois ela não foi criada e tampouco explicada por ele. Como mostrou Zirkle (1946), em um estudo seminal e minucioso, ela se originou muito antes, e foi aceita até o trabalho de Gregor Mendel ser notado, no início do século XX. Com efeito, tratava-se de uma “noção que foi sustentada quase universalmente por mais de dois mil anos” (ZIRKLE, 1946, p. 91). Por outro lado, como lembra Gayon (2006), foi graças a uma série de autores importantes, os quais sucederam a Lamarck e a ele se referiram, que o nome do naturalista francês passou a ser ligado à ideia, de resto, apenas então chamada de herança (termo que Lamarck jamais empregou) dos caracteres adquiridos (sintagma tampouco usado pelo naturalista francês, que empregou expressões como “mudanças adquiridas”). Assim, e somente nessa medida, “essas linhas históricas tornam então plausível a associação entre ‘lamarckismo’ [...] e ‘herança dos caracteres adquiridos’” (GAYON, 2006, p. 133).

Até mesmo aquele que hoje é tido popularmente como uma espécie de opositor de Lamarck, Charles Darwin, não apenas admitia amplamente tal herança como também forneceu uma elaborada explicação para ela. “Ainda mais que Lamarck”, conta-nos Gayon (2006, p. 132), Darwin “não tinha dúvidas sobre a transmissão das variações adquiridas no curso do desenvolvimento”. Ora, como mostra Jacob (2001), para o evolucionista inglês, bem como para toda ciência da época, a questão da hereditariedade era um mistério, o qual permaneceria incógnito por quase um século e que começou a ser desvelado a partir dos trabalhos de T. H. Morgan na década de 1930. Darwin forneceu uma explicação elaborada sobre tal herança com sua “Hipótese da Pangênese”, a qual ele tinha em alta conta.

Esclarecimentos como esses auxiliam a desfazer o mito - continuamente propalado, aliás, até mesmo nos livros didáticos de biologia (ALMEIDA; FALCÃO, 2010) - de um confronto de Darwin com Lamarck e entre suas teorias. O embate entre esses dois nomes supostamente expressaria, num processo que iria do erro ao acerto, a “história do progresso” da biologia evolutiva: enquanto o primeiro suscitaria a imagem de um vitalismo retrógrado, o último remeteria a um mecanicismo revolucionário calcado no artifício triunfante da seleção natural. Essa imagem, contudo, não encontra nenhuma sustentação fora do âmbito escolar. De fato, como mostrou Bowler (1989), a maior conquista de Darwin, em sua época, foi a aceitação da ideia básica da evolução. Aliás, foi somente quando o evolucionista inglês a tornou aceitável que a herança dos caracteres adquiridos, bem como a obra de Lamarck em geral, pôde ser “reabilitada” (BOWLER, 1989, p. 257). Ainda, o dito neolamarckismo nada mais foi do que um amálgama de preceitos que foram “adaptados a um sistema evolucionista que teria sido impensável no início do século XIX” (p. 257).

Assim, diferenciar Lamarck e Darwin pela admissão da herança dos caracteres adquiridos e supô-los em confronto representam patentes anacronismos. Numa carta a Joseph Hooker, em 11 de janeiro de 1884, Darwin deixa claro o que de fato julgava o diferenciar do naturalista francês: “Que os céus me protejam do disparate de Lamarck de uma ‘tendência à progressão’, ‘adaptações a partir do lento querer dos animais’ - mas as conclusões a que eu chego não são tão diferentes das dele [...]” (DARWIN, 2020). Na verdade, foi o advento da teoria sintética da evolução nos anos 1940 - que logrou conjurar várias disciplinas biológicas até então dispersas, superando as múltiplas dificuldades e desacordos que havia entre elas - o grande responsável pela redução do “darwinismo” à ideia pela qual ele é hoje conhecido: a doutrina da seleção natural. Os proponentes dessa teoria então contribuíram muito para a criação de um Darwin triunfante sobre forças retrógradas - lamarckianas, sobretudo. Julian Huxley, por exemplo, denominou retrospectivamente o período anterior ao triunfo do selecionismo como o “eclipse do darwinismo” (BOWLER, 1989); já Ernst Mayr concebeu as noções “lamarckianas” ainda remanescentes no campo como obstáculos a serem superados (GLIBOFF, 2011, p. 45).

Por fim, deve-se ressaltar que, no mundo germânico da segunda metade do século XIX - precisamente aquele em Freud fez sua formação -, a teoria da evolução foi divulgada por Haeckel amalgamando Darwin a outros naturalistas. Assim, ressalta Gliboff (2011, p. 46), o Lamarck de Haeckel “nada disse sobre fluidos sutis, uma tendência inerente à perfeição ou qualquer papel das necessidades ou esforços dos organismos”: apenas sobre efeitos hereditários e fatores ambientais que complementavam a teoria darwiniana. Ritvo (1992, p. 164) mostra o quão “atraído para a ciência pelo estilo extravagante de Haeckel” Freud foi, além de a autora ter revelado ao mundo o papel do zoólogo Carl Claus naquele então jovem estudante vienense de medicina (RITVO, 1972; 1992). Coincidentemente, Claus assumiu seu posto em Viena, como revela Montgomery (1998, p. 83), onde ensinaria a Freud, depois que Haeckel havia recusado a oferta; e, a despeito das desavenças que Ritvo (1992, p. 163-171) recupera entre Claus e Hackel, ela indica que ambos lutavam para o fim do criacionismo e a defesa da teoria da descendência. Efetivamente, como em outras nações que abraçaram o “darwinismo” à época, foi o que este logrou no mundo germânico: “a introdução de formas de explicação históricas para os fenômenos naturais observáveis” (MONTGOMERY, 1998, p. 115).

Portanto, a acepção popular do termo “lamarckismo” implica uma série de equívocos: a redução de Lamarck à herança dos caracteres adquiridos, a consideração de que se tratava de uma hipótese rechaçada por Darwin e por outros autores da época, a suposição do abandono de tal hipótese a partir da difusão da teoria darwiniana, a assimilação da teoria lamarckiana como erro e a da teoria da seleção natural como triunfo, o embate entre esta teoria e a de Lamarck, a redução do “darwinismo” a um selecionismo estrito nos mundos anglófilos e germanófilos antes do advento da teoria sintética da evolução. Tendo mostrado o anacronismo dessas assunções, passemos, então, ao exame de sua ressonância na literatura de comentário psicanalítica.

Jones e o “lamarckismo” de Freud

Com efeito, pode-se localizar na influente biografia de Freud elaborada por Ernest Jones uma espécie de ponto de origem de uma visão apressada e muito difundida acerca do “lamarckismo” freudiano - a qual não parece cessar de animar, talvez em segredo, muitas pesquisas ainda hoje. Como atesta Slavet (2007, p. 63), Jones foi “um dos primeiros e mais insistentes críticos do chamado ‘lamarckismo’ de Freud [...]” e sua biografia seminal inaugura um “retrato enganoso e impreciso do uso das teorias biológicas por Freud”.

O trecho que nos interessa está no terceiro volume dessa obra, na seção intitulada “Transmissão dos caracteres adquiridos”. No início do excerto, Jones (1953-1957/1980, v. 3, p. 332) diz que, com exceção de um trecho do Projeto de uma Psicologia, buscou “sem muito sucesso nos escritos de Freud, correspondência e recordações de conversas, alusões ao darwinismo” - que ele afirma compreender como sendo apenas a doutrina da seleção natural. Tal ausência representaria um “problema desconcertante” (p. 332) no estudo da obra freudiana. Entretanto, o biógrafo afirma que Freud deve ter lido um clássico como A origem das espécies, assim como outras obras de Darwin e os livros “neodarwinianos de Weismann, Haeckel e outros [...]”, e que “o único livro que [Freud] realmente possuía era The Descent of man [...]” (p. 333).

Constatada, então, a quase ausência de referências ao “darwinismo” na obra freudiana, Jones passa a excogitar o “lamarckismo” freudiano. Preliminarmente, busca caracterizar de maneira rápida a teoria de Lamarck, afirmando que “a única explanação séria acerca da evolução que teve alguma popularidade [vogue] antes de Darwin foi a doutrina de Lamarck dos caracteres adquiridos” (p. 333, grifos meus). Todavia, assevera que “essa doutrina entrou completamente em descrédito há mais de meio século” (p. 333) - isto é, desde o início do século XX. Como prova dessa asserção, cita uma passagem de um livro de Julian Huxley (Evolution in Action), considerado como “a mais alta autoridade” no assunto. A partir disso, enuncia, então, a tese central do excerto que examinamos: “apesar das inúmeras severas censuras similares [às expostas por Huxley], Freud permaneceu do início ao fim de sua vida o que se pode chamar de obstinado adepto desse Lamarckismo descreditado” (p. 333, grifos meus).

Dessa forma, Jones introduz na história da psicanálise precisamente a série de anacronismos revelados mais acima. Ritvo (1992) trouxe elementos para desfazer boa parte deles - sem, contudo, dar o destaque devido, para sua perpetuação, ao papel do biógrafo1 -, sobretudo ao revelar a série de obras de Darwin que Freud possuía de fato, assinadas e/ou datadas (RITVO, 1992, p. 260-263), e a profusão de citações ao evolucionista inglês na obra freudiana - inclusive à seleção natural (p. 257-259). Além disso, não devemos esquecer de uma das teses centrais da autora: a de que a herança dos caracteres adquiridos teria sido extraída das obras de Darwin na verdade, e não de Lamarck (RITVO, 1965; 1992). De nossa parte, podemos apontar como fonte dos anacronismos a perspectiva francamente neodarwinista que Jones assume, o que se torna patente ao conferir autoridade máxima a Huxley, um dos próceres da teoria sintética, como vimos.

Porém, mais do que anacronismos, há interpretações e distorções importantes. Buscando referendar suas considerações, Jones traz dois exemplos do “lamarckismo” na obra freudiana, dos quais nos interessa o segundo, extraído de Moisés e o Monoteísmo. Eis como a conversa com o biografado é relatada:

Eu lhe disse que ele [Freud] tinha naturalmente o direito de ter a opinião que quisesse em seu próprio campo da psicologia, mesmo que ela fosse contra todos os princípios biológicos, mas implorei a ele para que omitisse a passagem em que aplicava essa opinião a todo campo da evolução biológica, já que nenhum biólogo responsável a sustentava mais. Tudo o que ele dizia era que todos estes estavam errados e que a passagem permaneceria. E documentou essa teimosia no livro com as seguintes palavras: “a situação é tornada mais difícil, é verdade, em função da presente atitude da ciência biológica, que rejeita a idéia de qualidades adquiridas sendo transmitidas aos descendentes. Eu confesso, com toda modéstia, que não posso, contudo, descrever o desenvolvimento biológico sem contar com esse fator” (JONES, 1953-1957/1980, v. 3, p. 336, grifos meus).

Três aspectos podem ser destacados nessa passagem. O primeiro é a atribuição da posição de Freud exclusivamente à sua “teimosia”, isto é, a uma característica do homem Freud - e jamais ao problema que este queria resolver. O segundo é o ato do biógrafo de “implorar” (para que a passagem fosse abandonada), o que indica preocupações de natureza política com a reputação da psicanálise. O terceiro é o emprego de um termo que perverte o sentido das palavras de Freud em Moisés e o Monoteísmo. Como notou Slavet (2007, p. 65), o trecho reproduzido por Jones afirma que a ciência biológica “rejeita a ideia de qualidades adquiridas”, quando no original alemão lê-se que essa ciência “não quer saber nada disso [nichts wissen will]” (FREUD, 1939/2000, p. 392, grifos meus).

Slavet (2007, p. 41) atesta o quão influente essa interpretação de Jones foi entre os pesquisadores da história da psicanálise, desde a reação compartilhada entre “a confusão e a surpresa” até os atos de reputar “a insistência obstinada de Freud no ‘lamarckismo’ como uma excentricidade de velhice” e como “um dos muitos exemplos que demonstram as fundações científicas frágeis da psicanálise”. Dentre os autores citados pela autora os quais seguiram a trilha de Jones, estão alguns dos maiores representantes da literatura difamatória, o que nos leva a notar outra semelhança e talvez outro índice da influência de tal interpretação: a abordagem ad hominem. Como mostraram Simanke e Caropreso (2016, p. 18), o fulcro de tal literatura foi a propagação de imputações ofensivas, tais como a ocultação deliberada de Freud de episódios de sedução infantil, seu vício em cocaína, sua manutenção de relações extramaritais. Certamente o qualificativo “teimoso” é mais brando - e menos primitivo - do que “mau caráter”, “viciado” ou “infiel”, mas um mesmo mecanismo de apelo ao homem Freud como explicação se verifica.

Quanto ao segundo aspecto observado acima, aqueles minimamente versados na historiografia da psicanálise não devem se impressionar com o zelo de Jones para com a imagem da psicanálise, mas há elementos bem particulares a serem notados nesse caso. Como Slavet (2007, p. 58) mostrou, quando do diálogo relatado pelo biógrafo com seu biografado, “conexões perigosas entre judaísmo, bolchevismo e teorias científicas questionáveis (como o lamarckismo) eram implicitamente reconhecidas por Jones”. A disputa entre Weissman e o biólogo vienense Paul Kammerer acerca da existência ou não da herança dos caracteres adquiridos se tornou não apenas uma disputa entre neodarwinismo e neolamarckismo como também, daquele lado, entre antissemitismo e eugenia e, deste lado, judaísmo e bolchevismo (SLAVET, 2007). Em 1926, Kammerer foi convidado pelo governo soviético para abrir um laboratório em que realizasse pesquisas sobre tal herança - visto que os cientistas soviéticos consideravam mais materialistas as explicações lamarckianas do que as darwinianas, embora se considerassem darwinianos -, mas cometeu suicídio antes que assumisse o posto, o que foi pintado pelos líderes da URSS como uma conspiração contrarrevolucionária, narrada no famigerado filme governamental Salamandra (KOLCHINSKY, 2008, 536-538). Foi após o suicídio de Kammerer que começou a ocorrer a polarização entre lamarckianos e neodarwinianos (GLIBOFF, 2011, p. 53). Assim, a atitude de Jones foi guiada por muito mais do que “razões científicas”.

Sobre o terceiro aspecto, enfim, notamos a supressão por Jones de uma expressão cara a Freud. Aparentemente, “rejeita” e “não quer saber nada disso” equivalem, porquanto ambas expressam a ideia de rechaço. Todavia, um exame mais cuidadoso revela o liame mais íntimo que os termos usados no original alemão têm com o objeto da psicanálise - o inconsciente. Freud usou outras vezes esses mesmos termos para descrever a relação do neurótico com seu inconsciente - uma relação em que este “não quer saber nada disso”2. Assim, parece que o criador da psicanálise os empregou novamente para indicar, como tantas outras vezes em seu percurso intelectual, que se recusavam a dar ouvidos a algo de capital importância.

Dessa forma, Jones, cuja obra em questão o faz ser considerado o “fundador da historiografia freudiana” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 417), parece poder também ser considerado fundador de uma visão sobre o “lamarckismo” de Freud repleta de anacronismos. Indiquemos em que medida ela ressoou nas investigações mais citadas sobre a apropriação freudiana de ideias evolucionárias.

Sulloway, Ritvo e a polarização das interpretações

Entre meados dos anos 1960 e 1970, a psicanalista Lucille B. Ritvo publicou trabalhos que trouxeram elementos determinantes para o reexame da tese do “lamarckismo” de Freud, mas centrando-se, de fato, sobre o “darwinismo” deste. O primeiro artigo da autora sobre o assunto apresentou contribuições historiográficas tanto para desconstruir a oposição Darwin-Lamarck quanto para erguer a hipótese plausível de que “o uso e a atitude de Freud em relação à herança dos caracteres adquiridos foi influenciada por seu conhecimento dos escritos de Darwin e das vicissitudes da teoria deste enquanto Freud vivia” (RITVO, 1965, p. 514). Todavia, a autora não examinou de fato o interesse de Freud por Lamarck, a respeito do qual apenas indica que “aparece por volta da Primeira Guerra Mundial, quando ele propõe com Ferenczi um trabalho conjunto sobre Lamarckismo e psicanálise”, concluindo que “Nada resultou disso” (p. 514, grifos meus). Outro índice do interesse em frisar o “darwinismo” de Freud aparece através das referências autores da Ego Psychology, como Erikson, Kris e, sobretudo, Hartmann, preocupados em erguer a psicanálise sobre “fundações evolucionárias” e livrá-la da “teleologia e do neolamarckismo” (p. 512). Esse esforço de repisar o “darwinismo” freudiano só se mostrou mais forte na década seguinte, quando a autora trouxe a importante revelação da influência de Claus sobre Freud (RITVO, 1972).

No final da década, o psicólogo e historiador Frank J. Sulloway publicou sua monumental “biografia intelectual” do fundador da psicanálise seguindo a mesma trilha de explorar o “darwinismo” deste. Suas contribuições nesse sentido são inestimáveis, com destaque para a reabilitação da biologia darwiniana nutrida por Wilhelm Fließ (SULLOWAY, 1979/1992, p. 135-237) e a importância de Darwin para a sexologia (p. 277-319). Por outro lado, Sulloway foi bastante breve na abordagem do “psicolamarckismo” de Freud, ainda que tenha arrolado os principais aspectos a partir dos quais esse traço devesse ser abordado: o interesse de Freud pela volição em Lamarck, manifestado sobretudo no aventado projeto com Ferenczi, o recorrente recurso à teoria da recapitulação de Haeckel nos escritos freudianos, a influência determinante de Ewald Hering, mentor de Joseph Breuer, também sobre Freud, a convergência entre as concepções deste e as de August Pauly (p. 274-275). Porém, Sulloway não desenvolveu esses aspectos. Ao notar esse fato com surpresa, Robinson (1993, p. 73-74) conjectura duas razões para tal atitude: o pesar da tradição biográfica relativamente ao “lamarckismo” de Freud e o compromisso de Sulloway com a ênfase nas “conexões darwinianas” do criador da psicanálise.

Contudo, a despeito de tais conexões, as conclusões de Sulloway apontam o caráter pseudocientífico da psicanálise. Nas críticas realizadas pelo autor - retomadas e respondidas com vagar por Robinson (1993) -, interessa-nos notar que, em seu núcleo, está o “lamarckismo” de Freud. Em razão de traços como esse, a teoria freudiana, embora erguida a partir de ideias evolucionárias aceitas à época, refletiria “a lógica falha de assunções biológicas oitocentistas” (SULLOWAY, 1979/1992, p. 497), e “muito do que haveria de errado na psicanálise ortodoxa deve[ria] ser atribuído a isso” (p. 498). O autor não deixou, ainda, de criticar “a lógica audaz e implacável” de Freud, capaz até mesmo de ter feito este mudar seus “achados clínicos” (p. 498). Enfim, as assunções “lamarckistas” freudianas denotariam o caráter pseudocientífico da psicanálise.

No livro que resultou da reunião e da ampliação de seus artigos nos anos anteriores, Ritvo (1992), então no momento de voga das visões difamatórias sobre a teoria freudiana, manteve seu enfoque no “darwinismo” de Freud, ainda que, desta vez, tenha retratado, conquanto brevemente, o interesse deste por Lamarck. A esta altura, Ilse Grubrich-Simitis (1987), conforme relata, já havia descoberto o texto de Freud Visão de conjunto sobre as neuroses de transferência, resultado mais tangível do projeto pretendido com Ferenczi e, por conseguinte, texto em que se pode ver com mais acuidade a razão do interesse de Freud por Lamarck. Tal descoberta, aliada à de cartas decisivas de Freud, permitiram a Ritvo (1992, p. 74-83) examinar tal razão. Não obstante, mesmo que já não se pudesse mais afirmar apenas que “nada resultou disso”, a autora subvaloriza a questão de forma clara:

Felizmente, o uso que Freud fez das ideias, hoje desacreditadas, de recapitulação e herança de caracteres adquiridos não foi crucial para sua teoria científica, assim como não foi para a Darwin. Essas ideias foram usadas quase exclusivamente em ligação com suas especulações em psicanálise aplicada (RITVO, 1992, p. 253, grifos meus).

Essa conclusão torna evidente a tentativa da autora de “salvar Freud” de tais excentricidades oitocentistas, reputadas periféricas e tardias, as quais teriam tido o mesmo impacto sobre a plausibilidade da teoria freudiana do que sobre a darwiniana: nenhum substancial. Essa comparação - de resto, já enunciada no subtítulo do livro: “um conto de duas ciências” - deixa entrever certo tom hagiográfico, na medida em que Freud e Darwin seriam fundadores de “duas ciências” triunfantes, apesar de seus pecadilhos. Ora, destacando precisamente essa passagem, Butzer e Burkholz (1991) mostram que se trata não apenas de “pressupostos centrais e fundantes do pensamento de Freud” (p. 45), os quais se relacionam intimamente com sua fórmula etiológica, elaborada nos anos 1890 e nunca abandonada desde então, como ainda que “não é de todo viável” (p. 46) separar os escritos culturais freudianos dos de teoria analítica. Para a discussão em tela, importa destacar que Ritvo não confere valor merecido ao interesse de Freud por Lamarck, o que oblitera as razões clínicas, sobretudo, que conduziram o primeiro ao último e o peso desse interesse na teoria freudiana. Isso em proveito, novamente, de uma série de aproximações com Darwin.

Desse modo, apesar de suas conclusões opostas, os trabalhos de Ritvo e Sulloway não superaram o embaraço ante o “lamarckismo” de Freud. Conquanto tenham retificado boa parte dos anacronismos presentes na leitura de Jones, ambos os pesquisadores operaram sob o diapasão deste, na medida em que não indicaram ter superado a atitude de vergonha em relação a tal aspecto da obra freudiana e de busca do “darwinismo” nesta. Por conseguinte, em alguma medida, continuaram a encarar as apropriações evolucionárias de Freud como “um problema desconcertante” e, nesse sentido, a manter algo da dicotomia Darwin-Lamarck. O incômodo acabou por polarizar as conclusões, que se mantiveram entre a condenação ou a defesa da teoria freudiana com base em tais apropriações.

Considerações finais

O exame dessas leituras consagradas indicou que elas não foram capazes de sopesar o verdadeiro lugar de Lamarck no pensamento do fundador da psicanálise. Escrevendo pouco depois da ascensão da teoria sintética da evolução e preocupado com a imagem da psicanálise, Jones realizou uma leitura repleta de anacronismos e distorções acerca do “lamarckismo” de seu biografado, pelo qual nutria vergonha. Mesmo que tenham sido despidas da maior parte desses erros e tenham trazido contribuições historiográficas imprescindíveis para a investigação da temática, as leituras posteriores de Ritvo e de Sulloway mostraram-se sob o diapasão da vergonha e acabaram por operar entre a condenação e a defesa da cientificidade da psicanálise de Freud explorando os elos deste com Darwin. O resultado disso foram conclusões polarizadas sobre a apropriação freudiana das ideias evolucionárias, incapazes, portanto, de incorporar as nuances de tal apropriação e suas razões clínicas sobretudo. Nesse sentido, transformaram a alegação de Freud em Moisés e o monoteísmo em vaticínio: de fato, “não quiseram saber nada disso”.

Desde então, surgiram estudos valiosos os quais revelaram as razões clínicas do interesse de Freud por Lamarck, como os de Grubrich-Simitis (1987) e Butzer e Burkholz (1991), referidos acima, mas, numa outra direção, ainda restou recensear os prejuízos do emprego do termo “lamarckismo” nas investigações da obra freudiana. Este artigo pretendeu contribuir para tanto e espera que, à luz do exposto, dê-se toda a atenção ao emprego do termo.

Material suplementar
Referências
ALMEIDA, A. V.; FALCÃO, J. T. da R. As teorias de Lamarck e Darwin nos livros didáticos de Biologia no Brasil. Ciência e Educação, Bauru, v. 16, n. 3, p. 649-665, 2010.
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Notas
Notas
1 Em sua obra maior, a autora apenas observa que Jones apresentou “a convicção persistente de Freud na herança dos caracteres” e que, “procurando resolver o problema mais com uma abordagem psicanalítica do que com uma investigação histórica, Jones foi incapaz de encontrar uma explicação satisfatória [para tal convicção]” (RITVO, 1992, p. 18).
2 Veja-se, por exemplo, o caso Dora, Psicopatologia da vida cotidiana e o sobre a Gradiva, de Jensen (FREUD, 1905/1952, p. 239; 1901/1952, p. 152; 1906/1952, p. 95-96).
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