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Seria Hobbes um jusnaturalista?
Delmo Mattos
Delmo Mattos
Seria Hobbes um jusnaturalista?
Would Hobbes be a jusnaturalist?
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 899-917, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana
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Resumo: Este artigo discute a relação entre os parâmetros do jusnaturalismo e do positivismo jurídico no âmbito do sistema filosófico e político de Hobbes. Nestes termos, evidencia-se a possibilidade da convivência simultânea das duas correntes jusfilosóficas, ou seja, o positivismo e o jusnaturalismo em um mesmo sistema filosófico, utilizado, sobretudo, por Hobbes para justificar as clausuras da instituição de um poder comum capaz de garantir a obtenção da paz. Deste modo, defende-se o argumento da preeminência de um “condicionamento recíproco” entre as leis da natureza e as leis civis, favorecendo a diminuição da tensão entre ambos os ordenamentos jurídicos. Tal argumento confirma a reciprocidade entre as leis da natureza e as leis civis estabelecendo uma relação de complementariedade entre o positivismo e o jusnaturalismo. Com base nesta asserção, torna-se possível expor o argumento no qual o ordenamento jurídico de Hobbes pode ser identificado tanto como positivista quanto como jusnaturalista, sem, contudo, ser considerado contraditório.

Palavras-chave: Jusnaturalismo, Leis, Positivismo, Direito natural, Soberania.

Abstract: This article discusses the relationship between the parameters of jusnaturalism and legal positivism within Hobbes’ philosophical and political system. In these terms, the possibility of the simultaneous coexistence of the two jusphilosophical currents, that is, positivism and jusnaturalism, in the same philosophical system, used, above all, by Hobbes to justify the cloisters of the institution of a common power capable of guaranteeing the attainment of peace, is highlighted. In this way, the argument of the preeminence of a “reciprocal conditioning” between the laws of nature and civil laws is defended, favoring the reduction of tension between both legal systems. This argument confirms the reciprocity between laws of nature and civil laws by establishing a complementary relationship between positivism and jusnaturalism. Based on this assertion, it becomes possible to expose the argument in which Hobbes’ legal system can be identified both as positivist and jusnaturalist, without, however, being considered contradictory.

Keywords: Jusnaturalism, Laws, Positivism, Natural law, Sovereignty.

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Fluxo contínuo

Seria Hobbes um jusnaturalista?

Would Hobbes be a jusnaturalist?

Delmo Mattos
Universidade Federal do Maranhão, Brazil
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 899-917, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 30 Março 2020

Aprovação: 07 Outubro 2021

Introdução

Ao longo da história do pensamento político e jurídico moderno, o jusnaturalismo ou naturalismo jurídico e o positivismo, também denominado juspositivista ou normativismo jurídico, são apresentados como correntes antitéticas, no sentido de que a perspectiva de uma se opõe radicalmente à da outra. De fato, como observa Dyzenhaus (2001), dois argumentos são suficientes para caracterizar o cerne do positivismo jurídico: aquele no qual se considera o direito como um fato, e não como um valor; e o que pressupõe a realização do direito por meio da legislação consciente e a sua validade por força da decisão. Por conseguinte, se for necessário invalidar tais argumentos, emerge a configuração do projeto jusnaturalista.

De tal modo, qualquer pressuposição a respeito do positivismo jurídico, considerado ex negativo, aproxima-se das determinações fundamentais do direito natural e, portanto, do jusnaturalismo em contraposição à corrente do positivismo jurídico. Sendo assim, os argumentos em pauta evidenciam que o jusnaturalismo e o positivismo são sistemas jurídicos filosóficos que se apresentam como mutuamente exclusivas.

Contudo, ainda que as correntes em questão sejam consideradas contrapostas em conteúdo, é plausível vislumbrar uma possibilidade de convergência entre ambas, pois há elementos teóricos que demonstram uma espécie de complementariedade entre as determinações do jusnaturalismo e as do positivismo jurídico1. Diante desta possibilidade, fica compreensível a afirmação de Bobbio (1997) de que o projeto filosófico e político de Hobbes pode ser identificado como parte da trajetória do direito natural, bem como um precursor do positivismo jurídico.

Na sua obra Locke e o direito natural, Bobbio (1997) afirma que o lugar em que Hobbes deve ser identificado, no âmbito da tradição filosófico-jurídica, é um tanto controverso. O motivo dessa afirmação deve-se, sobretudo, à interpretação de que a exposição mais adequada do sistema filosófico e político hobbesiano compreende o seu ponto de partida como uma expressão legítima do jusnaturalismo, enquanto, no ponto de chegada, o filósofo assume um posicionamento eminentemente positivista.

O argumento em foco leva a avaliar a possibilidade da convivência das duas correntes jusfilosóficas, ou seja, o positivismo e o jusnaturalismo em um mesmo sistema filosófico, utilizado por Hobbes para justificar as clausuras da instituição de um poder comum capaz de garantir a segurança e a obtenção da paz. Baseando-se em tais pressupostos, surgem as seguintes indagações: é possível que dois ordenamentos que se contrapõem naturalmente convivam ou mesmo se complementem? A relação entre as leis da natureza e as civis é de ordem exclusiva ou inclusiva? Seria Hobbes um jusnaturalista, ou o seu projeto filosófico e político possui ramificações no positivismo jurídico?

Parte-se do argumento de que o projeto hobbesiano não deve ser qualificado como uma representação do positivismo nem ser identificado unicamente como jusnaturalista. Desta maneira, torna-se concebível a premissa de que seria possível conciliar duas concepções de ordenamento jurídico como consequência de um “condicionamento recíproco” entre as leis da natureza e as civis, favorecendo a redução da tensão entre ambas. Decerto, não é uma tarefa fácil aceitar tal pressuposição, uma vez que há diversas razões que se impõem à perspectiva de que Hobbes privilegia uma abordagem positivista do seu empreendimento, bem como à da exclusividade do seu direcionamento jusnaturalista. Compreendendo que se trata de duas vertentes que se excluem mutuamente, não há, pois, motivos para aceitar a afirmativa de que o projeto filosófico e político hobbesiano suporta uma interpretação conciliadora a respeito das vertentes jusfilosóficas.

Tal constatação expõe a preeminência de um “condicionamento recíproco” entre as leis da natureza e as civis, favorecendo a diminuição da tensão entre ambos os ordenamentos jurídicos. Assim, compreende-se que as leis naturais vigoram de forma análoga às leis positivas dentro de um mesmo ordenamento jurídico positivo, fornecendo, deste modo, soluções jurídicas não previstas pelas leis positivas. Nestes termos, conforme Bobbio (1991), Hobbes apresenta-se como um positivista por inclinação mental e raciocínio, mas um jusnaturalista por extrema necessidade ao atribuir a uma norma hipotética uma fundamentação objetiva do direito.

Ante o exposto, fica desfeita a contradição entre o ponto de partida do projeto filosófico e político de Hobbes, determinado por um prisma estritamente orientado pelas leis da natureza, e o ponto de chegada, baseado na construção de um projeto positivista de ordenamento jurídico. Neste sentido, Bobbio (1991) assevera que as leis da natureza possuem o objetivo fundamental, no âmbito do empreendimento de Hobbes, de constituir o fundamento de validade do Estado, no qual é reconhecido como legítimo, pelo filósofo, apenas o direito positivo.

Desse modo, reconhecer a legitimidade do direito positivo não descarta a função das leis da natureza no âmbito das suas determinações políticas e morais, uma vez que elas são primordiais para a consecução da obediência às leis civis, assim como àquelas contrárias às próprias leis da natureza. O jusnaturalismo pressupõe, como observa Gert (1988), uma corrente jurídica capaz de reconhecer as leis civis e as leis naturais em um mesmo ordenamento jurídico, ainda que haja diferenças no modo como ambas se articulam. Por seu turno, o positivismo apresenta-se, na ótica hobbesiana, como uma concepção válida de ordenamento, capaz de requerer uma relação de dependência ou correspondência entres as leis naturais e as civis, sem um pressuposto antitético entre elas.

Sob tal enfoque, este artigo propõe-se a evidenciar um contraponto à leitura tradicional do projeto filosófico hobbesiano, ao redimensioná-lo a uma perspectiva na qual se problematize a reciprocidade entre a “naturalidade das leis da natureza” e a artificialidade da lei positiva, concebendo uma relação de dependência entre os dois ordenamentos ou de correspondência entre a validade das leis da natureza e a eficácia das leis civis. Desta maneira, torna-se cabível a premissa de que a legitimidade das leis civis depende das leis da natureza e que a eficácia destas depende daquelas.

Ao conceber a conformidade entre essas leis, é possível aceitar o argumento de que o sistema filosófico hobbesiano pode ser identificado tanto como positivista quanto como jusnaturalista, sem, contudo, ser considerado antitético. Neste sentido, as discussões partem da relação entre as leis da natureza e as civis. Desta relação, expõe-se o argumento da correspondência entre tais leis, demonstrando, em primeiro lugar, o caráter não vinculante das leis da natureza, denotando a impossibilidade de serem identificadas como leis propriamente ditas. Para tanto, por um lado, são evidenciados os critérios, consoante Hobbes, para identificar uma lei em sentido próprio e um conselho. Por outro lado, determina-se o posicionamento do filósofo no tocante aos preceitos jusnaturalistas, por meio do argumento da superioridade das leis naturais sobre as civis.

Em um segundo momento, discute-se o problema da obrigatoriedade das leis da natureza e sua relação com as civis. Neste caso, faz-se necessário evidenciar essas últimas. Para tanto, passa-se, a seguir, a examinar as especificações e as condições de validade das leis civis, pelas determinações da sua obrigatoriedade e da manifestação da vontade do legislador. Conforme expresso, determinam-se os parâmetros e as consequências para os requisitos do positivismo jurídico, as consequências proferidas por Hobbes no que tange à racionalidade da lei derivada da vontade do soberano.

Leis da natureza e leis civis: correspondência ou exclusão?

Nas obras De Cive e Leviathan, Hobbes alude a uma nítida correspondência entre as leis da natureza e a civil. No entanto, um problema se faz presente quanto a tal correspondência, visto que, antes de comentá-la, o filósofo afirma que as leis da natureza não são consideradas uma lei, mas “um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão” (HOBBES, 1968, p. 189). Além disso, frisa: “porque as leis da natureza, que consistem na equidade, na justiça, na gratidão e outras, na condição de simples natureza não são propriamente leis” (HOBBES, 1968, p. 314).

Se as leis da natureza não são consideradas leis em sentido próprio, cabe, então, questionar o motivo pelo qual Hobbes menciona a relação ou a correspondência delas com a lei civil, de modo que elas se configuram como idênticas. Para compreender esta questão, torna-se relevante apresentar a passagem em que o filósofo evidencia o ponto que se quer explicitar. No Leviathan, Hobbes (1968, p. 314) ressalta que “a lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão”.

Considerando tal afirmativa, é possível compreender que a relação concebida, pelo filósofo, entre ambas as leis está no fato de que são partes contidas e oriundas uma da outra. Se for assim, cabe a seguinte indagação: se ambas as leis contêm uma a outra ou possuem igual âmbito de validade compreendido um no outro, é viável que as duas sejam constitutivas de uma mesma lei? Se as leis da natureza e as civis são uma mesma lei, por que então Hobbes as distingue quanto aos critérios de validade e de eficácia?

Não obstante, ainda é preciso advertir que, apesar de Hobbes considerar tanto as leis civis quanto as da natureza como partes da mesma lei, ele destaca as últimas como não se constituindo, em sentido próprio, uma lei. Em tais termos, dadas as especificidades que contêm as concepções de ordem e de “normas racionais”, as leis da natureza não são propriamente leis. Mediante a distinção que se estabelece entre ordem e conselho, evidenciam-se especificações gerais da lei - a qual se diferencia do conselho pelo modo como o filósofo concebe uma “ordem”.

Em tal acepção, diferentemente do conselho, a lei é uma ordem ou um comando cujo receptor deve respeitar “não simplesmente por medo, mas por ser um membro participante do Estado (Commonwealth)” (HOBBES, 1968, p. 311). A contraposição entre ordem e conselho é o ponto de partida argumentativo de Hobbes para caracterizar o significado geral do que entende como lei. Esta questão é apresentada, de maneira tímida, no início do capítulo XXVI do Leviathan, mas é no capítulo XIV do De Cive que ela é problematizada de modo mais incisivo. De acordo com Hobbes (2002, p. 215):

Quem não dá muita importância à força das palavras confunde por vezes lei com conselho, às vezes com pacto e eventualmente com direito. Confunde lei e conselho quem pensa que é dever dos monarcas não somente ouvir os seus conselheiros, mas igualmente obedecer-lhes - como se toda vez que pedimos conselho tivéssemos de segui-lo.

Essa citação deflagra o primeiro passo dado por Hobbes na tentativa de excluir o equívoco interpretativo que induz a confundir lei com conselho, e vice-versa. Para o filósofo (2002, p. 215), “um conselho é um preceito em que a razão que motiva alguém a segui-la deve ser a mesma coisa que se aconselha”. Em outro sentido, “a ordem é um preceito onde a razão da obediência está contida na vontade daquele que ordena” (HOBBES, 2002, p. 215). Se as definições do filósofo forem seguidas, pode-se identificar que o conselho se diferencia da ordem pelo fato de que a razão que faz alguém acatá-lo, ou não, consiste na vontade de quem o recebe. Por sua vez, uma ordem é um preceito no qual o motivo de alguém obedecê-la está contido não na vontade de quem é aconselhado, mas daquele que a decreta.

No conselho, não existe, por si, nenhuma obrigação de ser ou não cumprido ou respeitado, pois é absolutamente dependente do consentimento de quem o recebe. Já a lei é imposta pela vontade de quem a decreta - a qual é expressa como uma ordem, anulando a vontade de não cumpri-la. Tal caracterização conduz Goldsmith (1996, p. 333) a categorizar Hobbes como um “filósofo do comando”, uma vez que existem comandos formulados pelo soberano baseados em regras que determinam o que deve ser realizado, ou não. Neste caso, segundo Goldsmith (1996), o filósofo aproxima-se das determinações do positivismo jurídico por negar princípios gerais da justiça e da moralidade como critérios para validar a lei, na medida em que o comando do legislador satisfaz a tal exigência.

Essa mudança de enfoque não pode ser negligenciada diante do contexto da discussão em pauta, pois adverte que Hobbes procede a identificar as determinações das leis da natureza aos preceitos divinos, relacionando ao mandamento da obediência civil e, consequentemente, às determinações das leis civis, produto da vontade do soberano. Conforme Bobbio, esse revestimento divino atribuído por Hobbes às leis da natureza contribui para “fornecer um fundamento aceitável ao poder absoluto do soberano e, desse modo, a supremacia incontrastada do direito positivo” (BOBBIO, 1991, p. 108). Trata-se de reconhecer que há um apelo à obrigação moral como fonte de legitimação para fornecer os requisitos fundamentais de uma obrigação política.

O apelo à legitimação da obrigação política, uma vez condicionada a um mandamento divino, faz emergir uma relação na qual fica expresso o vínculo entre a validade e o conteúdo, tanto das leis da natureza quanto das civis. Desta maneira, torna-se evidente que, se a obrigação de obedecer à lei civil decorre da obrigação de obedecer à lei de natureza, esta é validada pela eficácia daquela. Esta vinculação entre validade e conteúdo das leis demonstra a distinção entre as obrigações in foro interno e in foro externo, visto que, como ressalta Hobbes, as leis da natureza obrigam sempre na esfera da consciência, porém nem sempre no âmbito das ações.

Na perspectiva de Bobbio (1991), a questão sobre a obrigatoriedade das leis da natureza se comportarem de modo imperativo apenas na consciência significa que induz a desejar a realização de determinadas ações de forma condicional. Sendo assim, tais leis obrigam condicionalmente, ou seja, na condição de que não seja derivado nenhum dano da realização delas. De fato, o autor (1995) assinala que as leis da natureza não são absolutas, mas relativas a um objetivo específico, isto é, a obrigação que dela se oriunda não é incondicional, e sim condicionada a uma finalidade. Tal condicionalidade, assevera Chiodi (1970), expõe uma incapacidade das leis da natureza quanto à sua obrigatoriedade in foro externo, pois somente as leis civis possuem tal possibilidade, ao serem impostas pelo poder soberano.

Todavia, Hobbes evidencia uma imposição às leis da natureza na efetivação da sua obrigatoriedade, que é, na verdade, a condição da sua correspondência com a lei civil. As leis naturais tornam-se obrigatórias in foro externo pela imposição da lei civil. Assim, como expõe Bobbio (2016, p. 23): “é lei positiva em sentido formal, mas são leis da natureza em sentido material, pelo fato de retirar de suas próprias regras dos preceitos da lei natural”. Diante disto, fica evidente a colocação de Hobbes de que as leis da natureza e as civis são de igual extensão, e, portanto, estas não contêm nada mais ou menos do que contêm aquelas. São, também, partes da mesma lei, e, como tal, a lei civil constitui a forma, enquanto as leis da natureza constituem o conteúdo. Esta questão é lembrada por Bloch da seguinte forma:

A “redenção” da lei natural em Hobbes talvez se dê quando ele, diferente do Positivismo Jurídico tradicional, permite à lei natural ocupar o lugar de fonte integradora do Direito, servindo como subsidiária no caso de lacuna da lei positiva. Um positivista convencional sequer admite lacunas no Direito e diz, de forma não convincente, que aquilo que não é tratado pela lei positiva constitui o chamado “espaço jurídico vazio”, ou seja, matérias as quais não é pertinente que o Direito se envolva. (BLOCH, 1980, p. 22).

Toda obrigação, consoante Hobbes, está em conformidade com as leis, “não em função do assunto de que elas tratam, mas, graças à vontade de quem as decreta, a lei não se constitui em um conselho e sim uma ordem” (2002, p. 2015). Contudo, o filósofo enfatiza que a lei é uma ordem que emana daqueles que detêm o poder para aqueles que estão predispostos a obedecê-la. De acordo com Bobbio, ainda que as leis da natureza em seu conteúdo sejam determinadas pelo soberano, “será conforme a lei natural qualquer lei civil por ele ordenada” (1995, p. 50). Neste sentido, Hobbes assinala que nenhuma lei civil pode ser contrária à lei natural.

Não obstante, o caráter legalista imposto ao argumento de Hobbes determina que o justo e o injusto não são conhecidos antes da instituição do Estado. À vista disto, tem-se o argumento de que o critério do justo e do injusto depende sempre da ordem do soberano. Infere-se, por conseguinte, que as leis civis estabelecem o que é justo e injusto com base na “execução coativa das leis naturais” (CHIODI, 1970, p. 41). Se for assim, as leis civis e leis da natureza contêm-se reciprocamente e são da mesma extensão.

O autor das leis não é, entretanto, identificado como o Commonwealth propriamente dito, e sim a pessoa que o representa (persona civitatis), seja ela um “homem ou uma assembleia de homens” (HOBBES, 1968, p. 228). Ora, afirmar que o autor da lei é o soberano significa dizer que só cabe a ele promulgar leis, e sendo o único legislador é, portanto, soberano (legibus solutus). Porém, o filósofo explicita que o soberano, o detentor do summa potestas, não está submetido às leis que ele institui, o que o torna livre com relação a elas. Em outros termos, o soberano é livre porque não encontra nenhum limite, ou seja, quaisquer “impedimentos ou obstáculos exteriores” ao exercício do seu poder.

De tal forma, Hobbes assevera que não há uma evidente contradição entre a lei civil e as leis da natureza, pois essas últimas, que ordenam obediência à primeira, também ordenam que se obedeçam às leis contrárias a elas. Em contrapartida a esta perspectiva, o filósofo evidencia que as leis da natureza são desnecessárias e inúteis. Tal determinação, segundo D’Entrèves (1972), tem consequências interessantes na compreensão do projeto filosófico e político hobbesiano, ao posicionar as leis da natureza ao segundo plano na discussão acerca da legitimidade e da justificação da instituição de um poder comum.

De fato, se o filósofo dispunha de todas as ferramentas para se posicionar como um jusnaturalista, por meio da superioridade das leis naturais sobre as civis, parece inferir a generalidade inútil das primeiras, desvalorizando-as completamente ao se redefinir mediante um posicionamento teórico positivista. Todavia, com base em Deigh (1996), a lei da natureza não se posiciona de forma inferior às leis civis. Sua função consiste em validar o sistema de normas jurídicas, o que não significa a sua absoluta dissolução no interior do ordenamento.

O argumento da pretensa posição de Hobbes a respeito das leis naturais demonstra que a oferta de conteúdo que as leis da natureza propunham às civis é anulada quando se determina o que é furto, homicídio, adultério etc., os quais são elementos da esfera obrigacional civil. Trata-se, pois, da constatação de que a lei civil se autodetermina na prescrição de condutas, não retirando das leis naturais qualquer conteúdo para a sua validade. Se for assim, não há elementos discordantes para inviabilizar a constatação de que Hobbes utilizou as leis da natureza como um expediente para fundamentar o poder absoluto, viabilizando a supremacia incontestável do direito positivo2.

O conceito de obrigação, exposto no capítulo XIV do Leviathan, é definido como o cancelamento do direito, isto é, o cancelamento da liberdade de desejar fazer o que se quer fazer, conforme a própria vontade e juízo, e da capacidade irrestrita de se utilizar todos os meios possíveis para a conservação do movimento ou da vida. Ainda que Hobbes não mencione a lei da natureza como um impedimento à liberdade natural, mas, em sentido geral, o conceito de lei (lex) se opõe ao de direito, pois este é liberdade e aquela é obrigação.

Nesse prisma, fica estabelecido que toda obrigação possui a propriedade de cancelamento da liberdade ou do direito de agir “conforme aquilo que a vontade determina” (HOOD, 1967, p. 158). Tal afirmativa reporta diretamente ao capítulo XXVI do Leviathan, no qual Hobbes (1968, p. 314-315) afirma que “o direito natural, isto é, a liberdade natural do homem, pode ser limitada e restringida pela lei civil”, já que, ainda segundo ele, “a finalidade das leis não é outra coisa senão essa restrição, sem a qual não haveria paz”. Neste sentido, pode-se compreender a razão pela qual o referido filósofo concebe as leis como “grilhões artificiais” capazes de constranger o movimento de um corpo qualquer, considerando, portanto, que a lei civil se constitui fator principal de contenção ou impedimento da liberdade natural que, por direito, cada homem possui no contexto do estado de natureza.

Na ótica positivista, esse problema seria resolvido pelo argumento de que a lacuna do ordenamento jurídico deve ser preenchida sem a necessidade de se recorrer a outro expediente que não o próprio sistema jurídico positivo e seu aparato legalista. Porém, Bobbio (1991) frisa que essa solução não cabe nos termos de Hobbes, pois, apesar de ser um positivista pelo resultado que pretendia obter, se apresenta como um jusnaturalista pelo fundamento sobre o qual se baseia o seu sistema filosófico e político. O sistema jurídico proposto pelo filósofo legitima-se em uma ordem natural preexistente, sem a qual o arcabouço da finalidade e da justificação de um poder comum jamais se sustentaria.

A compatibilidade entre a lei da natureza e a lei civil: possibilidade de compatibilização?

No De Cive, Hobbes (2002) distingue duas espécies de obrigações que designam a extensão da obrigatoriedade das leis da natureza, são elas: as obrigações in foro interno e in foro externo. No que diz respeito às leis da natureza, o filósofo afirma que elas obrigam sempre in foro interno e nem sempre in foro externo. A distinção entre a obrigatoriedade das leis naturais in foro interno e in foro externo pode ser explicada por meio do modo como Hobbes determina a natureza do desejo do cumprimento da lei.

Nessa acepção, segundo Hobbes, a obrigação de decidir o exercício das leis da natureza não deriva da natureza do seu cumprimento, tendo em vista que não há elementos suficientes capazes de obrigar que as leis sejam cumpridas. Por meio disto, compreende-se o motivo pelo qual as leis da natureza sempre obrigam in foro interno, ou seja, apenas na consciência. Já no que concerne às ações in foro externo, Hobbes salienta que nem sempre as leis da natureza obrigam, pois a obrigatoriedade destas, em sua extensão externa, não é efetivada devido à insegurança generalizada decorrente da ausência de um poder comum.

Warrender (1957) menciona que as leis naturais obrigam in foro externo apenas quando a condição de suficiente segurança é estabelecida fora do estado de natureza, visto que “as leis da natureza são leis destinadas especificamente a indicarem os meios mais convenientes para que os homens assegurem as condições necessárias para uma vida mais confortavelmente possível” (WARRENDER, 1957, p. 208). No entanto, essa segurança pode ser adquirida somente dentro do Estado civil, ou seja, “naquelas condições onde as ações humanas não são mais impostas condicionalmente, e sim incondicionalmente” (DEIGH, 1996, p. 40). Isto significa que as leis da natureza apenas obrigam quando são transformadas em leis civis. Disto se segue que as leis da natureza somente se tornam leis mediante a instituição do Commonwealth. Antes disto, é impróprio considerá-las leis, mesmo com o respaldo de ordenamento divino.

Diante disso, pode-se afirmar, por um lado, que as leis da natureza obrigam somente in foro interno no estado de natureza, já que neste não há um poder eficaz que force o seu cumprimento. Por outro lado, depois de estabelecido o acordo entre cada homem e instituída a soberania do Estado, as leis da natureza passam a obrigar in foro externo por estarem “contidas no ordenamento civil” ou porque o poder soberano torna obrigatória a sua observância.

Todavia, para Hobbes, não estava em questão suprimir as leis da natureza pelas civis, e sim torná-las obrigatórias por meio dessas últimas. Assim, quando o filósofo enfatiza que as duas leis contêm uma a outra, ele não menciona a sua estrita igualdade de função nem a ausência de suas respectivas especificidades. O que ele pretende enfatizar é que não se deve referir a qualquer obrigatoriedade das leis da natureza abstraindo a sua estrita correspondência com a autoridade do poder soberano. Conforme assinala Bobbio (1991, p. 113-114):

O único sentido que se pode dar a essas duas proposições, nada claras, é - se não nos enganamos - o seguinte: as leis naturais, por si mesmas, não obrigam à observância, mas só as leis civis obrigam; portanto, para que as leis naturais se tornem obrigatórias, é preciso que sejam impostas por uma lei civil. Mas disso resulta, então, que a lei civil é aquela que torna obrigatória uma lei natural; em outras palavras, é lei positiva em sentido formal (no sentido de que é colocada por uma autoridade legitima a criar normas jurídicas obrigatórias), mas é lei natural em sentido material, pelo fato de retirar a matéria de suas próprias regras dos preceitos da lei natural.

De tal modo, a lei civil não somente legitima as leis da natureza, mas também as torna obrigatórias. Por esse motivo, os súditos ou cidadãos, ao obedecerem às leis civis, estão, de forma análoga e simultânea, obedecendo às leis da natureza3. Como essas últimas identificam-se com “teoremas da razão”, a obediência dos súditos ou cidadãos ao poder soberano estará sempre sujeita às condições requeridas para a conservação da vida e a obtenção da paz.

Para Hobbes, apenas quando se preenchem os requisitos básicos que fornecem um significado de ordenamento ou obrigação é que as leis da natureza se tornam leis em sentido estrito. Segundo Bobbio (1995, p. 26), “uma concepção do direito que nasce quando direito positivo e direito natural não são mais considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado em sentido próprio”. Isso significa, ainda na concepção do autor (1997), que Hobbes se baseia no direito natural, não para restringir o poder civil, e sim para reforçá-lo, ao utilizar as determinações do direito natural para alcançar objetivos positivistas.

De fato, Hobbes inicia o capítulo XXVI do Leviathan declarando que o seu propósito é discorrer acerca da lei civil (De legibus civilibus), da mesma maneira como fizeram Platão, Cícero e Aristóteles, os quais, sem terem adotado como profissão o estudo das leis, argumentaram sobre este no seu sentido geral. Após esta afirmação, o filósofo prossegue em sua definição de lei civil.

Para se compreender com mais clareza a definição de lei civil mencionada, é necessário considerar, primeiro, que somente há lei civil porque há o Commonwealth, isto é, tal lei só é estabelecida a partir da sua instituição; segundo, as leis civis são aquilo que Hobbes concebe ser uma lei e são leis pela razão de que todos os homens que constituem o Commonwealth são obrigados a respeitá-las (GOLDSMITH, 1996). Com efeito, a problemática a respeito da lei civil surge na argumentação hobbesiana como um meio privilegiado pelo qual o soberano representante do Commonwealth realiza o propósito ou a função para a qual foi instituído.

Nesta perspectiva, o poder soberano consiste em um mandatário que exerce a sua função de legislador em vista da “segurança do povo” (“Salus populi suprema lex esto”). Mas, consoante Hobbes, deve-se entender por segurança:

Não a mera preservação da vida em qualquer condição que seja, mas com vista à sua felicidade. Pois os homens se reuniram livremente e instituíram um governo a fim de poderem, na medida em que permitisse sua condição humana, viver agradavelmente. Portanto, quem assumiu a administração do poder nessa espécie de governo pecaria contra a lei de natureza (porque pecaria contra a confiança dos que lhe confiaram tal poder). (HOBBES, 2002, p. 199).

Essa concepção implica um redimensionamento conferido à lei civil, à medida que Hobbes a direciona com o objetivo de estabelecer as regras que ditam o que deve ou não ser feito sobre o estabelecimento da segurança e da paz. Por esta razão é que qualificam o que é justo e injusto, não havendo, pois, nada que possa ser considerado injusto que não seja contrário a tal lei4. Sendo assim, tudo aquilo que for regrado pelo poder soberano deve ser considerado justo. Logo, se a regra proferida por esse deve servir de medida do bem e do mal, do justo e do injusto, a racionalidade da lei deriva-se da vontade daquele que a expressa.

No De Cive e no Leviathan, Hobbes divide a lei civil em “distributiva” e “punitiva”, segundo o ofício do legislador, que consiste em julgar e forçar os homens a submeterem-se aos seus julgamentos. Todavia, para o filósofo, a “distributiva” e a “punitiva” não são duas espécies da lei, mas partes constitutivas da mesma lei. Ora, tal constatação é óbvia, já que não poderia haver qualquer tipo de proibição, caso não houvesse o medo do castigo por aqueles que violarem a lei civil. De acordo com Hobbes (2002, p. 220):

Por isso é inútil toda lei que não tiver essas duas partes de que falamos, uma proibindo que se cometam injúrias, e outra castigando quem as pratica. A primeira chama-se distributiva, é proibitória e fala a todos; a segunda, que tem por nome punitiva ou penal, é mandatária e dirige-se aos magistrados públicos.

Quanto às duas partes constitutivas da lei, Hobbes, no De Cive, esclarece que é por meio da “distributiva” que cada súdito ou cidadão desfruta do próprio direito. Em outras palavras, é através dessa parte da lei que se estabelecem as regras sobre tudo o que permite àqueles saberem o que é seu e o que não é, “de modo a fornecer o pleno gozo daquilo que é seu por direito” (HOBBES, 2002, p. 220). Assim, diante dessa parte da lei, todo homem possui o direito próprio distinto dos que cabem aos outros, e fica proibido a qualquer um interferir nos “direitos alheios”.

Considerando-se essa afirmativa, é fundamental, de acordo com Hobbes, que os súditos ou cidadãos reconheçam que o representante do Commonwealth possui o poder supremo, ou seja, o direito supremo de legislar e estabelecer o conteúdo de suas leis. O legislador depende daquele que consentiu a ele o poder de legislar, visto que, segundo o filósofo, nenhum súdito ou cidadão pode ser submetido a um legislador sem que antes tenha expressado o seu consentimento5.

Toda lei é uma ordem que provém do legislador e tal ordem é uma manifestação da sua vontade. De tal forma, nenhuma lei pode ser obrigatória se a manifestação da vontade do legislador não for promulgada (ou tornada pública). Por este motivo, a lei somente se constitui como ordem para aqueles que possuem “os meios para dela se informarem” (HOBBES, 1968, p. 318). No tocante a isto, explica Hobbes (1968, p. 317) no Leviathan:

A lei não se aplica aos débeis naturais (naturall fooles), às crianças e aos loucos, tal como não se aplica aos animais nem podem eles ser classificados como justos e injustos, pois nunca tiveram capacidade para fazer nenhum pacto ou para compreender as conseqüências [sic] do mesmo, portanto, nunca aceitaram autorizar as ações do soberano, como é necessário que façam para criar um Estado.

Diante disso, segue-se outra distinção estabelecida entre as leis referente ao modo como são promulgadas pelo legislador, a saber: a lei escrita e a não escrita. Consoante Hobbes (2002, p. 226-227), no De Cive:

Por lei escrita entendo aquela que para tornar-se lei necessita de voz, ou de outro sinal bastante da vontade do legislador. […] A lei não escrita é aquela que não necessita de outra promulgação além da voz da natureza ou da razão natural; dessa espécie são as leis de natureza.

Essa distinção resulta, em um primeiro momento, em uma lei que é obrigatória a todos os súditos ou cidadãos, mesmo que não seja publicada, pois possui a sua validade como lei da natureza. Conforme esclarece Hobbes, a lei da natureza não necessita ser publicada nem proclamada, já que está contida em uma única sentença anteriormente aprovada por todos aqueles que se submeteram ao poder soberano: “não faças aos outros o que não consideras razoável que seja feito por outrem a ti mesmo” (HOBBES, 1968, p. 318, grifo do autor).

Contudo, tanto as leis escritas como as não escritas possuem a necessidade de interpretação, afirma Hobbes no Leviathan. Não obstante, se a lei da natureza não é escrita, deve-se indagar quem possui a responsabilidade de interpretá-la. O intérprete autorizado dessa lei é o juiz (laweryers), cujo papel é o de proporcionar justiça pela aplicação da lei, mais exatamente, da lei civil em função da sua própria racionalidade proveniente das leis da natureza6.

A propósito do juiz, Hobbes especifica que lhe é necessário prestar “atenção ao fato de que sua sentença esteja de acordo […] com a razão do poder soberano” (1968, p. 322-323). A razão de que se trata neste caso não é aquela eventualmente pervertida pelo interesse particular de tal soberano, mas a do princípio de “equidade racional” que deve guiá-lo em vista da vontade legisladora. Se Hobbes insiste em enfatizar que as leis proclamadas pela pessoa que ocupa o lugar do poder sejam sempre respeitadas pelos súditos ou cidadãos, da mesma forma indica que a obediência aos juízes não deve jamais ser cega à vontade de “um homem ou uma assembleia de homens”, mas sempre uma obediência à intenção que rege o direito e as ações da soberania do Estado, ou seja, a obediência às leis da natureza.

Conforme expõe Bobbio (1995), ao eliminar a interferência da lei da natureza em favor da constituição do ordenamento positivo, não se opõe em reconduzir a lei da natureza como elemento fundamental do Estado. Com efeito, não se pode considerar qualquer obrigação com a suficiente capacidade ou poder de restringir ou limitar a liberdade e o direito natural. Desta forma, no capítulo XXVI do Leviathan, Hobbes afirma que “o direito natural, isto é, a liberdade natural do homem pode ser limitada e restringida pela lei civil”, haja vista que “a finalidade das leis não é outra coisa senão essa restrição, sem a qual não haveria paz” (1968, p. 314-315).

Nesses termos, por mais que se oponha aos elementos jusnaturalistas do seu projeto filosófico e político e aos elementos positivistas, Hobbes deixa evidente que as leis da natureza vigoram junto às leis positivas sem haver nenhuma contradição. Assim, conforme expõe Bobbio (1995, p. 118): “as leis não escritas, que são leis naturais, obrigam do mesmo modo que as leis escritas, e ao lado destas”.

Considerações finais

A polêmica acerca do real motivo se Hobbes enquadra-se nas diretrizes do jusnaturalismo ou do positivismo jurídico não encontra uma solução definitiva. Não obstante, pelo exposto neste artigo, baseado em uma literatura ainda em construção, intentou-se posicionar-se no sentido de que existe a possibilidade de convergência entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Sob esta ótica, destacou-se que há elementos teóricos que demonstram uma espécie de complementariedade entre as determinações do jusnaturalismo e do positivismo jurídico.

Com base nesse pressuposto, o projeto hobbesiano apresenta-se como consequência de um condicionamento recíproco, no qual não pode ser qualificado como uma representação exclusiva do positivismo nem unicamente jusnaturalista. Desta maneira, considera-se possível conciliar duas concepções de ordenamento jurídico como consequência de um “condicionamento recíproco”. Condicionar reciprocamente as leis é, sobretudo, torná-las interdependentes sem anular as suas determinações.

No tocante a essa compreensão, infere-se uma nova linha interpretativa que conduz à reflexão e à fundamentação do projeto de Hobbes em um novo patamar. Trata-se de uma forma de interpretar as leis da natureza e as leis civis, favorecendo a diminuição da tensão entre ambos os ordenamentos jurídicos. Esta redução propicia a concepção de que a reciprocidade entre a validade e a eficácia das leis da natureza e as civis favorece uma relação entre dois modos de interpretação do ordenamento jurídico, ou seja, o positivismo e o jusnaturalismo.

Portanto, reafirmar a necessidade da correspondência entre as leis conduz às especificações e às condições de validade da lei civil. A validade das leis é um fator determinante para demonstrar a necessidade de inserir o argumento de que a lei de natureza compartilha dos mesmos efeitos da lei civil. Logo, diante da impossibilidade de enquadrar o projeto de Hobbes entre o jusnaturalismo e o positivismo, torna-se possível conceber a via interpretativa de posicioná-lo através do condicionamento entre ambos, o que, de certo modo, leva à pressuposição da necessidade de cautela para posicionar o projeto hobbesiano de Estado e ordenamento jurídico.

Material suplementar
Referências
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BOBBIO, N. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Publiesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
BOBBIO, N. Locke e o direito natural. Brasília: EdUnB, 1997.
BOBBIO, N. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: EdUnesp, 2016.
CHIODI, G. M. Legge naturale e legge positiva nella filosofia politica di Tommaso Hobbes. Milão: Facultà di Giurisprudenzia, 1970.
D’ENTRÈVES, A. P. Natural law: an introduction to legal philosophy. London: Hutchinson University Library, 1972.
DEIGH, J. Reason and ethics in Hobbes’s Leviathan. Journal of the History of Philosophy, Baltimore, v. 34, n. 1, p. 33-60, 1996.
DYZENHAUS, D. Hobbes and the legitimacy of law. Law and Philosophy, New York, v. 20, n. 5, p. 461-498, 2001.
GERT, B. The law of nature as the moral law. Hobbes Studies, Netherlands, v. 1, n. 1, p. 26-44, 1988.
GOLDSMITH, M. M. Hobbes on law. In: SORELL, T. (ed.). The Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 274-304.
GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. Cláudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HOBBES, T. Leviathan, or the matter, forme and power of a commonwealth ecclesiasticall and civil. Ed. C. B. Macpherson. Harmondsworth: Penguin Books, 1968.
HOBBES, T. Do cidadão: elementos filosóficos a respeito do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HOOD, F. C. The change in Hobbes’s definition of Liberty. The Philosophical Quarterly, Oxford, v. 17, n. 67, p. 150-163, 1967.
POGREBINSCHI, T. O problema da obediência em Thomas Hobbes. Bauru: EdUSC, 2003.
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ZARKA, Y. C. La décision métaphysique de Hobbes. Paris: Vrin, 1987.
Notas
Notas
1 No tocante à ideia de “complementariedade”, cf. Chiodi (1970).
2 Diante dessa afirmativa, cabe notar que Hobbes não se apropria dos termos “positivismo jurídico” e “jusnaturalismo” nas suas obras. Ademais, não se pode inferir que, na sua época, tais expressões eram utilizadas. Contudo, nas análises contemporâneas dos autores jusnaturalistas ou juspositivistas, como bem expõe a literatura acerca do assunto, tornou-se comum a classificação dos teóricos dentro de parâmetros que os identificam como positivistas ou jusnaturalistas. Logo, a questão se há ou não anacronismo, ante a discussão do artigo a respeito do uso dos referidos termos, não está no mérito. Ainda que Hobbes não utilize as expressões de maneira literal nas suas obras, as demandas interpretativas da análise proposta pelo artigo, tal como se evidencia nos objetivos, requer a sua plena utilização. Essa questão foi muito bem trabalhada por Chiodi (1970), dispensando maiores investidas explicativas.
3 A posição que se assume sobre essa questão é, de certo modo, a mesma que assume a maioria dos intérpretes da reflexão filosófica e política de Hobbes, ou seja, a “interpretação secularista”.
4 “Assim, apesar de a doutrina do contrato social e do consenso já despontar em seu pensamento, Hobbes não logrou, contudo, romper nem com o jusnaturalismo nem com a tradição do direito divino e tampouco com o cristianismo” (POGREBINSCHI, 2003, p. 227-228).
5 “E assim nunca pode ser justa a desculpa de que ignoramos em quem reside o poder de decretar leis: porque todo e qualquer homem sabe o que ele próprio praticou” (HOBBES, 2002, p. 224).
6 “O convencionalismo jurídico de Hobbes é inimigo mortal do direito natural clássico. Constata-se, pois, que a revolução epistemológica que Hobbes colocou sob a égide do mecanicismo e do racionalismo introduz uma reviravolta radical na filosofia e, particularmente, na maneira de conceber o direito. A metamorfose mais espetacular reside nesse convencionalismo mediante o qual Hobbes transforma a fonte, a forma e o sentido da juridicidade, uma vez que, a seu ver, cabe à forma da lei definir o direito e conferir-lhe força obrigatória. Nessa metamorfose antinaturalista, encontra-se o princípio do que, três séculos depois, se chamará ‘positivismo jurídico’” (GOYARD-FABRE, 2007, p. 50).
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