Fluxo contínuo
A dicotomia fato/valor e sua significação para as ciências da natureza
The fact/value dichotomy and its significance for the natural sciences
A dicotomia fato/valor e sua significação para as ciências da natureza
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 987-1008, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 01 Janeiro 2021
Aprovação: 06 Setembro 2021
Resumo: A dicotomia fato/valor nomeia o entendimento segundo o qual fatos e valores são de domínios diferentes que jamais se encontram. De acordo com Hilary Putnam, essa dicotomia - que tem raízes na filosofia do empirismo lógico - merece uma investigação aprofundada: por um lado, um escrutínio teórico mostra que ela é falsa e insustentável; por outro lado, no entanto, ela segue vigorando na vida prática como um forte obstáculo ao diálogo e ao pensamento crítico. À luz da argumentação de Putnam, este artigo oferece uma apresentação abrangente dessa dicotomia (seção 1) bem como dos argumentos que a levam ao colapso (seção 2). Em seguida (seção 3), a significação da imbricação fato-valor é explorada, em particular no que tange às ciências da natureza.
Palavras-chave: Dicotomia fato/valor, Empirismo lógico, Ciências da natureza, Putnam, Quine.
Abstract: The fact/value dichotomy refers the understanding that facts and values are from different domains that never meet. According to Hilary Putnam, this dichotomy - whose roots are in the philosophy of logical empiricism - deserves a thorough investigation: on the one hand, a theoretical scrutiny shows that it is false and unsustainable; on the other hand, it continues to prevail in practical life as a strong obstacle to dialogue and critical reasoning. In light of Putnam’s arguments, this paper offers a comprehensive presentation of that dichotomy (section 1), and of the arguments that lead to its collapse (section 2). Afterwards (section 3), the significance of the fact-value imbrication is explored, in particular with regard to the natural sciences.
Keywords: Fact/value dichotomy, Logical empiricism, Natural Sciences, Putnam, Quine.
Considerações iniciais
Nas conversas cotidianas, não raro nos deparamos com colocações tais como “Os fatos falam por si”, “Contra fatos não há argumentos”, “Isso é um juízo de valor”, “Vamos evitar juízos de valor” etc. Em geral, quem intervém dessa maneira supõe que mencionar fatos confere um grau especial de objetividade ao que está sendo dito. Suposto está, também, que os juízos de valor carecem dessa mesma objetividade. Na tônica desse entendimento, valores são subjetivos, ou totalmente relativos à cultura, ou, na avaliação de alguns, fora da esfera da racionalidade (MARICONDA, 2006). A atualidade dessas constatações leva a crer que a dicotomia fato/valor (usarei a sigla DFV) mantém-se, ao menos em alguns âmbitos da sociedade contemporânea.
Será interessante investigar a DFV? O filósofo americano Hilary Putnam é um dos que pensa que sim. Em sua avaliação, podem estar em jogo questões de vida ou morte, literalmente. É o que se lê em The Collapse of the Fact/Value Dichotomy and Other Essays (PUTNAM, 2002). Nessa obra, Putnam examina a DFV e explora a sua significação para a economia. Já em obras anteriores ele havia abordado aspectos filosóficos dessa pauta e se convencido de que “podemos superar a dicotomia fato/valor somente se formos a um nível muito profundo e corrigirmos nossas concepções de verdade e de racionalidade enquanto tais”1 (PUTNAM, 1981, p. xi). No entanto, e é bom frisar isso logo, “não há concepção neutra de racionalidade à qual se pode apelar quando a natureza da racionalidade é ela própria a questão” (PUTNAM, 1990, p. 138-139).
Quando nos damos conta que a DFV está enraizada em certa concepção de verdade e em certa concepção de racionalidade, logo percebemos que ela tem significação não apenas na economia, mas em todos os âmbitos da vida. Por isso, cabe perguntar: o que faz com que ela preserve o seu vigor, inclusive de uma geração à outra? Porventura estaria a escola reproduzindo-a, eventualmente sem saber? Essa hipótese é ousada, mas não é descabida. Embora desprestigiada, a escola ainda é uma das estratégias mais sofisticadas (espaços, tempos, recursos, programas etc.) para apresentar o mundo às novas gerações e, desse modo, não parece exagerado considerar que ela contribui decisivamente para estabilizar entendimentos acerca do que é racional e do que é verdadeiro.
É possível que a DFV se reproduza em ambientes dedicados de modo planejado, sistemático e intencional ao ensino e à aprendizagem de crianças e jovens. A reprodução pode acontecer, por exemplo, em aulas de ciências da natureza, quando estas propõem que o mundo natural seja investigado e compreendido com métodos depurados de todo e qualquer elemento valorativo. Ela pode acontecer também em aulas de ciências humanas, quando estas promovem um relativismo desenfreado segundo o qual todos os saberes e conjuntos de valores são igualmente justificados e nenhum pode ser racionalmente confrontado. Se essas conjecturas têm plausibilidade, então trabalhar na explicitação dessa questão é um esforço justificado. Com efeito, no Brasil ainda são escassos os estudos que procuram articular “reflexões filosóficas sobre a ciência e valores com aspectos educacionais” (CORDEIRO, 2016, p. 23).
Diante dessas considerações, gostaria de encaminhar o presente trabalho na seguinte direção: examinar a DFV e explicitar algo de sua significação para as ciências da natureza, com vistas ao campo da educação escolar. Isso demanda atenção a um leque amplo de questões, todas com ulteriores desdobramentos. Começando pelas questões básicas, é pertinente indagar: (1) Em que consiste essa dicotomia? (2) Quais são os argumentos que a levam ao colapso? (3) Qual é a significação desse colapso para as ciências da natureza? No que segue tomo essas perguntas como fio condutor, tratando de propor respostas a elas. Em (1) e (2) procuro construir respostas claras e acessíveis. Em (3), procuro oferecer ponderações capazes de fomentar aquilo que Putnam considera adequado para fazer frente à DFV: a discussão crítica e reflexiva de valores, a exemplo de Sócrates. Tanto na pesquisa científica quanto na escola e na vida como um todo, é relativamente cômodo dizer “Os fatos falam por si”, “Contra fatos não há argumentos”, “Isso é um juízo de valor”, “Vamos evitar juízos de valor” etc. É incômodo, mas extremamente importante, tentar seguir o exemplo de Sócrates, isto é, “examinar quem somos, quais são nossas convicções mais profundas e escrutinar essas convicções no teste do exame reflexivo” (PUTNAM, 2002, p. 43).
A dicotomia fato/valor
O termo “dicotomia” indica separações exaustivas: algo é dividido em dois, contrários, que lhe esgotam a extensão. Com alguma frequência, separações desse tipo são tomadas como supostos de outros raciocínios, o que contribui para que adquiram status de naturais ou necessárias. No caso da DFV, ela nomeia a suposição segundo a qual há um hiato entre fatos e valores. Em palavras simples, fatos e valores são concebidos como coisas radicalmente diferentes que jamais se encontram. Concordo com Putnam: essa suposição não resiste a um escrutínio rigoroso. É um erro, talvez uma ingenuidade, tomá-la como natural e necessária.
A primeira coisa a destacar ao examinar a DFV é a sua força: não são poucas as ocasiões nas quais ela participa do raciocínio como uma premissa oculta, que de tão enraizada funciona automaticamente, e, por isso, resiste à revisão. Putnam chega a dizer que ela alcançou status de “instituição cultural” (PUTNAM, 1981, p. 127). A segunda coisa a destacar é a eficácia prática dessa visão: “A pior coisa acerca a dicotomia fato/valor é que na prática ela funciona como um interruptor de discussões, e não apenas um interruptor de discussões, mas também um interruptor do pensamento” (PUTNAM, 2002, p. 44). Ao meu modo de interpretar, o ponto aqui é o controle do vocabulário: quem invoca a DFV no sentido que mencionei no parágrafo de abertura está indiretamente dizendo “Você pode argumentar, desde que seja com as minhas categorias e conceitos”. Ora, quem consegue estabelecer os termos de uma discussão determina também o rumo e as possíveis conclusões.
Argumentar contra o senso comum é sabidamente um empreendimento de poucos resultados. Assim, é melhor começar o enfrentamento num patamar mais técnico. Mesmo que Putnam já tenha aplainado o terreno, isso requer uma boa dose de esforço. Cumpre notar que a DFV encontra suporte em outra dicotomia: aquela entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Essas visões - juízos de fato versus juízos de valor & verdades de fato versus verdades analíticas - “corromperam nosso pensamento tanto sobre o raciocínio ético quanto sobre a descrição do mundo, principalmente ao nos impedir de ver como avaliação e descrição são entrelaçadas e interdependentes” (PUTNAM, 2002, p. 13). Cito essa passagem para, mais uma vez, trazer um aspecto mais palpável dessa pauta: separar fatos e valores é como apostar que a descrição e a avaliação de algo podem ser separadas; reconhecer a imbricação de fatos e valores implica reconhecer que descrição e avaliação estão interconectadas e dependem uma da outra. A imbricação fato-valor será tematizada mais adiante (seção 3).
Isso posto, cabe perguntar: Qual é o apoio que a distinção analítico/sintético providencia para a DFV? Em poucas palavras, essa distinção foi tomada como esteio para instituir filosoficamente a DFV. E sem tal apoio, a DFV se sustenta? Não; a imbricação fato/valor torna-se evidente. Para detalhar esses pontos é preciso situar a distinção analítico/sintético, entender em que sentido ela dá suporte à DFV e explicar por que a DFV depende derradeiramente desse suporte.
Vejamos a distinção analítico/sintético a partir de três pequenos fragmentos do corpus kantiano:
Proposições analíticas chamam-se aquelas cuja certeza repousa sobre a identidade dos conceitos (do predicado com a noção do sujeito). As proposições cuja verdade não se funda na identidade de conceitos devem ser denominadas sintéticas. [...] As proposições sintéticas expandem a cognição materialiter; as analíticas meramente formaliter (KANT, Lectures on Logic, §36 e nota 1 [1992, p. 606-607]).
Em todos os juízos nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um predicado [...], esta relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. No primeiro caso chamo analítico ao juízo, no segundo, sintético. Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíticos quando a ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa relação é pensada sem identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos (KANT, CPR, A6-7/B10 [1998, p. 141]).
Seja qual for a origem dos juízos ou a natureza da sua forma lógica, existe neles, quanto ao conteúdo, uma diferença em virtude da qual são ou simplesmente explicativos, sem nada acrescentar ao conteúdo do conhecimento, ou extensivos, aumentando o conhecimento dado; os primeiros podem chamar-se juízos analíticos, e os segundos, sintéticos (KANT, Prolegomena, §2, A25 [2004, p. 16]).
Para Kant, os juízos analíticos são explicativos: eles aumentam o conhecimento apenas formalmente, pois o sujeito contém o predicado - este nada mais é do que uma explicitação daquele. Segue que o valor de verdade de um juízo analítico depende tão somente do significado dos termos. Os juízos sintéticos, por sua vez, são extensivos: há, por assim dizer, um acréscimo de informação - o conhecimento aumenta materialmente -, pois o predicado não está contido no sujeito, mas lhe é atribuído. Segue que a aferição do valor de verdade de um juízo sintético depende de uma evidência empírica.
Considerando essa distinção, o que dizer das verdades da matemática? Seriam elas analíticas ou sintéticas? A resposta de Kant é original e interessante: a matemática é um saber sintético a priori. Kant inaugura essa categoria, desconcertante à primeira vista: sintético a priori. Seu raciocínio consiste, inicialmente, em constatar que “as verdadeiras proposições matemáticas são sempre juízos a priori e não empíricos, porque comportam necessidade, que não se pode extrair da experiência” (CPR, A10/B14 [1998, p. 144]). Seria essa constatação suficiente para concluir que as proposições matemáticas são analíticas? Não. O critério da analiticidade, há pouco apresentado, é a identidade. Kant examina a proposição “7+5=12” e constata que o termo-sujeito “7+5” não contém o termo-predicado “=12”. Segue que a matemática possui um caráter sintético. Essa menção à matemática é importante, uma vez que ela indica que a distinção kantiana analítico/sintético não constitui uma dicotomia. Uma dicotomia, para dizê-lo uma vez mais, é uma separação exaustiva. Uma distinção, por outro lado, não é exaustiva e tem um âmbito restrito de aplicação.
Ao invés de ampliar a análise do legado kantiano, gostaria de avançar para a questão “Em que sentido a distinção analítico/sintético suporta a DFV?”. Segundo Putnam (2002), a distinção kantiana foi inflada pelo empirismo lógico ao ponto de tornar-se uma dicotomia. Aqui, “inflar” significa justamente expandir a noção de “analítico” de modo a abarcar a matemática que, como vimos, Kant considerava sintética a priori.
Antes de apresentar esse inflacionamento, gostaria de fazer uma breve digressão para mencionar Frege. Considero oportuno enfatizar algo que Putnam deixa passar, a saber, que já na obra de Frege a matemática é considerada analítica. No §3 do The Foundations of Arithmetic - que veio a lume em 1884 - Frege registra sua discordância em relação a Kant: “essas distinções entre a priori e a posteriori, sintético e analítico, dizem respeito, a meu ver, não ao conteúdo do juízo mas à justificação da emissão do juízo” (FREGE, 1960, §3, p. 03). Enquanto Kant concebe a analiticidade como uma questão de conteúdo - o termo-sujeito contém o termo-predicado - Frege lança mão de outro critério: a justificação, que consiste em demonstrar como uma sentença remonta a verdades primitivas. O procedimento é aproximadamente este: de uma sentença qualquer (seja ela matemática ou outra) pergunta-se acerca de sua justificação. Se na demonstração aparecem exclusivamente leis lógicas e definições, tem-se uma verdade analítica. “Se não é possível, porém, conduzir a demonstração sem lançar mão de verdades que não são de natureza lógica geral, mas que remetem a um domínio científico particular, a proposição é sintética” (FREGE, 1960, §3, p. 4).
A justificação também é o critério de Frege para a distinção a priori/a posteriori. Acerca desse ponto ele diz:
Para que uma verdade seja a posteriori requer-se que sua demonstração não se possa manter sem apelo a questões de fato, isto é, a verdades indemonstráveis e sem generalidade, implicando enunciados acerca de objetos determinados. Se, pelo contrário, é possível conduzir a demonstração apenas a partir de leis gerais que não admitem nem exigem demonstração, a verdade é a priori (FREGE, 1960, §3, p. 4).
Para não alongar demasiadamente esse excurso - queria apenas assinalar que Frege, décadas antes do empirismo lógico, já havia se convencido de que a matemática é analítica -, trago à baila a interpretação de um especialista. Acerca da passagem recém citada, Kenny (2000, p. 57) escreveu:
Precisamos ler essa passagem com atenção se quisermos ver qual é, para Frege, a diferença entre a distinção a priori / a posteriori e a distinção analítico / sintético. Já não é mais uma questão de epistemologia versus lógica: é uma questão de grau de generalidade. Uma verdade é a priori se puder ser provada a partir de leis gerais, sem apelar para fatos particulares; uma verdade não é apenas a priori, mas também analítica, se as leis gerais a partir das quais ela pode ser demonstrada forem leis gerais da lógica. Uma lei é uma lei de lógica se for universalmente aplicável e não se restringir a disciplinas específicas.
Estudiosos da obra de Frege costumam chamar a atenção para o espírito da Begriffsschrift (FREGE, 1972) - obra que ele publicou em 1879 - presente no seu entendimento de analiticidade. O propósito de Frege era axiomatizar a aritmética. Para Frege, a analiticidade não se constitui pela identidade, como queria Kant. Por conta desse critério, Kant dizia que um juízo analítico aumenta o conhecimento apenas formalmente. Frege não compartilha dessa afirmação. Cabe acrescentar algo de suma importância: a aritmética se vê melhor fundamentada se ela descansar sobre princípios analíticos. As posições de Kant e de Frege acerca da analiticidade serão retomadas mais adiante (seção 2).
De volta ao empirismo lógico que, segundo Putnam, inflou a noção de “analítico” a fim de abarcar a matemática. Para compreender as razões que justificam essa inflação, há de se abordar o empirismo lógico - essa formidável escola de pensamento que surgiu entre as duas grandes guerras do século passado - como um audacioso projeto que buscou combinar os desenvolvimentos da lógica matemática com uma epistemologia de matriz empirista. A orientação empirista consiste em priorizar, como conhecimento, as crenças justificadas pela experiência. Vejamos alguns pontos-chave desse projeto.
Em repercussão ao que se lê no Tractatus (WITTGENSTEIN, 2001) os empiristas lógicos providenciaram uma formulação linguística à sua teoria do conhecimento. Dentre as diversas maneiras de apresentar esse esforço, opto aqui por chamar a atenção para o texto Formal and Factual Science, no qual Carnap (1953) explicita como as ciências formais (a lógica, a matemática) delimitam as ciências empíricas. Em poucas palavras, um sistema de regras sintáticas de formação (i.é, “regras que determinam as formas admissíveis de sentenças”) e de transformação (i.é, “regras que determinam em quais condições uma sentença é consequência de outras sentenças”) da linguagem da ciência leva a uma tríplice classificação dos juízos:
De acordo com seu caráter sintático e no que diz respeito às regras de transformação, as sentenças podem ser classificadas da seguinte forma: uma sentença será chamada analítica se for incondicionalmente válida de acordo com as regras de transformação e independentemente da verdade ou falsidade de outras sentenças. […] Adicionalmente, chamamos uma sentença inconsistente (autocontraditória) se for incondicionalmente inválida; mais precisamente: se cada sentença da linguagem é uma consequência dela. Chamamos uma sentença determinada se ela é analítica ou inconsistente. Chamamos uma sentença sintética se não for analítica nem inconsistente (CARNAP, 1953, p. 124).
Note que essa classificação, que pretende abarcar todos os juízos possíveis, não prevê a categoria “sintético a priori”. Acreditavam esses pesquisadores que todo juízo significativo, seja ele da área que for, ou é analítico (trata de relações de ideias) ou é sintético (trata de questões de fato). Questões de fato cabem às ciências fatuais e relações de ideias cabem à filosofia. Nas palavras de Glock (2008, p. 45): “Enquanto a ciência resulta em proposições empíricas que descrevem a realidade - e são portanto sintéticas -, a filosofia resulta em proposições analíticas que desdobram o significado dos termos empregados pela ciência e/ou senso comum”.
Os enunciados não-analíticos são significativos se forem descrições de fatos. Fatos são, aqui, fatos empíricos, passíveis de figuração. Fazer ciência é trabalhar com enunciados assim verificáveis.
Quais são as consequências da assunção da dicotomia analítico/sintético? Direto ao ponto: com ela, a ética é expulsa do domínio do racionalmente discutível. Nas palavras de Carnap (2011, p. 26): “Todas as sentenças pertencentes à Metafísica, à Ética regulativa e Epistemologia (metafísica) têm esse defeito, são de fato inverificáveis e, portanto, não científicas. No Círculo de Viena, estamos acostumados a descrever essas sentenças como sem sentido (seguindo Wittgenstein)”.
Temos hoje vasta literatura sobre a concepção científica de mundo dos positivistas vienenses.2 Não obstante, gostaria recapitular duas ideias importantes que ajudam a situar o que está em exame. Faço-o a partir de Schlick, figura em torno da qual se aglutinou o grupo de filósofos, lógicos e cientistas que em 1929 se constituiu oficialmente como Círculo de Viena.
A primeira ideia central diz respeito à tarefa da filosofia. Em tom wittgensteiniano, Schlick (1948) disse que fazer filosofia é, basicamente, procurar o sentido de afirmações e de perguntas. À luz do Tractatus (WITTGENSTEIN, 2001) essa afirmação é contundente. Mas, o que é o sentido? Para Schlick, “a indicação das circunstâncias ou condições sob as quais uma proposição é verdadeira é o mesmo que a indicação do seu sentido, e não algo diferente” (SCHLICK, 1948, p. 483). E o que é necessário para um enunciado ter sentido? Schlick não tinha dúvidas: a verificabilidade. Ao seu modo de ver, “uma existência não verificável não pode entrar com sentido em nenhuma proposição possível” (SCHLICK, 1948, p. 503). Ora, duas são as verificações possíveis: a empírica e a lógica. Esta é a segunda ideia central: algumas coisas são empiricamente possíveis e outras são logicamente possíveis. Schlick (1936) explica: “Proponho que se qualifique como ‘empiricamente possível’, tudo aquilo que não contradiz as leis da natureza”. E continua: “Denomino ‘logicamente possível’ um fato ou processo se este puder ser descrito, ou seja, se a sentença que o descreve obedece às normas da gramática que estipulamos para a nossa linguagem” (SCHLICK, 1936, p. 349). Assim, são racionalmente discutíveis as sentenças analíticas e as fatuais.
Para Putnam, esse interesse primordial pelos fatos, acompanhado de uma consideração negativa da esfera dos valores, remonta a Hume. Na filosofia deste é notável a separação desses domínios: o primeiro, dos fatos, é regido pela razão; o segundo, dos valores, é regido pelas paixões.
A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de ideias, seja quanto à existência e aos fatos reais. Portanto, aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão. Ora, é evidente que nossas paixões, volições e ações são incapazes de tal acordo ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completos em si mesmos, e não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações. É impossível, portanto, declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou conformes à razão (HUME, Treatise, 3.1.1.9 [2007, p. 295]).
Assim, “para os positivistas ambas as distinções, a distinção entre fatos e valores e a distinção entre analítico e sintético, contrastam ‘fatos’ com outra coisa: a primeira contrasta ‘fatos’ com ‘valores’ e a segunda contrasta ‘fatos’ com ‘tautologias’ (ou ‘verdades analíticas’)” (PUTNAM, 2002, p. 08). Aquele que afirma que fatos e valores são coisas radicalmente diferentes que jamais se encontram está, talvez sem saber, endossando uma metafísica positivista. “A distinção de fatos científicos, por um lado, e valores subjetivos corruptos, por outro, representa a distinção positivista crucial” (TAUBER, 2009, p. 53).
A visão dicotômica dos empiristas lógicos pode ser resumida assim: afirmações científicas são empiricamente verificáveis e juízos de valor são inverificáveis. Considere, por exemplo, “É errado matar”. Esse juízo pode ser verificado? Quais são as evidências empíricas que o confirmam? Ao que parece, essa afirmação não é do tipo que pode ser testada empiricamente. Logo, conforme os positivistas, não é uma proposta sintética. Será ela uma proposta analítica? Tendo presentes os critérios da analiticidade acima apresentados, conclui-se que não. Se não é um juízo analítico e tampouco um juízo sintético, então é algo sem sentido. “É contra esse tipo de posição filosófica que Putnam centraliza sua rejeição à dicotomia fato/valor” (PERUZZO JÚNIOR, 2017, p. 11).
O colapso da dicotomia fato/valor
O colapso do empirismo lógico - que Burge (1992, p. 49) considera ser “o evento mais importante na filosofia da segunda metade do século XX” - está diretamente ligado ao colapso da dicotomia analítico/sintético que, como vimos, dá sustentação à DFV. Um artigo de Willard Van Orman Quine, intitulado Two Dogmas of Empiricism (QUINE, 1951), é incontornável nessa matéria. Nas primeiras quatro seções desse trabalho, Quine argumenta que nenhum pensador conseguiu produzir uma explicação satisfatória da analiticidade. Em seguida, nas últimas duas seções, a teoria do significado dos positivistas lógicos é posta em exame. Aliás, são exatamente estes os dois dogmas referidos no título da peça: a crença na inteligibilidade da noção de “analítico” e a crença de que uma sentença, apartada das demais, pode ser verificada empiricamente.
Vou recuperar sucintamente três pontos da argumentação de Quine (1951): a crítica da noção kantiana de analiticidade; a crítica da noção fregeana de analiticidade; e a contestação, por assim dizer, da teoria do significado dos positivistas lógicos. Recuperarei apenas o essencial para iluminar o seguinte: sem o suporte da distinção analítico/sintético, a DFV não se sustenta.
Em Kant, vimos na seção anterior, são analíticas as sentenças cujo predicado pertence ao sujeito como algo que está nele contido implicitamente. Quine critica essa formulação sob dois aspectos: “ela se limita a enunciados na forma sujeito-predicado e recorre à noção de estar contido, que é deixada em nível metafórico” (QUINE, 1951, p. 21). Em Kant temos, a bem da verdade, uma distinção e não uma dicotomia. Em Frege, por sua vez, são analíticas as sentenças que podem ser demonstradas usando somente leis lógicas e definições. Por que essa definição é insatisfatória? Com ela, podemos demonstrar que a sentença “Nenhum filósofo é casado” é uma verdade analítica, o que seguramente não é o caso. Esse exemplo curioso, extraído de Miller (2007, p. 130), vem a calhar:
[1] Nenhum homem solteiro é casado (Lei Lógica)
[2] Filósofos são homens solteiros (Definição de “filósofo”)
[3] Nenhum filósofo é casado (A partir de [1] e [2])
Qual é o problema dessa demonstração? Claramente, a definição de “filósofo” é incorreta. Este é exatamente o ponto que Quine explora: como saber se uma definição é ou não correta? Uma resposta plausível: sinonímia. Quer dizer: a definição é correta se o termo que está sendo definido (definiendum) é sinônimo do termo usado para defini-lo (definiens).3 Mas, como saber se dois termos são ou não sinônimos? A noção de sinonímia, observa Quine, “precisa ser clarificada tanto quanto precisa ser clarificada a própria noção de analiticidade” (1951, p. 23). Uma resposta amplamente conhecida na tradição, e que remonta a Leibniz, é a de que termos sinônimos são intersubstituíveis salva veritate. Na prática: A e B são sinônimos se em qualquer sentença que contém A pudermos substituir A por B (e vice-versa) sem alterar o valor de verdade da sentença.
É a substituição salva veritate suficiente para estabelecer a sinonímia? Consideremos, por um instante, os termos “criatura com rim” e “criatura com coração”. Qualquer sentença que contém o termo “criatura com rim” pode ser reescrita, salva veritate, de modo a substituir esse termo por “criatura com coração”. Porventura isso atesta que tais termos sinônimos? Claro que não. Eles são co-extensionais, isto é, o conjunto das criaturas com rim tem extensão igual ao conjunto das criaturas com coração. Todavia, não é esse tipo de sinonímia, se é que isso pode ser classificado como tal, que se está pleiteando. O que se quer é uma sinonímia que Quine tipifica como “cognitiva”. “Assim, devemos reconhecer que a intersubstitutibilidade salva veritate [...] não é uma condição suficiente da sinonímia cognitiva no sentido de que se necessita para derivar a analiticidade” (QUINE, 1951, p. 30).
Temos, pois, o seguinte: se pudermos explicar o que é sinonímia cognitiva, isso vai permitir explicar o que é uma definição correta e isso, por sua vez, vai ajudar a esclarecer a analiticidade. A dificuldade é esta: o único modo de explicar o que é sinonímia cognitiva demanda apelar para a noção de “analítico”. É preciso estabelecer, por exemplo, que os termos singulares A e B são cognitivamente sinônimos se “A = B” for uma sentença analítica. Ou, então, que as sentenças α e ß são cognitivamente sinônimas se “α↔ß” for uma sentença analítica. Ora, isso é circular: pressupõe o que se espera estabelecer.
Para Quine, não há uma explanação satisfatória da analiticidade. “[S]implesmente não foi traçada uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos. Que tal distinção deva ser feita é um dogma não empírico dos empiristas, um artigo metafísico de fé” (QUINE, 1951, p. 34). Esse é, sucintamente, o colapso do primeiro dogma do empirismo.
Vimos, na seção anterior, que a verificabilidade é uma pedra angular do positivismo lógico. Sentenças significativas são ou analíticas ou fatuais, e estas últimas são empiricamente verificáveis.4 Esquematicamente:
(1) A sentença α tem sentido se e somente se for verificável.
(2) O sujeito S conhece o sentido de α se e somente se souber verificar α.
(3) S conhece o sentido de α se e somente se souber qual diferença sensorial a verdade de α faria para ele.
(4) O sentido de α é a diferença sensorial que a verdade de α faz para S.
(5) O sentido de α é o seu método de verificação empírica.
Para Quine, a crença de que uma sentença pode ser verificada empiricamente é um dogma. Ao contrário, “nossos enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensível não individualmente, mas apenas como um corpo organizado” (QUINE, 1951, p. 38). A ideia básica é simples: uma sentença isolada das demais não pode ser verificada pois o sentido dela depende da assunção de outras sentenças. Veja-se, por exemplo, “A água está contaminada”. O ponto a ser notado é que ela está vinculada a outras sentenças, tais como “Um líquido com tais e tais características é água”, “Tais e tais características são necessárias para algo ser um líquido”, “Tais e tais aspectos caracterizam contaminação”, “Tais e tais aspectos caracterizam água não contaminada” e assim por diante. Quer dizer: um sem-número de outras sentenças formam uma espécie de teia que sustenta, digamos assim, “A água está contaminada”. Consequentemente, a verificação empírica de “A água está contaminada” não é a verificação empírica de uma sentença isolada. Como vimos na última citação direta, nossos enunciados sobre o mundo não enfrentam o tribunal da experiência isoladamente, mas em conjunto.
Tendo estabelecido esse ponto, considere agora o seguinte: o que acontece quando uma experiência sensorial entra em conflito com certo conjunto de sentenças que o indivíduo considera verdadeiras? Uma ou mais dessas sentenças será revisada, a fim de acomodar essa experiência (Quine usa a expressão “experiência recalcitrante”). Agora, qual sentença será revisada? A princípio, qualquer sentença da teia é passível de revisão. Com efeito, ao ajustar uma sentença, não raro é preciso ajustar outras para manter o todo coerente. Permita-me uma citação longa, que documenta elegantemente esse entendimento:
A totalidade de nosso assim chamado conhecimento ou crenças, das mais casuais questões de Geografia e História até as mais profundas leis da Física atômica ou mesmo da Matemática pura e da Lógica, é um tecido feito pelo homem, que encontra a experiência apenas nas extremidades. Ou, mudando a imagem, a totalidade da ciência é como um campo de força, cujas condições limítrofes são a experiência. Um conflito com a experiência na periferia ocasiona reajustes no interior do campo. Os valores de verdade têm de ser redistribuídos em alguns de nossos enunciados. A reavaliação de alguns enunciados acarreta a reavaliação de outros, em função de suas interconexões lógicas, sendo as leis da lógica, por sua vez, simplesmente certos elementos adicionais do campo. Tendo reavaliado um enunciado, devemos reavaliar alguns outros, que podem ser enunciados conectados logicamente com os primeiros ou podem ser enunciados sobre as próprias conexões lógicas. Mas o campo total é tão subdeterminado por suas condições limítrofes - a experiência -, que há grande margem de escolha a respeito de quais enunciados devem ser reavaliados à luz de qualquer experiência individual contrária. Nenhuma experiência particular está vinculada a algum enunciado no interior do campo, exceto indiretamente por meio de considerações de equilíbrio que afetam o campo como um todo (QUINE, 1951, p. 39-40).
O holismo de Quine, expresso nessa passagem, faz oposição à verificabilidade, tal como esta é entendida pelo positivismo lógico. Para Quine, é dogmática a crença de que uma sentença, separada das demais, pode ser verificada empiricamente. Eis o colapso do segundo dogma do empirismo.
A imbricação fato-valor nas ciências da natureza
A DFV propaga que a pesquisa no âmbito das ciências da natureza seja uma atividade neutra no que se refere a valores. Supostamente, (i) Valores não têm qualquer papel na observação e na verificação de fatos; (ii) A descrição científica de um fato não envolve valores, (iii) Teorias científicas não envolvem valores; (iv) Valores não possuem objetividade; e (v) Valores, por serem preferências subjetivas, não podem ser objeto de discussão racional. Essa visão das coisas pode alimentar expectativas infundadas em relação à escola. Uma delas: que a educação escolar prepare as novas gerações para que não “contaminem” a apreciação dos fatos com valores. Fatos merecem tratamento racional e é racional o tratamento que é imparcial, isto é, que não inclui elementos subjetivos. Outra: que a escola prepare as novas gerações para que não discutam valores. Valores são subjetivos e o melhor a fazer é respeitar sem questionar. De acordo com essa visão, quem discute valores é mal-educado e quem permite que a apreciação de fatos seja contaminada com valores é ignorante.
Para Putnam (1981; 2002; 2016), as cinco afirmações do parágrafo anterior são falsas. No âmbito da pesquisa científica, a imbricação fato-valor por ele explicitada sublinha que (i) conhecer fatos pressupõe conhecer valores, (ii) juízos de valor podem ser objetivamente corretos ou incorretos, (iii) a imbricação fato-valor não susta, por assim dizer, a objetividade científica dos fatos. No que segue, procuro iluminar esse entendimento sob diversos prismas. Como disse na introdução, o objetivo aqui é oferecer elementos capazes de fomentar a discussão crítica e reflexiva de valores, em especial no âmbito das ciências da natureza e, a partir daí, da educação científica. Para superar a DFV, precisamos nos engajar proativamente em diálogos que examinam criticamente os valores que perpassam a ciência e a vida como um todo.
Sob o prisma metodológico (I): a objetividade científica é ela mesma um valor (REISS; SPRENGER, 2020). Curiosamente, trata-se de um valor que não quer deixar vestígios. No impactante e já clássico Objectivity (DASTON; GALISTON, 2007) lemos: “Ser objetivo é aspirar a um conhecimento que não traz nenhum vestígio do conhecedor - conhecimento não marcado por preconceito ou habilidade, fantasia ou julgamento, desejo ou empenho. Objetividade é visão cega, é ver sem inferência, interpretação ou inteligência” (DASTON; GALISON, 2007, p. 17). Para os autores, tal desejo por conhecimento depurado é resultado de uma série de normas cuidadosamente internalizadas e praticadas por um ente que eles chamam “eu científico”. Ecoando Foucault, “essas práticas não apenas expressam um self; elas o forjam e constituem” (DASTON; GALISON, 2007, p. 199).
Sob o prisma metodológico (II): A inferência à melhor explicação é baseada em valores. “Quando um cientista apela à inferência à melhor explicação, a noção de “melhor” aqui é um valor epistêmico baseado em um julgamento acerca do que é comparativamente mais explicativo” (MACARTHUR, 2016, p. 234).
Sob o prisma metodológico (III): valores desempenham papel decisivo na escolha entre teorias rivais. Sabe-se que teorias são subdeterminadas pelas observações, isto é, que certo conjunto de dados observacionais é e sempre será compatível com duas ou mais teorias que, por sua vez, são incompatíveis entre si. Nessas circunstâncias, a escolha de uma teoria em detrimento da outra é guiada por valores tais como a simplicidade, a coerência, a consistência lógica, a capacidade preditiva, a generalidade e a elegância (PUTNAM, 2002, p. 145). Em publicação recente, Cordeiro e Peduzzi (2016) debruçam-se sobre o caso histórico da descoberta da fissão nuclear. “Enquanto um novo fenômeno, a fissão nuclear foi produto de uma mudança não apenas teórica, mas também metodológica e axiológica” (CORDEIRO; PEDUZZI, 2016, p. 258, grifo meu).
Sob o prisma linguístico (I): a própria definição de “fato” deriva de reflexões filosóficas que envolvem valores. De acordo com Neale (2001), temos na literatura especializada uma variedade de teorias de fatos (p. 3, nota 2), nenhuma delas amplamente aceita.
[Alguns] vêem os fatos como proposições verdadeiras, outros negam isso veementemente; alguns individualizam os fatos por seus constituintes e estrutura, outros negam que fatos tenham constituintes objetuais; alguns identificam fatos que necessariamente coexistem, outros tratam todos os fatos como existentes necessários; alguns identificam os fatos em termos de localização espaço-temporal, outros negam que fatos tenham forma de localização; alguns postulam apenas fatos atômicos, outros ficam felizes com, por exemplo, fatos conjuntivos, negativos ou gerais (NEALE, 2001, p. 203 - acréscimo nosso).
Sob o prisma linguístico (II): não é possível separar o vocabulário empregado na descrição de fatos do vocabulário dos juízos de valor, pois muitos termos são usados tanto em contextos descritivos quanto em contextos avaliativos. Considere, por exemplo, o termo “cruel” nas seguintes duas afirmações: “Defensores dos direitos dos animais protestam contra os atos cruéis da indústria” e “Fulano é cruel com os ratinhos do laboratório”. A primeira sentença é descritiva (apresenta um fato) e a segunda é avaliativa (expressa um julgamento moral). “Cruel” é um conceito espesso e, enquanto tal, “simplesmente ignora a suposta dicotomia fato/valor e alegremente se permite ser usado às vezes para um propósito normativo e às vezes como um termo descritivo” (PUTNAM, 2002, p. 35).
Sob o prisma linguístico (III): a significatividade de termos e de juízos de valor não demanda compromissos ontológicos. Na linha do segundo Wittgenstein (1953, §43), palavras não adquirem seu significado por estarem associadas a objetos, mas sim pelo uso na linguagem.
Sob o prisma sociológico (I): valores podem ser racionalmente discutidos (PUTNAM, 2002, p. 133). A objetividade de valores tais como a simplicidade, a razoabilidade, a coerência, a consistência lógica, a capacidade preditiva, a generalidade e a relevância é resultado de acordo intersubjetivo na comunidade científica. Trata-se, fundamentalmente, de definir coletivamente quais são os valores relevantes e como praticá-los. Como bem observou Brandom (1979, p. 190), “a classificação criterial das coisas em objetiva e social é ela própria uma categorização social, em vez de objetiva ou ontológica; é uma categorização das coisas de acordo com se as tratamos como sujeitas à autoridade de uma comunidade ou não”.
Sob o prisma sociológico (II): Valores desempenham um papel na destinação dos recursos de fomento à pesquisa, determinando assim os assuntos que são investigados com mais fôlego.
Sob o prisma sociológico (III): valores desempenham um papel na avaliação dos resultados das pesquisas científicas, já que em todas as áreas do conhecimento um resultado alcança o status “científico” mediante a aprovação pelos pares. Via de regra, o/a pesquisador/a submete seu trabalho a uma revista científica e esta, antes de aceitá-lo para publicação, providencia uma avaliação: dois ou mais revisores especializados examinam anonimamente a qualidade do material que pleiteia publicação. Essa avaliação é regida por e voltada para valores. Avalia-se, por exemplo, a objetividade. “Compreender que a objetividade da ciência é um valor é reconhecer nosso papel na valoração da objetividade na ciência, que a genuinidade da atividade da ciência é julgada em termos de buscar e alcançar certo nível de objetividade” (MACARTHUR, 2016, p. 239). Avalia-se também a adequação dos objetivos e da metodologia, a relevância do problema investigado, a plausibilidade dos resultados encontrados, a coerência com a literatura existente, a robustez e fluidez da exposição etc. Descrever uma afirmação ou uma teoria como adequada, relevante, plausível etc. equivale a “dizer que a aceitação é justificada; e dizer que a aceitação de uma afirmação é (completamente) justificada é dizer que se deve aceitar a afirmação ou teoria” (PUTNAM, 1990, p. 138).
Sob o prisma sociológico (IV): valores guiam a aplicação do conhecimento científico. O exemplo clássico é o da energia atômica, que foi usada para produzir uma bomba cuja potência sem precedentes logrou encerrar a segunda guerra mundial. No contexto brasileiro, pode-se dizer também que valores guiam a negligência. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Azevedo-Santos et al. (2017) que mostra um abismo entre a ciência e as decisões governamentais relativas à biodiversidade e à conservação de ecossistemas. Na mesma linha, Soares (2018, p. 312) mostra que “o progresso científico não tem sido capaz de se traduzir em ganhos de competência e melhoria na qualidade de vida [dos brasileiros]”.
Diante desse conjunto de considerações, é tentador dizer que a pesquisa científica envolve certa categoria de valores, chamados epistêmicos (MCMULLIN, 1983), ou cognitivos (LAUDAN, 1984), ou constitutivos (LONGINO, 1990). Essa era uma conclusão confortável e relativamente pacífica ao longo dos anos 80 e 90. Ultimamente, a distinção valores epistêmicos/não-epistêmicos vem sendo intensamente problematizada. Com efeito, suspeito que ela seja enganosa. Considere, por exemplo, a adequação empírica. À primeira vista, parece óbvio que trata-se de um valor epistêmico cuja importância científica é amplamente reconhecida. No entanto, [i] o tratamento estatístico de evidências empíricas frequentemente é eivado de valores não-epistêmicos (e.g. valorizar determinada técnica estatística por facilidade de acesso a ela, ou por estar familiarizado com ela, ou pela conveniência para agilizar a finalização do artigo etc.); [ii] o modo como os dados empíricos são apresentados frequentemente é balizado por valores não-epistêmicos (e.g. uma apresentação que discretamente favorece a hipótese do estudo; uma apresentação ajustada aos padrões de determinada revista científica ou às preferências de determinado editor; uma apresentação que discretamente “esconde” dados indesejados etc.). Acerca desses pontos, vale conferir os impactantes achados de Wang, Yan e Katz (2018).
Suponhamos que a distinção em comento não seja enganosa, isto é, que valores epistêmicos podem ser distinguidos dos demais valores. Nesse caso, cumpre examinar se é desejável aceitar, na pesquisa científica, apenas valores epistêmicos. Uma linha de raciocínio, inspirada no conhecido argumento do risco indutivo (RUDNER, 1953), explicita e sublinha a importância de incorporar valores não-epistêmicos na ciência (BRIGANDT, 2015; DOUGLAS, 2017). Essa incorporação, que está longe de ser consensual, está no centro de calorosas discussões (Cf. ELLIOTT; STEEL, 2017). Uma segunda linha de raciocínio, associada à abordagem feminista da filosofia da ciência, sinaliza que a distinção valores epistêmicos/não-epistêmicos é androcêntrica (LONGINO, 1996; YEARLEY, 2005; FREITAS; LUZ, 2017).
Para concluir a seção: considerando a argumentação de Putnam e também a recente controvérsia em torno dos valores epistêmicos, é razoável concluir que as ciências da natureza pressupõem e envolvem valores de diversos tipos (epistêmicos e outros). Assim, cai por terra o entendimento segundo o qual só mal-educados discutem valores e só ignorantes permitem que a apreciação de fatos seja perpassada por valores. Quem insiste nesse entendimento está reforçando uma metafísica positivista e uma concepção equivocada de racionalidade.
Considerações finais
Este trabalho problematizou o entendimento segundo o qual fatos e valores são de domínios diferentes que jamais se encontram. A partir da filosofia de Hilary Putnam, procurei mostrar que a DFV não resiste a um escrutínio rigoroso mas que, por outro lado, ela segue vigorando na vida prática como um empecilho ao diálogo e ao pensamento crítico. Para fazer frente à essa dicotomia, a significação da imbricação fato-valor no âmbito das ciências da natureza foi tematizada.
Ao meu modo de pensar, as considerações de Putnam ajudam a iluminar diversos elementos da complexa relação valores & pesquisa científica. O primeiro, patente, é que essa relação pressupõe certa concepção de verdade e de racionalidade. O segundo, preocupante, é que concepções equivocadas de verdade e de racionalidade tendem a interromper não apenas o diálogo, mas também o pensamento crítico, na medida em que excluem os valores da esfera daquilo que é racionalmente discutível. O terceiro, propositivo, é que a discussão crítica e reflexiva de valores, especialmente aqueles que perpassam a pesquisa no âmbito das ciências da natureza, pode ser fomentada na educação escolar. Ficamos, ao fim e ao cabo, com o desafio de nos engajar proativamente em diálogos que examinam criticamente os valores que perpassam as ciências e a vida como um todo. Se Putnam estiver correto, esse é o caminho para superar a DFV.
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Notas