Tradução
Violência e linguagema
Violence et langage
Recepção: 09 Setembro 2021
Aprovação: 08 Novembro 2021
O texto “Violence et langage” é o resultado da participação de Éric Weil na Semaine des Intellectuels Catholiques, em fevereiro de 1967. O evento promovido pelo Centre Catholique des Intellectuels Français contou com mais de vinte conferencistas, entre os quais encontramos nomes como Gaston Fessard, Raymond Aron e Paul Ricoeur. Justamente com esse último, Weil dividiu a sessão “Violência e linguagem”, presidida por Étienne Borne.
Na ocasião, nosso filósofo pôde mais uma vez retomar alguns dos elementos essenciais da própria obra, oportunamente expostos em um ambiente concentrado em torno daquele que, ao fim e ao cabo, é o problema capital da sua filosofia: a violência1. De certo modo, a moldura da abordagem weiliana se destaca na abertura e na conclusão do escrito, porquanto nas primeiras linhas o autor propõe como questão fundamental a pergunta pela relação entre violência e linguagem, e, nas considerações que encerram o texto, dá espaço ao diálogo2. A imagem enquadrada é a condição do homem moderno, para dizer de forma mais precisa, a condição desse homem frente às figuras propriamente modernas da violência. Weil quer, então, lançar luzes sobre uma situação paradoxalmente marcada pelos limites da linguagem da racionalidade do trabalho social diante da questão do sentido e pelo tédio como resultado compreensível na vida de um sujeito que já não consome a própria existência inteiramente, em função da satisfação das suas necessidades materiais, isto é, que já venceu uma primeira violência, a natural. No entanto, e aqui o problema se põe em seus contornos definitivos, essa vitória só se tornou possível pela edificação da sociedade moderna, uma “segunda natureza” cujo mecanismo é tão absurdo e tirânico quanto a primeira.
A resposta de Weil não aponta simplesmente para a insuficiência da linguagem da racionalidade e do trabalho. Antes, deixa explícito também a impossibilidade de qualquer tentativa de retorno a um idílico passado, “a tempos dos quais a humanidade também teve razões para sair”.
Weil propõe, enfim, o esforço, consciente e livre, em vista da possibilidade - nunca inteiramente rematada - de distinguir entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, o sentido e o insensato. Nada disso, porém, à procura de fórmulas dogmáticas, definitivas, mas na construção do diálogo incessante - sem pretensões de sínteses artificiais - no qual possamos nos tornar conscientes das contradições presentes na sociedade que criamos, contradições que não poucas vezes se concretizam como violência, algumas vezes silenciosa, outras espetacular, mas sempre dolorosa. Ao final de tudo, o que está em jogo é a nossa escolha pela realização do humano na busca de sentido que nos distingue de “leões e cupins”, isto é, da violência bruta e da violência da perfeita organização racional3, ambas igualmente mudas diante da pergunta pelo sentido.
O texto francês apareceu originalmente em Recherches et Débats, n. 59, de junho de 1967; depois, em 1987, em Cahiers Éric Weil 1 - de onde foi feita esta tradução. Uma primeira versão em português foi realizada por Anna Maria Gonçalves e publicada no volume A violência, de 1969, pela Editora Laudes. A presente tradução se afasta em muitos pontos do trabalho de Anna Gonçalves e se justifica pela atenção que a obra de Weil encontra hoje no Brasil. Trata-se, portanto, do esforço em tornar novamente acessível ao público interessado um texto que toca em elementos centrais do pensamento do autor. A relevância do tema é uma infeliz constância e praticamente não carece de demonstração. Com efeito, pensar as formas de violência próprias das modernas contradições sociais é um exercício que, no Brasil, assume uma particular candência4.
Como compreender a relação entre violência e linguagem? Entre violência e direito, violência e paz, violência e colaboração? A oposição parece clara e a escolha fácil; o homem de bem dispõe, ou crê dispor, de critérios em si simples, embora talvez de uma aplicação delicada. Entre violência e linguagem, como escolher, como imaginar a possibilidade de uma escolha, a menos que não se pense em situações extremas nas quais encontramos as possibilidades da violência muda e brutal ou da renúncia a qualquer comunicação, a qualquer contato com os outros homens - portanto, situações nas quais a escolha desaparece com a linguagem?
Por que é assim? A resposta é simples: é a linguagem que faz aparecer a violência. O homem, ser falante - ou se se prefere, ser pensante -, é o único que revela a violência, porque só ele procura um sentido, inventa, cria um sentido para sua vida e para seu mundo, um sentido para sua vida em um mundo organizado e compreensível, um mundo organizado e compreensível por referência à sua vida, como região do sentido da sua vida. Os animais são violentos ou organizados, leões e cupins, mas uns e outros só o são aos olhos do homem: eles não se opõem a si mesmos para se inventar, eles são o que são e, se têm uma história, o homem a escreveu. Só o homem conhece e designa a violência, o absurdo, o que não tem sentido e o que lhe ocorre contra sua vontade e seu desejo: nenhum animal acha insensato morrer de fome ou tornar-se membro de uma organização a ponto de não mais poder viver ou apenas digerir fora de seu cupinzeiro. O homem é o ser curioso e, até onde chega o nosso conhecimento, o único que pode dizer não ao insensato.
Do mesmo modo, a humanidade sempre teve de lidar com a violência, ao menos a parte da humanidade da qual descendemos e que soube se organizar para lutar contra a violência da natureza exterior e para dar um sentido à própria vida, construindo para si mundos humanos, habitáveis para o homem, sensatos; que se deu regras de vida e que as fundamentou sobre uma imagem do grande Todo do qual ela sabe fazer parte. Ela trabalhou, e fez poesia - se nos permitirmos dar a esse termo sua acepção mais ampla, aquela da invenção de mundos sensatos.
O caso ideal será, então, o de uma perfeita adequação entre trabalho e poesia, entre luta com a natureza exterior, contra a qual é preciso defender-se, e o pensamento poético, que santifica o trabalho, colocando-o no grande Todo: o homem faz o que a natureza, enquanto boa, espera dele, e, em troca, a natureza lhe oferece o que ele precisa; só a culpa do homem pode fazer com que o céu seja de ferro e a terra de bronze. O infortúnio não é mais absurdo, a felicidade não é puro acaso, ambos são merecidos. A comunidade comunga verdadeiramente no que é comum a todos, e todo homem tem e conhece o próprio papel.
Evitemos falar aqui de mito, pensamento mágico, projeção de sonhos, evitemos visões que, muito legitimamente, são as nossas, mas não são as daqueles dos quais falamos: para eles, não há nenhuma razão, nenhum motivo para sair do mundo que eles consideram e sentem como seu: nesse mundo, eles estão em casa, e não é refutá-los declarar que aí nós nos encontraríamos deslocados. A vida é o que é, o mundo é sempre igual a si mesmo, e o absurdo, a violência, não têm lugar na comunidade, ou são a obra de indivíduos extraordinários, fora da ordem, mas que devem ser recolocados na ordem, considerando-os como possuídos, mal-nascidos, punidos pelos deuses; a menos que sejam eliminados como seres contra a natureza, não-homens.
A ruptura do equilíbrio vem de fora. As comunidades são múltiplas e múltiplos são os seus mundos. Que não haja violência dentro do grupo (ou, o que para nós é a mesma coisa, que só haja uma violência regulada, que não é considerada violência por ninguém, e só recebe essa designação no nosso mundo), isso não impede que a violência exercida fora do grupo seja perfeitamente legítima ou mesmo sagrada: aqueles que não fazem parte do grupo e não vivem no mesmo mundo não são seres humanos (o próprio conceito de ser humano que engloba toda a espécie é tardio), eles fazem parte dessa natureza exterior contra a qual lutam o trabalho e o pensamento; é permitido, pode mesmo ser recomendável, submetê-los, empregá-los, do mesmo modo como se usa tudo o que a natureza oferece ao homem: a luta, esta luta, é justificada pela linguagem. Ora, esta luta introduz uma ideia que é de uma novidade radical: a do progresso através da dominação.
Não é necessário falar aqui, mesmo por alusões, da longa história, da nossa história, que começou assim, da decomposição da evidência fundamental que tinha orientado a existência, do contato, que agora se impõe aos subjugados, com uma natureza cujo sentido só está presente para os que se tornaram seus senhores, do trabalho, que não é mais do que a transformação de um material morto e que se realiza em proveito daqueles que dele não participam. O que, ao contrário, importa para nós é que se a violência aparece como tal é porque, pela primeira vez, ela é nomeada, pensada, exibida em sua nudez. Ela que antes havia formado o pano de fundo universal, invisível; torna-se visível agora e se mostra em todos os seus aspectos: violência do senhor para com o escravo, revolta do escravo, violência do escravo para com a natureza, da natureza para com todos, e dos senhores entre si: do momento em que dispor dos bens produzidos a partir da natureza se torna um sinal e uma prova de poder, que o poder se torna honra e a honra, o que distingue o senhor, a luta pela posse desses bens e dos meios, vivos ou não, que sirvam à sua produção, torna-se a meta de uma luta que acabará por não conceber outros objetivos, outras regras além do sucesso, outras razões além do desejo imediato de dominação e de posse, outros instrumentos além da violência. Se os senhores mantêm a antiga linguagem de um mundo sensato, eles o contradizem por suas ações, a linguagem sagrada não é mais do que um ornamento e uma excusa diante dos outros: não há mais nenhuma comunidade, o que nasceu é uma sociedade que tem seu verdadeiro centro na dupla luta contra a natureza exterior e pela apropriação da riqueza produzida pelo trabalho.
Isso significa que a realidade do mundo dos senhores é a do mundo dos escravos, a do trabalho, e essa realidade acaba se mostrando à luz da história. Platão tinha a mais clara consciência disso, tão clara que, no Estado ideal, a riqueza é o apanágio das camadas politicamente inexistentes e é proibida aos verdadeiros homens, aos autênticos senhores. Seu Estado jamais existiu; a ideia desse Estado, no entanto, expressa perfeitamente o vínculo entre riqueza e perda de sentido, riqueza e violência - e entre violência e linguagem. Pois a linguagem da sociedade do trabalho é a linguagem da eficácia. Não temos por que maldizer: foi isso que deu origem aos conceitos reguladores da objetividade, do fato verificável, da verdade formal, e que possibilitou que o trabalho se apoiasse em um conhecimento desinteressado - separado do desejo imediato do indivíduo - de uma natureza entregue ao homem. O mundo, como unidade sensata na qual o homem se coloca, esse mundo pereceu: foi substituído por uma natureza cognoscível, analisável, decomponível em fatores pelos quais pode ser dominada. O que supõe e impõe que a violência entre os homens, caráter dominante da época de ruptura, seja progressivamente dominada: cada homem pode desejar o máximo de riquezas e seu interesse, portanto, é tornar mais fácil a produção desses bens aos quais aspira - e a violência não é produtiva, porque ela desestabiliza e destrói. Além disso, ela é perigosa, porque se a aquisição violenta da riqueza tem sempre algo de sedutor, ela tem também o enorme inconveniente de estar à disposição de todo o mundo e de que, usando a violência, posso muito bem me encontrar diante da força dos outros reunida.
Os lobos, portanto, se organizaram entre eles: cada um obterá maiores proveitos do esforço comum se renunciar ao uso individual da violência e contribuir para a luta contra o inimigo comum, a natureza exterior. Isso implica em que cada um lute igualmente contra sua natureza interior; que saiba disciplinar seus desejos naturais, que espere seu lucro da mediação do trabalho comum; que exija não o que gostaria de possuir, mas o que lhe é devido pela sua contribuição na produção. Todos são membros da sociedade do trabalho, e ninguém é mais do que isso, cada indivíduo é tão-somente o lugar que ocupa nesse mundo: ninguém é um Eu, uma personalidade, um caráter, cada um é o que faz, é, como se diz tão bem, alguma coisa. A sociedade é organizada em função da produção, ela se organiza racionalmente, quer dizer, eficazmente, e o próprio organizador racional constitui uma engrenagem importante e indispensável do trabalho social.
A linguagem que corresponde a esse mundo é, então, uma linguagem sem violência, na qual domina a discussão em vista do acordo objetivo. Se a primeira linguagem tornava a violência invisível e, assim, inexistente para os que a falavam, se a linguagem da luta não-organizada entre os homens tinha como modo principal o imperativo sustentado pela ameaça, a linguagem racional só conhece o indicativo e o julgamento hipotético: as coisas sendo o que são, é preciso aceitar os meios que, objetivamente, são aptos para levar ao sucesso, ou renunciar aos bens assim produtivos. Havendo apenas necessidades hipotéticas, o imperativo desapareceu; mais precisamente, não há mais ninguém que dê ordens como bem lhe parece, é a ordem da linguagem objetiva que comanda a todos.
Onde é produzido por uma intervenção externa, o choque entre as linguagens é violento - violento no sentido mais simples: é preciso submeter-se aos donos da natureza ou desaparecer. Um choque desse tipo não ocorre ou é disfarçado - e é o nosso caso - onde a nova linguagem nasce da antiga e a revira desde o seu interior sem, no entanto, fazê-la desaparecer; o mundo sensato, a dominação das condições e as linguagens correspondentes não entram em luta: a linguagem racional reconhece os fatores antigos que agem e os introduz no seu cálculo sob a forma de dados, comparáveis a quaisquer outros dados; leva em conta a mentalidade das pessoas, esperando que elas acabem compreendendo que nada disso é verdadeiro, quer dizer, que não é eficaz. Eles serão instruídos, instruir-se-ão a si mesmos, e acabarão compreendendo o que nós, homens modernos e sérios, já sabemos, que nada disso é sério. Enquanto aguardamos, usemos as suas palavras sagradas para guiá-los: justiça, nobreza, dignidade, igualdade, liberdade: se elas não têm para nós o significado que eles lhes dão, nós, no fundo, não mentimos para eles, pois verdadeiramente os libertamos da tirania das condições exteriores, tanto naturais quanto sociais. No fim, todos falarão a linguagem da racionalidade e do cálculo.
O que distingue essa linguagem séria das linguagens antigas - quer se trate da linguagem do antigo mundo sensato, quer daquela da luta pelo domínio - é que a única forma do verbo que importa aqui não é nem o nós, nem o eu ou o tu, mas a terceira pessoa, de preferência no neutro. Com certeza, as outras formas subsistem, mas somente no que se dirigem aos sentimentos, às convicções, às reminiscências. O discurso sério só conhece o que se constata sobre o objeto, e tudo o que fala se transforma em objeto, não apenas as coisas, mais também os homens. Há uma ciência do homem, dos homens, há toda uma série de tais ciências, e, falando seriamente desse indivíduo observável que sou eu, direi minhas qualidades, minhas funções, meu papel, não o que me move, me ergue, me deprime, minhas crenças, minhas convicções, meus desejos não-socializados nem socializáveis; essas são coisas privadas, privadas de sentido verificável segundo o critério da eficácia, a menos que isso pareça como um estorvo ou um freio e deva, então, ser eliminado a fim de que eu seja inteiramente sério. Eu sou uma coisa, não me compreendo, não tenho que me compreender, sou um fator de natureza determinável e a determinar, a observar e a analisar, apreendido, como todo fator, em fórmulas analítico-descritivas, em leis: o homem faz parte de um sistema que não é mais aquele da natureza primitiva, ele faz parte de uma segunda natureza, que ele edificou, mas que agora o engloba.
Ora, é chocante que essa linguagem tão esplendidamente eficaz e que de fato liberta o homem das servidões naturais, se desfaz precisamente à medida que aumenta o seu sucesso. Não apenas porque a instrução e o ensino não parecem capazes de arrancar os fatores provenientes do passado, embora isso seja surpreendente. Porque, com o domínio das condições se concretizando e com a violência antiga descartada, não resta mais lugar para o homem. Há o suficiente para todos, e com um esforço humano cada vez mais limitado em grau e em duração. A linguagem racional ensinou ao homem que ele é um fator indispensável: ele aprende que é cada vez mais supérfluo; que, senhor e dono da natureza, ele tem sempre menos o que fazer. Ele se tornou objeto, mas objeto incômodo - e, ao mesmo tempo, apenas um objeto vazio e vazio de sentido. A segunda natureza, aquela que, com toda justiça, ele se orgulha de ter edificado, se revela, assim, tão absurda e tão tirânica quanto a primeira, e ainda mais tirânica, pois não lhe deixa nem o seu Eu. A sociedade do trabalho domesticou o animal excitado pela luta entre os indivíduos e os grupos; ela esvaziou o homem. Segunda natureza, admirável porque acima da primeira e emancipação da necessidade natural, não elevou os impulsos do homem, ela os reprimiu. Ela fez desaparecer a pressão exterior e a dos senhores arbitrários, mas não libertou o homem, porquanto toda libertação do homem é libertação para uma vida sensata, liberdade poética de criar um mundo no qual o homem possa não apenas viver, mas viver dando um sentido à sua liberdade, finalmente tornada possível. Ela universalizou o homem pela racionalidade e, nesses termos, fez dele um ser pensante, quer dizer, um calculador; ela não lhe permite dizer o que significa seu esforço. Concede ao indivíduo o tempo para se divertir como bem entender, até mesmo o diverte racionalmente; mas ela não faz nada, não pode fazer nada para que ele pense, que ele diga, um mundo, seu mundo, ele mesmo, ele mesmo em seu mundo -, a menos que ele não se contente com jogos privados e inofensivos porque situados fora e abaixo da universalidade do racional, nunca acima do puro racional. Ela instrui, informa, forma, mas não educa: essa não é a sua ocupação.
O resultado, um resultado já visível, é o tédio do progresso infinito e insensato, o tédio de uma linguagem que age, mas que não tem significado para o indivíduo e, em última instância, para os indivíduos; tédio do qual só se escapa pela violência desinteressada, interessada apenas na possibilidade de se afirmar como indivíduo contra outros indivíduos, violência que é o retorno àquela dos senhores e que não tem outro objetivo senão fazer esquecer a insensatez dos interesses que a sociedade satisfaz - uma vez que estejam satisfeitos. Nessa linguagem, o essencial não é sensato, o sensato não é essencial: o conceito de sentido nem aparece aí. Para o indivíduo, a linguagem da racionalidade acaba sendo uma mentira, uma mentira por preterição.
Ainda não o conseguimos: a humanidade ainda não está livre da necessidade natural; a violência reina, ao menos como uma possibilidade onipresente, mesmo entre os grupos mais avançados; o que subsiste do mundo, dos mundos sensatos, é muitas vezes usado como tela na luta pelo domínio e como disfarce dos interesses que não se atrevem a confessar, preferindo enganar aqueles a quem desejam submeter ou manter em submissão. A racionalidade, infelizmente, não ganhou a batalha. Nós, homens modernos, ainda temos trabalho a fazer.
Sem dúvida. Mas o que caracteriza um caminho é o ponto ao qual ele conduz, e é essa direção geral que tentamos determinar, apesar da irregularidade do percurso, que gira, que volta sobre si mesmo, às vezes, aparentemente se perdendo. Então, o que nós vemos é, para falar outra linguagem, a repressão da violência e, ao mesmo tempo, do desejo de sentido: não elevamos violência ao sentido - e não esqueçamos: só o ser violento, se fala, pode buscar um sentido -, não ousamos mais confessar nosso desejo de sentido. Quanto mais avançamos, mais parecemos agitados entre uma repressão ao mesmo tempo racional e insensata, de um lado, e uma opressão simplesmente brutal, de outro.
Que não haja mal-entendido: não pregamos aqui um retorno, que aliás seria impossível, a tempos melhores, a tempos dos quais a humanidade também teve razões para sair. A racionalidade, o trabalho organizado, a vitória sobre a primeira natureza, tanto exterior como humana, é a maior realização da nossa história. A questão é outra; ela demanda se o que foi alcançado e devia ser alcançado é tudo o que queríamos alcançar. Mesmo se a resposta for negativa, o necessário, por ser declarado insuficiente, não se tornará menos indispensável. Mas a nobreza dessa história é ter permitido aos homens, a certos grupos humanos, ventilar a questão do sentido - questão que não se põe onde a necessidade e a violência pura pesam sobre o ser humano, mas que, por outro lado, só se formula na linguagem que a tornou possível a todos.
Poder, dever pôr essa questão, eis a grandeza inquietante do nosso tempo. Chegaremos a formulá-la e a resolvê-la? A racionalidade e o trabalho não bastarão, eles reprimem, não sublimam. Ora, para o homem, trata-se de se compreender, de se exprimir, de dizer-se todo, inteiro e inteiramente, de se apreender no que une nele violência e sentido, violência e linguagem - compreender-se, isto é, tomar ao mesmo tempo o que teve de separar para se emancipar em busca da liberdade. As formas antigas não resistiram, nem à violência, nem à racionalidade; e elas não serão mais reanimadas. Mas o esforço em direção ao sentido talvez seja o mais sensato e o mais urgente - esforço, não trabalho racional. Em suma, a antiga trindade hegeliana de arte, religião e filosofia tem novamente um futuro, por mais antiquadas que possam parecer - talvez justamente por parecerem tão antiquadas. Pois é em sua linguagem una e trina que o homem expressa, nega e pensa a violência do absurdo e a violência da sua própria natureza de paixão e de desejo - ele a exprime, nega e supera ao pensá-la como aquilo que o constitui, mas que, ao mesmo tempo constitui, porque nele a violência fala, a possibilidade, sempre precária, sempre de novo a se realizar, de distinguir entre o bem e o mal, entre a verdade e a mentira, entre o sentido e o insensato. É a unidade do grande e incessante diálogo da humanidade consigo mesma, no qual ela ascende à consciência do que, a partir do absurdo e da violência, criou; é o diálogo dos homens de boa vontade que, depois de superarem a necessidade natural, podem querer esse diálogo - diálogo de seres violentos em vista de uma linguagem e de um mundo sensatos, diálogo de seres que, dialogando, descobrem o que a melhor vontade ainda contém de violência; que jamais serão puros espíritos, mas que também não estão condenados a, do diálogo, recair na violência, a menos que, de forma consciente, escolham a violência ou, o que seria infinitamente mais grave, que se recusem inconscientemente a compreender o que fazem, o que querem, o que devem querer, se não quiserem ser animas embrutecidos.