Editorial
Com o sintagma “niilismo europeu”, Nietzsche designa um processo histórico que culmina na perda de validade e força vinculante por parte dos valores e bens supremos que, em nossas sociedades ocidentais, ao longo de séculos, serviram de alicerce cultural e diretrizes normativas para o pensamento e da ação. “O que eu narro”, escreve Nietzsche entre 1887 e 1888, “é a história dos próximos dois séculos ... Aqui, não louvo, nem censuro, [o fato de] que ela venha: creio numa das maiores crises, num instante da mais profunda auto-reflexão do homem.” (Nietzsche, F. Nietzsche, F. Sämtiche Werke. Kritische Studienausgabe [KSA]0. Ed. G. Colli; M. Montinari. Berlin; New York; München: de Gruyter; DTV. 1980, Vol.13, p. 56s). Por conseguinte, aquilo que a autorreflexão de Nietzsche apreende, com sua refinada percepção e senso crítico, são os movimentos, cada vez menos larvares, de uma crise profunda e permanente que afeta todos os setores da vida na sociedade contemporânea, e cujos efeitos mais disruptivos fazem-se sentir justamente em nossos dias.
Nesse horizonte, o diagnóstico por Nietzsche a respeito da escalada do niilismo constitui para nós um legado filosófico da mais alta relevância e atualidade, pois nele estão implicados os mais urgentes problemas, desafios e dilemas da razão teórica e prática, num momento em que a crise desestabiliza os pilares sobre os quais se apoiou, ao longo de séculos, a edificação jurídico-política de nossa sociedade. Mas, com o referido diagnóstico, a crítica nietzschiana nos auxilia também a pensar alternativas e soluções que possam nos conduzir para além do cenário sombrio em que nos encontramos, à sombra do niilismo, sem os confiáveis sustentáculos que a tradição religiosa e ético-moral nos legara como terra firme e porto seguro.
Tendo em vista tal conjuntura, Heidegger escreveu certa vez - justamente em uma reflexão a propósito da filosofia de Nietzsche: “O niilismo é um movimento histórico, não uma qualquer visão e uma qualquer doutrina, representadas por quem quer que seja. […] O niilismo é, antes, pensado em sua essência, o movimento fundamental da história do Ocidente. Ele mostra uma tal profundidade que o seu desenrolar apenas pode ter como consequência catástrofes mundiais. O niilismo é o movimento histórico-mundial dos povos da Terra que entram no âmbito de poder da modernidade. Daí que ele não seja só um fenômeno da era presente, nem sequer só o produto do século XIX, no qual desperta certamente um olhar mais agudo para o niilismo e em que também o nome se torna usual. O niilismo tampouco é apenas o produto de nações singulares cujos pensadores e escritores falam propriamente do niilismo. Aqueles que se presumem livres dele empreendem talvez do modo mais fundamental o seu desenrolar. É inerente à inquietude deste mais inquietante de todos os hóspedes que a sua proveniência própria não possa ser mencionada” (HEIDEGGER, M. Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’. In: Holzwge. 6. Auflage. Frankfurt/M: Vittorio Kolstermann Verlag, 1980, p. 252s.).
Com essa preocupação, este número da Revista de Filosofia Aurora oferece o presente dossiê Nietzsche, dedicado à problemática que recobre o campo de significação desse conceito, sua relevância, atualidade e as consequências daí derivadas, tanto para a história da filosofia como para a compreensão de nosso presente. Os artigos aqui reunidos, cada um a seu modo e em perspectiva original, dedicam-se à análise e à reflexão acerca de problemas estreitamente ligados ao niilismo e aos seus desdobramentos. Sobre a base da contribuição de Nietzsche, eles procuram examinar os múltiplos aspectos que tornam tais questões imprescindíveis para a filosofia e as ciências humanas de nossos dias. O presente dossiê foi organizado pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Jr. (PUCPR/Unicamp) e pelo prof. João Constâncio (Universidade Nova de Lisboa), a quem os editores da Aurora agradecem e parabenizam efusivamente.
Além do dossiê, o presente número da Aurora dá a lume outros artigos publicados no seu fluxo contínuo, uma tradução e três resenhas, cumprindo assim com sua vocação de despertar e alimentar o debate filosófico em suas diferentes perspectivas.
Aos leitores e leitoras fazemos votos de que essas ideias frutifiquem.
Prof. Dr. Léo Peruzzo Júnior - PUCPR
Prof. Dr. Jelson Oliveira - PUCPR
Prof. Dr. Antonio Valverde - PUCSP
Editores
Autor notes