Artigo

Nietzsche e a arte: gaia ciência como possível antídoto contra o niilismo

Nietzsche and art: a gay science as a possible antidote against nihilism

ADRIANY FERREIRA DE MENDONÇA
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Nietzsche e a arte: gaia ciência como possível antídoto contra o niilismo

Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 4-21, 2022

Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 07 Março 2022

Aprovação: 25 Maio 2022

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a maneira como Nietzsche coloca a questão do niilismo em seus textos preparados para publicação, sobretudo em alguns daqueles que se concentram entre 1886 e 1888. Neste momento mais tardio de sua obra, o autor formula suas hipóteses genealógicas acerca dos valores morais, e evidencia o vínculo existente entre a moralidade de origem socrático-platônica e os valores cristãos que marcam fortemente a cultura ocidental. A modernidade, ao atualizar e oferecer novas roupagens às formas de detração da vida engendradas pelos ideais ascéticos, é qualificada por Nietzsche como niilista por excelência. Pretende-se discutir em que medida, ao analisar o niilismo como fator determinante para se caracterizar a própria modernidade, e ao indicar com sua genealogia que todas as grandes coisas pereceriam por si mesmas, segundo a lei de uma “necessária ‘autossuperação’”, Nietzsche abre a possibilidade de se pensar a arte e a sua gaia ciência como potentes forças contrárias ao niilismo e aos ideais ascéticos. A arte, sendo o lugar do culto ao não-verdadeiro e instância plenamente afinada ao próprio movimento de criação e destruição de formas que compõe a vida, seria o vetor central através do qual a gaia ciência nietzschiana poderia contribuir para a efetivação de uma transvaloração dos valores.

Palavras-chave: Niilismo, Modernidade, Vida, Arte, Gaia Ciência.

Abstract: This paper aims to discuss the way in which Nietzsche discusses the issue of nihilism in the texts he prepared for publication, especially those between 1886 and 1888. During this late moment of his work, the author formulates his genealogical hypotheses about moral values and highlights the link between the morality of Socratic Platonic origin and Christian values that strongly influenced Western culture. Modernity is qualified by Nietzsche as nihilistic par excellence, as it updates and repackages the same ways of devaluating life the ascetic ideals bring upon. We intend to discuss here to what extent Nietzsche opens the possibility of thinking of art and its gay science as powerful forces against nihilism and the ascetic ideals when he describes nihilism as a determining feature of Modernity itself, and when he points out with his genealogy that all great things would bring about their own demise according to the law of “necessary 'self-overcoming'”. Being the place of the cult of the untrue and an instance fully attuned to the very movement of creation and destruction of forms that make up life, art would be the main engine through which Nietzschean gay science could contribute to the realization of a transvaluation of values.

Keywords: Nihilism, Modernity, Life, Art, Gay Science.

Introdução

O problema do niilismo surge nos textos preparados por Nietzsche para a publicação sobretudo no período que se costuma apontar como o mais tardio ou maduro de sua obra. Emerge, portanto, em meio às formulações duramente críticas dirigidas contra a tradição de pensamento metafísico-moral que caracteriza a cultura ocidental desde a consolidação da filosofia socrático-platônica, passando por seus desdobramentos na tradição judaico-cristã e chegando até as máscaras e atualizações que tal tipo de pensamento assume para si na modernidade. Já a partir de 1878, quando rompe publicamente com a metafísica em Humano, demasiado humano, e recusa a existência de realidades eternas, transcendentes e reguladoras do mundo imanente, ainda sem nomear aquilo que virá a anunciar como sua tarefa filosófica - mas trabalhando em sua direção -, Nietzsche coloca em curso um movimento de reabilitação dos elementos que historicamente teriam sido caluniados e desqualificados pela tradição de pensamento. Este movimento se mostra em sintonia com uma postura antidogmática que o filósofo adota para si, e que coerentemente emana do próprio estilo e das estratégias escolhidas por ele para desenvolver os temas centrais de seus textos. Assim, Nietzsche empreende um movimento radical de valorização das aparências e das artes em geral em sua obra, e estabelece o que chama de bases afirmativas de sua filosofia1. Tendo atingido esse patamar afirmativo, ele pode se dedicar à metade negativa de sua tarefa, a então nomeada transvaloração de todos os valores existentes ou, como também denomina em sua autobiografia, “a grande guerra” (NIETZSCHE, 1995, p. 95).

Esse aspecto afirmativo do pensamento nietzschiano, que o autor faz questão ressaltar como uma conquista no sentido da aquisição de uma linguagem finalmente própria, de um estilo refinado e muito singular, parece estar diretamente relacionado não apenas à valorização da arte e das aparências em seu pensamento por um ponto de vista temático, mas também, e talvez principalmente, à incorporação de elementos próprios dos discursos artísticos ao movimento interno de criação do pensamento nietzschiano. Com frequência cada vez maior, sobretudo a partir de A gaia ciência, os textos preparados para a publicação por Nietzsche passam a realizar performativamente, ou seja, através de sua própria escrita, aquilo mesmo que tematizam. Arte, vida e filosofia implicam-se mutuamente, estão intimamente associadas, e fornecem a base conceitual a partir da qual Nietzsche é capaz fazer os diagnósticos e as críticas mais terríveis da tradição de pensamento e da contemporaneidade. Mais do que isso, esses três elementos movem o autor na tarefa filosófica de apontar para a necessidade de se realizar a dita transvaloração de todos os valores vigentes e dominantes. Como Nietzsche afirma em Ecce homo, ele conhece o prazer de destruir em grau conforme à sua força para destruir, obedecendo em ambos os casos à sua “natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer Não” (NIETZSCHE, 1995, p. 110). Os escritos que ele prepara para publicar no período mais tardio de seu percurso trazem muito fortemente este amálgama de afirmação-criação/negação-destruição. E o estilo refinado de sua redação reflete esse aspecto importante. A genealogia nietzschiana emerge neste contexto. Além do bem e do mal, os prefácios para cinco livros anteriormente publicados, o livro V de A gaia ciência, Genealogia da moral, O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo e Ecce homo são preparados sob o signo da genealogia, atestam o caráter afirmador/negador da filosofia dionisíaca nietzschiana. E é nesses escritos que a temática do niilismo é trazida à tona.

Por outro lado, no conjunto dos chamados fragmentos póstumos há um grande número de referências ao tema do niilismo que se estendem desde o ano de 1880 até o fim da vida produtiva de Nietzsche. E o próprio Nietzsche menciona na obra publicada a preocupação que tem com essa problemática. Demonstra estar dedicado à preparação de textos em que arrisca hipóteses ousadas sobre o niilismo. Em Genealogia da moral, ele faz referência a um capítulo cujo título seria “História do niilismo europeu”, e que integraria a obra em elaboração A vontade de poder: Ensaio de tresvaloração de todos os valores. Nele, seriam tratadas “as curiosidades e complexidades do espírito moderno, nas quais há tanto para rir quanto para aborrecer-se” (NIETZSCHE, 1998, p. 146). Em maio de 1887, o autor escreve um curto e importante texto que também não chega a selecionar para a publicação chamado O niilismo europeu (2013)2 - este “fragmento”, em especial, teve grande repercussão dentre os estudiosos e comentadores da obra de Nietzsche, e é alvo de muitas pesquisas até hoje dentro e fora do Brasil. Ali, Nietzsche expõe em 15 curtos parágrafos hipóteses que vinculam a emergência e o aprofundamento do niilismo à cultura cristã e às sérias consequências da crença desenfreada no valor da verdade. Além disso, coloca questões de grande dificuldade ao pensar os desdobramentos desse mergulho em direção ao nada, ao fim, e ao relacionar o niilismo com conceitos como a vontade de poder e o eterno retorno.

Não se trata, neste artigo, de ignorar a importância dos fragmentos póstumos em que Nietzsche se dedica ao tema do niilismo. O diagnóstico aterrador segundo o qual a contemporaneidade aprofunda cada vez mais formas doentias de vida, que caminham no sentido de sua própria extinção, não pode ser negligenciado. Tampouco subestimamos as relações que em tais fragmentos são estabelecidas entre niilismo, a vontade de poder e o eterno retorno. Contudo, por uma questão de delimitação, de recorte, o que nos interessa aqui mais diretamente é analisar como esses mesmos aspectos da abordagem nietzschiana se apresentam na obra preparada para a publicação. Nesta, como indicamos, a valorização da arte não se limita às questões temáticas, de modo que a incorporação dos elementos artísticos à própria escrita e à elaboração conceitual chama a atenção, a ponto de parecer mesmo ser uma espécie de critério seletivo utilizado por Nietzsche, a ponto de parecer mesmo ser o filtro através do qual ele pode considerar se seus textos são adequados ou refinados o suficiente para a publicação3. Interessam-nos mais especificamente os textos acerca do niilismo que foram selecionados para a publicação pelo fato de eles talvez terem passado por este crivo artístico seletivo, e permitirem, assim, que a problemática da derrocada dos valores hegemônicos seja pensada e questionada a partir de uma perspectiva que a arte pode vir a convocar. Assim, procuramos atentar especialmente para os textos em que, evidenciando a potência afirmadora da vida que a arte encerraria, o autor nos convida a investigar até que ponto a arte teria a capacidade de constituir-se como verdadeira antípoda dos ideais ascéticos, e por que meios isto se daria. Como a arte se relaciona com a própria vida? Ela teria algum poder neutralizador frente às forças detratoras da existência que alimentam o niilismo? Qual o papel desempenado pela arte na constituição daquilo que Nietzsche denomina sua gaia ciência? Como a gaia ciência nietzschiana se relacionaria à possibilidade de uma transvaloração de todos os valores? Ela poderia valer como uma espécie de antídoto contra o niilismo? São essas as nossas questões norteadoras aqui.

A crítica genealógica e o niilismo na cultura ocidental

A crítica genealógica desenvolvida por Nietzsche contra a tradição de pensamento metafísico-moral parece encontrar seu ponto de partida em uma constatação: por mais de dois milênios, a despeito das tentativas modernas de condução do racionalismo tradicional e do cientificismo moderno a seus limites, a cultura ocidental teria permanecido atada em uma vontade de verdade. A primeira seção do primeiro capítulo de Além do bem e do mal, “Dos preconceitos filosóficos”, já traz em sua abertura essa advertência: “A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou! Estranhas, graves, discutíveis questões!” (NIETZSCHE, 1992, p. 9). A crença na verdade como um valor inquestionável a colocaria no mesmo patamar de outros tradicionais valores morais - como o “bem”, o “justo”, o “útil” -, e garantiria sua suposta superioridade. Assim, a própria crença na verdade seria ela mesma uma crença moral, e nos manteria presos a uma incansável busca ascética por um fundamento. Essa atitude emblemática da tradição metafísica de apostar na verdade como um suposto valor em si, a ser perseguido e conquistado a todo custo, contribui para a valorização cada vez mais exacerbada de um plano “superior”, “moral”, “eterno” e “transcendente” em detrimento de um suposto mundo perecível, aparente, fenomênico e necessariamente inferior. A cisão primeira que engendra um além-mundo, que o cria a partir de uma oposição ao mundo aparente, para Nietzsche, seria o elemento fundador de toda metafísica, que garantiria sua prática mais contumaz: “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores” (NIETZSCHE, 1992, p. 10). Para o autor, ao criarem um além-mundo e acreditarem nele como algo que existiria em si e por si, os metafísicos opõem valores e acabam por necessariamente privilegiar os supostos valores transcendentes em prejuízo de toda realidade sensível. Curiosamente, esse gesto criativo é mascarado, e o que não passa de criação é tido como causa sui. A ficção fundadora de toda metafísica seria, deste modo, dissimulada, ocultada, assim como o pathos negativo em relação à realidade imanente que a engendra.

Nietzsche identifica a oposição de valores e a vontade de verdade como elementos basilares na constituição do pensamento metafísico, e denuncia o fundo moral que lhes daria suporte. Com sua genealogia, coloca uma nova exigência: “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (NIETZSCHE, 1998, p. 12). Isto significa, em um primeiro nível, não tomar os valores como dados, investigar suas origens históricas, rastrear as circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais viveram e se modificaram. Num segundo e ainda mais importante nível, significa avaliar os valores segundo um critério que anteceda a própria criação destes, segundo um elemento do qual os valores emanem. O autor aponta para aquilo que valora por trás da criação de todo e qualquer valor, aquilo cujo valor não poderia ser colocado à prova - a vida:

Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são considerados apenas enquanto sintomas - em si, tais juízos são bobagens. É preciso estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo objeto da disputa; e não por um morto por um outro motivo (NIETZSCHE, 2006, p. 18).

A vida é o critério a partir do qual o valor dos valores morais deve ser investigado e avaliado. Não haveria a possibilidade de se julgar a vida a partir de um fora dela. É ela mesma quem valora por trás de cada valoração humana. Os questionamentos genealógicos levam, assim, a perguntar: de que maneira um juízo se coloca em relação à vida? Ele a promove, a afirma, ou apenas a conserva? Ou ainda, a nega? Os próprios valores morais com os quais a tradição de pensamento pôde produzir suas avaliações é que são questionados e colocados em xeque pela genealogia.

A temática do niilismo emerge em meio às análises e hipóteses genealógicas que Nietzsche desenvolve nesse momento de sua obra. O niilismo estaria relacionado, em sentido muito amplo e geral, às formas de negação e de mera conservação da vida que teriam se erguido e se sustentado historicamente. Estaria presente na tradição metafísico-moral desde o momento mesmo em que se privilegia um “mundo verdadeiro” em prejuízo da realidade aparente, imanente. Os tipos [de vida] que teriam predominado na cultura ocidental - o racionalista, o cristão, o moralmente correto, o positivista - e que teriam sido celebrados como conquistas da humanidade, revelam-se, pela análise nietzschiana, os exemplares mais sintomáticos da doença, da fraqueza, da impotência e da apatia diante da existência.

Gilles Deleuze (2018), em seu livro Nietzsche e a filosofia, desenvolve uma interpretação muito própria acerca da filosofia nietzschiana como um todo e do niilismo mais especificamente. Ele se mostra atento, logo de início, a esse caráter mais geral do niilismo, que chama de niilismo negativo. Deleuze adverte que no termo niilismo, nihil não significaria o não-ser, mas, antes de qualquer coisa, um valor de nada. A vida assumiria, assim, no momento mesmo em que se cria e se superestima um suposto mundo verdadeiro, um valor de nada, na medida em que seria negada e depreciada (DELEUZE, 2018, p. 189).

A depreciação supõe sempre uma ficção: é por ficção que se falseia e se deprecia, é por ficção que se opõe alguma coisa à vida. A vida inteira se torna então irreal, é representada como aparência, assume em seu conjunto um valor de nada. A ideia de um outro mundo, de um mundo suprassensível com todas as suas formas (Deus, a essência, o bem, o verdadeiro), a ideia de valores superiores à vida, não é um exemplo entre outros, mas o elemento constitutivo de qualquer ficção. Os valores superiores à vida não se separam de seu efeito: a depreciação da vida, a negação deste mundo (DELEUZE, 2018, p. 189).

O niilismo negativo estaria engendrado nesta atitude primeira de invenção de uma suposta realidade perfeita e transcendente. Tal atitude seria suportada necessariamente por um pathos negativo, por uma disposição negadora do caráter imanente, cambiante e sem finalidade da vida. Partindo da interpretação deleuzeana, e tendo em vista a crítica genealógica, poderíamos entender como a instituição dos valores morais nos quais os metafísicos se apoiam depende da criação de um além-mundo que os legitime; e como, ao mesmo tempo, a criação deste além-mundo só é possível a partir de um gesto negativo em relação à vida que lhe dê origem. Neste sentido, metafísica e negação da vida implicar-se-iam mutuamente, só poderiam ser pensadas uma em decorrência da outra. Deleuze finaliza: “Em seu primeiro sentido, niilismo significa, portanto, valor de nada assumido pela vida, ficção dos valores superiores que lhe dão esse valor de nada, vontade de nada que se expressa nesses valores superiores” (DELEUZE, 2018, p. 189).

A expressão dessa primeira forma do niilismo é tematizada por Nietzsche em seus escritos publicados sobretudo através das críticas a Sócrates, a Platão, e ao cristianismo como um continuador e disseminador desse tipo de crença moral. Os capítulos “O problema de Sócrates” e “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, de Crepúsculo dos ídolos, são representativos nesse sentido. O estilo ácido e refinado de Nietzsche prepondera, e as imagens dos dois gregos, esculpidas como em peças de teatro, dão ainda mais força às hipóteses ali delineadas e aos diagnósticos apresentados. Talvez esses estejam no grupo dos melhores exemplos de escritos em que o autor faz seu texto atuar performativamente. O desmonte das artimanhas da racionalidade e a denúncia das ficções dissimuladas pelas quais a filosofia socrático-platônica se consolida e se aprofunda através do cristianismo se dão em um tom assumidamente parcial, artificial, que ressalta a perspectiva a partir da qual Nietzsche se coloca e lhe permite atingir um efeito crítico ainda mais potente e desconcertante.

No primeiro desses capítulos, a análise genealógica pergunta a todo o momento pelas idiossincrasias que moveriam Sócrates, pelo tipo de vida que nele se manifestaria. O grego é, assim, dissecado, apontado como alguém fisiologicamente debilitado, em cujo corpo os instintos se apresentam anárquicos e desregrados, e em quem a racionalidade seria hipertrofiada - motivos pelos quais ele seria um décadent. A vingança niilista contra a vida que a crença no “mundo verdadeiro” efetua ganharia nele contornos de ressentimento voltado contra os nobres gregos: “É a ironia de Sócrates uma expressão de revolta? De ressentimento plebeu? Goza ele, como oprimido, de sua própria ferocidade com as estocadas do silogismo? Vinga-se ele dos nobres a quem fascina?”. E ainda: “Onde a autoridade ainda faz parte do bom costume, onde não se ‘fundamenta’, mas se ordena, o dialético é uma espécie de palhaço: as pessoas riem dele, não o levam a sério. - Sócrates foi um palhaço que se fez levar a sério: que aconteceu aí realmente?” (NIETZSCHE, 2006, p. 20). Para Nietzsche, se Sócrates soube fascinar, isso só teria sido possível na medida em que ele teria sido um caso extremo do que então começava a ser a miséria geral, o começo do fim, ou ainda porque ele teria representado, ao mesmo tempo, um mal e sua cura (NIETZSCHE, 2006, p. 21).

Em “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, Nietzsche conta em tom paródico e ficcional o que, para ele, teria sido o percurso da noção de verdade na história da metafísica. Platão é quem, com seus diálogos, teria inaugurado as crenças e os valores metafísicos hegemônicos: “O ‘mundo verdadeiro’, alcançável pelo sábio, o devoto, o virtuoso - ele vive nele, ele é ele (A mais velha forma da ideia, relativamente sagaz, simples, convincente. Paráfrase da tese: ‘Eu, Platão, sou a verdade’)”. (NIETZSCHE, 2006, p. 31). A edificação do chamado “mundo verdadeiro” é apontada como uma criação simples e, talvez por isso mesmo, sagaz. Com isso, Nietzsche estabelece um elo de ligação entre o criador do ideal e o produto mais sedutor e convincente deste ideal - a verdade. Isto fica claro se se leva em conta que Nietzsche ressalta gesto criativo e dissimulado de Platão, a ficção que se volta contra as aparências, a imanência, e com isso, contra a vida. Pelas mãos de Platão, a identificação entre filosofia e verdade teria sido forjada de maneira plenamente convincente, e a crença em tal identificação teria se perpetuado.

A metafísica de origem socrático-platônica oferece um direcionamento para a vida. Ao exaltar os supostos poderes terapêuticos e corretivos da razão, engendra a postura niilista de apostar no conhecimento de uma verdade tida como transcendente e universal e na possibilidade de cura para as feridas abertas da existência. Assim, nasce de um descontentamento negador da vida e impõe a esta um sentido moral.

Para Nietzsche, há uma evidente relação de continuidade existente entre a moralidade socrático-platônica e a moralidade judaico-cristã. O ascetismo filosófico é ampliado e aprofundado pelo cristianismo, sobretudo pelas forças detratoras da vida alimentadas pelo ressentimento, pela culpa e pela compaixão. Na sequência do capítulo acima mencionado, o autor segue na “história do erro” mostrando que, com o cristianismo, a “ideia” teria passado por um processo de desenvolvimento, até ser traduzida em uma moral de rebanho e difundir os valores metafísicos, tornando-os efetivamente hegemônicos: “O verdadeiro mundo, inalcançável no momento, mas prometido para o sábio, o devoto, o virtuoso (‘para o pecador que faz penitência’)/ (Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais ardilosa, mais inapreensível - ela se torna mulher, torna-se cristã)” (NIETZSCHE, 2006, p. 31)4. No “Prólogo” de Além do bem e do mal, o autor ressalta essa continuidade entre o ascetismo racionalista e o religioso: “cristianismo é platonismo para o ‘povo’” (NIETZSCHE, 1992, p. 8).

As análises de Nietzsche mostram ainda um processo de agravamento e de intensificação da postura niilista. Não se trata de negar a existência apenas tal como foi visto até agora. O niilismo tem um outro sentido, que vem à tona quando crença na verdade como valor superior é levada às ultimas consequências. Deleuze, ao tratar desse outro sentido - que, em seu entendimento, adquire inicialmente o caráter de um niilismo reativo - explicita:

Não significa mais uma vontade, mas uma reação. Reage-se contra o mundo suprassensível e contra os valores superiores, nega-se a sua existência, recusa-se dar qualquer validade a eles. Não mais desvalorização da vida em nome de valores superiores, mas desvalorização dos próprios valores superiores. Desvalorização não significa mais valor de nada assumido pela vida, mas nada de valores, de valores superiores. (DELEUZE, 2018, p. 189).

Como isso se dá? A vontade de verdade, compreendida em toda a sua amplitude e levada ao máximo de seu rigor, acaba por voltar-se contra si mesma e evidencia o caráter forjado dos valores mais elevados nos quais a humanidade se apoiou desde a invenção do “mundo verdadeiro” até a modernidade. Os sustentáculos das crenças supremas da cultura ocidental caem, perdem seu valor, e o próprio fundamento que garantia a preponderância da verdade rui. É o que Nietzsche designa como “morte de Deus”. Referindo-se a um texto de A gaia ciência trazido para o interior da terceira dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche responde com precisão à pergunta sobre o que verdadeiramente teria vencido o Deus cristão: “A própria moralidade cristã, o conceito de verdade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço” (NIETZSCHE, 1998, p. 147). A morte de Deus não teria sido, dessa forma, um acontecimento fortuito, mas uma consequência inevitável da própria crença no valor da verdade levada a seu limite. Algo necessário na dinâmica dos processos de uma modernidade que, apostando todas as suas fichas em uma longuíssima educação para a verdade, por fim “se proíbe a mentira de crer em Deus” (NIETZSHE, 1998, p. 147).

Este processo pelo qual os valores supremos se esvaem, se esfacelam e perdem seu valor talvez seja o que, para Nietzsche, define mais fortemente a modernidade e que permite a compreensão dos seus principais acontecimentos. Diante perda do sentido que a crença em Deus e na verdade conferiam à vida, a humanidade, habituada a determinadas venerações, em virtude das quais suportava viver (NIETZSCHE, 2001, p. 240), experimenta a ameaça do grande vazio, o medo em relação à ausência total de sentido, e precisa tentar evitar seu maior desconforto, seu maior temor: o horror vacui [horror ao vácuo], em função do qual sempre precisou de um objetivo, e sempre acabará preferindo ainda “querer o nada a nada querer” (NIETZSCHE, 1998, p. 88). Neste sentido, o niilismo - que Deleuze denomina reativo - impulsiona a humanidade a ainda tentar substituir Deus por algum fundamento que possa ocupar o seu lugar, por algum elemento que possa ser venerado, seja o progresso humano, histórico, a razão ou as próprias questões sociais. Nesse estágio, ainda não há uma total compreensão da amplitude das consequências da morte de Deus, e o hábito metafísico de opor valores e de buscar asceticamente por um fundamento parece resistir - mesmo que com pés de barro.

Nietzsche indica o maior perigo que se apresenta como consequência da morte de Deus: a tomada de consciência em relação às implicações mais amplas desse acontecimento, a compreensão da total derrocada dos valores que garantiam alguma segurança e conferiam algum sentido à vida. Não há substituto possível para Deus. Trata-se da revelação da crença na verdade como uma mentira longamente sustentada, da decepção com o entendimento de que a explicação metafísico-moral cultuada por milênios não era senão um ponto de vista que teria sido tomado como único possível. Diante disso, a humanidade se vê sem chão, tendo à frente o mais terrível e profundo abismo, sentindo os temores e terrores de ter que lidar com a falta de justificativa para seu sofrimento, com a ausência de qualquer sentido para os descaminhos de sua existência. A vivência é a do grande nojo, do grande fastio, da sensação aterradora de que nada vale a pena, e de que a vida não tem qualquer razão para seguir. Nietzsche descreve este niilismo em seu mais alto grau:

Vemos um olhar triste, duro, porém decidido - um olho que olha para longe, como faz um explorador polar desgarrado (para não olhar para dentro? Não olhar para trás?...). Há apenas neve, a vida emudeceu; as últimas gralhas que se fazem ouvir dizem “Para quê?”, “Em vão!”, “Nada!” - nada mais cresce ou medra” (NIETZSCHE, 1998, p. 144).

Nesse estágio mais intenso do niilismo, a humanidade não tem mais esperanças: nem em Deus, como o niilista negativo, nem no progresso humano, histórico, como o niilista reativo. Aqui ocorre um niilismo passivo, em que não se é capaz sequer de desejar ou criar o que quer que seja. A vida no máximo busca se conservar em seu estado mais depressivo, apático. Viver é algo que não se justifica mais, a humanidade se torna fria e dura com a percepção de que “nada que sucede no mundo é divino, ou mesmo racional, misericordioso ou justo pelos padrões humanos: sabemos que o mundo é imoral, inumano e ‘indivino’” (NIETZSCHE, 2001, p. 239).

A gaia ciência - um possível antídoto contra o niilismo?

Sendo o mundo imoral, inumano e “indivino”, como Nietzsche afirma, a vida também traz consigo esse mesmo caráter. O autor entende o mundo e a vida como vontade de poder, como algo que não tem um fundamento subjacente. Tudo se resume a um jogo de forças em eterno conflito, forças que atuam umas sobre as outras, por trás das quais não há um sujeito que seja livre para decidir agir segundo uma ou outra escolha possível. “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu caráter inteligível’, - seria justamente ‘vontade de poder’, e nada mais” (NIETZSCHE, 1992, p. 43). Tudo o que existe e vive é “vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio - não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder” (NIETZSCHE, 1992, p. 171). Não há um Deus, misericordioso ou vingativo, que comande o mundo, assim como não há uma essência transcendente por trás de tudo o que é imanente. A vida se dá exclusivamente no campo das aparências, do devir, da criação e destruição de formas, e é precisamente para este campo que Nietzsche aponta quando, diante do diagnóstico mais aterrador frente ao niilismo passivo decorrente da morte de Deus, ele busca refletir sobre possíveis antídotos.

Tratar a vida no âmbito exclusivo das aparências e reabilitar os elementos tradicionalmente excluídos do universo legitimado do conhecimento é algo a que Nietzsche já se dedicara, como sinalizamos no início, pelo menos desde 1878, mas especialmente em A gaia ciência. Tudo isso constitui a dita porção afirmativa de sua tarefa filosófica, e se efetiva a partir de uma valorização radical do conceito de aparência e da compreensão da arte como instância afirmadora da vida. Vida e arte estão inscritas na aparência, e, livres de implicações metafísicas, operariam num mesmo registro, lidando com o devir e sua dinâmica de criação/destruição, com o engano, com o erro e com a mentira. Sobretudo guardando um pathos afirmativo em relação a esses elementos. As seções 54 e 107 de A gaia ciência, “A consciência da aparência” e “Nossa derradeira gratidão com a arte”, respectivamente, são centrais nesse sentido.

Na primeira, Nietzsche se coloca na pele do “homem do conhecimento”, que acorda de um sonho, não para se livrar dos enganos do mundo e obter supostas verdades, mas para ter a revelação do caráter necessário do próprio sonho, e para reconhecer a necessidade de continuar sonhando para não sucumbir. Ele encarna um dos “mestres-de-cerimônia” da existência, a quem seria dado como um presente a “maravilhosa, e, ao mesmo tempo, horrível e irônica” revelação de que o sonho, a ilusão, a mentira e o disfarce são condições necessárias da existência. Revelação que, por se dar em meio a um sonho, também aponta para seu próprio aspecto perspectivo e ilusório. A única certeza possível é a de que se vive e se precisa continuar a viver no sonho e na ilusão (NIETZSCHE, 2001, p. 92). Mais uma vez fazendo seu texto efetivar aquilo mesmo de que trata, Nietzsche recusa a verdade como reguladora do conhecimento, aposta na aparência como fonte de onde brotam a arte e a própria vida, e forja um conceito valendo-se de construções paradoxais que relativizam inclusive a sua própria validade:

O que é agora, para mim, a aparência? Verdadeiramente, não é o oposto de alguma essência - que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os predicados de sua aparência? [...] A aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega a ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência, fogo-fátuo, dança de espíritos e nada mais (NIETZSCHE, 2001, p. 92).

Vida e arte estão mutuamente implicadas pelo conceito de aparência. Ao partir do universo da arte para começar a realizar sua tarefa filosófica, e ao explicitar isso através das escolhas e soluções encontradas para a redação de seus textos, Nietzsche borra as fronteiras que separariam filosofia, arte e vida, e permite que sua linguagem cada vez mais própria ganhe força.

Na segunda seção mencionada, a vida é mais uma vez tomada como um fenômeno estético, e a arte aparece não apenas como uma espécie de modelo antimetafísico pelo qual poderíamos compreender a vida, mas também como um elemento que nos permitiria desenvolver uma boa consciência em relação ao caráter aparente da existência - o que nos incitaria a recriar nossas vidas como obra de arte:

Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro, a percepção da inverdade e da mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência - da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente e sensível - seria intolerável para nós. A retidão teria por consequência a náusea e o suicídio. Mas agora a retidão tem uma força contrária, que nos ajuda a evitar consequências tais: a arte como a boa vontade de aparência. [...] Como fenômeno estético a vida nos é suportável, e por meio da arte nos são dados os olhos e mãos e, sobretudo boa consciência para podermos fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com nossa sabedoria! (NIETZSCHE, 2001, p. 132-133).

Reabilitar os elementos tradicionalmente caluniados pela tradição metafísica parece ser uma primeira e importante preocupação aqui. A arte surge como o culto do não-verdadeiro, como o terreno do aparente que se quer como tal, que assume sua origem inventada, e que traz a sensibilidade, o corpo, a perspectiva, o riso, a derrisão e a paródia para a ordem do dia - tudo o que sempre foi excluído e moralmente rebaixado pelos saberes metafísicos. É desse tipo de fonte que Nietzsche pretende que se faça brotar uma outra espécie de conhecimento, não mais pautado nas exigências de quaisquer valores morais, mas nas da alegria e da afirmação do caráter passageiro, ilusório e imanente da vida. Não por acaso, logo na sequência, ao mencionar a necessidade de que coloquemos ocasionalmente “o chapéu do bobo”, ele ressalta um dos maiores benefícios de adotar um tal entendimento para a vida: poder ficar acima da moral, flutuar e brincar acima dela! (NIETZSCHE, 2001, p. 133). A gaia ciência nietzschiana é esse saber imoral, amoral, que coaduna filosofia e vida, que se abre para uma arte ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial, e que faz evadirem-se do conhecimento e da vida as exigências da verdade a todo custo (NIETZSCHE, 2001, p. 14-15).

É somente a partir desses entendimentos acerca da arte e da dinâmica da vida que Nietzsche pode bradar seu repúdio em relação à ciência como possível antípoda dos ideais ascéticos e do niilismo passivo5. Para fazer frente à força do ascetismo, é claro para o autor o protagonismo da arte entendida como culto do não-verdadeiro: “a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético” (NIETZSCHE, 1998, p. 141).

A situação aterradora em que o niilismo passivo lança o homem moderno, pelo diagnóstico de Nietzsche, parece ser o cume descendente de um processo que se arrasta por dois milênios, e que teria pelo menos mais dois séculos pela frente. O autor descreve esta jornada como “a mais longa e duradoura superação da Europa” e aponta para um aspecto importantíssimo no sentido de entendermos a possibilidade de transvaloração desses valores degradantes:

Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de autossupressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária ‘autossuperação’ que há na essência da vida. [...] Desta maneira pereceu o cristianismo como dogma, por obra de sua própria moral; desta maneira, também o cristianismo como moral deve ainda perecer. [...] Que sentido teria o nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade toma consciência de si como problema? Nesta gradual consciência de si da vontade de verdade - disso não há dúvida - perecerá doravante a moral (NIETZSCHE, 1998, p. 148)

O niilismo pressupõe a própria negação como qualidade da vontade de poder (DELEUZE, 2018), está inserido na dinâmica dos conflitos de força que compõem a vida. Do mesmo modo, a possibilidade de sua superação também diria respeito a qualidades da vontade de poder, e estaria igualmente no curso dos arranjos pelos quais a vida se desenrola. A morte de Deus e o esfacelamento dos valores que pretendiam ocupar seu lugar são desdobramentos do niilismo, etapas desse percurso, tendo em vista as exigências de veracidade que a moralidade colocava para a tradição cristã e para a modernidade. A problematização do valor da vontade de verdade é, como mostra Nietzsche, também um passo necessário. E o autor não deixa de evidenciar a força e o papel principal da arte para que isso ocorra. Tanto em Genealogia da moral quanto em Além do bem e do mal o poder derrisório do riso e da ironia que a arte é capaz de mobilizar são centrais no sentido de dar a cambalhota necessária para se superar o niilismo passivo. Logo antes de anunciar a arte como a mais potente antípoda do ascetismo, o autor afirma: “também na esfera mais espiritual o ideal ascético continua encontrando, no momento, apenas um tipo de inimigo verdadeiro capaz de prejudicá-lo: os comediantes desse ideal” (NIETZSCHE, 1998, p. 146-147).

Em Além do bem e do mal, na seção 10 do primeiro capítulo, Nietzsche se refere a quem chama de “céticos antirrealistas e microscopistas do conhecimento”. Estes teriam conseguido compreender a dimensão ampla das consequências da morte de Deus. Seriam críticos também da modernidade, e, diante do deserto anunciado para o futuro, teriam se tornado descrentes “de tudo o que foi construído ontem e hoje” (NIETZSCHE, 1992, p. 16). Nietzsche constata a rejeição desses céticos em relação ao estado de passividade avassaladora que toma conta de seu tempo - mas da qual eles não teriam conseguido escapar -, e introduz seu próprio diferencial em relação a esses grandes desconfiados e ainda niilistas:

O instinto que os leva a se afastar da realidade moderna não está refutado - que nos interessam suas vias retrógradas e tortuosas! O essencial neles não é que desejem ir para trás, mas que desejem ir embora. Um pouco mais de força, impulso, ânimo, senso artístico: e desejariam ir para além, não para trás! (NIETZSCHE, 1992, p. 16-17)

A superação do niilismo estaria ligada a esse senso artístico, à capacidade de negar todos os valores vigentes, destruí-los, e sobretudo não permanecer na passividade que apenas conserva a vida nas condições mais letárgicas. A chave para transvalorar seria a criação de novos valores, mas de valores que estejam em sintonia com o movimento da vida, que sejam sintomas da afirmação como qualidade da vontade de poder. Valores que afirmem o corpo, o riso, a ironia, a derrisão, e que não ensejem movimentos detratores da vida diante do sofrimento e dos aspectos mais difíceis de serem suportados inerentes a ela. Valores trágicos. Se, como insiste Nietzsche em seu Ensaio de autocrítica, “toda vida repousa na aparência, arte, ilusão, ótica, necessidade de perspectivismo e de erro” (NIETZSCHE, 2020, p. 15), a gaia ciência, como um saber afirmativo por excelência, ostenta o caráter propriamente fictício do conhecimento, busca seduzir e, ao mesmo tempo, relativizar o valor de tudo o que, a partir dela, se afirma. É a chave para a conversão afirmativa que promove essa reabilitação do que sempre foi negado e, com isso, dança a dança terrestre, baila trágica e afirmativamente sobre a moral.

Referências

ARALDI, C. Os extremos do niilismo europeu. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 169-182, jul./dez. 2012.

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: n-1 edições, 2018.

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2020.

NIETZSCHE, F. O niilismo europeu. Trad. Clademir Araldi. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 249-255, jul./dez. 2012.

Notas

1 Em sua autobiografia, Ecce homo, Nietzsche ressalta o caráter afirmativo que sua filosofia vai adquirindo à medida que ele se torna um filósofo andarilho, independente e antimetafísico, e progressivamente toma posse de seu estilo e de sua linguagem. Ele afirma que Aurora e A gaia ciência seriam livros eminentemente afirmativos: “Aurora é um livro que diz Sim, profundo, porém claro e benévolo. O mesmo, e no maior grau, vale para a gaya scienza: em quase cada frase sua, profundidade e petulância dão-se ternamente as mãos. (NIETZSCHE, 1995, p.81.). Assim falou Zaratustra completaria a tríade afirmativa elevando seu pensamento a um patamar inigualável. Ele estaria “seis mil pés acima do homem e do tempo” (NIETZSCHE, 1995, p. 82).
2 Este escrito foi traduzido para o português por Clademir Araldi e publicado na revista Estudos Nietzsche em 2013. Nesta mesma revista, em 2012, Araldi havia publicado um artigo em que discute a importância de O niilismo europeu ao fazer uma reconstrução da recepção do texto e ao levar adiante uma análise de como o tema é trabalhado ali por Nietzsche a partir da compreensão dos conceitos de vontade de potência e eterno retorno como “os extremos do niilismo europeu” (ARALDI, 2012, p. 169).
3 Este possível critério seletivo utilizado por Nietzsche também parece se mostrar presente quando nos debruçamos sobre os seus textos dedicados à temática do eterno retorno, por exemplo. Nos fragmentos póstumos, há diversas ocorrências do termo, muitas das quais parecem ser espécies de ensaios, rascunhos; em outras ocorrências, Nietzsche demonstra experimentar flertes com uma linguagem de cunho mais científico, num possível diálogo com autores a cujas leituras se dedicava, ou ainda em tentativas no sentido de encontrar o tom mais adequado para a formulação pública dessa noção. Na obra publicada, por outro lado, o eterno retorno é enunciado através de uma linguagem indiscutivelmente poética, artística. Vem a nós pela primeira vez pela boca de um demônio que aparece furtivamente na seção 341

de A gaia ciência e, posteriormente, em meio às imagens poéticas pelas quais o autor encena os conflitos dramáticos vivenciados pelos personagens de Assim falou Zaratustra.

4 No caso de “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula” a teatralidade e o caráter performativo do texto nietzschiano saltam aos olhos. Os grandes expoentes da história do pensamento metafísico - que é desmascarado como um tipo de discurso fundado em ficções não assumidas, em arte que nega a própria arte em seu interior - aparecem como personagens um tanto caricatos. A "ideia” torna-se mulher, torna-se cristã, e mais tarde torna-se “sublime, pálida, nórdica”; a razão boceja, o positivismo “canta de galo”, e Platão, envergonhado por ter sido desmascarado como o criador do falso “mundo verdadeiro”, ruboriza. Os comentários feitos entre parêntesis por Nietzsche evidenciam as interferências de quem escreve o texto no próprio texto, e se assemelham às marcações e orientações características dos textos teatrais, em que as reações e expressões que os personagens devem produzir são descritas em detalhes como claras instruções. A mentira do ideal tem sua encenação encenada.
5 “Não! Não me venham com a ciência quando busco o antagonista natural do ideal ascético”. (NIETZSCHE, 1998, p. 140).

Autor notes

a AFM do Departamento de Filosofia da UFRJ e Doutora em Filosofia, e-mail: adrianymendonca@ifcs.ufrj.br
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