Artigo

O niilismo - pensado, rabiscado e não publicado

The nihilism - thought, scribbled and unpublished

ANTONIO EDMILSON PASCHOAL
Universidade Federal do Paraná, Brasil

O niilismo - pensado, rabiscado e não publicado

Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 22-43, 2022

Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 07 Março 2022

Aprovação: 02 Junho 2022

Resumo: Este estudo apresenta de forma muito breve alguns traços elementares dos apontamentos não publicados de Nietzsche sobre o tema do niilismo. Tal exposição deve permitir, por um lado, evidenciar o caráter inacabado dessas anotações e lançar luzes sobre o modo como o filósofo trabalha em sua oficina, produzindo seus textos por meio de um exercício de escrita e de reescrita, eventualmente utilizando, eventualmente abandonando o material que produz. Por outro lado, deve permitir uma retomada de algumas linhas básicas do seu pensamento sobre o niilismo que ganham contornos conforme se acompanha a produção desse material, sem perder de vista, contudo, que se trata de um conteúdo intencionalmente mantido pelo filósofo em seu domínio privado e não preparado para ser levado a público.

Palavras-chave: Niilismo, Nietzsche, Formas de escrita, Cristianismo, Compaixão.

Abstract: This study briefly presents some elementary traces of Nietzsche's unpublished notes on the theme of nihilism. Such an exhibition should allow, on the one hand, to highlight the fragmentary character of these notes and shed light on the way the philosopher works in his workshop, producing his texts through a writing and rewriting exercise, eventually using, eventually abandoning the material that produces. On the other hand, it should allow a resumption of some basic lines of his thinking about nihilism that take shape as the production of this material is followed, without losing sight, however, that it is a content intentionally maintained by the philosopher in his private domain and not ready to be made public.

Keywords: Nihilism, Nietzsche, Writings forms, Christianity, Compassion.

Apresentação da questão

Nietzsche define a si mesmo como um “animal que escreve”,2 tendo deixado para a posteridade um legado amplo e multiforme, como ilustra a metáfora do jardim, de Marie-Luise Haase:

Se compararmos a escrita de Nietzsche a uma paisagem, esta pode dar a impressão de um jardim francês cultivado, no qual cada arbusto, cada árvore, encontra-se precisamente em seu lugar, cada caule está bem cuidado e vistoso, os canteiros estão dispostos de modo ordenado: nos orientamos sem dificuldade nesse espaço. Podemos, também, compará-la a um jardim descuidado, no qual a antiga disposição está ainda parcialmente visível, embora, ao mesmo tempo, ervas daninhas cresçam livremente por toda parte. Surge então, de novo, a impressão de uma selva com troncos que se superpõem de forma compacta e se enroscam em torno de cipós colados uns aos outros, de um modo tal que mal se pode distinguir uma planta da outra. A última imagem pode ser comparada a uma selva impenetrável, arisca, na qual não se pode transitar. O caminho dentro e por meio dela deve ser aberto com esforço, paciência, cautela, o que pode estar sempre, também, fadado ao fracasso (HAASE, 2011, p. 12-13).

A mesma metáfora, contudo, poderia ser pensada num sentido oposto, caso se considere o modo como o filósofo trabalhava em sua oficina. Ali, ele produzia anotações dispersas sobre temas e projetos literários, que eram eventualmente reunidas na forma de apontamentos desordenados, que eventualmente eram retomados, mais tarde, num exercício de revisão e de árdua reescrita, com a introdução de sutilezas, o cuidado com a forma, a atenção ao tipo de letra e, então, enviado e reenviado ao editor, até finalmente ter em mãos o texto publicado - comparável a um jardim francês. O que produz, naquele ambiente de trabalho, um grande volume de apontamentos que é deixado de lado, em diferentes fases de produção, em meio às ferramentas e aparatos utilizados para produzi-lo, como é o caso de anotações de leituras e em meio a outros projetos, reutilizados ou apenas abandonados, sem um catálogo ou index que indicaria o estatuto desse material.

Considerando que Nietzsche não se desfazia de seus apontamentos, mesmo quando já tinha a versão final de uma obra, um olhar sobre o material produzido por ele deve considerar uma ampla gama de textos. Nesse sentido, é elucidativa a organização feita por Paolo D’Iorio, na Nietzsche Source, que considera naquele corpus: as “obras publicadas” pelo filósofo; as suas “publicações privadas”, os manuscritos não publicados pelo filósofo, mas preparados e autorizados por ele; os “escritos póstumos”, um conjunto que reúne no geral textos organizados, eventualmente como material de aula ou conferência, eventualmente como um projeto que não foi levado a termo; o conjunto dos “fragmentos póstumos”,3 no qual se encontra os apontamentos de Nietzsche que não foram levados a público por ele, mas, em grande parte, por sua irmã e pelos editores da obra ficticiamente inédita A vontade de poder; além das cartas escritas pelo filósofo, que constituem outra importante parte desse conjunto ampliado de seu “corpus”.

Tendo em vista o conjunto dos fragmentos póstumos, é importante lembrar que a publicação deles ganhou um outro formato na crítica de Colli e Montinari, sem a pretensão de serem uma obra, ou parte de uma obra4. Contudo, como afirma Adrea Spreafico (2008), a sua publicação “tipograficamente”5 semelhante à da obra publicada pelo filósofo confere, ainda, em parte, a esse material o estatuto de texto. É importante ressaltar também que as anotações reunidas nesse conjunto não podem ser classificadas de forma inequívoca, como “fragmentos póstumos”. Nele, o que menos se tem são pedaços de algo, talvez, partes de um todo ou de uma obra literária6. Antes, encontram-se ali anotações que dizem respeito a despesas com a padaria, passando por projetos literários, observações feitas a partir de leituras,7 ensaios preparatórios de obras publicadas ou não, 8 entre outros apontamentos e rabiscos que preenchem os vários cadernos do filósofo.

De fato, tendo em vista a diversidade desse material e o seu caráter inacabado, dificilmente se poderia tomá-lo como a explicitação final do pensamento do filósofo. Contudo, isso não significa retirar dele a sua importância, mas dimensioná-la, considerando, por exemplo, a sua utilidade para compreender, por exemplo, o modo como esse pensamento se produz, acompanhando o exercício de escrita e de reescrita do filósofo e ensaiando uma espécie de genealogia do texto publicado. Além disso, esse material pode oferecer indícios desse pensamento e de variações sofridas por ele, ainda que neles não se façam presentes os recursos estilísticos que Nietzsche imprime em seus livros, nos quais vêm à tona o filólogo e o cuidado com uma linguagem que no geral ultrapassa a função informativa ou constatativa, assumindo, conforme o caso, o caráter performativo, provocativo etc.9.

Tendo esse dimensionamento no horizonte, serão tomados neste estudo algumas anotações sobre o niilismo, em parte para aferir em parte o estatuto desses apontamentos, em grande parte confrontando a edição da KSA10 com a da KGW IX11, em parte para avaliar a possibilidade de identificar os movimentos de pensamento do filósofo sobre o niilismo que ficaram registrados nesse material. Um estudo que deve ser retomado posteriormente num cauteloso confronto desse material com a obra publicada.

O niilismo nos apontamentos de 1885 e 1886

No conjunto dos escritos de Nietzsche, (incluindo suas cartas), o termo “niilismo” aparece 183 vezes, dessas, apenas 13 são na obra publicada e 3 nas cartas, o restante nos apontamentos do filósofo12. As primeiras menções ocorrem em 1881,13 em uma missiva do mês de março endereçada a Heinrich Köselitz, 14 e em uma anotação do outono daquele ano (AP de 1881,12[57]), 15 sem que ao termo seja conferido o aporte teórico que irá receber no futuro. Depois, em 1882 a palavra aparece, igualmente sem desdobramentos teóricos, num “pequeno prelúdio” (AP de 1882, 2[4]), designando um Budismo, um cansaço, fadiga, algo que seria absolutamente improdutivo para a filosofia. Também em 1884 o termo aparece de forma ainda insulada em uma anotação na qual é tomado como linguagem para o filósofo referir-se a uma “degeneração insana de naturezas elevadas” (AP de 1884, 27[23]). De fato, sua maior ocorrência se dá entre 1885 e 1888, quando aparece entre as principais preocupações do filósofo e ganha um lugar muito especial no conjunto de apontamentos ligados ao projeto literário da obra intitulada (e não levada a cabo) “A vontade de poder: Tentativa de uma transvaloração de todos os valores” (AP de 1885-1886 2[100]).

Tomando essas ocorrências posteriores a 1885, é possível indicar alguns pontos em comum entre elas, algumas linhas as perpassam, além de alguns traços que não ficam claros neles. O primeiro ponto em comum é a ideia de que o niilismo é uma decorrência dos ideais e valores que sustentaram a cultura de forma ampla. Como um fenômeno interno da cultura, o que faz dele “o perigo dos perigos” (FP 1885-1886 2[100]). Ele seria uma consequência “necessária” (AP de 1885-1886 2[100]) das avaliações morais que se teve na cultura ocidental, com destaque para o cristianismo, embora, na anotação em tela o filósofo mencione também outras culturas, como é o caso da indiana e da chinesa, o que não se repete nas próximas ocorrências do tema. Nesse contexto, já aparece também a ideia que será recorrente, de que o niilismo pode tornar-se, nas mãos dos fortes, um instrumento - por exemplo, contra o romantismo e também contra Wagner (AP de 1885-1886 2[101]).

Pouco adiante, a correlação do termo com o cristianismo se acentua, como se verifica no apontamento 2[127], em que o niilismo é referido como algo que se esconde especificamente na moral cristã. Nesse apontamento, em que se tem a famosa frase de que o niilismo seria “o mais sinistro dos hóspedes”, um hóspede que se “coloca à porta”, o fenômeno é descrito como “a recusa radical de valor, sentido e desejo (desejabilidade)”. Um perigo que não teria sua origem em qualquer outro campo, como seria o caso da angústia física, intelectual ou social, mas estaria associado diretamente à interpretação moral cristã. Ele se esconderia nela e ganharia corpo com o seu declínio, quando “o sentido de veracidade, que tinha sido altamente desenvolvido pelo cristianismo, se enoja com a falsidade e mendacidade de toda interpretação cristã do mundo e da história”. A descoberta do caráter interessado desse sentido levaria a um “ceticismo em relação à moral” que culmina na suspeita de que “tudo não tem sentido algum”. O problema seria, então, a partir desse pressuposto, que não se tem apenas a negação do principal fundamento moral da cultura ocidental, mas a conclusão radical de que “todas as interpretações de mundo são falsas”. De um “contragolpe” tem-se a transposição da ideia de que “‘Deus é a verdade’ para a crença fanática de que ‘tudo é falso’”. O que o filósofo chama de “Budismo da ação...” (AP de 1885-1886, 2 [127]), conferindo papéis diferentes para o cristianismo e para o budismo em sua argumentação.

O apontamento em questão, o 2 [127], faz parte de uma proposta de livro que teria por título “O eterno retorno”16 e se apresenta em tópicos a serem desenvolvidos e não propriamente como um texto dissertativo. Nele, em meio a anotações (números rasurados) deixados de lado pelos editores e muitas marcas de reescrita e do trabalho inacabado do filósofo,17 Nietzsche faz referência às tentativas filosóficas de superar o “Deus moral” e às consequências do niilismo nas ciências da natureza de seu tempo, na política etc. Ali o Budismo é associado àquela “nostalgia no nada”, à interpretação da “existência como um erro [e o] erro, portanto, como punição”. Embora sejam poucos os elementos disponibilizados pelo filósofo nesse apontamento para grandes conclusões sobre o tema, é possível diferenciar o budismo do cristianismo, tendo em vista o tema do niilismo, pois o segundo teria “atrás de si um desenvolvimento fundamentalmente moral”, ao passo que o budismo corresponderia a ação derivada da conclusão de que “tudo é falso” e, assim, o que haveria nele seria apenas “moral não superada” (AP de 1885-1886, 2 [127]). Um tratamento do tema que enfatizaria novamente a ideia de que o niilismo seria um fenômeno particularmente associado ao cristianismo, no caso, com consequências análogas ao budismo e que se fazem notar em diversos campos, como é o caso das ciências naturais, da política, da história e da arte. O que o leva a concluir que o que estaria faltando, de fato, seria “uma crítica da moral cristã” (AP de 1885-1886, 2 [127]).

O tema reaparece um pouco mais adiante no mesmo caderno, quando o filósofo apresenta o “plano para o primeiro livro” (AP de 1885-1886, 2 [131]) de uma obra sobre o “Eterno retorno”. Num manuscrito, com mais rasuras e reescritas do que o anterior, além da retomada da ideia de que o cristianismo pereceria por seus próprios pressupostos, tem-se vários propósitos literários que são distribuídos em capítulos, dentre os quais ganha relevo o objetivo de apontar o surgimento e fazer uma crítica das avaliações morais. Numa retomada da ideia de que uma moral - a cristã - teria produzido aquela “vontade de verdade” que teria levado à “desvalorização dos valores vigentes até aqui” e a uma forma de budismo europeu (AP de 1885-1886, 2 [131]).

O niilismo no manuscrito “Lenzer Heide”

O manuscrito de Nietzsche mais conhecido sobre o tema do niilismo encontra-se no caderno de anotações N VII 3,18 no mesmo em que vemos alguns apontamentos relativos à “Genealogia da moral” (AP de 1886, 5[40]), além de anotações riscadas pelo filósofo. Como se observa na foto abaixo, o manuscrito (com a transcrição da KGW IX ao lado), precedido de algumas anotações descartadas pelo filósofo, é identificado pelo local onde foi escrito “Lenzer Heide”, pela data 10 de junho de 1887 e pelo título “Der europäische Nihilismus” (O niilismo europeu).

“Extrato do caderno de Nietzsche” N VII 3, p. 12 e 13
Figura 1
“Extrato do caderno de Nietzsche” N VII 3, p. 12 e 13
Fonte: Original e transcrição em KGW IX, Vol. 3, p. 12 e 13.

Observando-se o manuscrito, em confronto com a sua versão na edição da KSA, abaixo, 19 ao lado da tradução para o português da KSA20, é possível notar a diferença entre o material deixado por Nietzsche e o publicado na edição da KSA. Por exemplo, no caderno de Nietzsche, o apontamento 5[70], com algumas notas sobre “Filosofia da história”, encontra-se 5 páginas antes do manuscrito Lenzer Heide (5[71]), em meio a anotações sobre a finança pessoal do filósofo, ao passo que na KSA aparece imediatamente antes. O que induz à ideia, na KSA, de que os apontamentos do filósofo estariam na mesma página e seriam bem mais elaborados do que são de fato.

Fragmento do Manuscrito “Lenzer Heide”
Figura 2
Fragmento do Manuscrito “Lenzer Heide”
Fonte: Nietzsche, 2013, p. 178.

Nesse sentido, mesmo utilizando uma tradução que incorpora as correções feitas a ele na edição eKGWB 21 que, por sua vez, apoia tais correções na KGW IX, não se pode perder de vista que se trata de um manuscrito que, mesmo sendo claro, não teve o acabamento que Nietzsche confere aos seus escritos publicados, e também que se trata de um texto que o filósofo optou por não publicar.

Tais ressalvas, contudo, não devem levar ao descarte do texto, sob o risco de se perder importantes manifestações do filósofo sobre seu pensamento e sobre a temática desenvolvidos na obra publicada desse período, em especial na Genealogia da moral. Nesse sentido, é importante notar que o manuscrito é datado de 10 de junho de 1887, pouco antes do início da escrita da sua Genealogia, que teria sido iniciada, segundo o filósofo, “por volta de 10 de julho”, num texto que cresceu rapidamente e teve seu envio para o editor (pela segunda vez) em 30 de julho22. Sem esquecer que a terceira dissertação da Genealogia, enviada para o editor no dia 28 de agosto23 com a ressalva de que Nietzsche teria “mais a dizer do que [aquilo que] se encontraria”24 nela, dialoga diretamente com o manuscrito em questão.

Se na terceira dissertação da Genealogia o tema do niilismo aparece entrelaçado com a crítica ao cristianismo e em correlação com o tema do ideal ascético e do ressentimento, 25 no texto que Nietzsche guardou para si, o niilismo ocupa lugar central. O manuscrito tem início com os benefícios oferecidos pela “hipótese moral cristã”, que seriam três: “conferiu ao homem um valor absoluto em oposição à sua pequenez [...] na corrente do perecer”; ofereceu um sentido de perfeição ao “mal”; e estabeleceu um “conhecimento adequado” (AP de 1886, 5[71, 1]) sobre valores absolutos. Retoma, em seguida (AP de 1887, 5[71, 2]), a ideia de que a moral fomentou uma “veracidade” que depois volta-se contra ela, revelando o caráter “interessado” dessa moral e mostrando que ela é uma “longa e encarnada mentira” (AP de 1887, 5[71, 2]). A partir deste ponto, expõe o processo de dissolução dos valores e a impossibilidade de estabelecer novos valores. Assim, o cristianismo teria sido um antídoto ao “primeiro niilismo”, (ao “niilismo suicida”, conforme se lê na Genealogia da moral - III 28), mas esse antídoto poderia tornar-se desnecessário, em função da “potencialização do valor do homem” que Nietzsche reconhece em seu tempo. “‘Deus’ [seria, então] uma hipótese demasiado extrema” (AP de 1887, 5[71, 3]). Contudo, segue o texto, posições extremas são alternadas por posições extremas, assim,

quando a crença em Deus e numa ordenação essencialmente moral não pode mais ser sustentada [...] o niilismo aparece, então, não porque o desprazer com a existência seria grande, mas porque o homem tornou-se desconfiado em relação a um “sentido’ no mal, e na própria existência”.

Findada aquela interpretação, que foi tomada como “a” única possível, tudo parece deixar de ter sentido. Tem-se a sensação do “em vão” (AP de 1887, 5[71, 4]).

Diferentemente daquele “primeiro niilismo”, o que se tem, então, é o niilismo decorrente daquela derrocada dos valores mais fundamentais da existência. Tal “em vão” seria, segundo o filósofo, “o caráter de nosso niilismo atual” (AP de 1887, 5[71, 5]). Um niilismo da desconfiança frente a todos os valores. Um pensamento paralisante, que Nietzsche propõe que seja levado às suas últimas consequências (6) por meio da hipótese do “eterno retorno”. O que consistiria em pensar a existência como ela é, sem sentido ou objetivo, “o nada (o ‘sem sentido’), eternamente!” (AP de 1887, 5[71, 6]). Tal forma de niilismo, sem uma meta ou “objetivos finais”, ele associa novamente a uma “forma europeia do budismo”. (AP de 1887, 5[71, 6]). Porém, se a partir da moral é possível uma posição afirmativa das coisas, o fato é que a superação do Deus cristão, seção 7, não teria sido acompanhada de uma superação da moral cristã. Se foi retirado o fim do processo, não se teve a afirmação de “cada um dos momentos [desse processo]” (AP de 1887, 5[71, 7]). “Cada instante da existência universal” deveria ser sentido pelo indivíduo “como seu traço característico” e, assim, aprovado “com prazer” (AP de 1887, 5[71, 8]). Na seção 9, Nietzsche retoma sua crítica à moral cristã não mais por sua meta, mas, então, pelo modo como ela “protegeu a vida do desespero e do salto no nada”, voltando-se contra a vontade de poder característica dos “dominadores”. Neste ponto, é evidente a proximidade do texto com a argumentação que, na Genealogia III, se faz por meio da figura do sacerdote ascético. Do mesmo modo como aparece na Genealogia, também no manuscrito fica claro que essa moral, apesar de sua aparente posição contrária ao poder, encobre igualmente uma vontade de poder. Também ela busca o domínio e, nesse sentido, não se encontra numa posição superior em relação aos “dominadores” (AP de 1887, 5[71, 9]).

Diferentemente do cristianismo, para Nietzsche é o “o grau de poder” que deve ser estimado, seção 10, e não a valoração metafísica que estaria em desacordo com esse princípio e com a “hierarquia do mundo”. Contudo, também no manuscrito, como no texto publicado (GM), Nietzsche não nega o papel da moral cristã em proteger “os malogrados” (AP de 1887, 5[71, 10]) do niilismo, pois, se fosse retirada a crença na moral, eles sucumbiriam. Esse sucumbir seria, contudo, seção 11, um “fazer-se sucumbir”, uma vontade de autodestruição que se apresenta por meio de vários sintomas tais como “a autovivissecção, o envenenamento, a embriaguez, o romantismo”, mas, sobremaneira pelas intervenções que fazem “dos poderosos inimigos mortais”. Uma vontade de destruição, voltada contra si mesmos e contra seus “inimigos”, que expressa uma “vontade de nada” (AP de 1887, 5[71, 11]). O que também na Genealogia aparece como os medicamentos sacerdotais, que terminam por envenenar a vida, comprometendo a saúde do homem mais do que a doença tratada por eles.

Também nesse fragmento Nietzsche designa como “a forma europeia do budismo” aquele “fazer-não” dos malogrados que se tem “depois que toda a existência perdeu seu sentido” (AP de 1887, 5[71, 12]). Nesse contexto, contudo, em que se diferencia a “resignação” do que seria uma forma ativa de niilismo, parece haver uma ambivalência em relação ao budismo, que é aproximado de uma forma ativa de niilismo. Uma forma de niilismo que pressupõe um elevado grau de cultura espiritual e “um bem-estar relativo”, além do ceticismo voltado “contra os filósofos”, após a longa luta de opiniões. Traços que se encontrariam, segundo o filósofo, no ambiente “no qual Buda surgiu” (AP de 1887, 5[71, 13]).

Na seção 14, aberta com a pergunta “o que significa hoje ‘malogrado’?”, Nietzsche retoma a perspectiva fisiológica para avaliar aquele “fazer o não”, aquele momento de “niilismo e prazer na destruição”. Ele afirma, então, que uma tal crise tem “seu valor” na medida em que “purifica”, em que permite identificar tarefas e uma “hierarquização das forças, do ponto de vista da saúde” (AP de 1887, 5[71, 14]). A seção 15, ainda com o foco no presente, é aberta com a pergunta pelos que se revelarão “os mais fortes”, mas também os “mais comedidos”, ou seja, os que “não têm necessidade de artigos de fé extremos, os que não apenas admitem, mas amam uma boa porção de acaso e absurdo, os que podem pensar o homem com uma redução significativa de seu valor, sem se tornarem-se com isso pequenos e fracos”, que podem pensar o homem sem aquela sobrevalorização artificial do cristianismo. A menção a tais homens, designados também como “os mais ricos de saúde”, remete àqueles que representariam “com orgulho consciente a força atingida pelo homem” (AP de 1887, 5[71, 15])26. Um homem seguro de seu poder, do poder produzido no âmbito daquela tensão, ao qual o filósofo apresenta a questão que fecha o manuscrito: “como um tal homem pensaria no eterno retorno?” (AP de 1887, 5[71, 16]).

Um olhar para o futuro a partir do passado

O tema do niilismo reaparece em novos planos de obra nos apontamentos produzidos em 1887, como é o caso do título “Para a história do niilismo europeu” (AP de1887, 6[26]), que não tem propriamente um desenvolvimento, mas indica um propósito que é retomado mais adiante, 7[8], como o “caráter fundamental, o problema trágico de nosso mundo moderno”, um problema que teria se tornado consciente em Nietzsche (AP de 1887, 7[8])27.

Mais adiante, em um caderno de 1887, o W II 1, muito rasurado e com marcas de reescrita, no qual predominam vários planos literários do filósofo, o niilismo aparece, por exemplo, no tópico que possui um título várias vezes utilizado por Nietzsche: “Para a história do niilismo europeu” com a retomada da ideia de que o niilismo seria uma “consequência necessária dos ideais até aqui: absoluta ausência de valor” (AP de 1887, 9[1]). Nas anotações deste caderno é reiterada também a ideia do niilismo como um “estado normal” (AP de 1887, 9[35]), como a designação para a “falta a meta; falta a resposta à pergunta ‘por que’?”, algo que se desprende do fato de “que os valores mais elevados se desvalorizam” (AP de 1887, 9[35]). O niilismo é, então, considerado de duas formas opostas, como sinal de aumento do poder do espírito e, nesse caso, como um “niilismo ativo” (o termo aparece à margem do texto), que se traduz preferencialmente como uma “forca de destruição”. O seu oposto seria o “niilismo passivo” ou “cansado”, caracterizado como um esgotamento que não ataca mais, e que teria como sua “forma mais célebre, o budismo” (AP de 1887, 9[35] - destaque nosso). Ao contrário daquela força do espírito que se permite colocar além dos artigos de fé, o niilismo passivo corresponderia à falta de força para estabelecer novamente, “de forma produtiva, uma meta, um por que, uma crença” (AP de 1887 9[35]). Nesse mesmo apontamento, numa passagem com vários escritos sobrepostos, o filósofo admite que tal “hipótese” teria “por pressuposto” que “não existe qualquer verdade, que não existe qualquer constituição absoluta das coisas, nenhuma ‘coisa em si’”. O que já seria, por si, “um niilismo e, na verdade o mais extremo”. O valor não possui uma “realidade”, ele é sintoma da força que o determina. Como no caso da linguagem, (GC 354) o estabelecimento de valores corresponde a uma forma de “simplificação” feita “com a finalidade da vida” (AP de 1887 9[35]).

No mesmo caderno, W II 1, numa anotação com muitas rasuras, frases inacabadas e partes abandonadas (e não incorporadas na KSA), o movimento que produz o niilismo é considerado a partir da pergunta “para que?” (wozu?), cuja importância é conferida pelo hábito de se colocar uma meta exterior ao mundo para conferir sentido a ele, independentemente das formas que aquela “autoridade sobre-humana” possa assumir. Para o filósofo, a pergunta pelo “para que” terminaria num agnosticismo, num movimento fatalista em que a vida, “desprovida de valor” seria finalmente suspensa (aufhebt)” (AP de 1887 9[43]).

Ainda nesse caderno, W II 1, num conjunto de notas “para a terceira dissertação” (AP de 1887 9[44]), após algumas observações rasuradas, tem-se novamente apontamentos esparsos para o tema da “origem do niilismo”. No caso, o filósofo afirma que na falta de uma “espécie superior”, a “massa”, o “rebanho” não apenas determina os valores, mas, após perder a modéstia, “infla suas necessidades como se fossem valores cósmicos e metafísicos” (AP de 1887 9[44]). Em outra anotação, após referir-se aos “niilistas” como aqueles que julgam que “o mundo, como ele é, deveria não ser e o mundo, como deveria ser, não existe”, Nietzsche retoma a ideia de diferentes possibilidades para o conceito de niilismo. “O niilismo, como um fenômeno normal, pode ser um sintoma de força crescente ou de fraqueza crescente”. Por um lado, pode ser sinal do crescimento da “força para criar, para querer” e a não dependência daquelas “inserções de sentido”, por outro lado, de que a “força para criar sentidos se esvai” e que a desilusão se torna um “estado dominante” (AP de 1887 9[60]).

Mais adiante, imediatamente após indicar a catástrofe niilista que colocaria fim à cultura na terra como “o segundo budismo” (AP de 1887 9[82]), no plano de um “segundo escrito polêmico”, Nietzsche retoma o propósito de abordar a moral como a “circe dos filósofos” e “a causa do pessimismo e do niilismo...” (AP de 1887, 9[83]). Nesse caderno, como se verificou em outros anteriores, a menção à obra “A vontade de poder: Tentativa de uma transvaloração de todos os valores” traz consigo o tema do niilismo: no primeiro livro, onde se tematizaria a “consequência dos valores supremos até aqui”; no segundo, dedicado à crítica desses valores supremos; no terceiro, cujo título seria “A autossuperação do niilismo, tentativa de dizer sim a tudo aquilo que até aqui foi negado”; e também no quarto designado pela expressão “superadores e superados. Uma previsão” (AP de 1887, 9[164])28.

No caderno seguinte, W II 2, em meio aos planos de obra que predominam nas anotações desse período, aparece a expressão “niilismo radical” para traduzir “a convicção de uma absoluta insustentabilidade da existência” e também o entendimento (Einsicht) de que “não temos o menor direito de estabelecer um além ou um em-si das coisas”. A crença na moral levaria, em seu desdobramento, à condenação da existência. O que seria, em última instância “a lógica do pessimismo até o derradeiro niilismo” (AP de 1887 10[192]).

Num texto do caderno W II 3, também de 1887, considerado um dos mais elucidativos sobre o niilismo dos cadernos do filósofo, embora seja permeado de correções e rasuras, tem-se a concepção de um niilismo entendido como um “estado psicológico”. O niilismo é, então, associando ao desmoronamento dos três pilares da metafísica: as ideias de meta, de totalidade e de veracidade. No primeiro caso, o niilismo corresponde à perda de ânimo que se verifica naquele que buscou para os acontecimentos um “sentido” que “não está aí”. Nesse caso, o niilismo é “a concretização da longa dissipação da força, a agonia do ‘em vão’, [...] a vergonha diante de si mesmo, como se tivéssemos nos enganado por um tempo longo demais...” (AP de 1887, 11[99]). No segundo, o niilismo se desdobra a partir da suposição de “uma totalidade, uma sistematização, mesmo uma organização em todo acontecimento e sob todo acontecimento”. Uma suposição produzida a partir da perda da fé em seu próprio valor pelo homem, que passa a exigir uma representação de conjunto, uma unidade, e a sua conexão com uma unidade que, de fato, não existe. No terceiro caso, o estado psicológico de niilismo tem relação com a ideia de um “mundo verdadeiro”, disposto pelo homem frente ao mudo do devir e à insegurança produzida por ele. “Contudo [segue o filósofo], logo que o homem descobre como esse mundo [verdadeiro] só foi edificado por necessidades psicológicas e que ele não tinha qualquer direito de fazê-lo, surge a última forma de niilismo, que encerra em si a descrença em um mundo metafísico - que proíbe a crença em um mundo verdadeiro”. Neste ponto, Nietzsche considera a possibilidade, para esse homem, de admitir o devir como a única realidade e se proibir atalhos para outros mundos e divindades, porém, o grande problema é que tal homem, para ele, “não suporta este mundo, que já não quer negar...”. Em resumo, o que se alcança com os conceitos de meta, unidade e verdade, que “se ligam a um mundo inteiramente fictício”, é a “ausência de valor”. Todas as coisas às quais se atribuiu valor são desvalorizadas, “o mundo parece tornar-se sem valor...” (AP de 1887 11[99]). Nesse mesmo apontamento, ao lado da questão pela origem da crença nessas categorias, Nietzsche se pergunta pela possibilidade de que o mundo (das All) não ser mais depreciado, tendo em vista justamente a desvalorização dessas três categorias e que seria “uma ingenuidade hiperbólica a ideia de o próprio homem ser tomado como a meta e o valor das coisas...” (AP de 1887, 11[99]).

Retomando seus projetos literários, num novo esboço de prefácio, Nietzsche volta a fazer referência à ascensão do niilismo em tom profético, como um evento futuro, do qual já se teria sinais em seu tempo. Trata-se de uma grande crise de valores que culminaria naquela falta de crença nos valores em geral. A pergunta que se coloca, então, é, novamente, se o homem terá forças para se restabelecer a partir de tal crise, “se ele se tornará senhor dessa crise” (AP de 1887, 11[119]). Nesse mesmo sentido, reafirma que o niilismo “não é apenas uma consideração sobre o ‘em vão’”, mas abre a possibilidade de uma participação ativa nesse processo (AP de 1887, 11[123]).

A pergunta pelos desdobramentos possíveis da crise dos valores recoloca as anotações sobre o niilismo no contexto de uma narrativa histórica futura, como vimos, mas também passada. Uma ideia que não é tão acentuada na obra publicada - em relação ao niilismo - e que se torna o título de vários apontamentos pessoais do filósofo. Esse é o caso do 11[150], do mesmo caderno, W II 3, intitulado “Para a história do niilismo europeu”, que reúne algum material nesse sentido e a indicação de alguns “períodos” dessa história, a começar pelo “período daobscuridade”, que se caracteriza pelos esforços no sentido de “conservar o antigo e não permitir a chegada do novo”. Em seguida haveria o “período daclaridade”, quando se compreende a antiga forma de valoração, que seus valores nasceram da vida declinante, que são hostis à vida, “nascidos da décadence”, e também que os valores novos nascem de uma “vida ascendente”. Nesse período, quando o “o conhecimento da natureza e a história” não permitem mais certas esperanças, tem-se o reconhecimento, contudo, de que também não se é forte o suficiente para o novo. Nietzsche lista ainda outros períodos, mas somente com tópicos, sem um desenvolvimento que permitiria compreendê-los ou às possibilidades que se abririam a partir da lógica do niilismo.

Em uma nova anotação, 11[361], com outras tantas marcas de rasura e reescrita, que se encontra na página 35 do mesmo caderno, W II 3, Nietzsche acentua a correlação entre niilismo e compaixão e entre a compaixão e Schopenhauer. Nessa anotação, ele afirma que, “a partir de seu niilismo, Schopenhauer tinha razão em manter apenas a compaixão como virtude: com ela fomenta-se de fato e da maneira mais intensa possível a negação da vida”. Trata-se, assim, segundo Nietzsche, de uma virtude que se contrapõe às “leis naturais” e que “destrói a espécie na medida” em que coloca em destaque os traços próprios do fraco e, desse modo, “nega a vida”. Reforçando seu argumento, Nietzsche afirma que os outros animais se mantêm de um modo mais saudável justamente “porque a compaixão não lhes diz respeito” (AP de 1887, 11[361]).

A perspectiva histórica de abordagem do niilismo e a indicação do problema em termos futuros é retomada em outra anotação feita também à guisa de prefácio. Trata-se do apontamento 11[411], do mesmo caderno W II 3, 29 que faz menção novamente ao “advento do niilismo”, como uma catástrofe, que diz respeito aos “próximos 200 anos”. O niilismo é tratado, então, como um desdobramento necessário de uma história, como um fenômeno cujos sinais já poderiam ser notados no tempo de Nietzsche. Nesse mesmo apontamento, o filósofo se apresenta como “o primeiro perfeito niilista da Europa”, justamente por ter vivido o niilismo em si, a experiência da falta de valores que decorre do ocaso do Deus cristão, até seu termo30. Ainda no que se refere ao niilismo em termos futuros, e à sua superação, Nietzsche utiliza a ideia de um “contramovimento” (Gegenbewegung), que corresponderia a um “niilismo completo”, pressupõe “logicamente e psicologicamente” o niilismo e, por isso mesmo, deve surgir “a partir dele”. Novamente, o termo niilismo, evidentemente polissêmico, indica um fenômeno necessário que retira as “derradeiras consequências” de “nossos valores atuais”. Reafirmando, assim, que “o niilismo é a lógica, levada até o seu termo, dos nossos grandes valores e ideais” e também que “é preciso que vivamos o niilismo para, então, desvelar qual era de fato o valor desses ‘valores...” (AP de 1887-1888, 11[411]). Interessante notar que o “niilismo completo”, que corresponde a retirar do niilismo suas derradeiras consequências, embora seja um fenômeno futuro, para os “próximos 200 anos, ele pode ser também um evento atual, na medida em que o próprio Nietzsche performa a figura do niilista perfeito.

O tema reaparece também no caderno W II 4, de 1887 - 1888, em sumários preparatórios da obra “A vontade de poder”, no âmbito da crítica ao cristianismo e tendo em vista as possibilidades que se desdobrariam a partir dele. O mesmo que se verifica no caderno W II 5, de 1888, por exemplo, na anotação 14[9], em que o tema é retomado mais uma vez a partir da perspectiva de um “niilismo da ação”, como algo que deveria ser fomentado. Nessa anotação, o cristianismo e o pessimismo são pensados em conjunto como expressões do fato de “‘estarmos prontos (reif) para não ser; [de que] para nós é racional, não ser”. O papel assumido pelo cristianismo de não encorajar a destruição, a autodestruição, obstaculizaria o “grande niilismo”. O que evidencia a retomada da crítica aos meios empregados pelo cristianismo, mas também da tese de que o cristianismo não poderia ser condenado de forma severa, pois ele impediu aquele niilismo que se configura como o suicídio. O que fez, porém, substituindo o suicídio por um “suicídio lento” (AP de 1888 14[9]), por “uma vida mesquinha e pobre, mas durável, cada vez menor, uma vida burguesa, medíocre e completamente ordinária” (AP de 1888 14[9])31.

Também a crítica à compaixão, entendida como uma “desagregação da vontade” (AP de 1888 17[6]) e relacionada a Schopenhauer reaparece nos apontamentos de 1888, no caderno W II 7, por exemplo. Nesse contexto, em que Nietzsche contrapõe a vontade de nada e a vontade de vida, ele afirma que “o instinto niilista diz não; sua mais branda afirmação é a de que o não ser é melhor do que o ser, que a vontade de nada tem mais valor que a vontade de vida”. Desse modo, a aspiração pelo nada terminaria por reprovar a vida desprovendo-a de valor. Segundo Nietzsche, “essa foi a grande falsificação [Falschmünzerei] de Schopenhauer” que, movido pelo espírito do niilismo e inspirado por essa forma de valorar que nega a vida, “introduz todas as coisas, para as quais ele atribui ainda instintivamente valor, na justificação de uma tendência niilista” (AP de 1888, 17[7]).

Por fim, no caderno W II 8, de 1888, o último com menção ao tema do niilismo nos apontamentos do filósofo, ele contrapõe ao cristianismo o seu O Anticristo, indicando o último como a redenção do primeiro, o que permite entender aquele livro de Nietzsche como um desdobramento interno do cristianismo, um desdobramento que levaria às últimas consequências a forma de valoração do cristianismo e a ideia de que o niilismo é sua “consequência necessária” (AP de 1888 22[24])32.

Considerações finais

De fato, uma breve incursão pela oficina de trabalho de Nietzsche conduz a algumas constatações - e não propriamente conclusões - sobre o material relativo ao niilismo que se encontra nela. A primeira dessas constatações é que se trata de um material inacabado, rasurado e abandonado. A segunda, constatação é que aquilo que foi disponibilizado na KSA corresponde a recortes, seleções de textos, ao certo, justificadas, mas não explicitadas desse modo ao leitor. Um problema que tem suas origens no uso dos textos inéditos do filósofo em publicações indevidas, como é o caso da obra “A vontade de poder”, mas que se prolonga mesmo quando os manuscritos são recolocados em ordem cronológica, mas ainda com um estatuto de fragmento e, até mesmo, de aforismo. O que cria uma expectativa de se encontrar nos apontamentos do filósofo mais textos acabados do que de fato se tem neles e até mesmo aforismos nos quais algumas teses estariam mais sistematizadas do que na obra publicada. Algo que pode conduzir a uma leitura pouco produtiva de um filósofo que conferia uma importância muito grande ao estilo, tanto na correlação entre a forma e o conteúdo quanto no cuidado com o leitor. Algo que se verifica, por exemplo, no modo como ele emprega certos tipos psicológicos (EH I 7), ou como performa ele mesmo uma transvaloração dos valores (EH I), ou ainda no modo como apresenta teses de forma provocativa, envolvendo o seu leitor e produzindo nele um “impulso” (KGW IX 10, p. 16) e não apenas fazendo um uso constatativo ou denotativo da linguagem.

Além dessas constatações que dizem respeito à forma, a incursão naquela oficina evidencia também alguns traços recorrentes daquele material, a começar por certas regularidades que sinalizam para os desdobramentos do niilismo, tendo em vista, por exemplo, seu caráter necessário na cultura ocidental, marcada pelo cristianismo e pela moral cristã; as peculiaridades que ele assume nessa cultura, diferenciando-se, nesse sentido, por exemplo, do budismo; e, por fim, as possibilidades futuras que se abrem a partir dele. Evidencia-se, também, caráter ambíguo que o termo assume em alguns cadernos em comparação a outros e também à obra publicada. Aspectos inda pouco explorados, tendo em vista o volume de material disponibilizado na KGW IX, e as possibilidades que se desdobram a partir dela.

Referências

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PASCHOAL, A. E. Niilismo e ressentimento na terceira dissertação da Genealogia da moral. Sofia, Vitória, v. 8, n. 02, p. 219-231, jul./dez. 2019.

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ZATTONI, R. S. Ecce homo como auto-bio-grafia. Tese (Doutorado em xxx) - Universidade Federal do Paraná, 2021.

Notas

2 “[...] einem rechten Schreibthier-leben”. Carta a Franziska Nietzsche de 1 de setembro de 1888. KSB 8, p. 431.
3 A classificação dos escritos segundo essas categorias encontra-se em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB. Acesso em outubro de 2021.
4 As principais edições anteriores da obra de Nietzsche, tendo em vista a obra A vontade de poder, em alemão foram a Großoktavausgabe, organizada entre 1894 e 1913, na qual se destaca justamente a obra A vontade de poder. A edição organizada por Karl Schlechta, entre 1954-1956, crítica às falsificações realizadas por Elizabeth F. Nietzsche, que reorganiza parcialmente os fragmentos da A Vontade de Poder e os publica sob o título “Aus dem Nachlaß der Achtzigejahre”, mas ainda não faz uma publicação seguindo a ordem cronológica dos fragmentos. Por fim a edição organizada pelos italianos Colli e Montinari, que desfaz definitivamente a ideia de que A Vontade de poder seria uma obra e publica os fragmentos em ordem cronológica e apenas como fragmentos.
5 SPREAFICO, 2008, p. 14.
6 CF.: HOUAISS, A. e VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
7 Nesse sentido, o próprio Montinari aponta que já ocorreram confusões entre o que seriam registros do próprio filósofo e anotações feitas a partir de leituras de outros autores (MONTINARI, 1997, p. 87).
8 É o caso, por exemplo, das inúmeras anotações que são reescritas e chegam ao texto final da Genealogia, ao lado das quais encontram-se tópicos não publicados. Ou ainda, as versões anteriores de Ecce homo, que permitem o estudo detalhado da reescrita dessa obra, como faz Romano Zattoni, em seu estudo intitulado Ecce homo como auto-bio-grafia (2021), com grande ênfase no papel da “reescrita” no trabalho filosófico de Nietzsche.
9 Tais aspectos não se fazem presentes nos apontamentos do filósofo que apresentam, além do caráter fragmentário, em alguns casos, o formato de afirmações categóricas, o que não se coaduna com o estilo de Nietzsche. Conferir, a respeito: TONGEREN, 2012, p. 212.
10 NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. 15 Bände. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: de Gruyter, 1988.
11 NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Gesamtausgabe. Abteilung. IX. Der späte Nietzsche. Manuskriptedition des Nachlasses 1885-1889. Herausgegeben von Marie-Luise Haase und Michael Kohlenbach. Berlin, New York: Walter de Gruiter, 2001.
12 Tendo em vista a edição crítica organizada, digitalizada e disponibilizada por Paolo D’Iorio. Cf.: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB.
13 Não estamos considerando neste momento o apontamento 4[108] de 1880, sobre o niilismo russo, ao qual retornaremos posteriormente.
14 Carta a Heinrich Köselitz de 13/03/1881. KSB 6, p. 68.
15 Faremos as citações indicando o número do fragmento que se encontra tanto na edição da KSA, quanto da KGW IX, utilizando esta última, quando for o caso, checar as condições do material e possíveis erros de transcrição. Em se tratando de citação direta da KGW IX, faremos referência ao volume e à página, no caso, do caderno de Nietzsche. Vale notar que uma transcrição direta da KGW IX é praticamente impossível, devido ao modo como o material foi produzido. Propositadamente, faremos a referência às anotações de Nietzsche como AP (apontamento pessoal) e não como FP (fragmento póstumo), como se convencionou designar as anotações do filósofo em seus cadernos.
16 KGW IX, Vol. 5, caderno W I 8, p. 94 - deve-se observar que essa proposta de obra aparece na KSA algumas páginas adiante como a AP 2[129], ao passo que no caderno do filósofo o plano de obra vem antes das anotações que podem, assim ser entendidas como parte do plano da obra em pauta.
17 Como se observa pela transcrição desse apontamento no “fac símile” do caderno do filósofo, páginas 95 e 96, na KGW IX, volume 5.
18 KGW IX, Vol. 3, p. 13 a 24. Deve-se observar o destaque que ganha esse fragmento e o caderno que o contém, o NVII 3, com muitos apontamentos sobre A Vontade de Poder, que foi transcrito no primeiro momento dos trabalhos da KGW IX, embora seja um fragmento posterior, datado de 1887, ao passo que outros manuscritos de 1885 a 1886, com muitas anotações preparatórias para obras publicadas, foram publicados nos volumes 4 e 5 da KG W IX. Com o detalhe de que na versão eletrônica da KGW IX, a ordem foi acertada e a transcrição do caderno N VII 3 se encontra após a série de cadernos W I 1 -7 (vol. 4) e W I 8, vol. 5 da KGW IX impressa.
19 NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. 15 Bände. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: de Gruyter, 1988. Vol. 12, p. 210-211.
20 NIETZSCHE, F. Fragmentos póstumos. Vol. VI. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forenze Universitária, 2013, p. 178.
21 Utilizamos para esse fragmento póstumo a tradução de Clademir Araldi, publicada em Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 2, , jul./dez. 2013, p. 249-255.
22 Carta a Heinrich Köselitz de 08 de agosto de 1887. KSB 8, p. 123. Cf.: K. P. Janz, 1993, Vol. II, p. 541.
23 Cf.: carta a Heirich Köselitz de 15 de setembro de 1887. KSB 8, p. 154. Cf.: STEGMAIER, 1994, p. 34.
24 Carta a Heirich Köselitz de 15 de setembro de 1887. KSB 8, p. 154.
25 Cf.: PASCHOAL, 2019.
26 Esse tema, caro para o filósofo, é retomado por ele, com contornos muito específicos, no início da segunda dissertação da Genealogia da moral, com a menção à possibilidade de um “indivíduo soberano” (GM II 2) justamente como decorrência da longa história moral do homem. A correlação entre os dois textos, contudo, segue aberta neste momento.
27 O grupo de apontamentos 6 do caderno Mp XIV (entre as páginas 416 e 420), escritos entre o verão de 1886 e a primavera de 1887, e 7, dos cadernos Mp XVII e Mp XVIII, do final de 1886 até a primavera de 1887, ainda não foram compilados na KGW IX (até 2020).
28 Plano semelhante ao que aparece um pouco antes no apontamento 9[127].
29 Nesse caderno, que como vários outros é preenchido do final para o começo, na página 5, tem-se uma primeira versão do texto marcado por muitos borrões e na 4 a sua reescrita (mais legível, mas ainda com borrões e marcas de correção).
30 Cf. também, a respeito, KGW IX 9, vol. 9 - Caderno W II 7, p. 146.
31 No caderno W II 5, entre a expressão “suicídio lento”, na página 184, e a frase “suicídio, ou seja, uma vida mesquinha...”, na página 185, há um hiato que é preenchido por uma série de notas à guisa de “crítica ao cristianismo”. Na edição da KSA, a reunião das duas expressões em sequência cria a impressão de um texto único e mais próximo de “pronto” do que de fato se tem nas notas do filósofo.
32 No caderno W II 8, p. 73, lê-se “dos filósofos”, onde na KSA (13, p. 594) encontra-se “da filosofia”.

Autor notes

a AEP é Doutor em Filosofia, e-mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br
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