Artigo
A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888*
The persistence of nihilism in Nietzsche’s 1888 writings
A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888*
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 44-62, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 18 Outubro 2021
Aprovação: 26 Maio 2022
Resumo: Procuro mostrar neste artigo que o niilismo persiste como um problema sem solução nos escritos de Nietzsche até agosto de 1888. O niilismo como vontade de nada emerge como um problema, principalmente no escrito O niilismo europeu e na terceira dissertação da Genealogia da moral, ambos de 1887. Investigarei como Nietzsche ainda permanece enredado ao problema da verdade, após vincular o niilismo ao horror vacui. Defendo que as soluções propostas no ano de 1888 giram em torno de propostas diversas da transvaloração dos valores, mas não conseguem romper o círculo da “magia do extremo” que anima o pensamento do Filósofo Solitário. Na arte estaria a saída mais promissora, mas o Filósofo da Transvaloração não a radicaliza até as suas últimas consequências.
Palavras-chave: Niilismo, Vontade de nada, Horror vacui, Transvaloração, Arte.
Abstract: I intend to show in this article that nihilism persists as an unsolvable problem in Nietzsche’s writings until August 1888. Nihilism as a Will to Nothingness emerges as a problem, especially in the writing “The European Nihilism” and in the third dissertation on the Genealogy of Morals, both from 1887. I will investigate how Nietzsche still remains entangled in the problem of truth, after linking nihilism to the horror vacui. I argue that the solutions proposed in 1888 revolve around different proposals for the transvaluation of values, but they cannot break the circle of “magic of the extreme” that animates the Solitary Philosopher’s thought. In art would be the most promising way out, but the Philosopher of Transvaluation does not radicalize it to its ultimate consequences.
Keywords: Nihilism, Will to Nothingness, Horror vacui, Transvaluation, Art.
Niilismo como vontade de nada
É no ano de 1887 que Nietzsche mais desenvolve seus pensamentos acerca do niilismo. Ele concentra as investigações dos anos anteriores, tendo como fio condutor a “história do niilismo europeu”. Essa longa história do niilismo é desenvolvida principalmente nos escritos póstumos, através de três fases: o niilismo incompleto, o niilismo completo (que abarca o niilismo passivo e o ativo) e o niilismo extremo1. É também no ano de 1887 que o niilismo possui um lugar destacado numa obra publicada, a saber, na Genealogia da moral2. A investigação do niilismo na figura do sacerdote ascético é um ponto de virada nas investigações de Nietzsche sobre o niilismo, à medida que coloca um contramovimento à vontade de nada. A tarefa afirmativa, ligada à arte e a transvaloração dos valores, é pouco desenvolvida na GM. Do mesmo modo, a análise da complexidade da doença do homem moderno é relegada ao projeto da grande obra que ocupava Nietzsche desde 1885: “Tais coisas serão por mim tratadas em outro contexto, com maior profundidade e severidade (sob o título de ‘História do niilismo europeu’; numa obra que estou preparando: A vontade de poder. Ensaio de transvaloração de todos os valores)” (GM III 27).
Essa obra não foi efetivada, restando projetos e elaborações dispersas sobre os temas principais, inclusive sobre o niilismo. Entretanto, o problema do significado do ideal ascético é tratado com mais profundidade na terceira dissertação da GM. Para entendermos essa profundidade, é preciso retornar ao fragmento de Lenzer Heide, escrito algumas semanas antes da GM.
O fragmento de Lenzer Heide começa com uma afirmação contundente acerca do valor da moral cristã como antídoto de longa duração ao niilismo: a moral impediu que o ser humano se desprezasse e sucumbisse. No ocidente, a moral cristã teria fornecido a única interpretação que teve êxito duradouro nos últimos séculos, desde a consolidação do cristianismo até o tempo de Nietzsche. Essas foram as vantagens por ela trazidas:
Ela impediu que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida, que ele desesperasse ao conhecer: ela era um meio de conservação - in summa: a moral era o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico (FP, 1887, 5[71]).
Será que a moral cristã foi a única interpretação da existência que teve êxito no Ocidente, depois da queda do Império Romano? Outras interpretações, como o estoicismo, o epicurismo e o cinismo, foram cultivadas com êxito relativo nos últimos séculos, apesar da supremacia das várias configurações ascéticas da moral cristã. Temos que perguntar antes: por que tanta preocupação com êxitos duradouros, dada a fluidez de sentido e transitoriedade de tudo o que é humano?
A posição extrema da moral cristã é entendida como “antídoto ao niilismo teórico e prático”. Essa caracterização não está diretamente inserida na história do niilismo europeu, mas é central para compreender a emergência do niilismo no mundo antigo. Ou seja, no mundo grego, na cultura helenística e romana, o niilismo já surgiu como conhecimento da ausência de sentido (niilismo teórico) e como experiência da perda do valor do ser humano (niilismo prático). O desprezo de si mesmo se instaurou teórica e praticamente antes do predomínio do cristianismo! Ou seja, há formas de niilismo anteriores à desvalorização dos “valores supremos” cristãos. Surge no fragmento de Lenzer Heide, implicitamente, o tema do horror vacui, que será desenvolvido na terceira dissertação da Genealogia. Nele, o niilismo é visto como uma doença da vontade, contra a qual voltou-se a moral cristã com “antídotos”: conferindo ao ser humano um “valor absoluto” e garantindo um “conhecimento adequado desses valores”. Mas a vida do ser humano só tem valor a partir do centro de gravidade no Além-mundo. A moral mesmo ocasionaria, através da veracidade por ela gerada, seu movimento de autossupressão. Essa metanarrativa histórica abarca todos os seres humanos submetidos ao longo processo de moralização das formas de vida. Com o niilismo ativo3, o movimento unívoco de autodestruição da moral atingiria a todos os herdeiros de seus valores, incluindo Nietzsche.
Assim, é a veracidade, promovida pela própria moral, que intensifica o niilismo. Tem efeito desesperador reconhecer que a interpretação moral cristã é uma mentira incorporada e imprescindível para suportar a vida. Se todo valor depende das mentiras da moral, parece que agora nada tem valor. Nessa filosofia da história niilista ressalta uma oscilação entre dois extremos do niilismo: “não estimar o que conhecemos e não poder mais estimar, aquilo de que gostaríamos de nos iludir”. Não se trata de um dilema, da necessidade de escolher entre os dois termos da oposição, mas de uma dissolução, em que ressaltam as consequências nocivas desse processo valorativo4.
O niilismo é tratado como uma doença (tornada pandêmica) que atinge os fracos e esgotados pela moral cristã. Os “mais fortes”, no entanto, ainda poderiam furtar-se ao cansaço niilista, se pudessem experimentar o pensamento do eterno retorno do mesmo, de modo afirmativo. Não entraremos nessa questão do confronto com o eterno retorno, que é central no fragmento de Lenzer Heide, mas que não aparece na GM III. Importa aqui ressaltar que “foi a moral que protegeu a vida do desespero e do salto no nada nesses homens e classes violentados e oprimidos por homens”5. No mundo moderno, contudo, a moral não consegue mais impedir os “fracos e malogrados” do desespero. Esse “salto no nada” é interpretado por Nietzsche como “vontade de nada” (Wille ins Nichts):
O sucumbir apresenta-se como um fazer-se-sucumbir, como uma seleção instintiva daquilo que necessariamente destrói. Sintomas dessa autodestruição dos malogrados: a autovivissecção, o envenenamento, a embriaguez, o romantismo, sobretudo a urgência instintiva de ações, por meio das quais se faz dos poderosos inimigos mortais (- como que criando seus próprios carrascos), a vontade de destruição como vontade de um instinto ainda mais profundo, do instinto de autodestruição, da vontade de nada (FP 1887, 5[71] §11).
A vontade de nada é um instinto mais profundo que a vontade de destruição. Mas Nietzsche afirma reiteradamente no escrito “O niilismo europeu” que a vontade de poder é o “traço característico fundamental” da vida, que a vida é vontade de poder (der Wille zur Macht). Se “não há nada na vida que tenha valor, exceto o grau de poder” (FP 1887, 5[71] §10), os fracos sucumbiriam inexoravelmente por impotência, visto que seus valores se despotencializaram. Nessa interpretação nietzschiana, a vontade de poder é o “traço característico” do mundo e de todas as formas de vida, tanto as dos fortes quanto as dos fracos. A diferença básica consiste em que os fortes aprovariam esse traço característico fundamental, e os fracos o amaldiçoariam. Mas essa maldição é ainda uma expressão da vontade de poder, como vontade de nada. Considero que a vontade de nada é um tanto nebulosa no fragmento de Lenzer Heide. Mas ela abre um abismo na investigação nietzschiana sobre o caráter básico da vontade humana. Se no fragmento de Lenzer Heide a vontade de poder é o traço característico da vida, no início de GM III Nietzsche afirma que o horror vacui é “o dado fundamental da vontade humana” (GM III 1). É uma ênfase no perigo latente (o salto no nada) que ameaçava o ser humano; é uma nova tentativa de resposta ao problema da vontade de nada (der Wille zum Nichts)6, dessa vez por meio da investigação do ideal ascético. O foco da análise não está mais no panteísmo moderno (desde Spinoza) e no eterno retorno, mas no poder descomunal do ideal ascético para a vida humana. Na GM III Nietzsche estabelece um novo confronto com Schopenhauer, em face do ascetismo.
O sacerdote ascético e o horror vacui
A única menção explícita ao horror vacui na obra de Nietzsche ocorre em GM III 1. A interpretação nietzschiana do horror ao vazio é sui generis, a partir de sua concepção de vontade de poder, e em relação aos sentidos do ideal ascético. Entretanto, o horror vacui é um tema que permeia inquietações filosóficas, desde Aristóteles7. Entendo que o autor da Genealogia retoma a discussão do fragmento de Lenzer Heide acerca da vontade de poder como traço fundamental da vida, para se contrapor ao vazio niilista. No início da terceira dissertação, ele afirma que o ser humano não pode viver sem um objetivo, e ele “preferirá ainda querer o nada a não querer” (GM III 1). Ele já havia afirmado em GM II 12 que a vontade de poder é a “essência da vida”. E reafirmará em GM III 18 que a vontade de poder é “o instinto mais forte e afirmador da vida”. Mas a vontade de poder não é somente impulso para a afirmação da vida; ela pode se manifestar como vontade de nada, dado o seu horror ao vazio, à sua compulsão por querer. Aqui já se mostra um confronto decisivo com Schopenhauer. Para o filósofo pessimista, é possível justamente uma vontade ascética, capaz de não querer8. O horror ao nada, em Schopenhauer, ocorre porque o ser humano é dominado pelo querer. Mas ele afirma que é possível uma outra direção ao querer (que Nietzsche nega), como supressão da vontade de viver. Ou seja, o caminho para o nada seria uma perspectiva possível de ser alcançada por seres humanos (asceticamente), na negação da vontade de viver:
para todos aqueles que ainda estão cheios de Vontade, o que resta após a completa supressão da Vontade é, de fato, o Nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a Vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é - Nada (SCHOPENHAUER, 2005, p. 519).
Não analisaremos aqui se as críticas de Nietzsche à vontade de viver em Schopenhauer são pertinentes. Importa-nos investigar o caminho trilhado pelo primeiro, com sua recusa da vontade ascética schopenhaueriana, através de sua investigação do ideal ascético. Dentre os vários significados do ideal ascético, elencados em GM III, o que mais lhe interessa é o sentido desse ideal para o sacerdote ascético. Pois é justamente o sacerdote ascético quem criou o ideal ascético, e tem nele seu maior instrumento de poder, para efetivar a dominação sobre os “fracos e malogrados”. No interior da moral cristã, o sacerdote ascético procurou impedir a irrupção do niilismo (do desespero, do horror vacui) com suas medicações. Ele é um artista do sentimento de culpa, ao tornar o próprio “pecador” culpado pelo seu sofrimento.
Para compreender os sentidos do ideal ascético postos pelo sacerdote ascético, Nietzsche recorre aos “fisiólogos”, sem precisar suas fontes. Entretanto, em GM III Nietzsche desafia os fisiólogos a testarem suas hipóteses de investigação acerca do valor do ascetismo desde a vontade de poder. O próprio Nietzsche procurou aplicar, mesmo que de forma livre e tendenciosa, métodos “fisiológicos” acerca da narcose e do hipnotismo para diagnosticar a doença da vontade, tanto no sacerdote ascético quanto no rebanho dos esgotados. Em suas investigações acerca da “verdadeira causa fisiológica” (die wahre Ursache, die physiologische) do mal-estar dos doentes, Nietzsche propõe hipóteses de diagnose que poderiam estar: “numa enfermidade do nervus sympathicus”, “numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de potássio no sangue, em estados de tensão do baixo ventre [..] etc.” (GM III 15)
Assim, nessa estranha forma ascética de vida, Nietzsche crê detectar a “causação fisiológica efetiva” do niilismo: a diminuição da vitalidade fisiológica (cf. GM III 11). Com seu “monstruoso modo de valorar”, o sacerdote ascético efetivou suas ambições de poder: “O sacerdote ascético tem nesse ideal não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse” (GM III 11). Fica evidente aqui que o autor da Genealogia opera no registro da vontade de poder, para criticar o niilismo resultante da ação do ideal ascético9. Para isso, ele precisa reforçar sua compreensão da “vitalidade fisiológica”, que remete ao “instinto profundo da vida”; desse modo, seria possível explicar como esse tipo ascético pode prosperar e dominar:
deve ser interesse da vida mesma, que um tipo tão contraditório não se extinga. [...] Aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja assenhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais, aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo [...]” (GM III 11).
Esses processos fisiológicos são complexos, e ocultam muitas discussões, leituras científicas e elucubrações de Nietzsche, de modo que a expressão “usar a força para estancar a fonte da força” mais encobre do que revela esse processo fisiológico. Parece-me que Nietzsche quer mascarar sua concepção vitalista-antropomórfica de vontade de poder como antídoto à vontade de nada, quando ele simplesmente deriva a “vontade encarnada de contradição e antinatureza” do “autêntico instinto da vida”.
Fisiologicamente considerada, a autocontradição do sacerdote ascético (vida contra vida) não faz sentido; é aparente, pois não expressa o processo efetivo das vontades de poder a operar como instinto da vida. A medicação dos sacerdotes ascéticos, desse modo, não é nenhuma cura efetiva dos doentes, em sentido fisiológico. Os valores gerados pelo sacerdote ascético, com seu olhar rancoroso, são antinaturais; ele trata a vida como um “caminho errado”, volta a vida contra si mesma (cf. GM III 11). Entramos, assim, nos paradoxos e autocontradições da vida sacerdotal. Essa “vontade encarnada de contradição e antinatureza” buscará instintivamente o erro que a seduz a viver. O sacerdote ascético ignora os processos fisiológicos efetivos. Contra isso, é preciso expor a realidade dos fatos. Nietzsche critica o “erro” que move o sacerdote ascético, ao mesmo tempo que busca a verdade acerca do “autêntico instinto da vida” (der eigentliche Lebens-Instinkt):
O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, que busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções” (GM III 13).
Como é possível que o ideal ascético seja “um artifício para a preservação da vida”, e que ele esteja entre as “grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida”, se ele acaba justamente agravando a doença dos esgotados? Não é satisfatório para o pensador que quer operar a partir das realidades fisiológicas recorrer aos “instintos profundos da vida”: como eles podem permanecer “intactos”, se estão imersos em processos fisiológicos, culturais e históricos dinâmicos e cambiantes? Continuamos no paradoxo10, pois a busca pelas causas efetivas dessa doença não constitui uma investigação naturalista coesa sobre o ascetismo. Em 1888, Nietzsche parece abandonar a afirmação de que o sacerdote ascético foi o único a fornecer uma interpretação com sentido duradouro ao sofrimento humano, ao valorizar o espírito provençal, a Renascença e o mundo de Goethe como expressões portentosas de transvaloração dos valores cristãos. Nietzsche quer também apropriar-se dos efeitos dessa longa enfermidade do ser humano. Esse “animal mais corajoso” não perecerá sob a influência dos valores antinaturais do ideal ascético. Isso porque ele é “o grande experimentador de si” (GM III 13), insaciável em sua luta pelo domínio em face dos outros animais e da natureza. No final da terceira dissertação há uma retomada significativa do projeto de “transvaloração dos valores”, tal como foi apresentado em Além do bem e do mal (cf BM 203) e aludido no final da segunda dissertação da Genealogia (cf. GM II 24). Nietzsche presume que o ser humano está ainda inesgotado para grandes experimentos consigo mesmo. Mas teme que a influência nociva do sacerdote ascético possa tornar a Terra um grande hospício, um planeta ascético. Isso ocorreria se as duas mais terríveis pragas se unissem: “o grande nojo do homem e a grande compaixão pelo homem!...”. Se essas duas “pragas” um dia se casassem, dariam à luz o que há de mais monstruoso no mundo: “a última vontade do homem, sua vontade de nada, o niilismo” (GM III 14). É relevante Nietzsche ponderar na GM que esse evento terrível ainda não ocorreu, ao passo que em 1888 ele tende a afirmar o triunfo da vontade de nada.
Os efeitos dessas medicações ascéticas, assim, cessariam no mundo moderno, com o aumento do poder atingido pelo ser humano. É quando a moral cristã e seus valores não têm mais poder sobre os humanos, que não estariam mais submetidos ao pecado, à culpa, ao castigo e às demais prescrições dessa moral. A partir do século XIX ocorreria a ascensão do niilismo ativo, que se manifesta como vontade de destruir as ordenações do mundo moderno e seus valores. O Deus cristão, enfim, se revelaria aos ateus honestos e esclarecidos como o nada divinizado, como expressão sagrada da “vontade de nada”11.
Na genealogia da moral Nietzsche colocou o problema do niilismo como vontade de nada12 em toda a sua envergadura; no ano de 1888, ele mobiliza todos os recursos de seu pensamento, na busca de respostas afirmativas. Todas elas estão articuladas em torno da grande tarefa da transvaloração dos valores (Umwertung aller Werte). Essa tarefa tem várias configurações nesse ano, em relação aos valores morais, à ciência, à religião e à cultura modernas; e aparece ligada ao projeto da “Vontade de poder”, às várias formas de transvalorar valores na moral, na política, na cultura, na arte e na própria vida de Nietzsche. Em GM III Nietzsche já aponta para o caminho de superação dessa forma de niilismo. Depois de afirmar que a ciência moderna é ainda aliada do ideal ascético, ele afirma que a arte “opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético” (GM III 25). A menção ao projeto da fisiologia da arte (GM III 8) é bem elucidativa para o viés artístico de superação do niilismo no ano de 1888, em face da questão da decadente.
Niilismo e décadence
Nietzsche aprofunda o conceito de décadence em 1888, distanciando-se sempre mais da narrativa histórica abrangente do niilismo, preocupando-se mais em efetivar a sua grande tarefa da transvaloração em seu próprio tempo. O foco das análises das formações de decadência está nos processos vitais, na fisiologia:
Que a humanidade tenha uma tarefa inteira para resolver, que ela, como um todo, vá ao encontro de algum objetivo: essa representação tão obscura e arbitrária é ainda muito recente. Talvez ela seja abandonada, antes de se tornar uma “ideia fixa”... Ela não é nenhum todo, esta humanidade: ela é uma pluralidade insolúvel de processos vitais ascendentes e decadentes. Ela não tem uma juventude, depois uma maturidade e, enfim, uma velhice. As camadas se interpenetram e se sobrepõem - e em alguns milênios poderão existir sempre ainda tipos mais jovens de homem do que nós hoje podemos comprovar. A décadence, por outro lado, pertence a todas as épocas da humanidade: em toda parte há estofo de escória e ruína, é um processo vital mesmo, a eliminação das formações de decadência e de declínio (FP 1888 11[226]).
Em vários momentos ele já havia expressado que o niilismo é o resultado dos valores que predominaram até agora. Com a análise dos processos vitais ascendentes e decadentes, o niilismo ocupará um lugar mais modesto na crítica dos valores. Ele é um movimento histórico, sobretudo o niilismo europeu, que emerge da décadence que faz parte de todas as épocas da vida humana: “O niilismo não é nenhuma causa, mas somente a lógica da décadence”13. Não temos com isso o abandono do conceito de niilismo, mas uma nova interpretação sobre a dinâmica dos valores. O cristianismo continua sendo interpretado como uma religião niilista, que reuniu os “elementos de décadence” da Antiguidade que lhe eram afins, acabando por tomar o “partido dos fracos e malogrados”14. Mas o triunfo dessa religião niilista será objeto de uma investigação fisiológica acerca dos valores da décadence.
Esse vínculo entre niilismo e décadence pressupõe as análises anteriores sobre a vontade, o prazer e o poder. As considerações sobre o caráter plural da vontade e sobre o prazer e desprazer em relação ao grau de poder são repetições de argumentos já desenvolvidos em anos anteriores. Nos vários projetos de 1888 acerca da “Vontade de Poder. Ensaio de uma transvaloração de todos os valores”, entretanto, há esforços de incidir diretamente sobre a modernidade, como uma época de um avanço coeso na decadência. Nesse contexto, ele pretende reunir as condições para a autossuperação do niilismo, pelo menos para os mais fortes, para os “vencedores” dessa luta entre valores antagônicos milenares.
Em 1887 o niilismo ocupava um lugar mais destacado nos projetos de “A vontade de poder”. Como no projeto do final do inverno (de 17 de março, escrito em Nice), em que há um comentário específico a esta questão:
[+ + +] de todos os valores
Primeiro livro. O niilismo europeu.
Segundo livro. Crítica dos valores supremos.
Terceiro livro. Princípio de uma nova posição de valor.
Quarto livro. Disciplina e cultivo (FP, 1887, p. 7[64]).
O niilismo é visto como necessário nesse longo processo que desembocaria na posição de valores afirmativos. Do mesmo modo, o niilismo ainda aparece como o primeiro livro do plano do outono de 188715. Em 13 de fevereiro de 188816, ele admite ter concluído a “primeira versão” da transvaloração, mas não temos nenhuma organização de um dos quatro livros sequer17. Os últimos projetos da vontade de poder em que o niilismo ocupa um lugar central são do início - primavera de 188818. Eles marcam um ponto de inflexão, pois nos escritos seguintes ele paulatinamente substitui as temáticas do niilismo e da decadência (Niedergang) pela temática da décadence. Sem conseguir dar um desfecho favorável às questões da vontade de nada e do valor da verdade.
É também na primavera de 1888 que Nietzsche afirma o triunfo das “formações de decadência” (Decadenz-Gebilde) na modernidade. É quando a “vontade de nada prepondera sobre a vontade de vida” (FP 1888 14[123]19. O valor da vida estaria terrivelmente comprometido com a supremacia dos instintos niilistas schopenhauerianos, cristãos e budistas. É estranho Nietzsche retomar a expressão schopenhaueriana “vontade de vida” (Wille zum Leben) nesse contexto: quando afirma que para o niilista a vontade de nada vale mais do que a vontade de vida20, ele parece fazer uma concessão ao velho mestre pessimista. Entendo que é um indício forte de que ele ainda não possui uma saída para o niilismo enquanto vontade de nada.
A vontade de verdade como impulso niilista
Nas tentativas de desenvolvimento dos planos da “Vontade de poder” de 1888, Nietzsche permanece ainda enredado nas conclusões dos anos anteriores sobre as consequências da vontade de verdade no homem. Se no ideal ascético e na ciência moderna há uma superestimação da verdade21, o Filósofo da Transvaloração22 não consegue se libertar completamente das expressões decadentistas da vontade de verdade. A veracidade cristã, enfim, terminaria com uma grande interrogação: “que significa toda vontade de verdade?...” (GC 357). Ao retomar esse parágrafo da Gaia ciência, Nietzsche presume que em si mesmo a vontade de verdade tome consciência de si como problema:
Nessa gradual consciência de si da vontade de verdade - disso não há dúvida - perecerá doravante a moral: esse grande espetáculo em cem atos reservados para os próximos dois séculos da Europa, o mais terrível, mais discutível e talvez mais auspicioso entre todos os espetáculos ...” (GM, III, p. 27).
Esse espetáculo terrível, que acometeria a Europa nos dois séculos seguintes, é justamente o advento do niilismo23. A vontade de verdade, enfim, faria com que a cultura europeia se voltasse contra si própria. Os espíritos livres do futuro, com sua problemática vontade de verdade, serão os herdeiros dessa tradição que afirmou a verdade como valor superior. Eles deveriam ir além dos ateus do século XIX, presos ainda nos enredamentos ascéticos dessa vontade. E justamente o niilismo tira as consequências da decadência do valor supremo da verdade. Por que Nietzsche coloca tanta ênfase na questão da verdade, se ele já teria se libertado de seu peso24? No máximo, ele poderia chegar ao discernimento da “longa e encarnada mentira”, com a qual o ser humano atribuiu valor a si mesmo, para continuar vivendo, agarrado à ilusão de ser a medida de todas as coisas.
Nietzsche não possui recursos teóricos suficientes para sustentar a vontade de poder como “novo conceito da verdade” (FP 1888 15[45]), limitando-se a inserir a mentira como “suplemento do poder”. É problemático a posição do novo critério da verdade, que não é justificado nos escritos de 1888: “O critério da verdade. A vontade de poder como vontade de vida - da vida ascendente” (FP 1888 16[86]). Se toda vontade de verdade é expressão de instintos niilistas, de uma mentira necessária para a sobrevivência dos fracos, como pode Nietzsche ainda pretender sustentar seu critério de “verdade”? Ele conseguiria, no máximo, inserir a “prova da força”: o que importa é a afirmação da vida, no sentido do aumento do sentimento de poder e do próprio poder. Mas ele hesita em adotar esse “critério da verdade”, como transparece nos fragmentos póstumos de 1888. É um procedimento até mesmo contraditório para o pensador que afirma, que para o ser humano, “a mentira é o poder”25. Nesse sentido, G. Colli apresenta um desafio enorme para a filosofia do poder nietzschiana: na “Filosofia da mentira” (Philosophie der Lüge), a arte, como criação de ilusões, enganos e mentiras úteis à vida, é vista como a expressão mais elevada do poder afirmativo humano26. O homem como poeta, como artista e mentiroso, poderia triunfar sobre o caráter terrível da existência, e quiçá sobre algumas formas do niilismo. Nietzsche quer restringir a profusão de forças da arte da “modernidade” no registro do esgotamento niilista. Entretanto, ao longo de 1888, ele faz várias tentativas para reduzir o artista e o pensador mais “geniais”, a saber, Wagner e Schopenhauer, como os que radicalizariam a décadence; ao passo que Nietzsche, o “artista” e pensador da Transvaloração, com seus valores estéticos ainda por construir, quer desencadear a arte afirmativa do futuro.
Com esses desafios, o Filósofo Solitário retorna ao Nascimento da tragédia, para reinterpretar o valor de todas produções humanas: arte, religião, filosofia, ciência, moral seriam aspectos distintos de uma tendência preponderante à mentira. Sem os erros incorporados ao longo do devir humano não poderíamos viver. O problema da verdade retorna também para Nietzsche, sem uma saída para suas implicações niilistas. Nietzsche não assume inteiramente a posição do comediante e artista, que simplesmente afirma o valor da mentira. A nova orientação para a Aesthetica é um indício de um caminho a ser percorrido ainda, na fisiologia da arte, no tema da transfiguração, na distinção entre as formas de embriaguez apolíneas, dionisíacas e as formas de embriaguez dos modernos, esgotados. O grande problema é que na cultura e na arte de seu tempo predominam os valores niilistas, entendidos agora como valores da décadence.
É com essas tensões e impasses que Nietzsche incorpora em seu pensar a “magia dos extremos”, tal como ele havia formulado em 1887:
Nós, imoralistas, somos hoje o único poder que não precisa de aliados para vencer: somos de longe os mais fortes entre os fortes. Nem precisamos da mentira: que outro poder poderia eximir-se dela? Uma forte sedução luta por nós, quiçá a mais forte que existe - a sedução da verdade... da verdade? Quem colocou essa palavra na minha boca? Mas eu a tiro de novo; mas eu desprezo a palavra orgulhosa: não, nós não precisamos dela também, chegaríamos ao poder e à vitória ainda sem a verdade. A magia que luta por nós, o olho de Vênus que entrelaça nossos oponentes e os torna cegos, é a magia do extremo, a sedução que exerce tudo o que é extremo: nós imoralistas - nós somos os extremos... (FP, 1887, p. 10[94]).
O Imoralista e Filósofo da Transvaloração, contudo, é seduzido pela mentira, pela arte “em que a mentira se santifica” (GM III 25) como o poder superior em seu contramovimento ao niilismo. Na longa história do niilismo europeu, marcada pela vontade de verdade, o resultado é o vazio de sentido. Mas essa crise do valor supremo da verdade poderia abrir espaço para novos valores “estéticos”, e para uma nova “hierarquia dos valores”. Essas ponderações aparecem nos planos do início - primavera de 188827, nos quais há um vínculo forte entre a história do niilismo e a decadência (Nierdergang), com foco na crítica do valor da verdade. Da mesma forma, ele trata sempre mais dos valores da décadence, que abarcariam os “valores niilistas”. Mas a questão da verdade permanece como um empecilho para a transvaloração dos valores. Podemos entender, assim, porque no último plano da “vontade de poder” (de 26 de agosto de 1888), todo o primeiro livro seria dedicado ao problema da verdade:
Livro I. “O que é verdade”?
Capítulo I. Psicologia do erro.
Capítulo II. Valor da verdade e do erro.
Capítulo III. A vontade de verdade (somente justificada no valor afirmativo da vida (FP 1888 18[17]).
É muito problemática essa justificativa para a vontade de verdade. Além desse esboço de plano, há várias anotações para tentar desenvolver a questão da vontade de verdade. Os fragmentos póstumos até agosto de 1888 mostram que não há avanços significativos em relação ao que foi desenvolvido em 1887. O valor afirmativo da vida está na vontade de erro, de ilusão, de engano, de arte, e não na vontade de verdade. Assim, é bem compreensível que Nietzsche retome o Nascimento da tragédia como uma transvaloração “artística”, depois de colocar em segundo plano suas investigações sobre o niilismo. Mas a arte só tem poder de “violentar a realidade”, em virtude da mentira:
A metafísica, a moral, a religião, a ciência - elas são levadas em consideração nesse livro somente como diferentes formas de mentira: com seu auxílio, acredita-se na vida. “A vida deve inspirar confiança”: assim posta, a tarefa é descomunal. Para resolvê-la, o homem tem de ser um mentiroso já por natureza, ele tem de ser ainda, mais do que qualquer outra coisa, artista... E ele é isso também: metafísica, moral, religião, ciência - tudo isso somente rebentos de sua vontade de arte, de mentira, de fuga da “verdade”, de negação da “verdade”. Essa faculdade mesmo, graças à qual ele violenta a realidade através da mentira, essa faculdade de artista par excellence do homem - ele tem ainda em comum com tudo o que existe: ele mesmo é um pedaço de efetividade, de verdade, de natureza - ele mesmo é um pedaço de gênio da mentira... (FP 1888 11[415]).
A ampliação do domínio da arte para todas as produções humanas é o resultado de um longo processo de pensamento. O homem, animal inventivo e astuto, se destaca pela boa consciência com que cria e frui de ilusões: “e toda moral é uma decidida e prolongada falsificação, em virtude da qual se torna possível a fruição do espetáculo da alma. Desse ponto de vista, “o conceito de “arte” incluiria bem mais do que normalmente se crê” (BM 291).
A insistência em “valores estéticos” é uma tentativa de evadir-se do problema da verdade. A arte possui mais valor do que a “verdade”; por meio da arte, seria possível efetivar novas transvalorações, depois da ruína dos valores morais. Após mostrar que a redenção prometida pela arte dramática wagneriana é um engodo, que acelera a décadence, Nietzsche propõe o seu modelo de “redenção”, através de um elogio da arte como contramovimento à décadence e ao niilismo:
A arte e nada mais do que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora para a vida, o grande estimulante da vida.
A arte como a única força superior em contraposição a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence.
A arte como a redenção do que conhece, - daquele que vê, que quer ver o caráter terrível e problemático da existência, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age, - daquele que não apenas vê o caráter terrível e problemático da existência, mas ama-o, quer amá-lo, do homem trágico-guerreiro, do herói.
A arte como a redenção do que sofre, - como caminho para estados em que o sofrimento é desejado, transfigurado, divinizado, em que o sofrimento é uma forma do grande encanto. (FP 1888 17[3]).
A partir de setembro de 1888, Nietzsche repensa radicalmente suas estratégias de transvaloração, por meio de outras formas de arte da ilusão e da transfiguração, buscando ainda concretizar seus valores estéticos. Não cabe aqui analisar seus derradeiros esforços para construir um contramovimento que possa triunfar sobre o niilismo e a décadence moderna. A persistência do niilismo em 1888, como procuramos mostrar, é um impedimento enorme para todas as posições afirmativas desse último ano de sua vida filosófica. Entretanto, são muito valiosas e desafiadoras suas tentativas de construir uma arte como redenção aos seres humanos, nos tempos sombrios do niilismo.
Referências
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Notas
Autor notes