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Niilismo e gnosticismo: da negação do mundo à fidelidade à terra no Zaratustra de Nietzsche
JELSON ROBERTO DE OLIVEIRA
JELSON ROBERTO DE OLIVEIRA
Niilismo e gnosticismo: da negação do mundo à fidelidade à terra no Zaratustra de Nietzsche
Niilism and gnosticism: from world’s denial to earth’s faithfulness in Nietzsche’s Zaratustra
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 86-117, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
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Resumo: Partindo da interpretação do niilismo como negação da vida, pretende-se demonstrar, neste texto, como a exortação de Zaratustra de “fidelidade à terra”, pode ser compreendida como uma forma de enfrentamento do niilismo na obra de F. Nietzsche. Para tanto, parte-se de uma análise intratextual da relação entre niilismo e gnosticismo na obra do filósofo alemão no intuito de demonstrar como o personagem histórico fundador do zoroastrismo se apresenta por meio de uma moral dualista cujas premissas gnósticas levam ao niilismo como negação do mundo e, a partir daí, como o personagem literário criado por Nietzsche se efetiva como em contraposição a essa perspectiva, por meio de um novo vínculo entre ser humano e mundo. Dessa forma, pretendemos demonstrar que, com sua exortação, o Zaratustra de Nietzsche se tornou aquele que autossuprime a moralidade fundada por seu homônimo histórico e conduziu à transvaloração dos valores por meio da criação de novas virtudes.

Palavras-chave: Niilismo, dualismo, gnosticismo, zoroastrismo, fidelidade à, terra.

Abstract: Starting from the interpretation of nihilism as a denial of life, this article intends to demonstrate how Zarathustra's exhortation of “faithfulness to the Earth” can be understood as a way of confronting nihilism in F. Nietzsche’s work. Therefore, it starts with an intra-textual analysis of the relationship between nihilism and Gnosticism in the work of the German philosopher, in order to demonstrate how the historical character who founded Zoroastrianism presents itself through a dualist morality whose Gnostic premises lead to nihilism as denial of the Earth and, from there, how the literary character created by Nietzsche is effective as opposed to this perspective, through a new link between human being and world. In such a way, we intend to demonstrate that, with his exhortation, Nietzsche’s Zarathustra becomes the one that self-suppresses the morality founded by its historical homonym and leads to the transvaluation of values through the creation of new virtues.

Keywords: Nihilism, dualism, gnosticism, Zoroastrianism, faithfulness to the Earth.

Carátula del artículo

Artigo

Niilismo e gnosticismo: da negação do mundo à fidelidade à terra no Zaratustra de Nietzsche

Niilism and gnosticism: from world’s denial to earth’s faithfulness in Nietzsche’s Zaratustra

JELSON ROBERTO DE OLIVEIRA
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 86-117, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 22 Novembro 2022

Aprovação: 29 Junho 2022

Introdução

“Weh dem‚ der keine Heimat hat!” (Ai daquele que não tem pátria)

F. Nietzsche

Se o niilismo pode ser considerado um dos temas centrais da obra de Nietzsche, especialmente da obra tardia, é possível compreender, seguindo a sugestão de Richardson (2020, p. 243-244) que a tipologia desse conceito aponta para dois polos: de um lado, ele representaria uma falta de valores superiores (ou “verdadeiros” ou “válidos” em si mesmos); e, de outro lado, ele é uma “postura valorativa” que se volta contra o mundo, compreendido como o conjunto de impulsos e afetos e que leva a uma negação da vida. Richardson chama o primeiro tipo de “no-values nihilism” e o segundo de “no-to-life nihilism”. De um lado temos a ideia de que nenhum valor vale por si mesmo; de outro, que o mundo/a vida não têm valor e devem ser negados.

O presente trabalho pretende examinar esta segunda versão do niilismo. E, para isso, espera demonstrar como a compreensão dessa estratégia negativa em relação ao mundo e à vida depende de uma análise de suas raízes mais profundas, aquelas que buscam os nutrientes oferecidos pelo dualismo, especialmente aquele que se desenvolveu a partir dos movimentos gnósticos que influenciaram o cristianismo primitivo e, conforme a hipótese nietzschiana, alcançaram a modernidade. Nietzsche foi um dos primeiros pensadores a diagnosticar essa relação, de tal forma que a crítica ao dualismo e o diagnóstico do niilismo são, para ele, o fil rouge que costura a história ocidental.

Para o filósofo alemão, ao distinguir o mundo ideal e mundo real, com suas consequentes polaridades (Deus e homem, corpo e alma, bem e mal, objeto e sujeito etc.), o dualismo deu origem aos idealismos que acabaram por conduzir a uma negação de um dos polos, precisamente aquele da imanência. O niilismo, assim, revela-se como a lógica própria do processo histórico característico do mundo ocidental, cuja dinâmica tem duas vias: a invenção dos valores supremos que passaram a ser compreendidos como a régua de negação da vida na medida em que foram produzidos por doentes e fracos que almejavam fugir do que não suportavam; e, em segunda instância, a perda da força vinculante desses valores e a ascensão de uma vontade de nada, “que toma partido contra a vida e vinga-se dela, ao atribuir-lhe um valor negativo, negando-a na forma da adesão aos ideais ascéticos” (GIACOIA JR, 2021, p. 111). Note-se, outrossim, como essas são vias convergentes e sua evidência é a constituição das ideias de Bem e Mal, cuja última raiz é uma décadence psicofisiológica1, revelada como uma fraqueza e um medo diante da vida. A moral, nesse caso, derivada do dualismo de Bem e Mal e atrelada a ele, torna-se um aparato de negação, um total desligamento em relação à realidade. É o que se lê, por exemplo, em O anticristo, 13: “Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade”. Nesse instrutivo parágrafo, Nietzsche enumera as “causas imaginárias” (‘Deus’, ‘alma’, ‘Eu’, ‘espírito’, ‘livre-arbítrio’- ou também ‘cativo’); os “efeitos imaginários” (‘pecado’, ‘salvação’, ‘graça’, ‘castigo’, ‘perdão dos pecados’); os “seres imaginários” (‘Deus’, ‘espíritos’, ‘almas’); uma “ciência natural imaginária” (‘antropocêntrica’, ‘total ausência do conceito de causas naturais’); enfim, uma “psicologia imaginária” e uma “teologia imaginária”. Tudo para diferenciar “esse mundo de pura ficção” do “mundo sonhado”, pois este reflete a realidade, enquanto aquele a “falseia, desvaloriza e nega”. Para Nietzsche, assim, a base dessa ficção “tem suas raízes no ódio ao natural”, e isso não passaria de um “mal-estar com o real”, ou seja, trata-se de um ódio cuja base é fisiológica, na medida em que resulta de uma revolta daqueles que sofrem com a realidade.

A ficção, nesse caso, amparada em uma moral que leva à negação da realidade, não é outra coisa que a “fórmula da décadence” (AC, 13). Deus e todas as ficções que giram em seu entorno não passariam, portanto, de uma estratégia dos fracos para fugir daquilo que não suportam, daquilo diante do que eles não têm forças e essa é a explicação para toda a luta contra o mundo, a hostilidade e a revolta contra a natureza que passam a orientar a história do Ocidente com a história da décadence. Dessa forma, o niilismo passa a ser compreendido como “expressão, no plano axiológico, de um esgotamento das forças vitais, portanto, como uma patologia de natureza fisiopsicológica” (GIACOIA JR, 2021, p. 114), e essa patologia se revela como “desprezo e ódio contra a vida” (FP 2[4], verão-outono de 1882). Todo idealista, todo dualista, assim como todo niilista, é tão-somente um doente que não sabe o motivo de seu sofrimento e passa, com a ajuda da moral e da religião, a responder à existência de forma enviesada: ele perde a meta e o sentido, dirigindo-se, afinal, contra si mesmo, na forma dos pharmakos moralizantes que, ao invés de curarem, acabam agravando ainda mais o estado de decadência dessas vidas raquíticas, cujo exemplo, não por acaso, passa a ser Sócrates, aquele que sofria da vida e, por isso, difundiu o “fanatismo da racionalidade” (GIACOIA JR, 2021, p. 119) sobre todo o Ocidente. É esse fanatismo que, como ficção, acaba se esvaziando e que, como lógica interna do movimento ficcional, tinha de acontecer, inexoravelmente, devido à própria coerência de suas crenças e ilusões, as quais, no limite, estão ligadas à vontade de verdade que preside esse processo.

No parágrafo 346 de A gaia ciência, Nietzsche explicita de forma mais evidente como o niilismo se traduz nessa oposição entre o homem e o mundo, algo que teria se iniciado no passado remoto da nossa civilização e que, quando alcança a modernidade2,

não caímos, justamente com isso, na suspeita de uma oposição, de uma oposição entre o mundo em que até agora nos sentíamos em casa com nossas venerações [in der wir bisher mit unsren Verehrungen zu Hause waren] - em virtude das quais, talvez, tolerávamos viver [wir vielleicht zu leben aushielten] - e um outro mundo, que somos nós próprios: uma inexorável, radical, profundíssima suspeita sobre nós mesmos, que se apodera de nós, europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderia colocar as gerações vindouras diante deste terrível ou - ou: “ou abolir vossas venerações, ou - vós mesmos!” Este último seria o niilismo; mas o primeiro não seria também... o niilismo? - Esse é o nosso ponto de interrogação” (GC, 346)

O niilismo, como se denota, parte de uma cisão entre homem e mundo e, consequentemente, também de uma supressão daquelas ficções que tornavam a vida tolerável. Ele se apresenta, assim, tanto no sentimento de desamparo (de não ter uma casa/mundo onde habitar) quanto na suspeita de que o próprio ser humano não tem forças para viver, por si mesmo, nesse mundo sem as antigas referências. Abolir as venerações ou abolir a si mesmo (na medida em que não se consegue viver sem elas) são duas faces de uma mesma crise que Nietzsche caracteriza como niilismo, a qual tem uma base constante, precisamente a hostilidade à vida: “todos os antigos ideais são ideais hostis à vida” (FP 11[150], de novembro de 1887-março de 1888) precisamente porque são ideais, ou seja, alternativas nascidas do medo e do ódio em relação à realidade. Desse modo, o idealismo, produzido pelo dualismo, não tem outra alternativa (eis a lógica) a não ser desaguar em um niilismo.

Ora, a primeira dessas vazões ocorre no encontro da racionalidade grega com o misticismo oriental (em suas inúmeras vertentes): durante os aproximadamente seis séculos (300 a.C. até aproximadamente 300 d.C.) em que esse encontro se desenrolou, é possível encontrar uma primeira versão do vocabulário, das crenças e dos rituais que forjaram essas ficções idealistas e que acabaram por se espalhar sobre a cultua ocidental. Nietzsche sabe disso e, embora não reste sempre evidente3, é possível reconstruir algumas pistas que ligam o seu diagnóstico crítico aos chamados movimentos gnósticos, entre os quais está o Zoroastrismo iraniano, ao qual Nietzsche faz referências diretas, a começar pela recuperação literária da figura histórica de Zaratustra. Marcado por uma visão de duas divindades mais ou menos independentes, representantes dos princípios do Bem e do Mal, cuja influência na história seriam marcadas por uma alternância de domínio e cuja característica é uma radical hostilidade em relação ao mundo, o zoroastrismo4 não apenas afirma uma visão teológica, cosmológica e antropológica de tipo dualista, mas, sobretudo, oferece uma orientação ética para o ser humano em luta contra o mundo, servindo, portanto, de paradigma da moralidade que passou a estruturar a vida no Ocidente.

O Zoroastrismo como expressão religiosa da negação do mundo

Ao lado da tradição greco-helenística5, Kurt Rudolf (1987, p. 282) considera que as religiões iranianas (persas) são centrais para a compreensão da gênese da Gnose. E, ainda mais: segundo ele “é parte dos resultados confiáveis de pesquisas na história da religião que o Judaísmo Apocalíptico não surgiu sem a contribuição das ideias religiosas iraniano-zoroastristas” (1987, p. 282), o que incluiria conceitos centrais como as do julgamento escatológico, a ressurreição dos mortos, o esquema das idades e, sobretudo, o dualismo. Esse dualismo radical de dois princípios contrastantes (luz e escuridão, Deus e o diabo, bem e mal) pode ser considerado, portanto, uma marca central do zoroastrismo e uma das suas principais influências sobre o judaísmo (além de outras seitas gnósticas, como a Mandeia e a Maniqueia). O dualismo iraniano, aliás, “se transformou em um contraste ontológico de matéria, ou corpo, e espírito, como é típico da Gnose em geral” (RUDOLF, 1987, p. 283). Além disso, o Zoroastrismo promoveu um dualismo antropológico, baseado na “distinção entre alma e corpo, combinada com a noção de que a primeira entra no reino celestial da luz após a morte”, algo que, segundo Rudolf, “só pode ser encontrada no Oriente iraniano”, mas cujas marcas se espalharam por vários sistemas gnósticos.

Devido à natureza problemática e à escassa disponibilidade das fontes, é difícil escrever uma história abrangente do Zoroastrismo, pois há períodos sobre os quais sabe-se muito pouco, outros para os quais a informação é bem restrita a assuntos ou gêneros circunscritos, e ainda outros que só podem ser reconstruídos pela leitura de escritos posteriores ou pela análise de fontes de culturas cognatas. Uma pesquisa da literatura acadêmica sobre o assunto revelará tanto áreas de consenso quanto outras de ampla divergência e, sendo assim, muitas vezes conclui-se que é quase impossível, nesse campo, distinguir o que é fato e o que é teoria (ou interpretação).

Um dos problemas para qualquer estudioso do assunto, diz respeito às fontes capazes de projetar alguma luz para um movimento tão complexo. No geral, a principal referência tem sido uma coleção de escritos conhecido como Abestāg (Avesta)6, um nome trazido do persa médio (Pahlavi). Esses textos foram escritos em língua iraniana oriental, o avestão, e coletados pelos sacerdotes zoroastristas durante o chamado período sassânida7, muito distante no tempo em relação à composição das escrituras. Os temas centrais desses textos geralmente são os ritos, os mitos e as adorações (e não, como no caso da Bíblia, narrativas), com referências pouquíssimo confiáveis do ponto de vista histórico, uma dificuldade apenas superada com a ajuda de alguns documentos históricos do antigo Oriente, bem como de relatos de autores clássicos, como Heródoto.

Embora seja difícil precisar quando ocorreu o florescimento do Zoroastrismo, alguns historiadores das religiões marcam o nascimento de Zaratustra, entre os iranianos, em qualquer lugar entre 600 e 6000 a.C., embora os autores da Encyclopedia Iraniana afirmem que “argumentos plausíveis o colocam em qualquer lugar do século 13 a.C. até pouco antes da ascensão do império aquemênida sob Ciro II, o Grande, em meados do século 6 a.C., com a maioria dos estudiosos parecendo favorecer datas em torno de 1.000 a.C., o que o colocaria como um contemporâneo, pelo menos, dos poetas védicos posteriores” (MALANDRA, 2021). Mas é importante reconhecer que a história do Zoroastrismo não começa com Zaratustra e, mesmo, que ele coexistiu com outros fenômenos religiosos com os quais, eventualmente, foi sintetizado.

Pouco se sabe de Zaratustra além do que guardou a tradição oral e do que contém os seus Gatas (ou Ghatas, ou mesmo Gathas), um conjunto de dezessete hinos zoroastristas que teriam sido compostos por Zaratustra e que formam parte dos Avesta. Segundo essas fontes, sua vida teria sido marcada pelo aprendizado dos ensinamentos da tradição, transmitida por seus mestres a quem ele aprendera a questionar. E é precisamente pelo conhecimento que ele acessa esse lado obscuro da existência terrena:

Zaratustra resolve ser seu próprio professor e aprender pela observação e pensamento. Ele pensa e pensa profundamente e de forma abrangente sobre as condições que prevalecem ao seu redor. Ele considera que a vida não é feita apenas de tecidos de alegria e felicidade, mas também de considerável tristeza e miséria. Injustiça e desigualdade, conflito e opressão, pobreza e destituição, ganância e avareza, ira e rapina, falsidade e engano, inveja e malícia, ódio e ciúme, crime e vício, tristeza e sofrimento, sujeira e doença o confrontam em todos os lugares. Ele responde vivamente aos sofrimentos humanos e aos gemidos e suspiros dos corações agonizantes. A miséria da multidão toca seu coração. Sua carne se arrepia, seu coração está fortemente oprimido e seu espírito fica deprimido ao ver este lado negativo da vida humana. Ele sofre ao ver o sofrimento e, com os olhos cheios de lágrimas, ele vive dia a dia pensando e meditando sobre as desgraças do mundo. Zaratustra duvida da bondade dos deuses. (DHALLA, 1938, p. 31)

As palavras, escritas pelo sacerdote e estudioso do zoroastrismo, Maneckji Nusservanji Dhalla, ajudam a compreender a que tipo de tradição Nietzsche se liga quando escolhe Zaratustra como o personagem central do seu livro de 1883-1885. Acompanhemos alguns dos argumentos centrais levantados por Dhalla, para quem a trajetória de Zaratustra teria começado precisamente com o isolamento e o silêncio no alto das montanhas, algo que poderia ser interpretado como parte de sua estratégia de distanciamento de seus mestres e dos praticantes das religiões de seu tempo:

a solidão é o templo sublime da natureza onde o espírito pode comungar com o espírito no silêncio circundante e na calma inabalável. As montanhas erguem suas cabeças majestosamente no planalto iraniano, e Zaratustra recuou para a fortaleza da montanha. Aqui, longe do estresse e das lutas da vida, e sem nenhum som humano para distrair seus pensamentos, ele fez seu lar. Ele respirou o ar refrescante. O chilrear, o chilrear, o assobio e o canto dos pássaros encheram o ar. [...] A mente criativa de Zaratustra desenvolveu a mais elevada concepção de divindade, a quem chamou de Ahura Mazda ou o Senhor da Sabedoria”. (DHALLA, 1938, p. 32)

No alto da montanha, por um processo mental de conhecimento, Zaratustra teria conquistado o acesso à divindade suprema por meio da gnose, ou seja, do conhecimento. Dessa forma, Zaratustra teria deixado o reino terrestre e alcançado a sabedoria do reino celeste, pois “todo pensar e fazer, seja humano ou divino, é feito por meio da mente” e é “o conhecimento ou sabedoria que cria, molda e orienta tudo e qualquer coisa” (DHALLA, 1938, p. 53). O nome da nova divindade anunciada por Zaratustra tem, precisamente, esse sentido: Ahura Mazda, “o Senhor Sabedoria” ou “o Senhor da Sabedoria”. Por isso, Ahura Mazda nunca foi associado a um deus da natureza, porque sua essência seria altamente espiritual. O atributo central de Ahura Mazda é o Espírito ou o Espírito Beneficente. Com essa visão, “Zaratustra familiariza a humanidade pela primeira vez na história das religiões com o conceito de divindade que é o mais incomparável em sublimidade e sem precedentes na grandeza da nobreza” (DHALLA, 1938, p. 55). Não tendo nada do mundo e da natureza material, sendo apenas um ser espiritual, ele seria “desprovido de todos os traços antropomórficos que caracterizavam os deuses arianos e semitas” (DHALLA, 1938, p. 55) e suas ideias só seriam compreendidas de forma mental, por meio de conceitos e palavras. É o que torna possível algum tipo de contato, malgrado tamanha transcendentalidade: ele se manifesta a quem o ama e, por isso, “Zaratustra se dirige a Ahura Mazda como seu amigo” (DHALLA, 1938, p. 56). O amor (e a amizade) são formas de aproximação com a sabedoria e também com as leis ditadas desde o princípio pela divindade. É esse vínculo de intimidade com a divindade que eleva Zaratustra até sua tarefa, que é anunciar a lei e a justiça, ou seja, atuar como arauto de uma moralidade: “a grande missão do profeta é familiarizar a humanidade para com elas [as leis divinas] e fazer com que todos vejam por si mesmos, com sua inteligência, que seu bem-estar depende da fiel adesão a elas” (DHALLA, 1938, p. 59). Para isso, Zaratustra escolhe seis virtudes, associadas a conceitos abstratos puros, idealizados simbolicamente na forma de qualificações divinas: Vohu Manah, “Mente Boa”; Asha, “Retidão”; Khshathra, “Reino Divino”; Armaiti, “Devoção”; Haurvatat, “Perfeição”; e Ameretat, “Imortalidade”. Viver segundo esses princípios é viver em fuga da realidade hostil do mundo, já que “os elementos e animais e seus semelhantes se combinam para fazer guerra contra [o homem]”, pois “grande é a ira dos elementos” (DHALLA, 1938, p. 117), revelando-se por meio das catástrofes que devoram a vida humana “com uma rapidez impressionante”: “em um momento terrível, ela [a natureza] arrasa as maravilhas do homem, criado por seu trabalho e indústria de anos” (DHALLA, 1938, p. 118). Mas esse mesmo princípio destrutivo está presente no coração do homem, cuja brutalidade “o torna pior do que o animal mais selvagem da selva” (DHALLA, 1938, p. 119).

Zaratustra vê o mal no mundo não apenas como uma “negação passiva do bem”, mas como um inimigo ativo, dado que é “o fato fundamental da vida” e “o fato mais desagradável do universo” (DHALLA, 1938, p. 118). Colocando-se diante desse conflito, o profeta entende que a vida é marcada pela tensão desses polos e que um deles precisa vencer o outro constantemente. Toda a vida e a pregação de Zaratustra passam a ser, assim, baseadas na ideia de resistir ao mal. Curiosamente, o modo de enfrentamento do mal não se dá pela via do bem, mas do próprio mal: amar o bem não basta, é preciso odiar o mal. Para Zaratustra, “só o ódio ao mal incendeia a alma para combatê-lo com entusiasmo e zelo” (DHALLA, 1938, p. 120). Por isso, “o zoroastrismo é essencialmente militante” (DHALLA, 1938, p. 121), na medida em que é um estímulo para que o coração humano possa repugnar e odiar o mal e essa é a cruzada ininterrupta da vida humana, o que começa pela identificação e pela luta contra a parte da sua natureza que é associada a esse mal (o seu lado animal, o corpo, os instintos...). Dessa forma, a vida interior do homem não é outra coisa que uma guerra constante entre o animal e o humano.

Ora, só depois de acessar essas verdades como uma sabedoria plena, portanto, Zaratustra se sentiu pronto para deixar a sua vida de reclusão e descer novamente ao mundo para levar a sua mensagem de regeneração, baseada em uma “nova ordem social” e em “um novo mundo moral” (DHALLA, 1938, p. 33). Ele se tornou, afinal, o profeta, o mensageiro de Mazda. Foi assim que “Zaratustra voltou seus passos para seu lugar de nascimento e infância. Seus parentes e amigos o reconheceram, mas ficaram perplexos ao testemunhar a sua mudança maravilhosa. [...] Seu rosto se tornou doce e sereno. Exalava uma bondade inefável e trazia um reflexo brilhante de sua vida interior pura”, escreve Dhalla (1938, p. 33). Perseguido por seus antigos mestres - agora seus detratores - Zaratustra então caminha para terra estrangeira, atravessando todo tipo de obstáculo. Sem encontrar asilo, viaja para terras distantes e desconhecidas, percorrendo quase toda a extensão do Irã até que “seu primo Maidyoimaongha simpatizou com sua causa e logo se tornou seu discípulo fervoroso” (DHALLA, 1938, p. 47) e dois irmãos (Frashaoshtra e Jamaspa) do poderoso clã Hvogva aceitaram sua fé. Por volta de 549 a.C. a dinastia dos Aquemênidas adotou o zoroastrismo como religião oficial do império persa, o que teria contribuído enormemente para sua expansão. Foi assim que, tendo conhecido as dores e imundícies do mundo, Zaratustra se tornou “o mensageiro de Ahura Mazda, o refúgio dos fracos, o consolo dos sofredores, a esperança da humanidade e o regenerador do mundo” (DHALLA, 1938, p. 47).

Nietzsche e o gnosticismo

Nietzsche tem interesse especial pela história e pela cultura persa e nenhum elemento pode dar mais evidência dessa afirmação do que a escolha de Zaratustra como o profeta de sua nova filosofia. O primeiro a mostrar as conexões de Nietzsche com o gnosticismo foi Erick Voegelin8, para quem o autor de Assim Falou Zaratustra seria uma espécie de versão secular do pensamento gnóstico9. A obra de Voegelin, aliás, mereceu bastante atenção por parte de Hans Blumenberg, no seu The legitimacy of the Modern Age (1985), para quem a modernidade guarda uma íntima relação com o gnosticismo, mas ao contrário do que afirma Voegelin, ela seria uma espécie de “segunda superação do gnosticismo” (1983, p. 126). Porque reconhecem a influência dos movimentos gnósticos sobre o cristianismo, esses autores acabam por arrolar o nome de Nietzsche, sendo este um crítico da tradição judaico-cristã, como um crítico do gnosticismo: “além de ter repudiado as ficções da Cristandade, teria Nietzsche repudiado as ficções do Gnosticismo?”, pergunta Stanley Corngold (2009, p. 47), para quem a aproximação de Nietzsche com Spinoza poderia ser reconhecida como uma espécie de sinal de sua recusa do gnosticismo. Corngold salienta que Nietzsche estava ciente do gnosticismo desde a década de 186010 e aponta para passagens de O Nascimento da Tragédia que comprovariam essa tese, embora a primeira aparição do termo ocorra apenas em 1885 (FP 38[7] e 2 [131], do outono de 1885-outono de 1886). Nessas passagens, fica evidente que Nietzsche reconhece a presença do gnosticismo como parte da tradição (especialmente alemã) de negação do mundo que passaria por Hegel, Schelling e Schopenhauer - e, por meio deles, a boa parte da tradição filosófica que remonta, no limite, ao próprio Platão. A posição de Nietzsche, assim, é de crítica e de tentativa de superação dessa posição gnóstica justamente no que ela tem de negação do mundo. Além disso, um estudioso do assunto poderia muito bem reconhecer na linguagem poética do Zaratustra nietzschiano, muitos traços característicos do Zoroastro histórico, a começar pelo tema da jornada em busca do conhecimento que, na estrutura gnóstica do tratado dos Zostrianos11, ocorre como uma busca “através do éter, das sete esferas dos arcontes, do ‘lugar do arrependimento’ (...) e, finalmente, no nível dos arcontes da luz” (RUDOLPH, 1987, p. 188). Por outro lado, o próprio título do livro e a “inversão do zoroastrismo” (CORNGOLD, 2009, p. 47) na forma literária proposta em Assim Falou Zaratustra poderia ser reconhecido como uma prova da rejeição do gnosticismo por parte de Nietzsche.

Certamente - como destaca o autor do vocábulo sobre Nietzsche e a Pérsia, na Encyclopedia Iraniana - “o mais profundo interesse e admiração de Nietzsche pelos persas se manifestam quando ele discute sua noção de história e tempo cíclico”, cuja referência direta seria o próprio conceito de eterno retorno, contraposto à visão linear do tempo (própria da visão cristã e da modernidade ocidental): “Devo prestar homenagem a Zaratustra, um persa (einem Perser): os persas foram os primeiros a conceber a História como um todo. Uma sequência de acontecimentos, a cada um presidindo um profeta. Todo profeta tem seu azar, seu reino de mil anos” (FP 25[148], da primavera de 1884). Em uma passagem de Assim Falou Zaratustra Nietzsche cia o grande reino milenar (“nosso grande reino humano distante, o reino de Zaratustra de mil anos” - ZA, O sacrifício do mel, 4) em referência direta aos ciclos milenares (hazāra) das antigas religiões persas. Provavelmente por essa visão do tempo, Nietzsche escreveu em um fragmento póstumo: “Teria sido ainda mais feliz se os persas, ao invés dos romanos, se tornaram senhores dos gregos” (FP 5 [95], da primavera-verão de 1875). Nietzsche elogia as virtudes persas em outros dois textos:

Como observa Daryoush Ashouri, embora muitos tentaram, ao longo dos últimos anos, registrar com exatidão a aproximação de Nietzsche com o zoroastrismo, pouca coisa se pode dizer para além dos limites impostos por sua própria escrita, que comprova a apropriação invertida de muitas ideias, imagens e conceitos da tradição zoroastrista. Para uma tal tarefa, seria preciso começar por reconhecer certo interesse da Alemanha do século XIX pelos textos Avestas, incluindo traduções e estudos da filologia indo-iraniana. Não é certo, contudo, que Nietzsche estivesse familiarizado com esses trabalhos ou mesmo lido a tradução de Zend Avesta, do estudioso francês Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron, cujo trabalho teve grande repercussão (e polêmica) a partir do século XVIII em toda Europa. É nesse sentido que podemos concordar, mais uma vez, com Ashouri, quando afirma que “o Zaratustra de Nietzsche só pode ser compreendido no contexto de suas outras obras e de seus pressupostos filosóficos subjacentes”, de forma que Zaratustra representa uma “figura icônica” ou até mesmo poética, ou seja, não uma mera réplica e nem sequer uma simples inversão (como facilmente se deduz) do personagem histórico. Deve-se acrescentar, contudo, que a quase ausência completa de citação aos persas e suas crenças (com uma única exceção em Sobre os mil e um objetivos), seja um sinal interessante se comparado às várias vezes em que referências aos judeus e aos cristãos aparecem: talvez isso apenas comprove que Nietzsche entende, afinal, a marca do zoroastrismo sobre o Ocidente como algo absolutamente legível; e, assim, mais do que esmiuçar os meandros da história do zoroastrismo, ele trata da sua absorção pelas correntes religiosas e filosóficas mais importantes da cultura ocidental. É nesse sentido que o Zaratustra literário deve ser compreendido como uma oposição à moralidade ocidental, representada pelo Zaratustra histórico. O que interessa, no fundo, como é próprio de todo genealogista, é mostrar como chegamos onde chegamos. Ao escolher Zaratustra como sua figura filosófica, Nietzsche demonstra a intenção não apenas de homenagear o profeta ariano, mas sobretudo de reverter os seus ensinamentos.

No discurso A sombra de Assim Falou Zaratustra, Nietzsche recupera uma frase atribuída a Hassan I Sabbah12, primeiro grão-mestre da Ordem dos Assassinos, que existiu na Pérsia durante o século XI, personagem que aparece também em Para a Genealogia da moral (III, 24): “quando os cruzados cristãos no Oriente depararam com aquela invencível Ordem dos Assassinos, aquela ordem de espíritos livres par excellence, cujos graus inferiores viviam numa obediência que nenhuma ordem monástica alcançou igual, obtiveram de algum modo informação sobre aquele símbolo e senha, reservado aos graus superiores como seu secretum: ‘Nada é verdadeiro, tudo é permitido’”. A afirmação de Zaratustra não pode ser reduzida a uma simples apologia ao relativismo, mas diz respeito a uma crítica ao valor das palavras e à sua capacidade de traduzir ideias como bem e verdade.

Julião (2016, p. 46-49) levanta ainda outras fontes que teriam influenciado Nietzsche na elaboração de Assim falou Zaratustra: a referência de Ralph Waldo Emerson, principalmente no seu ensaio Character (no qual se faz referência à verdade emanada de Zaratustra); o livro de Friedrich Creuzer, Symbolik und Mythologie der alten Völker, que teria servido de referência em seu curso sobre o arcaísmo da cultura religiosa dos gregos (no inverno de 1875-6); ou mesmo Voltaire, cujo interesse por Zaratustra e pelos persas em geral ficava evidente (principalmente a partir de Zadig ou do destino, uma história oriental). A título de especulação, Julião elenca ainda citações de Kant, um poema de Von Kleist, as lições de filosofia da história ou de estética de Hegel, entre outros.

O Zaratustra literário versus o Zaratustra histórico

Em um cartão postal enviado a Heinrich Köselitz, em 20/05/1883, Nietzsche escreve: “‘Zaratustra’ é a forma verdadeira e não distorcida do nome Zoroastro, um nome persa” (BVN 1883-418). As primeiras menções a Zoroastro, contudo, ocorrem já em 1870-71: o fragmento póstumo 5[54], de setembro de 1870 a janeiro de 187113 e uma passagem de A filosofia na época trágica dos gregos, na qual Nietzsche trata de uma provável influência de Zaratustra sobre Heráclito. Depois disso, o nome de Zaratustra só retornará no aforismo 342 de A Gaia Ciência, no qual o filósofo formula pela primeira vez a oração antes do sol, que será resgatada também no prólogo de Assim falou Zaratustra. Na obra literária escrita entre 1883-1885, Nietzsche transforma Zaratustra em um antagonista das figuras divinas do bem e do mal por meio do seu imoralismo, precisamente por recusar a visão original do zoroastrismo a respeito da universalidade dos valores baseados no dualismo. Zaratustra, por isso, é o profeta da inocência e, nesse sentido, um imoralista: aquele que se volta contra a moral para superá-la, precisamente por sua busca e compromisso com a sua própria “verdade”.

Como fez o Zaratustra histórico, o personagem de Nietzsche também medita no alto da montanha durante dez anos e depois desce para transmitir uma mensagem à humanidade. O primeiro deles, anuncia a moralização do ser pela via da invenção do bem e do mal; o segundo, anuncia a morte de Deus, cuja implicação é a completa e mais radical emancipação do ser humano em relação a essa interpretação moralista da vida. Para isso, Zaratustra retira qualquer ideia de esperança escatológica e refuta as pretensas verdades da teologia que não teriam passado de um embuste contra a vida, substituindo-as por uma perspectiva afirmativa do mundo. Essa crítica à atitude cautelosa e, mesmo, medrosa em relação à vida, pode ser ilustrada por uma das poucas citações de nomes persas da era islâmica por parte de Nietzsche: trata-se de Saadi14, cuja história é relatada no fragmento póstumo 12[176], do outono de 1881: “‘De quem você aprendeu tudo isso?’, Saadi perguntou a um homem sábio. ‘Do cego que não levanta o pé antes de examinar previamente com a bengala o terreno em que deve pisar’”. Segundo Ashouri (2021), o texto é parte do prefácio do livro de Saadi, intitulado Golestān (Jardim de Rosas) e o “‘homem sábio’ é Loqmān, uma figura lendária e criador de aforismos de sabedoria na literatura árabe e persa”. Ao aproveitar-se da anedota, Nietzsche não apenas demonstra conhecimento dessa tradição, como a usa para criticar a parcimônia exagerada que transformou a prudência em virtude, levando à negação da existência.

Niilismo como negação da vida

Embora Nietzsche não tenha se dedicado a uma análise da literatura, da mitologia e das inúmeras metáforas da tradição gnóstica em geral e do zoroastrismo em particular, podemos afirmar que sua visão sobre o dualismo e sua estratégia de combate levam em conta tal herança cultural e que, em última instância, Nietzsche identificou nessa tradição a origem da história do niilismo ocidental, na medida em que o niilismo é uma espécie de desdobramento ou subproduto do dualismo e que, da divisão do mundo em duas partes, chega-se à hipervalorização de um dos polos, em detrimento do outro. A negação da vida, assim, pode ser entendida como consequência nefasta da estratégia derivada do dualismo, cuja representação máxima são os ideais do cristianismo e seu “tratamento” do sofrimento, ou seja, sua estratégia de “castração”: “atacar os sofrimentos na raiz é o mesmo que atacar a vida na raiz: a práxis da igreja é inimiga da vida...” (CI, Moral como contranatureza, 2). A questão é que toda a moral erguida sobre os alicerces do dualismo alcançou esse estágio de castração na medida em que, precisamente, tomou “Deus como Inimigo da Vida” (CI, Moral como contranatureza, 4), como aquela instância inatingível, cuja função é dar acesso ao mundo da perfeição por meio da negação dos instintos e dos impulsos vitais mais fundamentais: “A vida chega ao fim, onde o ‘Reino de Deus’ começa” (CI, Moral como contranatureza, 4). A fé no Reino, portanto, na medida em que é a fé em um mundo ilusório, criado como refúgio para as almas frágeis e doentias, tornou-se o fundamento de uma moral que não passa, segundo Nietzsche, de uma moral da décadence, ou seja, uma moral da fraqueza e da doença daqueles que não suportam a vida e querem, a todo custo, abandoná-la: “A moral, tal como entendida até aqui [...] é o próprio instinto da décadence que se transformou em imperativo” (CI, Moral como contranatureza, 5), porque, no fundo, “a moral é uma idiossincrasia de degenerados” [Degenerirten-Idiosynkrasie] (CI, Moral como contranatureza, 6).

Para Nietzsche, a moral ocidental, em suas diferentes perspectivas, ampara-se, no fundo, em uma visão dualista derivada dos idealismos religiosos. É o que se lê, por exemplo, no Fragmento póstumo 15[113], da primavera de 1888, no qual ele denuncia a “concepção dualística de um ser meramente bom e um ser meramente mau (Deus, espírito, homem) à qual corresponde a essa natureza não natural, na primeira totalmente positiva, na segunda todas as forças, intenções e estados negativos se resumem”. A mesma concepção aparece no fragmento 17[4], de maio-junho de 1888 que será publicado em O Anticristo, § 17, no qual Nietzsche expressa a concepção segundo a qual o dualismo faz nascer uma visão unilateral de povos guerreiros, que criminalizam o deus dos inimigos na mesma medida em que absolutizam a bondade de sua própria divindade: “com o mesmo instinto com que reduzem seu deus ao ‘bem em si’, os sujeitados eliminam as boas características do deus de seus conquistadores”. Esse é o processo pelo qual a fraqueza é travestida de bondade: como arma de defesa, os perdedores passam a acreditar que sua debilidade está revestida pela santidade de uma divindade que se opõe radicalmente à força dos vencedores. Com esse processo se dá a criação de uma “divindade da décadence, mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris” e que, sendo assim, se transforma “por necessidade, [n]o deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos” (AC, 17). Ou seja, a visão dualista de um deus bom e de um deus mau (ou de um deus para o bem e outro para o mal, tal como se dá no zoroastrismo) se manifesta como um produto da própria fraqueza e da degeneração.

Para Nietzsche, é essa inversão de valores que funda a moralidade: “já se compreende, sem que seja preciso maior referência, em que momentos da história a ficção dualista [dualistische Fiktion] de um deus bom e um deus mau se torna possível” (AC, 17): são os momentos de derrota que levam os fracos a tal conjectura dualista e, mais ainda, com essa visão eles acabam dando vazão à vingança contra seus adversários, pois, por um lado, “vingam-se de seus senhores, ao demonizar o deus deles”, enquanto, por outro lado, transformam o seu próprio deus em um deus para todos os perdedores e doentes, um “deus do ‘grande número’, o democrata entre os deuses” cujo reino é um “reino do submundo, um hospital, um reino subterrâneo, um reino-gueto” (AC, 17). Tudo isso, afinal, para que deus se tornasse o que sempre foi: um deus de negação da vida, um “Deus degenerado em contradição da vida [Gott zum Widerspruch des Lebens abgeartet], em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta”, um deus que passou a encarnar os ideais de “hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida” e, sobretudo, “Deus como fórmula para toda difamação do ‘aquém’ [Verleumdung des „Diesseits“], para toda mentira sobre o ‘além’!” [Lüge vom „Jenseits“!] (AC, 18). Para Nietzsche, portanto, a sede de vingança dos perdedores, acabou tanto por maldizer o deus de seus inimigos quanto por erguer o seu próprio deus como um bastião da moralidade que levou à condenação da vida. Deus é, por isso, um produto da moralidade e, mais ainda, uma invenção da sede de vingança dos fracos, o que explica porque suas características apelam para o antigo dualismo de um mundo perfeito. E nesse ponto, parece não ter escapado a Nietzsche a relação dessa perspectiva cristã com as religiões e seitas orientais: “o Cristianismo tem no fundo algumas sutilezas, que são próprias do Oriente” (AC, 23).

É contra essa posição que Nietzsche se volta. Quase toda a sua filosofia poderia ser reconhecida como um diagnóstico e uma luta contra o dualismo que conduziu àquilo que ele, em sentido genérico, define como negação da vida. É o que significa, precisamente, a sua autodeclaração de imoralismo: “Nós outros, nós imoralistas [wir Immoralisten], ao contrário, abrimos amplamente nosso coração para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não negamos facilmente, buscamos nossa honra no fato de sermos afirmativos” (CI, Moral como contranatureza, 6). Ora, Zaratustra é o personagem que encarna mais completamente essa atitude. Vejamos como.

Zaratustra como imoralista

Kurt Rudolph afirma que, entre as religiões que mantém ideias dualistas segundo as quais duas divindades diferentes seriam responsáveis por diferentes situações do mundo, “uma das mais conhecidas é o dualismo do zoroastrismo iraniano, que define um deus bom e um mau no início da história do mundo e entende essa história como dominada pelo conflito entre ambos, até que o bom deus, com a ajuda de seus adeptos alcança a vitória no fim dos tempos” (1987, p. 59). Muitas concepções do zoroastrismo tiveram influência sobre as três maiores religiões do Ocidente - o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ao afirmar que o seu Zaratustra é o “primeiro a reconhecer” o erro do dualismo e suas consequências na moralização da vida, Nietzsche faz referência a essa antiga tradição religiosa, e transforma o seu profeta (“o proclamador de secretas doutrinas” [RUDOLPH, 1987, p. 150]) em um niilista por excelência, justamente aquele que tem “experiência maior e mais longa” no assunto e, por isso, tornou-se capaz de rever (inverter, ou transvalorar) a ordem moral. Nele, o moralista, ou seja, o próprio gnóstico, se autossupera. É o próprio Zaratustra, portanto, o moralista por excelência, que na obra literário-filosófica, transvalora a si mesmo e se torna um imoralista. Eis a intenção de seu gesto, ao subir a montanha, onde permaneceu colhendo a luz do conhecimento, até decidir voltar à praça do mercado. Assim, Blumenberg tem mais razão do que Voegelin, no sentido de que, com Nietzsche, o gnosticismo encontra uma possibilidade de superação: Zaratustra é o primeiro negador da moral, o “psicólogo dos bons” e o “inimigo dos maus” (EH, Por que sou um destino, 5), o primeiro a negar a moral derivada da condição dualista derivada do gnosticismo.

Ora, entre os raros textos que Nietzsche explica o uso que faz do nome do profeta persa, está, sem dúvida, o parágrafo 3 de Por que sou um destino, de Ecce Homo, capítulo cujo tema central é a transvaloração dos valores e, sobretudo, o imoralismo, e no qual, curiosamente, Nietzsche anuncia a sua tarefa “autognóstica” de “descobrir a verdade” e “sentir por primeiro a mentira como mentira” (EH, Por que sou um destino, 1), uma tarefa que, ao ser realizada, provocaria espasmos, terremotos e deslocamentos na medida em que deporia as velhas bases da moralidade sobre as quais o Ocidente estava assentado. O parágrafo 2 desse capítulo liga essa tarefa a Zaratustra e à empreitada de todo criador em, primeiro, destruir valores para, depois, criar novos - é o que caracteriza, precisamente, o imoralista: “eu sou o primeiro imoralista; e com isso sou o destruidor par excellence” (EH, Por que sou um destino, 2).

Não é por acaso que o parágrafo seguinte desse texto apresenta Zaratustra como o primeiro moralista, contra o qual, portanto, deve se voltar o imoralista. Mas dado que sua atitude é de um “dizer Sim” radical a tal ponto de incluir, nessa afirmação, a própria negação, o “fazer Não”. O Zaratustra literário é um símbolo acabado dessa tarefa, porque ele cria de forma tão intensa que sua criação provoca uma destruição. Suas bases, nesse caso, são a tradição da moralidade que ele mesmo destrói e, inversamente, a destruição é produzida por um supremo gesto afirmativo. Eis a explicação:

O que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas - a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em consequência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo. (EH, Por que sou um destino, 3).

Note-se como Nietzsche descreve Zaratustra nos termos precisos desse ato criador-destruidor que caracteriza todo imoralista. O seu Zaratustra, nesse caso, parece ser o próprio Zaratustra histórico que, agora, reconhece o erro de sua criação e, como quem dá mais uma volta na roda dos valores, transvalora o passado em uma nova obra, ou seja, destrói justamente lá onde também constrói. Se o profeta persa foi o primeiro a definir claramente a engrenagem moral do bem e do mal, na qual a moralidade ganha contornos metafísicos na medida em que reivindica seu nascimento para além e contra o mundo físico, o personagem literário caminha para a reversão dessa proposta inicial.

Nietzsche, por isso, destaca duas questões importantes: [1] o Zaratustra histórico tinha “a veracidade como virtude maior” e, por isso, sendo o mais veraz de todos, ele tinha também a obrigação e a capacidade de desvelar o seu próprio erro; e [2] isso é completado pelo próprio Zaratustra literário, que consolida essa estratégia que teria, por assim dizer, ficado inacabada. Por sua coragem e valentia, associada à busca pela veracidade, Zaratustra é o exemplo mais evidente da autossuperação da moral: “A autossuperação [Selbstüberwindung] da moral pela veracidade [Wahrhaftigkeit], a autossuperação do moralista em seu contrário - em mim - isto significa em minha boca o nome Zaratustra” (EH, Por que sou um destino, 3). Nietzsche não poderia ser mais claro: porque era fiel à verdade, Zaratustra representa a moral que deve reconhecer o seu próprio engodo, não apesar da verdade, mas precisamente por seu compromisso com ela. Richardson (2021, p. 241) notou essa mesma questão. Para ele, “Nietzsche dá à vontade de verdade um papel central em sua história preditiva de como a moralidade está desmoronando por meio do niilismo” e isso, porque “a vontade de verdade expõe o que a moralidade realmente é” e, ao mesmo tempo, “ele também insiste que a vontade de verdade deve e vai se sujeitar ao mesmo escrutínio - um autoexame - o que vai revelar que é a moral em si”. É precisamente esse escrutínio que o Zaratustra literário faz com o Zaratustra histórico enquanto representante dessa visão moralizante. Como “outra expressão do ‘ideal ascético’”, a vontade de verdade também é “outra forma de negar a vida corporal”, embora seja necessário insistir que, ao invés de falhar novamente como anti-vida, tal vontade acaba se voltando contra si mesma e, nesse caso, levando à sua superação a favor da vida. A transvaloração dos valores, por isso, não é outra coisa que a conquista de um estágio já presente (e sempre premente) na tradição da própria moralidade, na medida em que ela confessa seu engajamento com a verdade. Zaratustra simboliza essa negação (dos homens tidos até então como bons e da moral da décadence) que se faz pela afirmação, atitude que se realiza, no fundo, como uma vida “ascendente e afirmadora” que se resume na fórmula da fidelidade à terra.

Ao destacar o compromisso de Zaratustra com a veracidade, Nietzsche realça (invertendo, obviamente) a sua pertença à tradição gnóstica, segundo a qual o conhecimento e a verdade são o caminho para a salvação. Como gnóstico, Zaratustra filiou-se à ideia de verdade que está na base do bem e do mal, os quais se traduzem no horizonte de uma ascese que leva à sua superação. Esse é um elemento que contrasta com a descrição do homem bom da moral tradicional, cuja condição é descrita por Nietzsche como uma mentira, uma estupidez e uma tolice (niaiserie) marcada por uma tentativa de abolir constantemente “as misérias de toda espécie” que formam a realidade (EH, Por que sou um destino, 4). Ao associar a felicidade à bondade, os bons tiveram que acreditar na mentira para suprimir o que, na “economia do todo”, seriam os “horrores da realidade”. Zaratustra teria sido o primeiro a reconhecer que “homens bons jamais falam a verdade”, porque sua existência deriva dessa recusa dos “horrores”, por meio de “falsas rotas e portos inseguros”. Ele foi o primeiro, portanto, a descobrir que a moral não é outra coisa do que negação da vida, precisamente ele que a inventou. O Zaratustra literário é aquele que viu como os homens bons são, na verdade, os “últimos homens”, os que impedem a criação porque se tornaram “os caluniadores do mundo” (EH, Por que sou um destino, 4; ZA, Das novas e velhas tábuas). A calúnia contra o mundo, portanto, é a mais danosa das mentiras e é ela que vem sendo alardeada pelos chamados homens bons. A bondade, assim, é mendacidade contra a vida e um projeto de embuste contra o mundo. É o que faz com que Zaratustra se aproxime dos homens maus, aqueles que, precisamente, guardam o que é verdadeiro: “se a mendacidade reivindica a todo preço a palavra ‘verdade’ para a sua ótica, o verdadeiramente veraz deverá ser encontrado sob os piores nomes” (EH, Por que sou um destino, 5). Foi o conhecimento dessa mentira que teria, inclusive, levado Zaratustra ao “horror dos homens” (que, pardoxalmente, também é o seu amor a eles), algo que o impulsionou para o além-do-homem: “ele não esconde que o seu tipo de homem, um tipo relativamente sobre-humano, é sobre-humano precisamente em relação aos bons, e que os bons e justos chamariam de demônio o seu além-do-homem...” (EH, Por que sou um destino, 5).

Ora, esse além-do-homem é um ser elevado não apenas por si mesmo, intrinsecamente, mas devido à sua capacidade de reconhecimento da realidade tal “como ela é”. “Ele é forte o bastante para isso”, ou seja, ele pode encarar a realidade sem a mendacidade dos bons, porque se desfez dos antigos ideais de felicidade e pode encontrar, aqui e agora, os motivos de sua grandeza: “ele ainda tem em si tudo o que dela [da realidade] é terrível e questionável, somente então pode o homem possuir grandeza” (EH, Por que sou um destino, 5). O além-do-homem é, portanto, aquele que superou a calúnia contra o mundo por força da veracidade e foi capaz de se voltar contra a mendacidade da moral, ou seja, realizar-se como um imoralista. Não por acaso, isso passou a exigir também a superação da moralidade da compaixão, tanto na sua versão cristã, quanto na sua versão schopenhauriana15, herdeiras desse mesmo mecanismo que, em última instância, remete à moralidade gnóstica do zoroastrismo: “quem, antes de mim”, pergunta Nietzsche, “adentrou as cavernas de onde sobe o venenoso bafo desta espécie de ideal - a difamação do mundo?” (EH, Por que sou um destino, 6). Só um imoralista que foi também psicólogo soube desvendar esse sistema de negação, retirar a “cegueira ante o cristianismo” (EH, Por que sou um destino, 7), essa religião da negação, esse “crime contra a vida”, para revelar essa “vontade de mentira” que condenou a natureza com as honras do esforço antinatural, que ensinou “o desprezo pelos primeiríssimos instintos da vida”, que inventou uma alma e um espírito “para arruinar o corpo”, que ensinou “a ver algo impuro no pressuposto da vida, a sexualidade”, que condenou o que era “mais básico e necessário ao florescer, o estrito amor de si”, que inventou a imagem de Deus “como noção-antítese à vida” (EH, Por que sou um destino, 8), enfim, que transformou os valores da décadence, valores da negação da terra, em valores supremos, produzindo o adoecimento e o perecimento da cultura. A moral, por esse projeto, tornou-se ela mesma uma “idiossincrasia dos décadents, com o oculto desígnio de vingar-se da vida - e com êxito.” (EH, Por que sou um destino, 7).

Na noção de homem bom esconde-se, portanto, o homem doente, no qual a vida se enfraqueceu, o homem “fraco, doente, malogrado, que sofre de si mesmo” (EH, Por que sou um destino, 8). Nietzsche termina esse capítulo de Ecce Homo voltando à afirmação de que Zaratustra é o profeta da veracidade na medida em que reconheceu o ardil da moral em “sugar a própria vida”, precisamente lá onde quiseram melhorar o ser humano. A moral foi um “vampirismo” (EH, Por que sou um destino, 8). E assim, o filósofo retorna ao tema da negação da vida como resultado do dualismo: “Inventada a noção de ‘além’, ‘mundo verdadeiro’, para desvalorizar o único mundo que existe” (EH, Por que sou um destino, 8). O dualismo produziu, portanto, o niilismo. Não é por acaso que essa passagem termina com o famoso dístico que encerra a obra bio-bibliográfica de Nietzsche: “Fui compreendido? Dionísio contra o Crucificado”: de alguma forma Zaratustra (e Nietzsche) são considerados - como Dionísio - homens maus, profetas questionáveis e malquistos precisamente porque se tornaram os detratores da moralidade vigente.

A “fidelidade à terra” como enfrentamento do niilismo

Em meados de 1888, quando estava em Sils Maria, Nietzsche teria abandonado o anunciado projeto de escrever um livro sobre a Vontade de Poder (Wille zur Macht), dando início a um novo plano: a organização de uma obra sobre a Transvaloração de todos os valores (Umwertung aller Werte), que seria formada por quatro livros. Alguns dos textos desse antigo projeto passaram a fazer parte da obra Götzen-Dämmerung oder wie man mit dem Hammer philosophirt (Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo). Esse livro, que Nietzsche considera uma “declaração de guerra” (CI, Prólogo), oferece uma espécie de resumo de sua perspectiva filosófica que integra a destruição pela via da criação de novos valores - algo que, no limite, está representado pela ideia de martelo presente no seu título:

Uma outra convalescença, em algumas circunstâncias ainda mais desejada por mim, está em auscultar ídolos... Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é meu ‘mau olhar’ para este mundo, é também meu ‘mau ouvido’... Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas - que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos - para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se... (CI, Prólogo)

Para Nietzsche, a conquista da jovialidade jubilosa diante da vida é o resultado de uma celebração das forças que são liberadas pela atividade da luta contra a moralização da existência inaugurada pelo dualismo. A juventude é agora necessária porque ela se apresenta como possibilidade de expansão e de exuberância das forças afirmativas da vida: “o que seria mais necessário do que jovialidade?” (CI, Prólogo). Jovens, portadores das flechas (que dão título à primeira parte da obra de 1888, Máximas e setas [ou flechas]) são as armas de combate, afinal, “é preciso alvejar a moral” (CI, Máximas e setas, 36). Mas como fazê-lo? Colocando-se fora da moral. Para isso, contudo, é preciso assumir todas as suas implicações com radicalidade: Nietzsche propõe assumir o niilismo até suas últimas consequências para, então, superá-lo. Isso ocorreria, por exemplo, como vimos anteriormente, com a radicalização da vontade de verdade, que resultaria em uma necessária constatação de que a verdade (e todos os valores que estiveram nela fundamentados) não existe. A radicalização da busca pela verdade, cujo resultado seria a afirmação do devir como condição da vida, ou seja, de sua face ilógica e ilusória, conduz à vontade de poder e à transvaloração de todos os valores. Transvalorar, nesse caso, é radicalizar os valores existentes até que eles mesmos se esgotem, ou seja, demonstrar que suas bases são frágeis e seu conteúdo é oco. Isso significa superar aquele “tudo é vão” no niilismo com uma afirmação radical da vida: “Era isso a vida? Pois bem! Outra vez!” (ZA, Da visão e do enigma, 1). Nietzsche nos conduz, assim, ao conceito de eterno retorno, que pode ser considerado a “concepção básica” (MARTON, 2016) da obra e o princípio segundo o qual a vida é afirmada em sua integralidade. A vida, como experiência do conhecimento, é afirmada em sua completude e, nesse sentido, o eterno retorno se torna a resposta final da luta contra a negação do mundo promovida pelo niilismo: “tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado, oh, assim, amais vós o mundo, - vós, eternos, o amais eternamente e a todo tempo: e também à dor dizeis: Passa, mas retorna! Pois todo prazer quer - eternidade” (ZA, O canto ébrio).

A eternidade agora, é redefinida não como uma realidade fora da vida, mas como o próprio devir da existência. O que é eterno é o movimento da vida, suas múltiplas variações, suas hierarquias mutáveis, suas dores e suas alegrias. Os novos legisladores entendem que a vida “quer a eternidade de todas as coisas, quer mel, quer borra, quer a bêbada meia-noite, quer túmulos, quer consolo de lágrimas nos túmulos, quer crepúsculos de ouro”, ou seja, aceita a vida em sua integridade (ZA, O canto ébrio). Essa é uma experiência que não nasce da negação do mundo ou daquilo que, pretensamente, torna a vida dura, pesada ou triste. Ao contrário, trata-se de uma afirmação que, nascida da força e da vontade, tem tanto poder, que é capaz de assumir mesmo aquelas perspectivas mais “negativas” que foram, historicamente, associadas à ideia de mundo: “tão rico é o prazer, que tem sede de dor, de inferno, de ódio, de ultraje, de aleijão, de mundo” (ZA, O canto ébrio). É essa atitude que Nietzsche aponta como alternativa ao niilismo:

O dizer-sim à vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade em meio ao sacrifício de seus tipos mais elevados - isto chamei de dionisíaco, isto decifrei enquanto a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para se livrar dos pavores e compaixões, não para se purificar de um afeto perigoso através de sua descarga veemente - assim o compreendeu Aristóteles -: mas a fim de, para além de pavor e compaixão, ser por si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser - aquele prazer que também encerra em si ainda o prazer na aniquilação. (...) Eu, o último discípulo do filósofo Dioniso - eu, o mestre do eterno retorno... (CI, O que devo aos antigos, 5).

Dessa forma, recuperando uma citação de Assim Falou Zaratustra, intitulada “Das novas e velhas tábuas”, Nietzsche encerra o livro fazendo referência à nova tarefa da filosofia que, ao invés de negar a vida, precisa construir novas tábuas de valores orientadas pela vontade afirmadora: “Por que há tanta negação, abnegação em vossos corações?” (CI, Fala o martelo). É preciso ser duro, contudo, para afirmar. E, para tanto, é preciso ser saudável: a “grande saúde” (GM, II, 24) está associada ao aparecimento de um “homem do futuro”, um verdadeiro “homem redentor”, capaz ao mesmo tempo de um “grande amor” e de um “grande desprezo”, um “espírito criador, cuja força impulsora afastará sempre de toda transcendência e toda insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo povo, como se fosse fuga da realidade - quando será apenas a sua imersão, absorção, penetração na realidade, para que, ao retornar à luz do dia, ele possa trazer a redenção dessa realidade” (GM, II, 24). Esse homem do futuro terá, portanto, uma atitude de afirmação daqueles valores que haviam sido negados pela tradição moral do Ocidente e “nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e anti-niilista, esse vencedor de Deus e do nada - ele tem que vir um dia...” (GM, II, 24). O homem do futuro é o que esté por vir, é o fruto acabado do niilismo que, diante da crise dos valores, vive a “fidelidade à terra” e diz não à própria negação com seu sim integral à vida.

Assim, se o gnosticismo representava uma orientação extramundana de negação do mundo, aquela “mais radical rebelião contra a physis”, para usar uma expressão de Leo Strauss a propósito do livro de Hans Jonas, The Gnostic Religion16, com Assim falou Zaratustra Nietzsche restabelece o vínculo entre o ser humano e o mundo, na medida em que cria novos valores (novos laços) de fidelidade à terra. O apelo à fidelidade traduz o apelo a esse novo vínculo como estratégia de superação, portanto, do dualismo e do niilismo presentes na gnose e nas suas marcas ao longo da história ocidental.

A fidelidade nietzschiana não é a do filósofo metafísico, não é a de uma dialética que nos depura de nossas falsas impressões e nos abre o acesso das coisas em si, mas a que investe, justamente, na aparência, na imagem da superfície que se forma sobre um mundo que não planeja expandir-se para um extramundo de essências estáveis, mas que retorna regularmente, convulsivamente, dionisiacamente ou tragicamente à terra. (PINHEIRO, 2003, p. 209)

Por isso, nem mais um estrangeiro e nem um exilado, Zaratustra é o símbolo do vínculo amoroso com o mundo. Essa é a admoestação do discurso cujo título faz referência à Virtude dadivosa, ou seja, à virtude que nasce como alternativa à carência própria da doença e da fraqueza difundidas pela moralidade vigente, responsável por esse “extravio” ou “desaparecimento” da virtude dadivosa (schenkenden Tugend):

Permanecei fiéis à terra (Bleibt mir der Erde treu), irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor dadivoso e vosso reconhecimento seja ao sentido da terra! Assim vos peço e imploro. Não vos deixeis voar para longe do que é terreno e bater com as asas nas paredes eternas! Oh, sempre ouvi tanta virtude extraviada (verflogene Tugend)! Trazei, como eu, a virtude extraviada (die verflogene Tugend) de volta para a terra - sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido - um sentido humano! (ZA, Da virtude dadivosa, 2)

Não há vínculo mais poderoso do que o amor e é precisamente esse o sentimento que mobilizara Zaratustra no início de sua jornada. Aconselhado pelo eremita que evite “subir à terra” porque os homens não merecem esse amor, Zaratustra responde: “Que fiz eu falando de amor? Trago aos homens uma dádiva.” (ZA, Prólogo, 2). Tal presente não é outra coisa que esse gesto absolutamente amoroso de doação da verdade cultivada no alto da montanha, com tal radicalidade que o fez enxergar que as antigas premissas da moralidade não tinham sentido algum (o que se traduz na sua notícia da morte de Deus, a qual se torna uma dádiva precisamente porque livra o homem do grande peso e do grande desgosto, por meio de um novo gesto criativo e amoroso para com a terra). Se o eremita afirma “Agora amo a Deus: os homens já não os amo”, Zaratustra, ao contrário, mostra que Deus morreu e que o grande amor à terra exige a sua descida até a praça do mercado.

Símbolo dos arautos do dualismo das antigas religiões, o eremita representa a negação por excelência, fundada no ato de amor a Deus e de repúdio à terra e, nesse sentido, representa o antípoda por excelência de Zaratustra, que lhe responde, quase ironicamente: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir, para que nada vos tire!” (ZA, Prólogo, 2). Ora, o primeiro ensinamento de Zaratustra será, precisamente, a superação do homem: “Eu vos ensino o além-do-homem” (ZA, Prólogo, 3), aquele que superou a estratégia do dualismo (“Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si próprios”). Por isso, “o além-do-homem é o sentido da terra” (Der Übermensch ist der Sinn der Erde) e é a favor dessa superação dos antigos ideais que é preciso ser fiel à terra:

Eu vos imploro irmãos, permanecei fiéis à terra (bleibt der Erde treu) e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam ou não. São desprezadores da vida (Verächter des Lebens sind es), moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam então! Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas (der grösste Frevel), mas Deus morreu e, com isso morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as entranhas do inescrutável do que o sentido da terra (als den Sinn der Erde)! (ZA, Prólogo, 3).

Depois desse discurso, Zaratustra, mesmo zombado, reafirma seu grande amor aos homens e à terra. Ele mesmo, portanto, recusa as antigas ofensas e convoca para o novo vínculo, para o qual o Übermensch se tornou o personagem central. Anunciado por Zaratustra, o além-do-homem (cujo amor é traduzido por uma fidelidade à terra) é a tarefa que ele impõe a todos aqueles que querem vencer o niilismo - compreendido como atitude de negação do mundo e da vida.

Considerações finais

No seu texto Gnosticism, existencialism and nihilism, cuja primeira versão é de 1952 e que viria a fazer parte, como epílogo, de The Gnostic Religion (de 1958) e, posteriormente, constaria como um capítulo da última parte de The Phenomenon of Life (de 1966), Hans Jonas acentuou as semelhanças entre o que ele chamou de niilismo gnostóstico e niilismo existencialista, representado por nomes como Heidegger, Sartre e Kierkegaard, além do próprio Nietzsche. Jonas liga diretamente o diagnóstico do niilismo à crise trazida pelo hóspede estranho que se abriga no coração da cultura ocidental. O título desse item, que começa citando Nietzsche, é A solidão do ser humano: de Pascal a Nietzsche, pelo que se denota como, para Jonas, o anúncio da morte de Deus está no centro da notícia que promoveu o grande desligamento do ser humano em relação ao mundo, agora não apenas no contexto de uma hostilidade, mas sobretudo, de uma indiferença: a solidão, afinal, não passaria de um sentimento de vazio deixado pela crise dos valores supremos, cuja solução foi o exercício do poder e do domínio sobre o mundo pela via da tecnologia. Não por acaso, segundo Jonas: “os inícios da crise remontam ao século 17, quando tomou forma a situação espiritual do homem moderno” (2004, p. 235). Ora, o grande acontecimento que abre a modernidade é, precisamente, o novo poder da tecnologia que avança sobre um mundo compreendido unicamente pelo materialismo e sua ontologia da morte, que tornou conhecível apenas o que era inerte e, assim, deu origem aos processos de má-compreensão da vida - tema que explica por que, precisamente, Jonas acrescenta o texto em questão a uma obra cujo objetivo central é a reinterpretação do fenômeno da vida. A elevação da racionalidade tecno-científica teria intensificado o fosso entre o ser humano e o mundo, abrindo este último para o exercício dos poderes do primeiro. E isso, dando continuidade às antigas formas de niilismo presentes na antiguidade tardia. Jonas, aliás, resgata o poema de Nietzsche Vereinsamt (ou, Der Freigeist), que diz: “O mundo - uma porta/ a mil mudos e frios desertos!/ Quem perdeu/ o que perdeste, não para em lugar algum” (FP 28[64], do outono de 1884). Jonas destaca o clima de desamparo do homem diante do deserto do niilismo (símbolo da falta de relação com o mundo, já que o deserto é um não-lugar, um lugar sem possibilidade de qualquer vínculo afetivo), o lugar daquele que não tem lugar, que “não para em lugar nenhum”. Não por acaso, Jonas ainda insiste nessa ideia: “assim falou Nietzsche e, concluiu a poesia com as palavras: ‘Ai daquele que não tem pátria’ (Weh dem‚ der keine Heimat hat!)” (JONAS, 2004, p. 237).

A falta de lar é a falta de casa e de pátria, ou seja, a falta de vínculos produzida pelo niilismo tanto na versão do dualismo idealista que negou a existência, quanto naquele seu subproduto, a crise dos valores supremos que levam ao sentimento de solidão e desamparo, típico do niilismo passivo que não suporta viver sem o apoio dos antigos ideais. Não ter um lar é não ter um vínculo com o mundo, atitude típica dos gnósticos, sejam aqueles que se revoltam contra o mundo com hostilidade, sejam aqueles que lhe viram as costas, indiferentes. A essa atitude de negação do mundo e da vida, como vimos, Nietzsche contrapõe, precisamente, pela boca de Zaratustra, uma relação de fidelidade à terra que, no limite, traduz o ideal de uma vida orientada pelo grande amor e pela grande saúde, traduzidas na abertura jubilosa do ser humano ao seu ambiente cósmico. Se o niilismo era negação, portanto, a fórmula da fidelidade à terra é a afirmação da existência em sua integralidade e, nesse sentido, uma alternativa às fórmulas do dualismo niilista que chegaram até a modernidade, passando pelo gnosticismo e pelo cristianismo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Em trabalho anterior (OLIVEIRA, 2008) analisei o conceito de décadence a partir do ponto de vista da influência da obra de Paul Bourget sobre Nietzsche. Nessa referência, é possível notar como a ideia de décadence como doença está ligada “ao vazio de sentido da existência humana e ao desacordo com o mundo”, conforme nota Araldi (2004, p. 59), que lista o “complexo de temas” próprios a essa relação: “declínio (Verfall), decadência (décadence, Untergang, Niedergang), esgotamento (Erschöpfung), desagregação dos instintos (Disgregation der Instinkte), degeneração (Entartung)”.
2 Essa “era da décadence”, da “primazia do princípio desagregador”, a “época de fraqueza” (CI, Incursões de um extemporâneo, 38), da vida declinante (CW, Epílogo). Nietzsche chega mesmo a assumir como tarefa de sua filosofia a compreensão da modernidade: “Minha obra deve conter um juízo geral sobre nosso século, sobre toda a modernidade, sobre a ‘civilização’ alcançada” (FP 9[177], do outono de 1887). Além disso, a modernidade é o tempo do evento decisivo do niilismo: a morte de Deus, evento que, embora largamente preparado pela própria lógica interna da moralização da vida, acaba por se desenrolar de forma decisiva como um acontecimento na era moderna.
3 Araldi (2004, p. 72-81), por exemplo, destaca apenas a relevância das interpretações nietzschianas do cristianismo e do budismo como religiões de tipo niilista que também acabaram oferendo ao homem doente um narcótico contra o próprio niilismo.
4 Ou Mazdaísmo, como também é conhecido: Mazdayasna é como os adeptos do zoroastrismo se referem à sua religião. A palavra é uma combinação de Mazda e yasna, que significa “devoção”.
5 “A língua, a terminologia e a interpretação gregas influenciaram profundamente todas as tradições orientais e contribuíram para sua transformação em uma nova era, a helenística. Síria (Antioquia), onde podemos encontrar os primórdios da formação das comunidades gnósticas, e Alexandria, onde a Gnose teve seu mais belo florescimento, foram ao mesmo tempo centros bem conhecidos da cultura Greco-Oriental (Judaica), na qual os representantes da Gnose foram confrontados pelos movimentos filosóficos e religiosos contemporâneos.” (RUDOLF, 1987, p. 283)
6 Na maior parte, esses textos datam deste milênio, sendo que o mais antigo data de 1288 d.C. Os 21 livros teriam sido criados por Ahura Mazdā e trazidos por Zaraθuštra ao rei Vištāspa, sendo que “na época da conquista de Alexandre, o Avesta foi destruído ou disperso pelos gregos, que traduziram para sua própria língua as passagens científicas de que podiam fazer uso” (KELLENS, 2021).
7 Referente ao último Império Persa pré-islâmico, marcado pela dinastia sassânida (224-651 d.C.).
8 Em The new Science of Politics, de 1952; e Science, Politics, and Gnosticism, de 1962.
9 Entre as várias questões levantadas por Voegelin, podemos citar a o antinomianismo, ou seja, a ideia de que o homem, estando acima do bem e do mal, teria alcançado uma liberdade tal diante da lei que o dispensaria de qualquer obrigação de cunho moral. Tal perspectiva teria sido comum entre os pneumáticos que, tento conquistado a pureza absoluta, já não seriam afetados pelo mundo e, com isso, teriam adquirido uma posição privilegiada (ou seja, autônoma) frente à moral. Em Nietzsche, tal perspectiva estaria associada à plena liberdade diante do reconhecimento da ineficácia dos valores e da morte de Deus, que era a sua fonte. O Übermensch, nesse caso, manteria uma posição similar àquela das castas iniciadas pela gnose e o pathos de distância reivindicado por Nietzsche poderia ser associado à ideia gnóstica de uma posição superior (estranha) longe da contingência do mundo.
10 Ex: FP 1 [72], do outono de 1869, sobre os persas.
11 Texto gnóstico setiano que faz parte dos Apócrifos do Novo Testamento que está entre os tratados que pertencem à Biblioteca de Nag Hammadi (Códice VIII). Uma outra do mesmo texto forma o Códice Tchacos, um antigo papiro egípcio datado de 300 d.C. Set seria o terceiro filho de Adão e “sua ‘outra descendência’, conforme Gênesis 4 e 5, progenitor, para os gnósticos, dos ‘eleitos’ ou ‘perfeitos’, aqueles com acesso à gnose” (WILLER, 2010, p. 20-21). Set seria um epíteto de Allogenes, ou O estrangeiro, que deu título ao chamado Livro do Estrangeiro (ou do Estranho), que relata as revelações de Alógenes, que superou o seu medo e ignorância e ascendeu até o reino de Deus, o Pai Inefável. Entre os autores que fizeram referência a esse texto está Albert Camus, na sua tese de agregatión intitulada Métaphysique chretienne et neoplatonisme. Além disso, o próprio título de um dos livros mais conhecidos de Camus faria referência direta a esse texto gnóstico.
12 Hassan Ibin al-Sabbah II (chamado de o velho da montanha), foi um profeta nizarita que teria atuado na região montanhosa do norte do Irã no século XI e se auto-intitulava o sétimo profeta do Imam Ismael (seguindo Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Maomé). Sua religião misturava elementos do Corão, do Novo e do Antigo Testamento, além da tradição veda hindu e do zoroastrismo, conhecidos pela tradição que remontava à expansão de Alexandre o Grande. Alguns textos encontrados na Índia a seu respeito dão conta que ele teria tido uma visão de Zaratustra que o teria enviado para o norte, em busca de mestres habitantes das montanhas, de quem recebeu a missão de libertar a raça ariana e fundar um império com base na religião ismaelita. Fundou então a Ordem dos Assassinos (que também foi descrita por Marco Polo nos relatos de sua viagem para o Oriente), cujos adeptos impressionavam pela fidelidade e ferocidade no cumprimento dos preceitos, que incluíam ataques suicidas.
13 “Se Dario não tivesse sido vencido, a religião de Zoroastro teria governado a Grécia”.
14 A outra referência é Hafez (ou Hafis), que aparece oito vezes, geralmente em estilo elogioso à sabedoria que o aproximaria de Dioniso. Nietzsche teria conhecido esse personagem por meio de West-östlisches Divan, de Goethe, que admirava a sabedoria oriental do poeta persa. Para Nietzsche, Hafez simboliza a sabedoria humana alegre e leve, simbolizada pelo espírito livre. Entre os textos póstumos de Nietzsche encontra-se até mesmo um poema intitulado An Hafis. Frage eines Wassertrinkers (Para Hafez: Perguntas de um bebedor de água): “Die Schenke‚ die du dir gebaut‚/ ist größer als jed Haus‚/ Die Tränke‚ die du drin gebraut‚/ die trinkt die Welt nicht aus./ Der Vogel‚ der einst Phönix war‚/ der wohnt bei dir zu Gast‚/ Die Maus‚ die einen Berg gebar‚/ die - bist du selber fast!/ Bist Alles und Keins‚ bist Schenke und Wein‚/ Bist Phönix‚ Berg und Maus‚/ Fällst ewiglich in dich hinein‚/ Fliegst ewig aus dir hinaus -/ Bist aller Höhen Versunkenheit‚/ Bist aller Tiefen Schein‚/ Bist aller Trunkenen Trunkenheit/ - wozu‚ wozu dir - Wein?” O poema termina com a questão sobre porque Hafez, que tem o poder de embriagar a todos, exige vinho? Essa questão é interessante na medida em que Nietzsche aproxima o poder do poeta ao poder do vinho, assim como ele considera como narcóticos tanto o álcool quanto o cristianismo, dois elementos que tanto mal fizeram ao espírito alemão, como se lê em O crepúsculo dos ídolos (O que falta aos alemães, 2): “em nenhum outro lugar, os dois grandes narcóticos europeus, álcool e cristianismo, foram mais viciosa e abusivamente utilizados”.
15 Nietzsche, aliás, reconhece a perspectiva gnóstica da moralidade ocidental, tal como ela chegou até Schopenhauer, ao afirmar que a “piedade contida e há muito reprimida” (die verhaltene und lange aufgestaute Frömmigkeit) dos alemães que explodiu na forma de suas filosofias: “como gnose, mística e negadora do mundo (weltverneinend) em Schopenhauer” (FP 38[7], de junho a julho de 1885).
16 Carta de Strauss para Jonas, de 19 de novembro de 1958, arquivo da Universidade de Konstanz (HJA 7-13b-10).
Autor notes
a JRO é doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail: jelson.oliveira@pucpr.br
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