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Aspectos do niilismo em Nietzsche: naturalismo, perspectivismo e justificação estética
JOÃO CONSTÂNCIO
JOÃO CONSTÂNCIO
Aspectos do niilismo em Nietzsche: naturalismo, perspectivismo e justificação estética
Aspects of Nihilism in Nietzsche: Naturalism, Perspectivism, and Aesthetic Justification
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 118-168, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
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Resumo: O perspectivismo de Nietzsche defende que o mundo como um todo é “absurdo”, não tem uma meta, um valor, uma finalidade, um sentido, mas não defende que a condução de uma vida humana possa ser outra coisa que não um reger-se por metas, valores, fins, sentidos. Esta distinção é fundamental para que se compreenda que, por um lado, Nietzsche aceita a “verdade do niilismo” - aceita que o mundo é em si mesmo “absurdo”, o mundo não pode ser racionalmente justificado -, mas, por outro, entende que, num determinado tipo de cultura humana, o mundo pode ser justificado “enquanto fenómeno estético”. É esta possibilidade de uma justificação estética do mundo que faz do pensamento de Nietzsche uma “luta contra o niilismo”, na qual não se trata de reduzir todas as metas, valores, fins e sentidos a ilusões subjectivas, mas sim de ousar pensar uma “transvaloração de todos os valores”.

Palavras-chave: Nietzsche, Niilismo, Naturalismo, Perspectivismo, Estética.

Abstract: Nietzsche’s perspectivism holds that the world as a whole is “absurd”, has no goal, value, purpose, meaning. But it does not hold that conducting a human life can be anything other than following certain goals, values, purposes, meanings. This distinction is crucial if one wants to understand why Nietzsche accepts the “truth of nihilism” - the world is in itself absurd, the world cannot be rationally justified -, while he also thinks that the, in a certain type of human cultures, the world can be justified “as an aesthetic phenomenon”. That is why his philosophy can be a “struggle against nihilism”, whose aim is not to reduce all goals, values, purposes, and meanings to subjective illusions, but rather to dare think through a “transvaluation of all values”.

Keywords: L Nietzsche, Nihilism, Naturalism, Perspectivism, Aesthetics.

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Artigo

Aspectos do niilismo em Nietzsche: naturalismo, perspectivismo e justificação estética

Aspects of Nihilism in Nietzsche: Naturalism, Perspectivism, and Aesthetic Justification

JOÃO CONSTÂNCIO
Universidade Nova de Lisboa, Portugal
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 118-168, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 25 Maio 2022

Aprovação: 14 Maio 2022

I.

Um niilista não acredita em princípios, mas acredita em rãs, ensina-nos Turgueniev. E é porque um niilista acredita em que nada mais se pode saber do que o tipo de coisa que se pode saber através da dissecação de uma rã - e que, a respeito dos seres-humanos, nada mais se pode saber do que as causas e os efeitos cuja dissecação dos seus comportamentos permite descobrir - consequentemente também se pode dizer que um niilista não acredita em nada ou acredita apenas no nada, nihil. Na obra de Nietzsche são identificados muitos tipos de niilismo: o budista, o grego, o platónico, o cristão, o kantiano, o schopenhaueriano e o niilismo dos décadents do fim do século. Sem dúvida, um desses tipos é o niilismo de que fala Turgueniev: o daqueles a quem Nietzsche chama “positivistas.” Mostrar que este tipo de niilismo não é de todo uma posição à qual Nietzsche adere, mas uma que ele claramente rejeita, é uma tarefa que se tornou muito importante nos últimos dez ou vinte anos, pois vem crescendo, sobretudo na literatura secundária anglo-americana, a tendência de atribuir a Nietzsche um naturalismo que, na verdade, é extremamente semelhante, ou mesmo idêntico, ao positivismo que ele tão veementemente critica. Tal naturalismo não lhe é atribuído apenas por comentadores que o aprovam e que nada veem nele de niilista mas também por pensadores, como Robert Brandom, que identificam tal naturalismo (o bald naturalism teorizado e criticado por John McDowell) com uma descrença niilista na razão1.

O cerne desse naturalismo é a tese de que só têm valor explicativo as proposições que digam respeito a um “espaço de subsunção sob leis naturais,” isto é, a mecanismos causais, a causas e efeitos que ocorram no espaço e no tempo. Por isso, as razões que julgamos ter para pensar e agir de um certo modo, ou seja, as razões que inferimos da nossa conceptualização do real e achamos que justificam os nossos juízos e as nossas acções são vazias se não puderem ser referidas a tais mecanismos causais. A autonomia do “espaço das razões” para estabelecer as normas do pensar e do agir - (i.e.) a normatividade desse espaço, a normatividade conceptual - seria assim uma pura ilusão: só o espaço das causas teria poder explicativo e justificativo, “explanations in terms of causes trump explanations in terms of reasons.”2.

Nietzsche seria um representante deste modo de pensar porque este é implicado na concepção nietzschiana da filosofia como genealogia. O método genealógico descreve todo o discurso que pretende justificar a adoção de certas metas, valores ou fins - e especialmente todo o discurso moral - como sendo um mero “sintoma” ou “sinal” de determinados movimentos pulsionais e afectivosque estariam na sua origem, e que o explicariam em termos causais. O princípio da genealogia é o de que todo o discurso deve ser explicado como mero efeito de um mecanismo cego. Se Nietzsche exprime muitas vezes as suas reservas em relação aos conceitos de causa e efeito é apenas porque faz parte do seu projecto filosófico descrever as relações causais como relações de poder. O ponto decisivo é a natureza “cega” das relações de poder, isto é, a sua natureza a-conceptual, portanto irracional.

Se é, de facto, disso que se trata a genealogia nietzschiana, então trata de reduzir todas as metas, todos os valores, todos os fins humanos, até mesmo todos os conceitos, (i.e.) todo o sentido, a meras “projecções” da nossa subjectividade, ou do que somos enquanto uma “vontade de poder” que sente, quer e pensa. Em si mesma, a natureza é isenta de metas, valores, fins ou sentidos; ela é pura causalidade ou, mais exactamente, uma “imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de poder” (BM 22). A própria “verdade” não é senão mais uma “projecção,” um mero valor, um fim, uma meta que nossa vontade dá a si mesma, apenas “o tipo de erro sem o qual um determinado tipo de ser vivo não poderia viver” (NL 1885, 34[253]).

A adoção do método genealógico conduz, pois, à conclusão de que “nada é verdadeiro, tudo é permitido” (Za IV A sombra, GM III 24). Uma verdade genealógica é possível, mas é uma verdade sobre rãs, não sobre princípios - não justifica a adoção de quaisquer valores em detrimento de outros. “Nada é verdadeiro” significa: nada é sagrado, nada importa realmente, não há nada senão diferentes “reivindicações de poder” em diferentes tempos e diferentes espaços, “tudo é permitido.” E isto justamente é o niilismo: esta ausência de metas (Ziellosigkeit), esta consciência de que o real é destituído de valores, de fins, de sentido (werthlos, zwecklos, sinnlos). É este o tipo de niilismo a que o pensamento de Nietzsche parece conduzir, e que ele parece abraçar como “niilismo ativo.”

A tese deste artigo é a de que há algo de fundamentalmente errado neste tipo de interpretação do pensamento de Nietzsche. A crítica do autor ao positivismo implica a rejeição do “naturalismo desnudado”, que seus leitores hoje lhe atribuem, e, em particular, uma concepção do que são os valores, os fins e do que é o fazer sentido das coisas muito diferentes daquelas que acabámos de expor (os valores, os fins e o sentido como meras projecções subjectivas etc.). Ou, noutros termos: por um lado, o perspectivismo de Nietzsche recusa, de fato, ao “espaço das razões” o estatuto de um horizonte judicativo verdadeiramente autónomo - cujas normas deveriam valer universalmente e cuja normatividade deveria ser, portanto, a forma do pensamento em geral e, simultaneamente, a forma do real -, mas, por outro, não reduz as razões a causas e não reconduz os valores, os fins e o sentido a um mecanismo cego.

A estrutura do artigo é a seguinte: em primeiro lugar, consideram-se o conceito de valor (Werth) e o modo como Nietzsche concebe a relação entre a natureza e os valores (secção II.); em seguida, analisam-se o conceito de propósito ou fim (Zweck) e a questão da teleologia (secção III.), e depois o conceito de sentido e a relação entre natureza e sentido (secção IV.) - os resultados dessas secções conduzem a uma análise e a uma discussão sobre o conceito de perspectivismo expresso na célebre nota póstuma de 1886-87, em que Nietzsche escreve que “factos é precisamente o que não há, apenas interpretações” (NL 1886-87, 7[60]) (secções V. e VI.); por fim, o artigo foca a “luta contra o niilismo” (NL 1886-7, 5[50], 7[31) e considera, à luz dos resultados das seções anteriores, o estatuto daquilo que O nascimento da tragédia chama uma “justificação do mundo como fenómeno estético” (NT 24), por oposição a uma justificação racional do mundo, (i.e.) uma justificação que pretenda resultar do ou da racionalidade teórica ou da racionalidade prática, portanto do exercício (supostamente autónomo) do pensamento no “espaço das razões”. Ao longo de todo o artigo, desempenha um papel-chave a análise do modo como Nietzsche reinterpreta a crítica kantiana do juízo teleológico e do juízo estético3.

II.

Não raramente, Nietzsche parece defender a tese de que a única fonte dos nossos valores é a nossa actividade de avaliar e de que, portanto, os nossos valores são meras projeções impostas pela nossa subjectividade a um mundo natural que seria em si mesmo destituído de valor. Devemos atribuir, de fato, a Nietzsche este “projeccionismo,” ou “imposicionismo”, este “naturalismo redutor”?

Consideremos dois exemplos da obra de Nietzsche que parecem justificar tal atribuição. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreve que “apenas através do estimar existe valor”, todas as “tábuas de valores” são meramente “criadas” pelo nosso próprio “estimar” (Schätzen), visto que foram os humanos quem “primeiramente pôs valores nas coisas”, foi o ser humano o primeiro a “criar sentido para as coisas, um sentido humano” (Za I Das mil metas e uma só meta). E na Gaia Ciência, escreve: “Nós, os pensantes que sentem (Wir, die Denkend-Empfindenden), somos os que de facto e continuamente fazem algo que não existe ainda: o inteiro mundo, em eterno crescimento, de avaliações, cores, pesos, perspectivas, degraus, afirmações e negações. […] O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme a sua natureza - a natureza é sempre isenta de valor - foi-lhe dado, oferecido um valor; e formos nós esses doadores e ofertadores!” (GC 301).

Mas o que Nietzsche quer dizer em passagens como essas não é tão simples quanto parece. Em Assim falou Zaratustra, a ideia não é a de que o valor, sendo “criado” pelo estimar ou avaliar humano, e não sendo, portanto, dado ao nosso espírito por algo exterior a ele, seja por isso meramente “subjectivo” e não pertença ao mundo. Pelo contrário, o que Zaratustra realmente diz é o seguinte: “apenas através do estimar existe valor, e sem o estimar seria oca a noz da existência” (Za I Das mil metas e uma só meta.) Portanto, a ideia é a de que “a noz da existência” não é “oca” - pois a criação humana de valor faz que ela não seja oca, o avaliar humano faz com que o mundo tenha valor (como Heidegger assinala, em passos como este Nietzsche usa uma terminologia kantiana-schopenhaueriana segundo a qual “existência”, Dasein, significa “o mundo”, a totalidade do que há, a realidade no seu todo. O que diz é, portanto, que a noz do mundo não é oca.)4.

Também no passo de A gaia ciência Nietzsche convida-nos a imaginar o mundo, ou a natureza, sem a presença humana, portanto sem valor: uma natureza “isenta de valor” (werthlos). É importante notar que também Kant, na Crítica da faculdade de julgar, evoca a imagem de uma natureza isenta de valor: “sem os seres humanos,” escreve, “a criação inteira seria um mero deserto” (KU §86, 442); sem os seres humanos, o mundo “não teria absolutamente nenhum valor”, já que não existiria nele qualquer ser com o mínimo conceito de um valor” (KU §87, 449)5. Como é sabido, o termo “niilismo” foi popularizado por Jacobi justamente para designar esta imagem kantiana da natureza: a imagem de um mundo puramente mecânico, um mundo destituído de valor e regido exclusivamente pelas categorias da crítica da razão pura levada a cabo por Kant. Ao dirigir-se ao mundo, a vontade humana dirige-se a algo que não tem valor algum, portanto é, na verdade, uma vontade que, como escreve Jacobi, “não quer nada”6. Jacobi identifica esse niilismo com o ateísmo, a “ausência de Deus” (Gottlosigkeit) (“Jacobi an Fichte”, 37, 44), entendendo-o como a consequência lógica do idealismo transcendental. Se seguirmos Kant, somos conduzidos a um universo mecânico, newtoniano, do qual está desterrado todo o valor, e que além disso é apenas uma representação nossa, portanto uma mera multiplicidade de “aparições” (Erscheinungen), ou seja, “fantasmas”, “aparições do nada” (“Jacobi an Fichte,” 33.)

Ora, o problema é que, ao contrário de Jacobi - mas muito semelhantemente a Hegel e à crítica que este faz de Jacobi em Glauben und Wissen (1802) e em muitos outros lugares -, Nietzsche não crê que a razão nos force a conceber a subjectividade humana como a subjetividade de uma mente que construísse para si mesma um mundo de meras representações. Esta concepção da subjetividade e do mundo é, na verdade, muito semelhante, talvez até idêntica, àquela que leva ao desespero o célebre “homem louco” que, na Gaia ciência de Nietzsche, anuncia que “Deus está morto” (GC 125). O homem louco compartilha com Jacobi o medo do niilismo, tomado como sinónimo de Gottlosigkeit. Se Deus está morto, então existe apenas um “nada infinito, um “espaço vazio” (GC 125). Mas, pace Heidegger e muitos outros, Nietzsche não se identifica com o homem louco, ainda que certamente concorde que “Deus está morto.” Como bem viu Robert Pippin, Nietzsche entende o desespero e a melancolia do homem louco como “um sintoma, ou uma patologia moderna,” para a qual procura “um diagnóstico”7. Mas, se Nietzsche não subscreve a visão do mundo expressa por Jacobi e pelo homem louco, então, quando afirma na Gaia Ciência que somos nós quem “criamos” e “fazemos” um “mundo de avaliações” e que sem nós a natureza é sempre “isenta de valor,” isso significa que pode ser que não exista um “sujeito,” um res cogitans que “imponha” ao mundo o conceito de “valor.” O seu ponto de partida não é nunca a mente da filosofia de Descartes, mas sim aquilo que ele chama de “óptica” ou o “prisma” da vida (NT/ TA 2).

Assim, os “pensantes que sentem”, referidos no texto, os seres peculiares que “fazem” um “mundo de avaliações” são parte da natureza, são eles próprios “natureza.” Habitualmente, Nietzsche os descreve (isto é, descreve-nos) como um corpo vivo e sentiente, cujos pensamentos e desejos emergem das profundezas da unidade viva e corpórea de um mesmo “querer, sentir, pensar,” ou seja, de uma estrutura hierarquizada (mas também mutável e dinâmica) de pulsões e afetos primariamente animais - e não como seres essencialmente pensantes que pudessem, de algum modo, situar-se fora ou à margem da natureza e “projectar” sobre ela as suas representações sui generis em especial as suas avaliações e conceitos. O que Nietzsche afirma não é a tese de que o realmente real seja uma natureza isenta de valor, e o valor, portanto, seja um mero aditamento humano ao realmente real, vindo, de algum modo, de fora da natureza. O que ele afirma é, antes, que há algo na natureza, nomeadamente nós, que “faz” dela algo diferente do que ela de outro modo seria, a saber: um mundo de “avaliações, cores, pesos, perspectivas, degraus, afirmações e negações” (GC 301).

Um tal mundo não existiria sem os seres humanos, contudo a conclusão que Nietzsche retira desse facto não é a conclusão idealista, segundo a qual há uma “coisa em si” isenta de valor e, oposto a ela, bem como separado dela, um “sujeito” que lhe imponha valor. A oposição que Nietzsche estabelece não é entre a natureza e o humano, mas sim entre a natureza sem o humano e a natureza com o humano.

Ao estabelecer essa oposição, o que pretende é sempre duplo. Primeiro, trata-se de nos fazer ver a necessidade de alterar a nossa concepção do humano, e de olhar para o humano como natureza: o humano como uma forma de vida, um corpo, um organismo que é “o animal avaliador em si” (GM II 8); o humano como “um animal venerador” (GC 346), como a forma de vida animal que merece o nome de “o estimador” (Za I Das mil metas e uma só meta). Mas, em segundo lugar, trata-se de nos fazer ver que, se reconhecemos a peculiaridade do tipo de vida que é a vida humana, temos de alterar, em consequência disso, a nossa concepção da natureza, olhando para ela como sendo não apenas espaço, tempo e causalidade, não apenas uma realidade espaciotemporal e mecânica que fosse destituída de valor - o “nada infinito” do homem louco na Gaia ciência, a “natureza isenta de valor” (GC 301) da concepção mecanicista do mundo -, mas antes como uma realidade constituída de “forças espontâneas, agressivas, conquistadoras, capazes de produzir novas interpretações, novos direccionamentos e novas formas” (GM II 12), forças expansivas que podem ser criativas ao ponto de criarem valores. Se olharmos para nós mesmos, para o humano, através do “prisma da vida,” e se, ao fazê-lo, reconhecermos em nós “o estimador”, teremos de rever também, por analogia, toda a nossa concepção da vida e, na verdade, do mundo como um todo.

É a isto que Nietzsche chama no Nachlass o filosofar segundo a “analogia” do corpo e “seguindo o fio condutor do corpo”8. Ao reflectirmos sobre o humano como “o animal avaliador em si” (GM II 8), somos forçados a rever a nossa concepção de vida e de mundo e, como Nietzsche assinala numa nota póstuma de 1885, a tentar compreender “o elemento criador em todo o ser organizado” (“das Schöpferische in jedem organischen Wesen”); a compreender que todas as unidades de vida orgânica tecem à sua volta “pequenos mundos inventados (erdichteten)”; a reconhecer que a sua capacidade fundamental é “a capacidade de criar (dar forma, inventar, fabricar)”. Para todo o ser orgânico, o assim chamado “mundo exterior,” escreve Nietzsche, é “a soma das estimativas de valor,” de forma que “a representação mecanicista da pressão e do choque [Druck und Stoß]” não passa de “uma hipótese assente na visão e no toque” (NL 1885, 34[247]). Em passos como este, Nietzsche vai ao ponto de declarar que “não existe mundo inorgânico” (NL 1885, 34[247]). O mundo inorgânico é apenas o mundo pensado à luz da “representação mecanicista da pressão e do choque,” e esta é, quando muito, uma “hipótese reguladora,” que só podemos tomar por válida para fazermos sentido do “mundo visível” (NL 1885, 34[247]), mas não para fazermos sentido do mundo ou da natureza enquanto tal.

Portanto, em suma: ao estimarmos, ao darmos e concedermos valor ao nosso mundo, nós fazemos “algo que não existe ainda” (GC 301), mas isto não significa que o realmente real seja um mundo mecânico de processos causais cegos - e que os nossos valores sejam meros figmentos da nossa imaginação; segundo Nietzsche, ao “fazer” um mundo que é uma “soma de estimativas de valor” (NL 1885, 34[247]), o ser-humano, o “estimador”, faz realmente da natureza algo que tem valor em si mesmo - ou, por outras palavras, o que Nietzsche sustenta é que, através da actividade de avaliar o que caracteriza “o animal homem”, a natureza torna-se algo que tem valor no interior da sua “noz” (Za I Das mil metas e uma só meta).

O estatuto de uma afirmação como esta é certamente problemático. Parece tratar-se de uma tese pertencente a uma “filosofia primeira,” uma tese fundacional com a pretensão de determinar, de uma perspectiva transcendental, a realidade dos nossos valores. Contudo, não é esse estatuto que Nietzsche atribui aos seus enunciados filosóficos. Voltaremos a este problema na próxima seção, juntamente com a consideração da questão da teleologia na obra de Nietzsche. Mas, no presente estádio da minha argumentação, o ponto que é realmente importante estabelecer é este: nada indica que Nietzsche pretende reduzir os nossos valores a projecções irreais da nossa subjectividade. Talvez se possa dizer que, em vez disso, pretende que os concebamos como antropomórficos, mas reais. Veja-se já, a título de exemplo, a célebre nota póstuma em que escreve que “factos é precisamente o que não há, apenas interpretações” (NL 1886, 7[60]). Justamente nesta nota, Nietzsche explicita que a sua tese não é a de que “tudo é subjectivo,” sublinhando que a razão por que seria errado sustentar tal coisa é que “o ‘sujeito’ não é algo dado, é algo que é adicionado e inventado e projectado por detrás do que existe” (NL, 1886, 7[60]). O que existe é a natureza, e esta inclui as avaliações humanas. Semelhantemente, numa outra nota do Nachlass em que concede ter o seu próprio “tipo de ‘idealismo’” (“Meine Art von ‘Idealismus’”, NL, 1882, 21[3]) - visto que crê que “toda a sensação contém uma certa estimativa de valor (Werthschätzung)”, e que toda a estimativa de valor “fantasia e fabrica” (phantasirt und erfindet, NL 1882, 21[3]) -, Nietzsche escreve “idealismo” entre aspas, e acrescenta imediatamente que aquilo que as nossas estimativas de valor fantasiam e fabricam (ou “inventam”, “poetizam”) é efectivamente-real, ainda que o seu tipo particular de realidade (ou de “efectividade-real”, Wirklichkeit) seja “completamente diferente da efectividade-real da lei da gravidade” (NL 1882, 21[3]). Também aqui Nietzsche assinala explicitamente que “não podemos ‘despir (abstreifen)’” da natureza todas as estimativas de valor que fantasiamos e fabricamos (NL 1882, 21[3]), de tal forma que, depois que o fizéssemos, pudéssemos lidar apenas com um mundo mecânico constituído de espaço, tempo e causalidade sem “projectar” nele quaisquer valores (cf., de novo, NL 1886-87, 7[60] e, por exemplo, GC 373).

O fato de que nós, enquanto seres vivos sentientes-querentes-pensantes, “fazemos” o nosso mundo não nos obriga a retirar as conclusões “anti-realistas” que são frequentemente atribuídas a Nietzsche. E isso resulta ainda mais claro da análise do modo como Nietzsche usa o verbo “fazer” (machen) quando, por exemplo, apresenta a sua concepção da “moralidade dos costumes” (die Sittlichkeit der Sitte) na Genealogia da moral. Aí, escreve, em itálico, que os costumes “fazem” de nós um ser “até certo ponto submetido à necessidade, uniforme, igual entre iguais, regular e, consequentemente, previsível” (GM II 2,). Claramente não pretende dizer com isso que, ao obedecer a certos costumes, a nossa natureza original permanece a mesma, enquanto um sujeito pensante lhe impõe um dado conjunto de representações meramente subjectivas. O que ele pretende dizer é, antes, que a natureza humana, que inclui o corpo (ou é corpo), sofre uma transformação real por efeito da prevalência do costume. Os costumes e a vida social nos fazem diferentes do que éramos antes, através dos quais adquirimos uma nova natureza: uma “segunda natureza” (eine zweite Natur).

Na sua obra publicada, Nietzsche usa por três vezes a expressão “segunda natureza”9. Na Aurora, escreve que as nossas pulsões naturais podem ser “transformadas por juízos morais”, e nesse caso adquirem uma “segunda natureza” (A 38); na Gaia ciência, explica que aquilo que ele chama de “dar estilo” ao caráter envolve adicionar ao caráter “uma grande massa de segunda natureza,” assim como remover “um bocado de primeira natureza” (GC 290); e noutro aforismo da Aurora, intitulado “Primeira natureza”, elucida: “Tal como agora nos educam, adquirimos primeiro uma segunda natureza: e têmo-la quando o mundo nos considera maduros, maiores de idade, utilizáveis. Alguns poucos são suficientemente cobras para um dia se desfazerem dessa pele: quando, sob o seu invólucro, a sua primeira natureza se tornou madura. Na maioria, o gérmen dela ressecou” (A 455). Ao habitarmos um mundo no qual há juízos morais, no qual podemos igualmente nos empenhar em redesenhar o nosso carácter, e no qual recebemos uma educação (que pretende nos tornar “utilizáveis” para a sociedade), desenvolvemos avaliações e valores que implicam o intelecto e juízos intelectuais. Essas novas estimativas de valor se assentam em conceitos e raciocínios. É por isso que o modo humano de avaliar vai muito para além dos juízos instintivos inerentes às pulsões que constituem a nossa primeira natureza, e é por isso que difere em muito do modo de avaliar dos outros tipos de organismos animais de que temos conhecimento. Contudo, segundo Nietzsche, isso não impede essas novas estimativas de valor, essas “segundas” avaliações, de serem tão naturais como as anteriores e “primeiras”. Na verdade, como aqueles três passos ilustram, Nietzsche crê que essas avaliações supervenientes são suficientemente naturais e poderosas para lograrem transformar a nossa primeira natureza, isto é, para fazerem uma segunda natureza com base na primeira que nos é dada. A primeira natureza consiste naquilo que Nietzsche chama de os “velhos instintos” (GM II 16) do caçador-recolector. “Esses instintos do ser-humano selvagem, livre e nómada” (GM II 16), os “instintos animais” (GM II 22) que se formaram no curso da evolução da nossa espécie e fizeram dela o que ela é antes de ser aprisionada na “camisa-de-forças” da “moralidade dos costumes,” i.e. da vida em sociedade (GM II 2). Tais instintos permanecem activos em nós enquanto vão sendo gradualmente transformados pelas avaliações sociais e espirituais, mas mesmo quando se “tornam maduros” em vez de “ressecarem”, são forçados a se exprimir (a “descarregar-se”) num horizonte de sociabilidade parcialmente “feito” de juízos intelectuais, portanto num espaço de pensamento e acção no qual são pedidas e dadas razões para se pensar e agir de um certo modo e não de outro - ou seja, num horizonte de sociabilidade no qual está longe de se verificar que as razões pedidas e dadas para justificar pensamentos e acções nada contam, ou que são meras ilusões ou mistificações. Pelo contrário, um tal horizonte é, constitutivamente, um “espaço de razões.”10.

Tudo isso significa que Nietzsche está, afinal, mais próximo do “naturalismo de segunda natureza” defendido por John McDowell do que do “naturalismo desnudado”, ou mecanicista e redutor, que muitos lhe atribuem. É igualmente interessante fazer notar que, tal como foi demonstrado recentemente por Stefano Marino, o fato de McDowell ter inspirado a sua concepção de uma “segunda natureza” na obra de Gadamer significa que a inspirou indirectamente (e sem se aperceber disso) em Nietzsche, pois Gadamer retirou a sua concepção de uma “segunda natureza” de toda uma tradição filosófica e científica que remonta não apenas a Jacob von Uexküll, Max Scheler e Arnold Gehlen mas também ao modo como estes autores foram directamente influenciados pelos passos da Aurora e da Gaia ciência citados acima11.

Mas consideremos agora a questão da finalidade e a concepção nietzschiana de propósito ou fim (Zweck). Veremos que esta desempenha um papel crucial no modo como Nietzsche desenvolve a sua concepção não mecanicista da vida e da natureza.

III.

Em 1868, antes de começar a trabalhar nos textos que conduziriam, quatro anos depois, à publicação de O nascimento da tragédia, Nietzsche estudou a Crítica da faculdade de julgar, de Kant, e escreveu um conjunto de notas a partir das quais planeava fazer uma tese de doutoramento sobre a crítica kantiana do juízo teleológico. Recentemente, um artigo inovador de Sebastian Gardner sobre as posições de Nietzsche acerca de Kant e da teleologia tornou claro que aquilo que Nietzsche escreve nessas notas de 1868 é tão complexo quanto é original, visto que inclui um posicionamento crítico e um esforço de diferenciação em relação não apenas a Kant, mas também a Schopenhauer, Lange e Goethe12. Procurarei mostrar que essas notas oferecem elementos cruciais para se compreenderem as posições de Nietzsche sobre a teleologia expressas nas suas obras da maturidade.

As notas são dominadas por um ponto em que Nietzsche concorda com Kant: os seres vivos - na medida em que são organismos - não podem ser compreendidos em termos mecânicos, ainda que seja igualmente verdade que o conhecimento científico da natureza é mecanicista e nenhum outro tipo de explicação além da mecanicista seja admissível nas ciências da natureza (como a explicação com recurso a uma providência divina); para se compreenderem os seres vivos qua instanciações da “vida”, ou qua organismos vivos, é necessário que se recorra ao conceito de propósito ou fim (Zweck). Ao concordar com Kant neste ponto, Nietzsche assinala que, para Kant, “mecanismo” designa o mundo isento de causas finais, o mundo da mera causalidade (KGW 1/4, 62[41]); que Kant viu que as ciências naturais são “exactas” só na medida em que são conhecimento da natureza enquanto um mundo mecânico regido por leis matemáticas (KGW 1/4, 62[23]); que Kant também viu que um tal mundo é a única coisa que podemos realmente compreender (“Wir verstehen nur einen Mechanismus”, KGW 1/4, 62[24]), e que isto significa que as categorias mecânicas definem os limites do estritamente conceptual: tudo o que exceda o reino do mecânico situa-se para lá do alcance da física como ciência matemática, portanto para lá do alcance de conceitos exactos, constitutivos, determinantes (KGW 1/4, 62[39-41]). Enquanto seres humanos, somos, porém, forçados a pensar para lá do mecânico, pois não podemos deixar de pensar sobre o fenómeno da “vida,” tanto em nós mesmos quanto em outros seres orgânicos. Tal não é assim porque a existência de seres vivos requeira uma explicação não mecânica. A emergência de seres vivos pode e deve ser concebida em termos mecânicos, acidentais, não teleológicos (KGW 1/4, 62[52], [5]). Mas a sua forma - ou seja, o modo como existem enquanto unidades individuais de vida - é descontínua com o inorgânico e não pode, portanto, ser explicada em termos mecânicos (KGW 1/4, 62[47]; cf. 62[24], [43], [45], [46]). O que Kant demonstrou foi que a forma orgânica tem de ser pensada como tendo uma propositividade, ou finalidade interna: a actividade das partes causa a actividade do todo, mas a actividade do todo, i.e. o relacionamento funcional e hierárquico das partes no todo, causa a actividade das partes, de tal modo que “um organismo é aquilo no qual tudo é fim e, reciprocamente, meio [para um fim]” (KGW 1/4, 62[22]). Contudo, só os conceitos das ciências matemáticas e mecânicas são determinantes, constitutivos, exactos (só deles se pode afirmar que “dão a lei à natureza”) - e, se por um lado eles excluem a finalidade, i.e. a relação entre meios e fins, mas, por outro, não se pode pensar uma unidade orgânica sem se pensar a sua finalidade interna, então os juízos nos quais se formula este pensar, os juízos que articulam a ideia de finalidade interna, não são “ciência,” não são juízos “lógicos” (i.e. cognitivos), mas não deixam por isso de ter um estatuto diferente de juízos meramente “subjectivos” (e.g. da mera expressão de preferência idiossincráticas): são juízos “reflexivos” (KGW 1/4, 62[40]). Não são conhecimento, mas são um modo legítimo de contemplação: eine Betrachtungsweise, como Nietzsche diz (KGW 1/4, 62[23]); ou, como remata Gardner no seu artigo, a teleologia não é realmente explicação, mas é “contemplação segundo formas.”

Em suma: Nietzsche subscreve a tese kantiana segundo a qual não podemos evitar conceber as unidades orgânicas (organismos, seres-vivos) como sendo em si mesmas uma finalidade interna que resultam, a partir de si mesmas, de uma tal finalidade, o que significa que a vida enquanto tal é já algo para lá do conceptual no sentido mais estrito do termo. Mas, para Nietzsche, isto quer dizer então que a vida é “o que gera espanto” (das Wunderbare, KGW 1/4, 62[15]), a vida é “incognoscível” (KGW 1/4, 62[52]), é “o segredo,” o “enigma”, (KGW 1/4, 62[29]), é “obscura,” “algo completamente escuro para nós” (“uns etwas völlig dunkles,” KGW 1/4, 62[47]). Por que essa conclusão?

O ponto de partida de Nietzsche é a razão por que o próprio Kant considera que nunca poderá “surgir um Newton capaz de explicar a geração de um talo de erva” (KU §75, 338), i.e. que há algo de inexoravelmente misterioso nos seres-vivos, algo que nunca poderá ser explicado: nós precisamos das categorias mecânicas para pensar um objecto espácio-temporal, mas quando tentamos pensar um ser vivo essas categorias colapsam, pois o que é causa é, ao mesmo tempo e no mesmo respeito, efeito e vice-versa. Como já se assinalou acima, as partes são causas do todo e um efeito do todo, e o todo é um efeito das partes e uma causa das partes. O modo como as partes se organizam num todo não pode ser compreendido segundo essas categorias, e nos obriga a pensar esse todo, ou seja, a forma particular de “vida” que é posta perante nós no curso da nossa experiência sensível, como o “fim” ou “propósito” das partes (KGW 1/4, 62[47]). A forma sensível de um ser vivo é apenas a superfície, ou a aparição, do todo que é o seu fim (ou, na terminologia de Goethe, da “ideia” que se realiza através das partes: a ideia de gardénia, ou de erva, ou de sapo, ou seja do que for) - só que esse fim não é observável no plano sensível, esse fim é pensado por nós, portanto algo que nós temos de “fabricar” ou “inventar” (erfinden, KGW 1/4, 62[40], [52]) de modo a podermos subjugar, no plano da compreensão, o que na verdade não compreendemos, isto é, de modo a podermos fazer sentido dada forma orgânica, das “propriedades que aparecem” (KGW 1/4, 62[40]): “o conceito do todo é porém obra nossa. Aqui reside a fonte da representação do fim. O conceito do todo não reside nas coisas, mas sim em nós” (KGW 1/4, 62[28]); “o que vemos da vida é forma; o modo como a vemos é o indivíduo. O que se esconde por detrás disso é incognoscível” (KGW 1/4, 62[52]).

O problema é, portanto, duplo: (a) por um lado, reconhecer a forma orgânica num ser vivo individual implica pensar um fim, mas pensar um fim é pensar algo que nem é dado no plano sensível nem pode ser pensado segundo as categorias do entendimento, portanto algo que, apesar de ser pensado, permanece “completamente escuro para nós”, “incognoscível”; (b) por outro lado, mesmo que pudéssemos explicar e, portanto, compreender realmente a forma orgânica de uma unidade individual de vida, bem como a sua emergência a partir do inorgânico - de modo que nada de misterioso subsistisse na sua apresentação sensível -, ainda assim a nossa conceptualização da sua finalidade interna não nos permitiria compreender a vida enquanto tal. Como Nietzsche diz, existe uma “infinitude de formas finalísticas [zweckäßig, ‘conformes a um fim’]”, mas “a vida ela própria não pode ser pensada como fim [Zweck] porque, para agir segundo fins, ela tem de estar já pressuposta” (KGW 1/4, 62[46]). A vida ela própria não tem propósito (ela é antes o pressuposto de todos os propósitos singulares, de todas as instâncias de finalidade interna de organismos individuais), portanto a vida como um todo é caos. A questão é, em última análise, a impossibilidade de se dar uma razão para a existência da finalidade interna das inúmeras formas orgânicas individuais que se interligam umas com as outras e constituem a totalidade da vida no nosso planeta. Tal como Nietzsche afirma múltiplas vezes (cf., sobretudo, KGW 1/4, 62[46]), a vida não é racional: da conformidade a fins das inúmeras formas de vida existentes não se pode derivar de modo algum a existência de um todo racional, ou, por outras palavras, uma conformidade a fins do próprio todo da vida, a racionalidade do todo (o que explica por que é tão importante para Nietzsche rejeitar uma das teses da crítica kantiana do juízo teleológico - a ideia de que pensamos que há fins na natureza porque fazemos uma analogia com a ocorrência de fins na racionalidade da nossa acção; cf. Gardner).

Nietzsche considera que conceitos como “propósito” ou “fim e “meio” ou “órgão” são “inventados,” “fabricados”, contudo não considera que sejam meramente inventados. Nunca sugere que tais conceitos sejam um esquema conceptual meramente “imposto” pela nossa subjectividade a algo que, anteriormente, fosse dado aos nossos sentidos - ou seja, “imposto” a algo simplesmente “dado” (i.e. a um datum intuitivo ou a-conceptual). Não nega que os conceitos em causa captem uma distinção real. São conceitos “inventados,” mas são o que permite que concebamos e experimentemos a “vida” como algo diferente do inorgânico, ou mecânico, ou meramente material. O que desse modo concebemos e experimentamos, a “vida”, é realmente real, embora, ao mesmo tempo, seja “algo completamente obscuro”. Ou, por outras palavras, os conceitos inventados de que dispomos lançam alguma luz sobre o que é a vida, sem deixar por isso de ser verdade que essa luz é diminuta e, portanto, a vida permanecerá sempre para nós “um enigma”13.

Já aqui, Nietzsche sustenta que a vida escapa a uma conceptualização que pudesse torná-la transparente, compreensível - i.e. que não há uma justificação racional da vida. Mas isso não o leva, de modo algum, a defender um naturalismo assente na ideia de causa e efeito. Para Nietzsche, a vida não é um reino de “subsunção sob leis naturais” ou de “causalidade cega”. Ao contrário do que sustenta o “naturalismo desnudado” que McDowell tanto teme - e que, correctamente, compreende ser típico do niilismo da idade moderna -, Nietzsche sustenta que a vida não é redutível às categorias do mecanicismo. A vida não nos é acessível sem o conceito de finalidade interna - ainda que este conceito seja problemático, “fabricado”.

Mas importa verificar agora se o que Nietzsche diz sobre a teleologia nas obras da maturidade coincide ou diverge do que encontrámos nas notas de 1868 sobre a teleologia em Kant. Uma resposta exaustiva não poderia deixar de requerer outro artigo, ou mesmo um livro, mas talvez um curto conjunto de notas permita concluir que, no essencial, o Nietzsche da maturidade concorda com o da juventude (Veja-se também o final do artigo de Gardner).

Atente-se num texto crucial: o aforismo 109 da Gaia Ciência. Aqui, Nietzsche parece rejeitar a realidade do teleológico, ao escrever “o carácter total do mundo […] é caos, por toda a eternidade” (GC 109). De facto, se a teleologia implica a tese de que o universo tem uma finalidade última - que tudo nele são meios para a realização de um fim -, então é óbvio que Nietzsche nega em absoluto a teleologia. O principal ponto do texto é justamente este: que não devemos conceber a realidade orgânica, e especialmente a realidade humana, a vida humana, como uma espécie de “objectivo secreto” do universo (GC 109). Mas isso é completamente diferente de negar que haja seres orgânicos e que a organização interna dos seres vivos tenha de ser pensada como envolvendo uma finalidade interna. Sem dúvida, Nietzsche defende que “o carácter total do mundo […] é caos, por toda a eternidade” (GC 109, itálico meu), mas, ao defendê-lo, defende também que nem tudo no universo é caos. É falsa a crença pré-moderna em que a realidade orgânica é “essencial, comum e eterna” no universo; o elemento orgânico no universo é, antes, algo “indizivelmente derivado, tardio, raro, acidental, que percebemos somente na crosta da terra” (GC 109). Mas é, ainda assim, algo real. Continuamos a ser forçados a reconhecer o carácter excepcional dos seres vivos: que eles têm uma ordem interna, uma finalidade interna no meio do caos que é o universo. Ou, como diz Nietzsche, continuamos a ter de reconhecer que a “vida”, ou “o desenvolvimento do orgânico,” é “uma excepção,” e na verdade “a excepção das excepções” (GC 109).

Em suma: a experiência nietzschiana do universo como “caos” nada tem que ver com a negação de que os seres vivos tenham de ser pensados como sendo constituídos por uma finalidade interna. Tal experiência é, antes, sinónimo da pergunta pelo “valor da existência,” a “aterradora” questão que Schopenhauer foi o primeiro a levantar na idade moderna: “a existência [i.e. o mundo] tem, de todo, um valor?” (GC 357). Nietzsche apresenta muito explicitamente o surgimento desta pergunta na obra de Schopenhauer como a consumação e a expressão final do lento processo histórico que, na idade moderna, fez cair a crença pré-moderna em que o universo teria uma finalidade última, especialmente uma finalidade moral. Nietzsche chama à morte desta crença um “evento pan-europeu”, que descreve assim: “Encarar a natureza como se ela fosse prova da bondade e protecção de um Deus; interpretar a história para glória de uma razão divina, como perene testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais últimas; explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens devotos, como se tudo fosse previdência, aviso, concebido e disposto para a salvação da alma - isso agora acabou” (GC 357). Não se trata aqui senão do desenvolvimento do que Nietzsche havia escrito nas notas de 1868: que a vida não é um todo racional, a finalidade interna das inúmeras manifestações singulares da vida não significa que o todo tenha uma finalidade e possa ser racionalmente justificado: a vida é, neste sentido, “inteiramente obscura”.

Não deixa por isso de ser verdade que, nos escritos da maturidade, Nietzsche tenda a evitar o vocabulário dos “fins” ou “propósitos” e a descrever o orgânico, ou aquilo a que chama a organização “oligárquica” dos organismos (e.g. GM II 1), como resultando de relações dinâmicas entre “esferas de poder” e, posteriormente, entre “vontades de poder”. Mas está longe de ser sempre assim, e sobretudo isso não implica o abandono do conceito kantiano de finalidade interna. Se considerarmos, por exemplo, o capítulo 12 do Segundo Ensaio da Genealogia da moral - um texto-chave neste quadro -, verificamos que a hipótese da “vontade de poder” (Wille zur Macht) aparece intimamente ligada ao conceito de “fim” (Zweck). Sem dúvida que, aqui, Nietzsche rejeita expressamente vários aspectos centrais da concepção tradicional da explicação teleológica. Mas, longe de despedir a ideia de finalidade interna, apenas a redescreve nos termos de relações de poder (ou “vontade de poder”).

O fio condutor do texto é a ideia de que nada é útil em si mesmo, nada nasce sendo em si mesmo um meio para um dado fim ou propósito. Algo só pode tornar-se útil na medida em que algo de outro exerça poder sobre esse algo: “[…] os fins, a utilidade, não são mais do que sinais [Anzeichen] de que uma vontade de poder passou a dominar uma outra coisa menos poderosa, imprimindo-lhe, por conta própria, o sentido correspondente de uma certa função” (GM II 12). E isto é assim não só no que diz respeito à utilidade (ou finalidade externa) de uma cadeira ou de uma maçã, mas também à função de um órgão de um organismo vivo. Por exemplo, um olho torna-se olho, algo que pode ser usado para ver, e uma mão torna-se mão, algo que pode ser usado para agarrar, só na medida em que o olho e a mão podem ser dominados pela unidade de “vontade de poder” que é o organismo no seu todo. Ora, nos próprios termos empregados aqui por Nietzsche, uma “vontade de poder” não é nada senão um “sistema de fins” (ein System von Zwecken, GM II 12, KSA 5.313). Os organismos vivos são sistemas de fins, i.e. uma auto-organização de “pulsões” em relações de meios e fins (ou de “comando e obediência”), o que significa que os organismos vivos só são compreensíveis como organismos vivos se forem concebidos como instâncias de finalidade interna - é esta, de novo, a tese kantiana que Nietzsche pretende fazer vingar.

Ao fazer isto, Nietzsche sublinha que o reino da realidade biológica é um reino de evolução, e que toda a concepção pré-darwiniana de finalidade interna - como a de Kant ou de Hegel - tem de ser revista. Por isso, escreve que o acaso, o acidental desempenha um papel decisivo no curso da evolução de toda e qualquer espécie biológica, na verdade de todo e qualquer órgão de uma espécie; sustenta que nenhum fim ou “sistema de fins” é eterno; e rejeita, com toda a razão, que o desenvolvimento dos seres vivos possa ser entendido como um “progressus orientado para uma dada meta e menos ainda como um progressus lógico e económico, alcançado com o mínimo dispêndio de força e custos” (GM II 12). A evolução biológica (já para Darwin) nada tem que ver com um progresso em direcção a um telos, a um estado de perfeição de certa forma dado de antemão, e, portanto, não há novamente qualquer razão para supor que pudesse haver um fim último para a vida como um todo, e menos ainda para o universo. Mas a conclusão que Nietzsche retira de tudo isto não é a de que as reflexões teleológicas devam ser substituídas por explicações mecanicistas. As reflexões sobre a vida têm de permanecer “quasi-teleológicas,” pois têm de considerar os “indivíduos,” i.e. as unidades ou instâncias particulares de “vida,” como “sistemas de fins”14.

Em passos como este, deve ser claro que a hipótese da “vontade de poder” não se limita a rever e descrever as relações causais como relações de poder: revê e descreve também a finalidade interna dos organismos como relações de poder.

Além disso, Nietzsche declara explicitamente no texto que o seu método filosófico é fundamentalmente oposto ao “instinto e ao gosto agora dominantes”, os quais levam a crer na “absurdidade mecanicista de todo o acontecer” (die mechanistische Unsinnigkeit alles Geschehens, GM II 12, KSA 5.315). Como sempre no contexto de uma genealogia, Nietzsche defende que essa visão mecanicista da natureza não resulta de uma descoberta científica sobre o carácter que as coisas objectivamente têm, mas sim de certos pré-juízos normativos. É a “idiossincrasia democrática” da idade moderna que leva as pessoas a evitar reconhecer que as relações de poder fazem parte da essência da vida, e, portanto, que a vida é um reino de organização hierárquica emergente de tais relações de poder - ou seja, de confrontos que têm lugar entre “forças espontâneas, agressivas, conquistadoras, capazes de produzir novas interpretações, novos direccionamentos e novas formas” (GM II 12). A visão mecanicista da natureza é uma função do “misarquismo moderno”, e na verdade uma forma de “niilismo administrativo,” fórmula cunhada por Huxley para censurar a visão mecanicista da evolução proposta por Herbert Spencer - a qual fórmula Nietzsche corrobora, acrescentando que (infelizmente) se trata de “bastante mais que ‘administração’” (GM II 12) (A ideia parece ser a de que se trata, na verdade, de domesticação, disciplina e cultivo etc.).

Não se pode deixar de referir também o modo como, nas obras da maturidade, Nietzsche relaciona o tema da finalidade interna com o da consciência. Tal como já Schopenhauer antes dele, Nietzsche compreendeu muito bem que a finalidade interna dos organismos não depende da consciência, i.e. da autoconsciência. Como escreve, por exemplo, numa nota póstuma de 1888: “Evitemos explicar a finalidade [Zweckmäßigkeit] através do espírito: não há razão para atribuir ao espírito a capacidade exclusiva para organizar e sistematizar. O sistema nervoso tem uma riqueza muito mais extensa: o mundo da consciência é-lhe acrescentado” (NL 1888, 14[144]). Esta afirmação é, obviamente, compatível com a concepção kantiana da finalidade interna dos seres-vivos, dado que Kant a concebe precisamente como um processo de auto-organização que não envolve qualquer tipo de tomada-de-consciência na maior parte dos seres vivos (por exemplo, num talo de erva ou numa árvore), e que, mesmo no caso dos seres humanos, não é de modo algum arquitectada pela autoconsciência, sendo, pelo contrário, fundamentalmente “instintiva” e “inconsciente” no humano como nos outros seres vivos.

Deve notar-se também que, nos anos da maturidade, Nietzsche parece, por vezes, negar a existência mesma de fins ou propósitos na natureza - mas, na verdade, o que quer dizer é apenas (a) que a finalidade interna dos organismos não depende de fins ou propósitos conscientes e (b) que ela não é da mesma ordem que a finalidade última que a racionalidade pode dar - ou pretende dar - a determinadas séries de eventos naturais ou históricos. Assim, escreve, por exemplo, numa nota póstuma de 1876, que “não há fins (Zwecke) na natureza, e contudo a natureza cria coisas da mais elevada finalidade” (Zweckmäßigkeit, NL 1876, 23[114]), ou seja, não há na natureza como um todo fins racionais e dependentes de uma consciência, e contudo cada ser vivo é a emergência de um polo de auto-organização, uma unidade da “mais elevada” finalidade interna. Do mesmo modo, a concepção nietzschiana das nossas pulsões e instintos animais - e da forma como desempenham um papel crucial na formação de pensamentos conscientes e acções deliberadas - resulta da definição kantiana de instinto, provavelmente na formulação que ela adquire na obra de Schopenhauer: um instinto é “um agir segundo o conceito de um fim [Zweck], mas inteiramente sem este conceito” (WWV II §44, 616)15. Não se trata de defender que a consciência seja meramente um efeito de mecanismos causais ocultos, mas sim que as formas orgânicas têm de ser concebidas como algo que opera segundo uma conformidade a fins que são internos e não dependem nem da consciência nem muito menos da racionalidade. Por outro lado, nada nesta concepção da finalidade interna dos organismos humanos implica que a consciência, a autoconsciência e a racionalidade deliberativa sejam “epifenoménicas,” i.e. nunca contem para a decisão de qualquer acção humana. Quando Nietzsche escreve, por exemplo, no aforismo 360 da Gaia Ciência, que, numa acção humana, o “fim” tido em vista (pela consciência e pela razão) é “frequentemente um pretexto embelezador, um posterior fechar de olhos da vaidade, que não quer admitir que o barco [i.e. o organismo actuante] segue a corrente na qual fortuitamente caiu” (GC 360), tal não quer dizer que, pelo menos por vezes - e até nas vezes mais importantes, quando se trata de decidir como conduzir a vida -, os fins conscientes não sejam uma força catalítica (ou “directiva”) que, por um lado, não é o que faz mover o “barco,” mas, por outro, é como um leme que lhe dá direcção e que, portanto, tem impacto (ainda que um impacto menor) na “situação total de poder” que constitui o organismo (die gesammte Macht-Lage, NL 1885-86, 1[61])16.

Mas, para se compreender melhor toda esta concepção da vida, há que se considerar agora, ainda que sucintamente, a concepção nietzschiana de “sentido” (Sinn), a qual complementa a sua concepção de valor e de fim.

IV.

Nietzsche usa frequentemente a palavra “sentido” (Sinn) como sinónimo de “propósito,” “fim” e mesmo de “utilidade” (Nützlichkeit) (e.g. GM II 12-13, GM III 28), e praticamente não distingue “sentido” de “valor” (e.g. Za I Das mil metas e uma só meta, GC 373). Encontrar ou dar sentido a algo é inserir algo num “sistema de fins” (GM II 12), e tal implica estabelecer uma certa hierarquia de valores. Assim, quando Nietzsche descreve, como vimos, a finalidade interna dos organismos como a formação de “sistemas de fins,” e quando argumenta que “os fins, a utilidade, não são mais do que sinais de que uma vontade de poder passou a dominar uma outra coisa menos poderosa, imprimindo-lhe, por conta própria, o sentido correspondente de uma certa função” (GM II 12), parafraseia esta afirmação dizendo que uma coisa (seja uma cadeira ou um “órgão fisiológico”, um organismo ou “uma instituição jurídica, um costume social, um uso político, uma dada forma no âmbito das artes ou no do culto religioso”) só adquire “utilização efectiva e ordenação dentro de um sistema de fins” na medida em que é “sempre de novo reinterpretada de uma nova perspectiva [auf neue Ansichten ausgelegt] por uma força que sobre ela vem exercer o seu domínio” (GM II 12). “Dominar,” “subjugar”, “exercer poder” ou “tornar-se senhor sobre…” é sinónimo de “re-interpretar”, “interpretar de um novo modo” (Neu-Interpretieren) (GM II 12, KSA 5.314).

Poder e interpretação são, pois, duas metáforas complementares, que nos ajudam a tornar compreensível o fenómeno da finalidade interna. Ou, por outras palavras, não podemos compreender um ser vivo como ser vivo se tentarmos compreendê-lo como um mecanismo: um ser vivo só nos pode aparecer como ser vivo, i.e. ser compreendido como organismo, se concebermos as relações entre as suas partes como relações de poder e se compreendermos estas relações como relações entre signos ou sinais, isto é, como sentidos, não causas. A “interpretação” é, assim, uma nova metáfora para dar conta da mesma descoberta expressa nas notas de 1868 sobre a teleologia em Kant: os seres vivos organizam-se internamente a si mesmos, em processos nos quais atribuem espontaneamente aos seus órgãos um sentido funcional, i.e. nos quais se interpretam a si mesmos como “sistemas de fins”. Similarmente, lidam com o assim chamado “mundo exterior” interpretando o que nele aparece à luz dos seus “sistemas de fins” internos. Finalidade quer dizer sentido, e sentido quer dizer finalidade.

Porém, se o “sentido” de uma mão é ser útil para agarrar, o “sentido” de uma maçã é ser útil para comer, o “sentido” de uma forma artística é aparecer como bela a quem a contempla, etc., então “sentido” é, de facto, o mesmo que “valor”, e encontrar sentido no mundo (incluindo nas acções que se praticam) é o mesmo que encontrar nele valor e propósito, ou finalidade (note que o facto de não podermos evitar interpretar tudo à luz dos nossos sistemas internos de fins não implica, pelo menos até um certo ponto, não podermos compreender como é que outros seres vivos interpretam o mundo e encontram nele valor, propósito e sentido).

Esta identidade entre sentido, valor e finalidade explica muitos aspectos do pensamento de Nietzsche, mas em especial aquele de que nos ocupamos neste artigo: o conceito de niilismo. Aquilo a que Nietzsche chama niilismo é fundamentalmente uma incapacidade de encontrar sentido, valor e finalidade no mundo, um fracasso do “animal avaliador em si” (GM II 8), do “animal que venera” (GC 346), do “estimador” (Za I Das mil metas e uma só meta) - um fracasso que faz dele “o animal doente” precisamente porque a sua natureza é ser no modo da finalidade interna e, portanto, é avaliar, venerar, estimar; em suma: encontrar sentido, valor e finalidade no mundo.

Mas, neste artigo, não se trata de analisar todos os aspectos do conceito de niilismo (longe disso). Trata-se apenas de considerar, por um lado, a relação entre o niilismo e o naturalismo (ou positivismo) e, por outro, a relação entre o niilismo e o perspectivismo de Nietzsche. Consideremos agora esta relação com base numa análise da nota póstuma que diz que “factos é precisamente o que não há, apenas interpretações”.

V.

Citemos a nota póstuma na íntegra:

Contra o positivismo, que se detém diante dos fenómenos - “Há apenas factos” - eu diria: Não, factos é precisamente o que não há, apenas interpretações. Não podemos estabelecer qualquer facto “em si”: talvez seja um absurdo querer fazê-lo.

“Tudo é subjectivo” dizeis vós: mas isso já é interpretação [Auslegung], o “sujeito” não é dado, é algo acrescentado e inventado e projectado por detrás do que há [etwas Hinzu-Erdichtetes, Dahinter-Gestcktes]. - Por fim, será mesmo necessário colocar o intérprete por detrás da interpretação [Interpretation]. Também isso é poesia, hipótese.

Na medida em que a palavra “conhecimento” tem, de todo, sentido, o mundo é cognoscível: mas é interpretável [deutbar] de um modo diferente, não tem qualquer sentido por trás de si, mas sim inúmeros sentidos. - “Perspectivismo”.

São as nossas necessidades que interpretam o mundo: as nossas pulsões e os seus prós e contras. Toda a pulsão é uma espécie de desejo de dominação [Herrschsucht], cada uma tem a sua perspectiva, que gostaria de impor a todas as outras pulsões como norma. (NL 1886-87, 7[60])17.

O texto é dirigido contra o “positivismo”, o naturalismo redutor ou mecanicista que “se detém diante dos fenómenos” porque, como diz uma outra nota póstuma citada acima, é “apenas uma hipótese assente na visão e no toque” (NL 1885, 34[247]). Mas o que significa que se trate apenas de uma “hipótese”? Como justifica Nietzsche esta afirmação?

O que está pressuposto no texto é que, sem a aplicação de certas categorias ao que é visível e palpável - as categorias que tornam o visível e o palpável compreensível em termos mecânicos -, o positivista não seria levado a crer que lida apenas com “factos”, e que pode assegurar que “há apenas factos”. Tal como Nietzsche esclarece na Gaia Ciência, o positivista engana-se a si mesmo ao não compreender que aquelas categorias são apenas “menschliche Werthbegriffe”, “conceitos de valor humanos” (GC 373). Tais categorias põem de pé uma interpretação do mundo - mas uma “interpretação” no sentido discutido acima: uma interpretação enquanto “sistema de fins”. Neste caso particular, o sistema de fins é conceptual, mas os conceitos que fazemos das coisas são, na verdade, “conceitos de valor”: as determinações do pensamento são determinações de valor. Causa e efeito, substância e acidente são parte de um esquema conceptual cuja finalidade é conhecer a verdade. Tais categorias servem a este propósito, são meios para este fim. Recordemos o que Nietzsche diz nas notas de 1868: “Wir verstehen nur einen Mechanismus”, “a única coisa que podemos compreender é um mecanismo” (KGW 1/4, 62[24]). Assim, na Gaia Ciência, Nietzsche escreve que os positivistas - a quem chama os “senhores mecânicos” - têm “fé num mundo que deve ter a sua equivalência e medida no pensamento humano”, em conceitos de valor humanos - um “mundo verdadeiro” [Welt der Wahrheit], a que pudéssemos aceder com a ajuda da nossa pequena e quadrada razão” (GC 373). A interpretação mecanicista do mundo torna o mundo compreensível para a razão, mas isso não impede que tal interpretação possa ser “uma das mais estúpidas de todas as interpretações possíveis, isto é, uma das mais pobres de sentido” (GC 373). E isto porque “um mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sentido! Suponha-se que o valor de uma música fosse apreciado de acordo com o quanto dela se pudesse contar, calcular, pôr em fórmulas - como seria absurda uma tal avaliação ‘científica’ da música! O que se teria dela apreendido, entendido, conhecido? Nada, exactamente nada daquilo que nela é de facto ‘música’…” (GC 373).18

No final da nota póstuma, Nietzsche escreve que “são as nossas necessidades que interpretam o mundo: as nossas pulsões e os seus prós e contras” (NL 1886, 7[60)). A interpretação mecanicista do mundo é um “sistema de fins” localizado num outro sistema de fins mais vasto e serve este sistema, isto é, de uma dada forma de vida, um organismo. Na verdade, serve em última análise às necessidades de toda uma cultura; a nossa cultura moderna assente no ideal da satisfação material para todos, alcançada através do progresso científico e tecnológico. É isto que resulta do esforço que Nietzsche faz de olhar para a ciência “através do prisma da vida”. E é neste modo de olhar para a ciência - como algo condicionado pelas necessidades de uma forma de vida, como a necessidade de orientação, de satisfação material, de preservar uma dada cultura, de solidificar um certo tipo de organização social etc. - que consiste a genealogia nietzschiana. Será esta, então, um método filosófico que, como defende Robert Brandom, reduz a ciência e, mais genericamente, todo o “espaço das razões” a efeitos de meras causas, efeitos de um “mecanismo cego”? Talvez já seja claro que a posição de Nietzsche não é tão simples quanto Brandom supõe. Ao dizer que são as nossas necessidades ou pulsões que interpretam o mundo, Nietzsche não pretende defender que a vida, ou uma certa forma de vida, seja a “causa” do esquema conceptual que é usado para interpretar o mundo, neste caso o esquema conceptual da interpretação mecanicista. Em primeiro lugar, o que pretende dizer é, pelo contrário, que a vida é demasiada complexa para ser compreendida em termos causais. A causa e o efeito são simplificações, conceitos “fabricados”, “inventados”, criados para tornar tudo, e especialmente a vida, mais fácil de compreender (GC 112); causa e efeito são “ficções lógicas” (BM 4), “ficções convencionais” (BM 21), “ficções reguladoras” (GC 344) ou, como se assinalou acima, “apenas uma hipótese assente na visão e no toque” (NL 1885, 34[247]). Portanto, o que Nietzsche defende não é que a vida “cause” o conceito de causa e efeito e as outras categorias mecânicas, mas sim que estas categorias emergem de um tipo de realidade, a “vida”, que é fundamentalmente diferente de um mecanismo e mais complexa do que um mecanismo - uma realidade que, propriamente falando, não pode “causar” nada, pois tem de ser pensada segundo o conceito de finalidade interna ou, mais exactamente, como uma multiplicidade caótica de polos de finalidade interna (organismos).

Mas é difícil captar essa ideia em toda a sua força. Ela implica uma determinada forma de pensar o que são “conceitos”. Nietzsche sustenta que todo o sentido conceptual deriva de sentido pré-conceptual (i.e. do tipo de sentido que, na secção anterior, vimos que tem de ser pensado como constituindo todo o organismo como organismo), e de novo: Nietzsche pretende sustentar que dizer isso não é o mesmo que dizer que o sentido conceptual seja “causado” pelo sentido pré-conceptual. O que pretende sustentar é que o sentido conceptual só é possível porque a vida, longe de ser compreensível como se fosse um mecanismo, só pode ser pensada como realidade avaliadora e dirigida a fins (ainda que a múltiplos fins), ergo como realidade “interpretante” e, por isso, provida de sentido. O sentido conceptual emerge da vida porque a vida (pelo menos no único modo como a podemos pensar, como podemos ajuizar sobre ela) já é algo provido de sentido a um nível que é ainda pré- (ou infra-) conceptual. É por isso que todos os conceitos são “conceitos de valor”.

Assim, quando Nietzsche escreve que as categorias mecânicas são “conceitos de valor humanos” (GC 373, itálico meu), a tese não é a de que elas sejam meramente “subjectivas”. Conceitos não são “formas” pré-dadas que um sujeito “impusesse” às coisas (ou a intuições livres de qualquer sombra de conceptualização). Tal como a nota póstuma deixa claro, a posição de Nietzsche é a de que um tal “sujeito” é “algo acrescentado e inventado e projectado por detrás do que há” (NL 1886, 7[60].) Ou, dito de outro modo, afirmações como “tudo é subjectivo” ou “é preciso supor um intérprete por detrás da interpretação” são apenas modos de tentar encontrar uma “causa” do sentido conceptual. Implicam uma falsa concepção do “eu” como causa dos nossos pensamentos (cf. CI ‘Razão’, BM 54, etc).

A tese de que não apenas a interpretação mecanicista do mundo mas todo o sentido conceptual consiste em “conceitos de valor humanos” significa que todos os conceitos são avaliações e simplificações humanas, esquemas que os humanos inventam e fabricam para interpretar o mundo de um modo simplificado e em conformidade com as suas necessidades. Mas significa isto, por assim dizer, com uma vírgula muito peculiar. O sentido conceptual é, para Nietzsche, um esquema que a vida (não o “sujeito”) desenvolve para se compreender a si mesma. A fórmula “são as nossas necessidades que interpretam o mundo, as nossas pulsões com os seus prós e contras” significa: a vida ela mesma interpreta o mundo através dos nossos corpos, interpreta o mundo assumindo a forma de pulsões que constituem um organismo. É deste modo que Nietzsche historiciza todo o sentido conceptual, incluindo a normatividade das nossas categorizações mais básicas. Não há uma “forma do entendimento” no sentido kantiano do termo excepto enquanto resultado histórico do desenvolvimento da vida no planeta terra - o resultado de uma “cadeia contínua de sempre novas interpretações e adaptações” (GM II 12), a qual não está acabada e nunca poderá culminar numa “natureza humana” fixa e imutável.

No que diz respeito à limitação particular da interpretação mecanicista do mundo (a sua estupidez, ou idiotia, GC 373), o problema não reside tanto no facto de causa e efeito serem concepções humanas quanto no de os “senhores mecânicos” as aplicarem à vida, e, portanto, também a realidades como o amor, o ódio, a sociedade, a moral, ou a arte. Causa e efeito são conceitos perfeitamente adequados para se compreender um relógio, ou qualquer outro mecanismo. O problema é que se faça uso deles para se compreender “a existência”, isto é, o mundo enquanto tal e no seu todo, incluindo a realidade orgânica. Uma interpretação mecanicista da música não compreenderia “exactamente nada daquilo que nela é de facto ‘música’…” (GC 373), uma interpretação mecanicista de um organismo vivo também não compreenderia nada do que nele é de facto “vida”, e o mesmo vale, obviamente, para a compreensão da vida enquanto tal. Os “senhores mecânicos” pensam de outro modo apenas porque são uma peculiar configuração de pulsões e afectos na qual uma tão pobre interpretação da vida veio a fazer sentido (o que para Nietzsche significa que os próprios “senhores mecânicos” são um “empobrecimento” da vida).

Mas, por outro lado, Nietzsche parece conferir, de facto, um determinado tipo de restrição a todos os possíveis esquemas conceptuais, não apenas ao da interpretação mecanicista do mundo. Em que consistem exactamente tais restrições? Propriamente falando, não dizem respeito ao conhecimento. Nietzsche di-lo expressamente na nota póstuma: “na medida em que a palavra ‘conhecimento’ tem, de todo, sentido, o mundo é cognoscível (NL 1886, 7[60]). As nossas “ficções reguladoras” e “hipóteses” (GC 344), os sentidos conceptuais que “inventamos,” “fabricamos,” “poetamos” etc. são suficientes para que haja conhecimento do mundo. São suficientemente adequados para nos oferecerem normas de justificação e condições de verdade que nos permitem verificar que está chovendo, que a terra gira em torno do sol, ou que, para usar um exemplo de Brandom, “um pedaço de ferro responde a determinados ambientes derretendo, a outros enferrujando, a outros caindo”19. O problema, para Nietzsche, não é o conhecimento neste sentido classificatório e inferencial, mas sim a compreensão das coisas num sentido mais forte. Na terminologia de Kant e Hegel, diríamos que o problema, para Nietzsche, não se joga no plano do entendimento (Verstand), mas sim no da razão (Vernunft), não no plano do conhecimento finito, mas no do conhecimento do todo. O todo, a “existência”, inclui a vida - e, tal como Nietzsche concluiu, em 1868, do seu estudo da Crítica da faculdade de julgar de Kant, a vida é “algo inteiramente obscuro para nós” (KGW 1/4, 62[47]). É por isso que todos os nossos esquemas conceptuais possíveis têm um alcance epistémico limitado. Na nota póstuma, Nietzsche dá a um nome a este seu posicionamento sobre o alcance do sentido conceptual: perspectivismo. Consideremos, pois, esta noção.

VI.

Como vimos, a nota diz: “Na medida em que a palavra ‘conhecimento’ tem, de todo, sentido, o mundo é cognoscível: mas é interpretável [deutbar] de um modo diferente, não tem qualquer sentido por trás de si, mas sim inúmeros sentidos. - “Perspectivismo” (NL 1886-87, 7[60]). Este é um dos principais temas do Livro V da Gaia ciência (escrito no mesmo período da nota póstuma). No aforismo sobre os “senhores mecânicos”, por exemplo, Nietzsche escreve que o problema com a interpretação mecanicista do mundo é que, no fim de contas, despe o mundo do seu “carácter ambíguo” ou, mais literalmente, do seu “carácter polissémico” (vieldeutiger Charakter, GC 373). A ideia aqui é a de que, ao contrário do que sustenta toda a metafísica ocidental, o mundo “não tem qualquer sentido por trás de si” (NL 1886, 7[60]), isto é, só tem um sentido imanente, não transcendente - mas, além disso, o seu sentido imanente, o sentido nos termos do qual a vida e a finalidade interna das suas múltiplas manifestações se tornam acessíveis para nós, é intrinsecamente vieldeutig, poslissémico, ambíguo. A Gaia ciência praticamente começa com esta ideia: quando, no aforismo 2, Nietzsche descreve a sua vida filosófica como um “tremer de ânsia e gosto da interrogação [Fragen]” (GC 2), declara que aquilo que pode e deve ser questionado, o objecto do seu perguntar, é “a maravilhosa incerteza e ambiguidade (Vieldeutigkeit) da existência” (GC 2), ou seja, o carácter polissémico do mundo enquanto tal e no seu todo. No aforismo 375, dá outro nome ao carácter do mundo: o mundo tem um “carácter interrogativo”, “questionável” (der Fragezeichen-Charakter der Dinge) - ou, traduzindo de um modo ligeiramente diferente, as “coisas” têm “o carácter de pontos de interrogação” (Fragezeichen-Charakter, GC 375). As coisas são um enigma, são pontos de interrogação, são algo inteiramente obscuro para nós.

Todo o contexto destes passos mostra que se referem à complexidade da vida. O mundo é polissémico e enigmático porque inclui a vida, e não é um mundo polissémico e enigma apenas “para nós”, apenas “subjectivamente”. Nietzsche procura reflectir sempre “através do prisma da vida”, não do “sujeito”. Assim, na Genealogia da moral, por exemplo, descreve o carácter polissémico e enigmático de todo o ser vivo como uma “síntese global de ‘sentidos’”, cuja unidade é “difícil de resolver, de analisar, e que, importa sublinhá-lo, é mesmo inteiramente indefinível” (GM II 13). Note que uma realidade cultural (“uma instituição jurídica, um costume social, um uso político, uma dada forma no âmbito das artes ou no do culto religioso”) é vida: a cultura é natureza. Por isso, na Genealogia, o exemplo que Nietzsche dá de uma “síntese de sentidos” difícil, na verdade impossível de desenlaçar, é a instituição da “punição” (GM II 13). A punição não pode ser definida (“só o que não tem história pode ser definido”) (GM II 13) - pois é uma “síntese de sentidos” extremamente complexa. Mas esses sentidos são reais, pertencem realmente à vida ela mesma, visto que são os fins ou usos que uma coisa viva acumulou ao longo do tempo e que fizeram dela o que ela é. Não são representações meramente subjectivas de certas propriedades de uma coisa.

Mas não só isso. Para Nietzsche, uma coisa, qualquer unidade mínima de vida, é também uma síntese de sentidos possíveis. É justamente isso que está implicado na ideia de perspectivismo: que nada “tem qualquer sentido por trás de si”, mas tudo é “interpretável de um modo diferente” (NL, 1886-87, 7[60]). No aforismo 374 do Livro V da Gaia Ciência, Nietzsche dá ainda outro nome ao carácter do mundo. Aqui, chama-lhe “o carácter perspéctico da existência (der perspektivische Charakter des Daseins)” (GC 374). A existência, o mundo é polissémico e enigmático porque é (realmente, intrinsecamente, não apenas subjectivamente) “perspéctico.” Nietzsche formula assim esta ideia-chave: “hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir do nosso ângulo, que somente dele se podem ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (GC 374). Uma coisa é uma “síntese de sentidos,” e esta síntese é uma encruzilhada onde se encontram “infinitas interpretações” - um encruzilhada de interpretações perspécticas potenciais e actualizadas, das quais não pode haver nunca uma visão sinóptica, i.e. às quais só se podem acrescentar outros “ângulos”, outras perspectivas particulares. Toda a interpretação que possa ser pensada como realmente possível será sempre apenas mais uma das interpretações que formam a encruzilhada (i.e., o ponto de interrogação, a “síntese” impossível de resolver). Mas note que tal não significa que toda a perspectiva seja uma mera ilusão. Significa apenas que toda a perspectiva é parcial e toda a objectividade realmente possível é perspéctica. Por exemplo, as perspectivas de Iago e Otelo sobre a mesma situação não se equivalem: uma é uma perspectiva objectiva - sem deixar de ser só uma perspectiva, só uma interpretação -, a outra é uma ilusão, sem deixar, por isso, de captar algo do real. Tal como Nietzsche diz num passo célebre da Genealogia, “existe somente um ver perspectivo, somente um ‘conhecer’ perspectivo: e, relativamente a uma dada coisa, quanto maior for o conjunto de afectos a que damos voz, quanto mais olhares, diferentes olhares, formos capazes de lançar sobre uma mesma coisa, tanto mais completo será o nosso ‘conceito’ dessa coisa, ou seja, a nossa ‘objectividade’” (GM III 12)20.

O facto de, na maturidade, Nietzsche formular os seu perspectvismo nos termos da hipótese da “vontade de poder” apenas confirma que pensa a vida como sendo intrinsecamente polissémica, enigmática e perspéctica. A vontade de poder é a essência das nossas pulsões e afectos, portanto o acesso a ela depende do nosso acesso interior a nós mesmos, ao “nosso mundo dos desejos e das paixões” (BM 36). Como Nietzsche escreve na nota póstuma sobre factos e interpretações: “Toda a pulsão é uma espécie de desejo de dominação [Herrschsucht], cada uma tem a sua perspectiva, que gostaria de impor a todas as outras pulsões como norma” (NL, 1886-87, p. 7[60]). Mas, quando introduz, na Aurora, este vocabulário das pulsões e dos afectos, diz sem rodeios: “es ist Alles Bilderrede”, “é tudo metáfora”, “tudo isto é linguagem figurativa” (D 119)21. Por isso, nas suas inúmeras reflexões sobre a consciência como “superfície”, cuja profundidade consistiria em pulsões e afectos, ou sobre a consciência como sendo “apenas uma certa relação das pulsões umas com as outras” (GC 333) etc., o que defende é sempre que tudo o que podemos pensar e dizer acerca da nossa vida interior é apenas um “signo” de um “movimento das pulsões” (Triebbewegung, NL 1880, 6,[253]) - e de tal modo que tudo o que podemos tentar compreender sobre este movimento será, de novo, apenas um “signo” de outro “movimento das pulsões”. Todo o nosso acesso interior a nós mesmos é um acesso à “vida”, e tal acesso é mediado por “signos” tais como “consciência”, “eu”, “agente”, “pulsão”, “afecto”, “desejo” etc. Estas palavras são “signos”, e não expressões linguísticas de conceitos que pudessem tornar adequadamente inteligível a realidade a que se referem. A auto-observação introspectiva é fundamentalmente vazia: não podemos conhecer ex ante os pensamentos, as paixões e os desejos que realmente somos e que realmente nos movem - só podemos conhecê-los retrospectivamente, depois de se expressarem nas nossas acções22. Por isso, as palavras que usamos para pensar o nosso pensar, sentir, querer etc. são, na verdade, abreviações linguísticas (“signos”) de imagens que fazemos do nosso pensar, sentir, querer, metáforas de “sínteses de sentidos” que não podemos observar directamente e que, logo por isso, não podemos desenlaçar. A nossa vida interior (“subjectiva”) nos dá acesso à vida, mas de um modo que apenas confirma o carácter polissémico, enigmático e perspéctico da vida em geral23.

Porém, se é assim, então as escavações genealógicas que levam Nietzsche a falar de “pulsões” e “vontade de poder” compreendem-se muito melhor como razões do que como causas. Considere, de novo, o exemplo dos “senhores mecânicos”. Ao aplicar a abordagem genealógica à interpretação positivista do mundo e ao afirmar que ela resulta de certas “necessidades”; ao apresentar tal interpretação como uma “semiótica,” uma “linguagem por signos” (Zeichensprache) falada por uma dada configuração de pulsões e afectos (cf. NL 1888, 14[82], 14[122]) e pelos seus “prós e contras” (NL 1886-87, 7[60); ao tomar tal interpretação por não mais do que um “signo” de uma hierarquia na qual a pulsão para a verdade adquiriu uma dada forma e proeminência, de tal modo que tem agora uma posição de domínio ou governo sobre muitas outras pulsões e lhes impõe como meta última a verdade concebida como uma sistema de proposições sobre a uma realidade mecânica; ao olhar para tudo isto como apenas um “signo” e um “sintoma” de decadência de outras pulsões, bem como de “misarquismo” e “niilismo administrativo” (GM II 12), um “signo” e “sintoma” de uma disposição para procurar a mera preservação e o bem-estar (em vez de, por exemplo, a “tensão do espírito” e o “grande amor” pelos “problemas grandes”); ao fazer tudo isto, Nietzsche não reduz razões a causas. O que faz é expor os mais conscientes e “superficiais” compromissos normativos da interpretação mecanicista do mundo como compromissos dependentes de outros compromissos normativos mais profundos24. Nietzsche refere-se a estes outros compromissos como sendo valores que as pulsões perseguem (e como hierarquias de valores que determinadas constelações de pulsões perseguem) porque eles são, na sua maioria, compromissos ocultos, escondidos de quem é movido por eles, dos seres humanos para quem eles importam. Tais compromissos normativos operam em nós implicitamente e a um nível pré-conceptual. Nietzsche trata-os frequentemente como “inconscientes”. Talvez muitos deles não tenham nunca sido conceptualizados, e, além disso, se pensarmos, por exemplo, no “belo”, na “justiça”, no “sexo”, ou na “felicidade” como “valores” que determinadas “pulsões” perseguem, devemos compreendê-los como “sínteses de sentidos” que nunca poderão ser “definidos”, isto é, completamente captados e fixados em conceitos exactos e explicitamente formulados. E, contudo, ao procurarmos compreendê-los como algo activo em organismos humanos, não podemos deixar de tentar nomeá-los e conceptualizá-los. Ora, ao fazê-lo, concebêmo-los, não como causas, mas sim como normas que governam certas “sínteses de sentidos”, i.e. que dão a certas pessoas razões para pensarem e agirem de um certo modo. Por isso, o próprio Nietzsche usa linguagem da normatividade, e escreve que cada pulsão gostaria de compelir todas as outras a aceitar a sua perspectiva - isto é, aquilo que valoriza, aquilo a que dá importância - “como norma” (“als Norm,” NL 1886-87, 7[60]).

Para podermos pensar os valores, os fins que movem os seres humanos - quer aqueles que emergem à superfície da sua consciência, quer aqueles que tendem a permanecer nas profundezas e precisam de ser descobertos e explicitados -, temos de os pensar como “normas”. Por um lado, trata-se aqui de mais uma metáfora. Uma norma, propriamente falando, é um dever-ser que se adopta como regra para a condução do pensamento e da acção. Os valores que as pulsões do organismo perseguem - de entre os quais os mais básicos (como, por exemplo, a digestão) não podem ser, de modo algum, conscientes - não são “normas”, são apenas como normas (tal como não são “valores”, pois também o vocabulário dos valores é figurativo, metafórico). Mas, por outro lado, se temos de pensar os valores como normas, então pensar os valores é pensá-los como conceitos. Como Kant mostrou, conceitos são normas, cada conceito estabelece, como se acabou de dizer, um dever-ser, uma regra, um princípio para a condução do pensamento e da acção25. Mas, sendo assim, pensar os valores e as respectivas pulsões orgânicas nada tem que ver com identificar “mecanismos” que se situassem fora do horizonte do pensável, como se fossem uma espécie de cabos e roldanas capazes de interromper e dar direcção ao pensamento. Quando, por exemplo, Nietzsche atribui valor explicativo a um “instinto de rebanho”, o que faz é identificar um determinado compromisso normativo (geralmente inconspícuo) e contrastá-lo com outro (por exemplo, com a liberdade do espírito, ou com a afirmação da vida). O “instinto de rebanho” só tem força explicativa se entendido como uma razão por detrás da adopção de certos discursos e comportamentos - e, portanto, como algo que pode ser contestado à luz de outras razões em que assentem os nossos pensamentos e acções.

Assim, o que Nietzsche procura fazer na sua genealogia da interpretação mecanicista do mundo não é apresentá-la como uma mera mistificação assente em certas “causas cegas” ou “pulsões psicológicas”, como se a descoberta de tais causas ou pulsões pudesse ter autoridade epistémica contra as razões alegadas por essa interpretação. O que procura fazer é, antes, expor as (más) razões que explicam por que alguém poderia adoptar uma interpretação do mundo tão pobre e redutora quanto essa, assim como sugerir aos seus leitores (boas) razões para a rejeitar. A pobreza e o carácter redutor dessa interpretação são um argumento contra ela; mas não se argumenta contra cabos e roldanas.

Tal não significa, porém, que Nietzsche creia que a razão possa eliminar da vida toda a contingência, ou que os conceitos poderiam incorporar a ausência de finalidade interna da vida enquanto tal (i.e. da vida como um todo) e elevá-la a um plano de necessidade teleológica. Muito longe disso. Recorrendo à terminologia hegeliana, pode dizer-se que, para Nietzsche, o efectivamente real não é racional. As razões que a genealogia aduz para criticar certos valores e promover outros nunca são “puras”, nunca se jogam (recorrendo novamente à terminologia de Hegel) no plano de “O Conceito” como plano de pura racionalidade. Toda a racionalidade possível arrasta consigo um lastro de irracionalidade de que não pode livrar-se, uma “síntese de sentidos” que não pode ser desatada e livrada do seu carácter polissémico, enigmático e perspéctivo. Há sempre algo de “fabricado”, “poetado”, “inventado”, “ficcionado” no que se pode dizer sobre os valores, visto que tudo o que se pode dizer sobre eles pertence ao plano do metafórico, figurativo. A própria ideia de “valor”, como a de “fim” e “sentido”, emerge da concepção figurativa, ou metafórica, da vida como finalidade interna de um organismo, não de um puro conceito de valor ou de vida deduzido de outros conceitos e esclarecido no plano da racionalidade, i.e. na sua relação com outros conceitos (e, assim, no plano de “O Conceito”).

Por isso, como escreve Martin Saar, “a atitude de Nietzsche em relação aos valores (ou à normatividade em geral) é primariamente antiautoritária”, pois tal atitude não é nem construtiva - como seria se tivesse o objectivo de estabelecer princípios normativos universalmente válidos -, nem reconstrutiva - como seria se tivesse o objectivo de identificar o conteúdo genuíno de práticas normativas preexistentes26. De facto, tudo o que se diz sobre os valores é algo que se diz sobre a vida, mas tudo o que se diz sobre a vida se diz a respeito de algo que não pode ser objecto de uma conceptualização estritamente racional, ou “determinada”. É também por isso que nada do que Nietzsche escreve sobre a vida e os valores (ou sobre o sentido e “sistemas de fins”) pretende ser “metafísica” ou “filosofia primeira” (pelo menos no sentido tradicional do termo). Não pretende ter um fundamento transcendental. O seu fundamento é a experiência dos limites da conceptualização, do carácter misterioso da vida - i.e. da experiência da vida como algo “inteiramente obscuro”.

Mas, por outro lado, é fundamental que se sublinhe que Nietzsche não considera que as suas reflexões sobre a vida sejam irracionais, mera expressão de preferências afectivas. Nietzsche não entende o espaço das razões como mero produto da subjectividade27, não substitui o espaço das razões por um espaço de mera causalidade cega, e as suas reflexões são justamente isto: reflexões, juízos de reflexão, não arbitrariedades. É por isso que, pace Martin Saar, a atitude de Nietzsche em relação aos valores não é meramente “desconstrutiva”. A posição de Saar é correcta na medida em que sustenta que, para Nietzsche, os valores e as normas são objectos de interrogação e escrutínio, i.e. de crítica (Saar, “Nietzsche’s Wertkritik”, 26). Mas crítica não é necessariamente o mesmo que desconstrução. A posição de Saar também é correcta na medida em que sustenta que a crítica de Nietzsche ao “valor dos valores” não nos oferece novos e diferentes valores, por assim dizer, já feitos e prontos para satisfazer a nossa necessidade de sentido. Nietzsche não tem um método que lhe permita dar-nos tais valores. Mas as suas reflexões sobre o valor dos nossos valores não são meramente negativas, ou “desconstrutivas”: elas visam algo como uma “afirmação da vida”, uma expansão da liberdade de espírito dos espíritos livres, a rejeição da desvalorização niilista da vida etc. Nesse sentido, são de facto semelhantes aos “juízos reflexivos” de Kant sobre a arte e a vida. Não sendo puramente racionais, determinantes, realmente cognitivos (“lógicos”, na terminologia de Kant), por outro lado pretendem ser exemplares enquanto juízos (i.e. enquanto uso da faculdade de julgar) e, portanto, interpelar o juízo (não apenas a afectividade) de outros seres judicativos. Recorde-se que, nas notas 1868 sobre Kant, Nietzsche havia concordado em que os juízos sobre a vida são “juízos de reflexão” (KGW 1/4, 62[40]), e em que estes exprimem um modo legítimo de contemplação da vida e das suas formas (KGW 1/4, 62[23]).

Mas tudo isso se compreende melhor se empreendermos ainda uma última tarefa: considerar sucintamente como tudo isso se prende com a questão geral do niilismo. Fá-lo-emos através de uma breve análise de como essa questão figura já no Nascimento da tragédia - e de como a crítica kantiana do juízo teleológico e do juízo estético (ou seja, de uma faculdade de julgar “reflexiva”) tem uma influência decisiva neste momento-chave do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche.

VII.

O nascimento da tragédia descreve a cultura grega pré-socrática como uma cultura cujo laço social e cujo sentimento de comunidade se assentavam em dois princípios: que o mundo é “absurdo” (NT 7) e que o mundo se justifica como “fenómeno estético” (NT 5, NT 24, NT/TA 5). Estes dois princípios podem parecer contraditórios, mas não são. O princípio do “absurdo da existência” ou “absurdo do ser” (NT 7) diz que o mundo é objectivamente absurdo - ou, noutros termos, o mundo não tem uma justificação racional; o princípio da justificação estética diz que essa falta de uma justificação racional ou objectiva não impede que a arte dê ao mundo, numa dada comunidade (como a da polis), uma justificação estética, portanto com validade subjectiva, ou melhor: intersubjectiva, comunitária. É a adopção deste segundo princípio que “salva a vontade helénica” da “letargia” e da “negação budista do querer”; sem a arte, “qual feiticeira da salvação e da cura”, seria esse o efeito da adopção do primeiro princípio, isto é, da condução da vida individual e colectiva em conformidade com o “conhecimento trágico”, a “sabedoria de Sileno” (NT 3, NT 7 e passim).

Que natureza têm estes princípios se os pensarmos à luz da Crítica da faculdade de julgar, de Kant? O primeiro é um juízo teleológico, embora seja um juízo teleológico negativo. O que diz é que o mundo (“a existência” ou “o ser”) não tem uma finalidade. É impensável o conceito de um fim que pudesse justificar que o mundo seja como é, ou, por outras palavras: que permitisse à razão compreender o curso do mundo como meio para a realização de um fim. O mundo é objectivamente absurdo. Nisto consiste o “conhecimento trágico”. E, dada a enorme extensão e intensidade do sofrimento humano, o conhecimento trágico conduz à “sabedoria de Sileno”: “o melhor de tudo para ti [i.e. para os humanos] é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é morrer em breve” (NT 3).

Dir-se-ia que também o princípio segundo o qual há uma “justificação estética” para o mundo é um juízo teleológico, visto que uma “justificação” implica a integração do que é justificado num dado “sistema de fins”, a sua compreensão como meio para um fim. Mas, pressupondo que Nietzsche distingue uma justificação estética de uma justificação racional em termos, pelo menos, semelhantes aos da Crítica da faculdade de julgar, então a finalidade de que se trata na noção de justificação estética é aquilo a que Kant chamou uma “finalidade sem fim” (Zeckmäßigkeit ohne Zweck), uma “conformidade a fins sem o conceito de um fim” (Zeckmäßigkeit ohne Begriff eines Zweckes). Enquanto uma “finalidade objectiva […] só pode ser conhecida através de um conceito”, uma finalidade estética é “sem conceito”, e é, portanto, uma “finalidade subjectiva” (KU §15). Quando ajuízo, por exemplo, que “x é belo”, refiro a forma de x (o modo como x me aparece) ao prazer que gera em mim a sua contemplação através não apenas dos meus sentidos, mas também da minha imaginação e do meu entendimento. Deste modo, a existência dessa forma aparece-me como justificada: dou-lhe valor, vejo sentido no facto de ela existir, bem como no facto de eu estar na presença dela. Mas o meu juízo não resulta da aplicação de um conceito de “belo”, e, portanto, não resulta de um conhecimento que eu pudesse ter de uma propriedade objectiva do x sobre o qual ajuízo. Ao pensar x como sendo “belo”, atribuo-lhe uma finalidade, pois penso o meu sentimento de prazer - o sentimento de que x é belo, o meu sentimento de deleite na contemplação de x - como se ele fosse a razão de existir de x, isto é, como se a relação entre a forma de x e o prazer que tenho na sua contemplação fosse uma relação entre um meio e um fim. Contudo, eu sei (ou devo saber) que essa finalidade não é, e não pode pretender ser, objectiva: x não é um meio para a minha contemplação dele, “ser belo” (i.e. gerar em mim um prazer contemplativo) não é um “predicado real” de x, não é algo que x seja objectivamente ou em si mesmo, apenas algo que vem a ser na minha relação sensorial e judicativa com x. Aprovo a existência de x, dou-lhe valor, vejo sentido no facto de x existir, mas apenas em função do que x me faz sentir: sendo estética, a justificação em causa assenta numa finalidade subjectiva28.

“O mundo é absurdo” e “o mundo se justifica como fenómeno estético” são, pois, respectivamente um juízo teleológico e um juízo estético - e, nos termos da Crítica da faculdade de julgar, ambos são juízos de reflexão, ambos pertencem a uma mesma faculdade de julgar reflexiva. E é importante notar que a reflexão que lhes dá origem - ou em que, no fundo, consistem - não pertence a este ou àquele indivíduo. É, antes, um longo processo histórico, uma construção colectiva que passa de geração em geração, e se assemelha ao desenvolvimento de uma língua. É toda a cultura grega que, ao longo de muitos séculos, desenvolve a “sabedoria de Sileno” no quadro do culto de Dioniso, e é ela que vai gerando, de geração em geração, novas formas artísticas que tornam possível que a vida individual e colectiva seja conduzida de acordo com o princípio de que o mundo só pode aparecer justificado enquanto fenómeno estético. É igualmente importante notar que esta reflexão colectiva e intergeracional entende os juízos que a exprimem como juízos que não são apenas de “reflexão”, mas sim como juízos cognitivos, i.e. que simplesmente dizem “a verdade”. A arte dionisíaca pretendia ser uma arte que “na sua embriaguez dizia a verdade” (NT 4, KSA 1.41) - nomeadamente, a “horrenda verdade” (NT 7, KSA 1.57) que se revela ao olhar de quem penetra “no interior e no horrível da natureza” (NT 9, KSA 1.65). A verdade da sabedoria de Sileno é para os Gregos da época trágica a “verdade da natureza” (NT 8, KSA 1.58), ou simplesmente: “a verdade dionisíaca” (NT 10, KSA 1.73). A arte dionisíaca não desvia o olhar dos Gregos desta verdade: a verdade de que o mundo é absurdo e só pode aparecer justificado enquanto fenómeno estético. Pelo contrário: a sua essência é o fazer olhar para ela.

É neste mesmo quadro que, com o aparecimento de Sócrates, aparece na cultura grega um novo ideal - o “ideal do homem teórico” - e, com ele, uma nova concepção do mundo oposta àquela que até então vigorara. Esta nova concepção não aceita que o mundo seja justificado enquanto fenómeno estético, e exige, ao invés, que se procure uma justificação racional para ele. Na própria cultura grega e, depois, em toda a cultura ocidental, a perspectiva da justificação estética do mundo acabará por ser substituída pela perspectiva da justificação racional do mundo. Mas esta substituição não significa que Sócrates e Platão, os criadores desta nova perspectiva, não conheçam a experiência da absurdidade do mundo. Conhecem-na, mas consideram precipitado o juízo segundo o qual o mundo é em si mesmo absurdo. A sua absurdidade pode ser uma aparência; no plano de um “em si”, para lá da experiência e dos fenómenos, o mundo pode ter afinal uma justificação racional e, portanto, objectiva. Há que procurar nesse “em si” e “para lá” - na transcendência - a chave para a solução do enigma do mundo, a justificação do seu sentido (e da sua aparente falta de sentido).

Segundo a descrição de Nietzsche, esta nova forma de olhar para o mundo e reagir à experiência da sua absurdidade desenvolve-se, já entre os Gregos, como um “optimismo teórico,” que não apenas entende a procura da verdade como “a única vocação verdadeiramente humana” (NT 15), mas, além disso, faz aparecer “a existência como conceptualmente compreensível [begreiflich] e, portanto, justificada [gerechtfertigt]” (NT 15, KSA 1.99), pois pressupõe “a fé na perscrutabilidade [Ergründlichkeit] da natureza das coisas” (NT 15 KSA 1.100), i.e. pressupõe que uma justificação racional do todo, da “existência”, tem de ser, pelo menos, idealmente possível.

Na realidade, porém, a ciência a que este ideal dá origem (antes de mais, a metafísica como ciência) tem limites e esbarra sempre de novo nestes limites, e é por isso que o “segredo fundamental da ciência” é que, nela (isto é, para aqueles que a têm como ideal), “a procura da verdade importa mais do que a própria verdade” (NT 15, KSA 1.99). Há um elemento de “ilusão” (Wahn, cf. NT 15, KSA 1.99) na visão científica-metafísica do mundo: ao esbarrar nos seus limites, a ciência não interioriza que a realidade é o “impossível de esclarecer” (das Unaufhellbare, NT 15, KSA 1.101) - o que faz é, antes, criar a ideia de que a verdade pode e deve ser procurada sempre para lá de todo o confronto com a inescrutabilidade do real. A perspectiva da justificação racional do mundo faz da procura da verdade, ou do célebre “exame da vida” referido na Apologia de Sócrates, o valor supremo. Mas, neste sentido, também ela é arte - a criação de um “mito” e de um “mecanismo” que oferece “protecção e remédio” contra a exposição ao terrível mistério das coisas (NT 15, KSA 1.99-101). Ou seja: a exigência de uma justificação racional, a procura de um “em si” para lá do mundo da experiência acaba por funcionar como uma justificação estética do mundo, mais um momento de “arte”.

Mas vejamos melhor o que isto significa relativamente à questão da verdade.

A “verdade” procurada pela perspectiva socrática, racionalista, teórica, optimista, metafísica - a justificação racional do mundo escondida no seio das coisas, num plano transcendente para lá da “caverna” - é uma ilusão que, como acaba de se ver, apenas serve à necessidade de sentido de um determinado tipo de ser humano. De facto, essa verdade é apenas “o tipo de erro sem o qual uma espécie de seres-vivos não poderia viver” (NL 1885, 34[253]). Mas a perspectiva da tragédia e da comédia, a perspectiva da justificação estética do mundo não só não é indiferente à ideia verdade, como julga possuir já a verdade - a “verdade dionisíaca”, que diz que o mundo é absurdo e só pode ser justificado como fenómeno estético. E não apenas isso. Tal como Nietzsche deixa claro nas notas póstumas de 1888, a perspectiva do Nietzsche que escreve e publica O nascimento da tragédia em 1872 coincide com essa perspectiva da justificação estética do mundo: “pode ver-se que, neste livro [O Nascimento da tragédia], o pessimismo, ou mais claramente: o niilismo passa por ser a verdade”, ou “o niilismo vale como sendo a verdade” (als die Wahrheit gilt, NL 1888, 17[3]). A “verdade do pessimismo, ou mais claramente: do niilismo” é, sem margem para dúvida, de que o mundo é objectivamente absurdo. Mesmo quando, nas notas póstumas dos últimos anos de vida, Nietzsche insiste permanentemente em que “não há verdade”, não deixa por isso de manter este vocabulário sobre uma “verdade horrível” ou “tremenda” com a qual não nos podemos confrontar sem a mediação da arte (“a verdade é feia: temos a arte para não perecermos às mãos da verdade”, NL 1888, 16[40] etc).

Mas então em que sentido - e por que razão - diz Nietzsche que “não há verdade”? Primeiro, “não há verdade” significa, obviamente, que não há o tipo de verdade metafísica procurada desde Sócrates e entendida pela fé cristã como a verdade que é revelada através dela. Tal “verdade” não é nada do que pretende ser. É apenas “arte,” uma peça de um mecanismo que dá sentido à vida. Em segundo lugar, “não há verdade” significa: aquilo que “passa por ser a verdade” no Nascimento da tragédia, a “verdade do niilismo,” tem o estatuto de uma reflexão, não de um conhecimento, pois é a combinação de um juízo teleológico com um juízo estético, não um juízo que assentasse num conceito determinado e tivesse o estatuto de juízo lógico. No Nascimento da tragédia é muito claramente um juízo de reflexão que Nietzsche aprendeu com os Gregos da época trágica, não uma “verdade” que ele tenha demonstrado, ou faça qualquer esforço por demonstrar, num puro “espaço das razões” como espaço supostamente autónomo. Como procurei mostrar nas secções anteriores, para Nietzsche, o mundo - como “vida”, como “mundo de avaliações” - não se deixa propriamente “conhecer.” É um mundo polissémico, enigmático e perspéctico. Tal não quer dizer, de forma alguma, que a existência de seres vivos, bem como de valores, fins e sentido, seja uma mera ilusão, uma “projecção do sujeito” etc. O que quer dizer é que não há nada que se possa dizer sobre a vida e sobre valores, fins e sentido que seja puramente racional, que pertença ao domínio do “sistema”, no sentido hegeliano do termo. Não há sistema, só há “metáfora”, conceptualização “figurativa”, “reflexão” em última instância “estética”. Foi isso que Nietzsche compreendeu logo em 1868, quando estudou a Crítica da faculdade de julgar, e exclamou para si mesmo que a vida é “incognoscível” (KGW 1/4, 62[52]), é “o enigma”, (KGW 1/4, 62[29]), é “algo completamente escuro para nós” (KGW 1/4, 62[47]).

VIII.

Como sugerimos no início, a filosofia de Nietzsche é uma “luta contra o niilismo” (NL 1886-7, 5[50], 7[31]). Mas se, por um lado, a filosofia é, para Nietzsche, um “tremer de ânsia e gosto da interrogação [Fragen]” (GC 2), e trata de pensar os “problemas grandes” (GC 373) a que nos expõe o carácter interrogativo do mundo, por outro o modo como Nietzsche vê o problema do niilismo já desde O nascimento da tragédia determina que a sua filosofia - justamente enquanto “luta contra o niilismo” - seja um pensar muito diferente daquele que é inaugurado por Sócrates e sobrevive até Hegel e Schopenhauer. Na obra de Nietzsche, o pensar permanece um ousar pensar, mas abdica de procurar uma justificação racional do mundo. Certamente que não o procura num “em si” ou num “mundo verdadeiro” para além das aparências, mas também não o procura na imanência, ou na história, como se pode dizer que, por exemplo, Hegel o procura. O pensamento de Nietzsche acolhe o mundo como um mundo que tem, e não pode deixar de ter, um carácter polissémico, enigmático e perspéctico, o que significa que se trata de um mundo que não pode ser racionalmente justificado, portanto não pode ser objectivamente justificado. A filosofia ousa pensar o “absurdo da existência” (NT 7), não procura ocultá-lo, transformando o mundo num objecto de procura de uma meta, de um valor, de uma finalidade, ou de um sentido que pudesse habitar por detrás das aparências e justificá-las objectivamente.

Mas, para Nietzsche, ousar pensar o absurdo do mundo, ousar pensar o niilismo é, ao mesmo tempo, ousar lutar contra o niilismo interrogando o mundo como “fenómeno estético” (NT 5, NT 24, NT/ AT 5) - o mundo como um todo que não admite uma justificação racional, mas admite uma justificação estética. É esta dimensão fundamental do pensamento de Nietzsche que tende a fazer pensar que se trata nele de combater a racionalidade para nos lançar nos braços da irracionalidade, ou encorajar-nos a substituir o usa da razão com vista à descoberta da verdade por um sentimento de poder e de afirmação que resultasse da pura contemplação estética da vida. Mas, como procurámos mostrar ao longo deste artigo, nunca se trata para Nietzsche de abdicar do uso da razão e eliminar o espaço das razões como pura ilusão ou mistificação. O combate à razão é o combate a um certo tipo de uso da razão - aquele que, desde Sócrates, a sobrevaloriza e faz da filosofia a procura de uma justificação racional do mundo. Enforma toda a obra de Nietzsche um ousar pensar, um ousar interrogar e ousar reflectir, que é todo o contrário do abdicar do uso da razão.

Não só não se trata, para Nietzsche, de abdicar de pensar, como se trata, pelo contrário, de ousar pensar. Mas, além disso, não só não se trata de não pensar metas, valores, fins, sentido, como se trata, pelo contrário, de pensar justamente isso: metas, valores, fins, sentido. E por fim: não se trata de não pensar a verdade, mas, pelo contrário, de tornar possível que ela seja pensada.

Consideremos, em jeito de conclusão, estes últimos pontos.

Como vimos ao longo de todo este artigo, a crítica de Nietzsche à racionalidade não o leva, de modo algum, ao positivismo, e o seu perspectivismo não o compromete com um naturalismo que implica a redução dos valores, dos fins e do sentido a meras projecções subjectivas. Para Nietzsche, o mundo é destituído de metas, valores, de fins, de sentido (ziellos, werthlos, zwecklos, sinnlos) no sentido em que o todo é absurdo, não tem uma finalidade última, não é racionalmente justificável. As vidas humanas, sejam as dos indivíduos, sejam as dos povos, são conduzidas segundo metas, valores, fins, sentido - e esta é, em última análise, a questão da filosofia para Nietzsche: a questão da “hierarquia dos valores”, a questão do “valor dos valores”, a questão de saber, em cada época histórica, que metas, valores, fins, sentidos devem reger a condução da vida. Como já indicamos, não se trata nem de estabelecer valores “universais”, nem de “desconstruir” os valores, mas de repensar os valores à luz dos dois princípios que, já desde O nascimento da tragédia, fundam e regulam todo o pensamento de Nietzsche: o mundo é absurdo e só pode ser justificado enquanto fenômeno estético. São estes princípios que orientam toda a filosofia de Nietzsche como “transvaloração de todos os valores”.

Repensar o valor da verdade é uma das suas tarefas maiores. E repensar o valor da verdade no quadro do desenvolvimento filosófico de algo como uma “justificação estética” do mundo nada tem que ver com um projecto escapista que pretendesse nos fazer esquecer a verdade e abraçar, às cegas, o belo e o sublime, ou o apolíneo e o dionisíaco. A tese de Nietzsche - formulada até já antes do Nascimento da tragédia e reformulada de múltiplas maneiras ao longo da sua obra - é, pelo contrário, a de que a perspectiva estética, ou mais exactamente: aquilo a que chamamos acima a perspectiva da justificação estética do mundo - é necessária para que se consiga pensar a verdade. Uma das formulações mais claras desta ideia-chave (talvez a primeira!) surge no §3 do texto die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo), escrito dois anos antes da publicação do Nascimento da tragédia. Este curto § trata do trágico e do cômico como as duas dimensões constitutivas da arte dionisíaca. Sobre ambas, diz que elas existem num “mundo intermédio [Mittelwelt] entre a beleza e a verdade” (VD 3, KSA 1.567). Quer na “comoção do sublime”, quer na “comoção do riso”, o ser humano dionisíaco “permanece suspenso a meio caminho entre ambas” (VD 3, KSA 1.567), ou seja, entre a forma bela gerada pela arte e a verdade que através dela se revela sem que seja procurada enquanto tal. Na arte dionisíaca, o humano vai “além da beleza” e, contudo, “não busca a verdade”; aquilo a que aspira é, antes, “a aparência (Schein)” (VD 3, KSA 1.567), mas a aparência não é senão o filtro que, por um lado, cobre, por outro permite não apenas vislumbrar, mas demorar-se na contemplação da verdade:

“Fuga da verdade, poder adorá-la como se à distância, coberta por nuvens! Reconciliação com a realidade, porque ela é enigmática! Aversão à decifração de enigmas, porque nós não somos deuses! Jubilante prostrar-se no pó, paz de espírito na infelicidade!” (VD 3, KSA 1.570).

Como se vê, a “fuga da verdade” aqui em jogo que não é realmente uma “fuga da verdade”, mas sim uma forma de intuir a verdade e até de a adorar à distância (“coberta de nuvens”). Tal como no Nascimento da tragédia, a verdade é aqui o carácter enigmático do mundo, isto é, a sua absurdidade, a sua falta de uma justificação racional. E, tal como no Nascimento da tragédia o cerne deste “evangelho de artista” (NL 1888, 17[3]) é a tese de que a contemplação desta verdade - a “verdade dionisíaca”, o “absurdo da existência” - só é, de todo, possível porque a arte (por exemplo, na tragédia e na comédia) lhe dá uma forma que, ao mesmo tempo, gera distância em relação a ela e prazer nessa sua contemplação. Sem esta distância e este prazer (i.e., sem a perspectiva estética), a contemplação do absurdo do mundo não é suportável.

A “ilusão” (Wahn, NT 15) da perspectiva socrática está, desde logo, no facto de pressupor que seria possível uma pura contemplação da verdade sem a arte. E, como vimos, ela própria se torna “arte”, visto que só é uma perspectiva habitável, e não meramente autodestrutiva, porque se desenvolve como um ideal e um mecanismo de “protecção e remédio” contra o absurdo (NT 15), i.e. porque, sem compreender o que faz, transforma a procura de um justificação racional do mundo num fim em si mesmo, portanto numa razão para viver, mas uma razão subjectiva, ou seja, estética.

Mas o que faz, então, a filosofia de Nietzsche, contrariamente à de Sócrates ou de Hegel? Limita-se a aplaudir o modo como a arte já torna possível a contemplação da verdade dionisíaca? Não, de todo. Já o dissemos: a filosofia reflecte sobre os valores, ocupa-se da transvaloração de todos os valores, e fá-lo segundo o princípio de que “a arte tem mais valor do que a verdade” (NL 1888, 14[21], 17[3]). Todo o “evangelho de artista” gira em torno deste ponto: “a arte tem mais valor do que a verdade,” o que significa que a verdade não é “o padrão de valor mais elevado” (NL 1888, 17[31]). Dado que o sentido desta afirmação não é que a verdade não tenha valor algum e devamos passar sem ela, é certeira a tese de Martin Heidegger sobre a questão da verdade em Nietzsche: “a verdade é de facto um valor necessário, porém não o valor mais elevado”29. Segundo Heidegger, a valorização da arte em detrimento da verdade na obra de Nietzsche é um momento-chave da história do Ocidente que não pode ser compreendido se não atender ao facto de se tratar nele de uma inversão do platonismo, nomeadamente uma inversão do valor relativo atribuído por Platão à arte (ou ao belo) e à verdade na República e, em especial, no Fedro. É desta inversão que se trata na obra de Nietzsche. Mas esta inversão não nega um dos seus termos para afirmar o outro, portanto não despede a verdade como ilusão sem valor. O que ela faz é, antes, inverter, numa tábua em que se hierarquizam valores, a subordinação de um termo ao outro. O que Nietzsche faz é subordinar a verdade à arte, enquanto Platão havia subordinado, na tábua de valores mais influente de toda a história do Ocidente, a arte à verdade - e, assim, pensado a verdade como valor supremo e incondicional.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Cf. John McDowell, Mind and World, Cambridge, Massachusetts/ London, England 1996, 67, 73, 76-77, 88-89, 108; Robert B. Brandom, A Spirit of Trust: A Reading of Hegel’s “Phenomenology”, Cambridge, MA 2020, 555, 565-6, 656-7.
2 Robert B. Brandom, A Spirit of Trust, 565.
3 O artigo desenvolve, mas, em vários pontos importantes, também encurta e resume os resultados apresentados em dois artigos anteriores: João Constâncio, “Nietzsche on Normativity”, Nietzsche-Studien 51 (2022), 1-38, e João Constâncio, “Nietzsche on Nihilism (Eine unersättliche Diskussion?)”, in: Bertino, A./ Poliakova, E./Rupschuss, A./ Alberts, B. (Hrsg.), Zur Philosophie der Orientierung. Werner Stegmaier zum 70. Geburtstag, Berlin/ Boston 2016, 83-100. Excepto quando expressamente indicado, todas as traduções de originais alemães são da responsabilidade do autor do artigo. Fez-se também uso das seguintes traduções (por vezes com ligeiras modificações): Além do bem e do mal, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, 2ª edição, 1992; A gaia ciência, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo 2001; Aurora, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo 2004; Assim falou Zaratustra, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo 2011; Para a genealogia da moral, tradução de José Miranda Justo, Lisboa 2000.
4 Cf. Martin Heidegger, Nietzsche I, Gesamtausgabe (GA) 6.1, Frankfurt a. M. 1996, 245-246, 442, 465. Heidegger também faz notar, correctamente, que Nietzsche usa frequentemente o termo “vida,” Leben, como sinónimo de “existência” e “mundo”: cf. Nietzsche I, GA 6.1, 246, 297-298, 438-439, 442, 465, 512, 516, também: 215, 589. Cf. igualmente o curso sobre as Considerações extemporâneas: Martin Heidegger, Zur Auslegung von Nietzsche’s II. Unzeitgemäßer Betrachtung, GA 46, Frankfurt a. M. 2003, 83, 140, 211-222. Este ponto terminológíico é crucial para a interpretação do niilismo como algo que diz respeito ao mundo enquanto tal, à totalidade do que existe: cf. Martin Heidegger, Nietzsche II, GA 6.2, Frankfurt a. M. 1997, 248-254.
5 Fez-se aqui uso abreviatura da Crítica da faculdade de julgar estabelecida pela revista Kant-Studien, com indicação do § seguida da paginação canónica da Akademie Ausgabe (AA); tradução de Fernando Costa Mattos, para a editora Vozes: Immanuel Kant, Crítica da faculdade de julgar, São Paulo 2016.
6 Friedrich Heinrich Jacobi, “Jacobi an Fichte (1799),” in: Werke, dritter Band, Leipzig 1816, 3-57.
7 Robert B. Pippin, Modernism as a Philosophical Problem, 2nd ed., Oxford 1999, 145-149.
8 Cf. NL 1884, 26[374], 26[432], 27[27], NL1885, 36[35], 37[4], 39[13], 42[3], NL 1885-86, 2[68], 2[70], 2[91]; NL 1885, 40[21], NL 1886-87, 5[56].
9 Cf. Stefano Marino, “Nietzsche and McDowell on the Second Nature of The Human Being”, Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, and Practical Philosophy 9 (2017), 231-261.
10 Sobre o modo como Nietzsche distingue juízos intelectuais e juízos instintivos, cf. Luca Lupo, Le Colombe dello Scettico, Riflessioni di Nietzsche sulla Coscienza negli anni 1880-1888, Pisa 2006; Luca Lupo, “Drives, Instincts, Language, and Consciousness in Daybreak 119: ‘Erleben und Erdichten’”, in João Constâncio / Maria João Mayer Branco (eds.), As the Spider Spins: Essays on Nietzsche’s Critique and Use of Language, Berlin/ Boston 2012, 179-195.
11 Cf., de novo, Marino, “Nietzsche and McDowell,” 239 and passim.
12 Sebastian Gardner, “Nietzsche on Kant and Teleology in 1868: ‘“Life” is something entirely dark….’”, Inquiry 62 (2019), 23-48. Tal como Gardner observa, os dois volumes de Kuno Fischer sobre a filosofia de Kant (1866) foram cruciais para a compreensão da terceira Crítica por parte de Nietzsche. Cf. também: Thomas H. Brobjer, Nietzsche’s Philosophical Context: An Intellectual Biography, Urbana and Chicago 2008, 48-50.
13 Para Goethe (e depois para Hegel), o todo que unifica as partes de um ser-vivo como uma única unidade de vida organizada é uma forma ideal, i.e. é a “Ideia” no sentido kantiano de “um arquétipo das coisas em si mesmas.,” ou “o fundamento da possibilidade do seu objecto:” cf. Eckart Förster, The Twenty-Five Years of Philosophy: A Systematic Reconstruction, Cambridge, Massachusettes/ London, England 2012, 149, 253 (um livro que inspirou uma boa parte do artigo de Gardner). Mas a “ideia”como a forma arquetípica que torna possível a forma observável, sensível, particular é justamente o que Nietzsche considera ser “inteiramente escuro” - algo sobre o qual nós temos de pensar e reflectir para podermos distinguir, por exemplo, uma planta de uma pedra, mas que, mesmo assim, é “um enigma.” Como Gardner demonstra, é essa a crítica de Nietzsche, nas notas de 1868, à posição de Goethe: por um lado, Nietzsche sente-se atraído pela “aspiração goethiana a uma visão do mundo científico-estética” (cuja possibilidade Goethe julgou ver confirmada no modo como a terceira Critica de Kant procurava unificar o juízo teleológico com o juízo estético numa mesma faculdade de julgar); por outro, Nietzsche defende, contra Goethe, que não há nada de transparente na finalidade interna que temos de julgar ser constitutiva da natureza qua vida. O facto de que as categorias mecânicas não podem tornar a vida inteligível significa que nada pode. Se, no que respeita ao nosso acesso à existência de um dado organismo vivo, tivéssemos de atribuir a nós mesmos um “entendimento intuitivo” - capaz de apreender o todo, a ideia, e assim a vida que constitui o organismo como organismo -, teríamos de reconhecer, por outro lado, que o que esse entendimento intuiria seria “inteiramente obscuro.” E tal valeria a fortiori para uma suposta “intuição” da vida como um todo.
14 Sobre a relação de Nietzsche com o Darwinismo, cf. George J. Stack, Lange and Nietzsche, Berlin/ New York 1983, chapter VII; Werner Stegmaier, Darwin, Darwinismus, Nietzsche, Zum Problem der Evolution”, Nietzsche-Studien 16 (1987), 264-287; Richardson, Nietzsche’s New Darwinism; Emden, Nietzsche’s Naturalism; João Constâncio, “Darwin, Nietzsche e as Consequências Filosóficas do Darwinismo”, Cadernos Nietzsche 26 (2010) 109-154.
15 Cf. também WWV I §28, 192; e veja-se também as noções de Instinkt e Kunsttrieb na obra de Kant,, especialmente em Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (RGV, AA 06), Anm. IV, 28: “Instinct, welcher ein gefühltes Bedürfniß ist, etwas zu thun oder zu genießen, wovon man noch keinen Begriff hat (wie der Kunsttrieb bei Thieren, oder der Trieb zum Geschlecht)”; cf. KU §85, §90. Sobre a consciência, o instinto e o organismo em Schopenhauer e Nietzsche, cf. João Constâncio, “On Consciousness: Nietzsche’s Departure from Schopenhauer,” Nietzsche-Studien 40 (2011), 1-42.
16 Cf. João Constâncio,“Nietzsche on Consciousness, Will, and Choice: Another Look at Nietzschean Freedom”, in Dries, M. (ed.), Nietzsche on Consciousness and the Embodied Mind, Berlin/ Boston, 2018, 113-140
17 Cf. também NL 1885 2[131], NL 1888 14[82].
18 Cf. a análise completa deste aforismo da Gaia Ciência: João Constâncio, “Nietzsche’s Aesthetic Conception of Philosophy: A (Post-Kantian) Interpretation of The Gay Science §373” , in Paul Loeb / Matthew Meyer, (eds.), Nietzsche’s Metaphilosophy: The Nature, Method, and Aims of Philosophy, Cambridge 2019, 187-206.
19 Cf. Robert B. Brandom, Making it explicit, Reasoning, Representing, and Discursive Commitment, Cambridge, Massachusetts/ London, England 1994, 87.
20 Sobre este aspecto do perspectivismo de Nietzsche, veja-se, por exemplo: James Conant, Friedrich Nietzsche: Perfektionismus & Perspektivismus, Konstanz 2014, 312-321.
21 Cf. também NL 1881, 11[128], e Patrick Wotling, La philosophie de l’esprit libre, Introduction à Nietzsche, Paris 2008, 163-164.
22 Cf. Robert B. Pippin,“The Expressivist Nietzsche”, in João Constâncio / Maria João Mayer Branco / Bartholomew Ryan (eds.), Nietzsche and the Problem of Subjectivity, Berlin/ Boston 2015, 654-667; cf. Maria João Mayer Branco,“Questioning Introspection: Nietzsche and Wittgenstein on ‘The Peculiar Grammar of the Word “I”’”, in Constâncio / Branco / Ryan (eds.), Nietzsche and the Problem of Subjectivity, 454-486.
23 Cf. Werner Stegmaier, “Nietzsches Zeichen”, Nietzsche-Studien 29 (2000), 41-69, and Constâncio “On Consciousness: Nietzsche’s Departure from Schopenhauer.”
24 Cf. Pippin, Nietzsche, Psychology, & First Philosophy, Chicago & London 2010, 26-32, 59-69, 73-75, 84.
25 Cf., por exemplo, a magistral demonstração deste ponto em Robert B. Brandom, Reason in Philosophy, Cambridge, Massachusetts/ London, England 2009.
26 Martin Saar, “Die Moral der anderen. Nietzsche’s Wertkritik”, Nietzsche-Studien 44 (2015), 133-137.
27 Cf. a análise aprofundada deste ponto em Constâncio, “Nietzsche on Normativity”. (No presente artigo abstraiu-se da questão da “normatividade social” e do “lastro de irracionalidade” que a caracteriza, bem como da distinguir mas, simultaneamente, colocar num mesmo continuum de problematicidade polissémica e perspéctica três tipos de normatividade: “normatividade natural,” “normatividade social” e “normatividade racional”).
28 Para Kant, no caso do belo a justificação em função de um sentimento é a justificação em função da vivificação de um Lebensgefühl, de um “sentimento de estar vivo” (ou sentimento do corpo); no caso do sublime, a justificação em função da vivificação de um Geistesgefühl, de um “sentimento de ser espírito: cf., por exemplo, John H. Zammito, The Genesis of Kant’s Critique of Judgment, Chicago & London 1992, 275, 285-305. Não cabe neste artigo a reflexão sobre a influência da concepção kantiana do belo na concepção nietzschiana de apolíneo, nem a da concepção kantiana do sublime na concepção nietzschiana do dionisíaco.
29 Martin Heidegger, Nietzsche I, Frankfurt a. M. 1996, 483, cf. 484-495, 553-564, 573-574)
Autor notes
a JC é professor de Filosofia, Doutor em Filosofia, e mail: joaoconstancio@fcsh.unl.pt
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