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Poetas e homens verídicos diante do niilismo: Der Dichter als Betrüger - O Poeta como Mentiroso
MARIA CRISTINA FORNARI
MARIA CRISTINA FORNARI
Poetas e homens verídicos diante do niilismo: Der Dichter als Betrüger - O Poeta como Mentiroso
Poets and truthful men in the face of nihilism: Der Dichter als Betrüger - The Poet as Liar
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 169-182, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
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Resumo: O presente artigo parte da difundida opinião de que poetas são mentirosos para analisar a posição paradoxal de Nietzsche em relação à crítica da vontade de verdade: por um lado, sua denúncia da falsidade entranhada nos ideais epistemológicos e morais mais sublimes de nossa tradição; por outro lado, a reconstituição da gênese da probidade intelectual inerente à consciência científica moderna como tradução sublimada da veracidade cristã. Em conclusão, num tensionamento ente Nietzsche e Goethe, interpreta o ensinamento do eterno retorno como verdadeira recriação poética do mundo, que o redime do acaso e da brutalidade dos fatos, e torna possível a superação do niilismo.

Palavras-chave: Verdade, Mentira, Moral, Honestidade, Niilismo.

Abstract: This article starts from the widespread opinion that poets are liars to analyze Nietzsche's paradoxical position in relation to the critique of the will to truth: on the one hand, his denunciation of the falsity ingrained in the most sublime epistemological and moral ideals of our tradition; on the other hand, the reconstitution of the genesis of intellectual probity inherent to modern scientific consciousness as a sublimated translation of Christian veracity. In conclusion, in a tension between Nietzsche and Goethe, it interprets the teaching of the eternal return as a true poetic recreation of the world, which redeems it from hazard and the brutality of facts, and makes it possible to overcome nihilism.

Keywords: Truth, Lie, Morality, Honesty, Nihilism.

Carátula del artículo

Artigo

Poetas e homens verídicos diante do niilismo: Der Dichter als Betrüger - O Poeta como Mentiroso

Poets and truthful men in the face of nihilism: Der Dichter als Betrüger - The Poet as Liar

MARIA CRISTINA FORNARI
Università del Salento, Itália
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 169-182, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 14 Maio 2022

Aprovação: 07 Agosto 2022

A sagacidade procura enganar a própria verdade.Baltasar Gracían.

Introdução

“Os poetas mentem demasiado”: a célebre sentença de Sólon contra as mentiras narradas por Téspis da Ática nas suas tragédias1 e recordada por Nietzsche com as palavras de Homero no aforismo 84 de A Gaia Ciência (“Viel ja lügen die Sänger!”) poderia estar inscrita sobre a porta de entrada de Assim falou Zaratustra.

Zaratustra, de quem se fala de forma poética e que é, no fundo, também um poeta, convida-nos a não nos fiarmos nos seus próprios ensinamentos, nas suas próprias verdades:

Pois que te disse, em tempos, Zaratustra? Que os poetas mentem demasiado?... Mas também Zaratustra é poeta. Acreditas, agora, que aqui ele disse a verdade? Por que crês tu nisso? O discípulo respondeu: ‘Acredito em Zaratustra.’ Mas Zaratustra abanou a cabeça e sorriu2.

I

Mas se cada povo tem a sua verdade, a dos Persas é, como sabemos, esticar bem o arco e dizer sempre a verdade. Zaratustra é persa, portanto nele encontramos a verdade que esperamos. Então, em que devemos acreditar? Devemos confiar em Zaratustra? É a verdade o que ele nos ensina? E qual? Qual é a verdade que a poesia esconde ou não alcança, poesia essa que, ao mesmo tempo, é a única que a pode exprimir?

Na obra Genealogia da verdade3, o filósofo britânico Bernard Williams chama a nossa atenção para um problema muito actual, gerado pela tensão entre duas posições cujo conflito provoca um verdadeiro mal-estar intelectual. Por um lado, um compromisso constante e sistemático nos confrontos com a “veracidade” (truthfulness), ou pelo menos com uma aversão ao engano e às suas máscaras; por outro, o crescimento da suspeita nos confrontos com a verdade (truth). O compromisso constante e quotidiano nos confrontos com a veracidade (pensemos na investigação, no exercício da crítica, na verificação dos poderes) está constantemente em tensão com a dúvida sobre se existe qualquer coisa que seja a verdade, até ao descrédito em que esta acaba por cair. Afirma Williams:

Estas duas coisas, a devoção nos confrontos com a veracidade (truthfulness) e a suspeita dirigida à ideia de verdade (truth) estão ligadas entre si. O desejo de veracidade conduz a um processo crítico que enfraquece a certeza de que o que existe seja uma verdade estável, seja uma verdade formulável sem excepções.

Era exactamente isto que Nietzsche definia com a autossupressão da moral por moralidade: uma tensão para o verdadeiro que faz com que o engano seja tolerável, um exercício de veracidade realizado sempre com maior rigor (“Die immer strenger genommene Begriff der Wahrhaftigkeit”4) que, para Nietzsche, conduz de facto ao autodesmascaramento da moral cristã - e de Deus, “a nossa mais longa mentira” - como obra de falsários, ao proibir-se a mentira em nome da consciência científica e do asseio intelectual, que não são senão a tradução sublimada daquele desejo de veracidade.

O valor da veracidade inclui, portanto, a necessidade de descobrir a verdade, ater-se a ela e proclamá-la, mesmo com o preço de perecer dela. Pelo contrário, “acerca daquilo que é a ‘veracidade’, talvez ainda ninguém tenha sido suficientemente verídico” (“Über Das, was ‘Wahrhaftigkeit’ ist, war vielleicht noch Niemand wahrhaftig genug”5).

Mas Williams - que amava tanto Nietzsche, que dizia gostar de o citar de vinte em vinte minutos -, provoca-nos:

Se não acreditais verdadeiramente na existência da verdade, qual é o objecto da vossa paixão pela veracidade? Ou [...] na perseguição da verdade, presumis resultados dignos de fé a respeito de que objecto? Não se trata de uma dificuldade abstracta ou de um mero paradoxo6.

Só demonstrando uma disposição íntima para a verdade se pode evitar o risco de “perder tudo”: e uma verdadeira genealogia do “verdadeiro” e do “verídico” como a que foi tentada por Williams - e, segundo o que ele próprio diz, guiado por Nietzsche - estará, para o filósofo inglês, em condições de demonstrar o valor intrínseco e não meramente instrumental do verdadeiro e a necessidade de tomar partido por este último.

Por outro lado, e paradoxalmente, se o compromisso com a verdade se joga sobretudo no exercício da ciência, a assumpção do valor preventivo e não funcional da verdade é, precisamente aqui, total. Nietzsche diz-nos ainda que, se “convicções são prisões”7, a disciplina do espírito científico começa exactamente no não conceder-se a si mesmo mais nenhuma convicção. As hipóteses tornam-se tais apenas quando passam pelo crivo da suspeita: na sua base, uma convicção mais imperiosa do que toda as outras, a fé na necessidade da verdade, a pergunta em redor da qual

deve-se não só responder de antemão afirmativamente, mas até num tal grau que nessa resposta se exprimam o princípio, a crença e a convicção de que “nada é mais necessário do que a verdade e, em relação a ela, tem tudo o resto apenas um valor de segunda ordem”8.

A fé incondicionada no valor da própria verdade da ciência não deriva do cálculo utilitário das consequências, mas do amor pela verdade a qualquer custo, do não querer enganar, nem mesmo a si mesmo: “e com isso - precisa Nietzsche - estamos no terreno da moral9.

Com a sua vontade de verdade, o homem verídico (der Wahrhaftiger) afirma, porém, um mundo diferente do da vida, da natureza e da história (sabemos que a vontade de verdade pode ser um princípio hostil à vida, uma oculta e dolorosa vontade de morte: “Mas assim a nossa filosofia não se torna tragédia? A verdade não se torna inimiga da vida, inimiga do bem?”10): na base desta vontade está uma espécie de fé metafísica, da qual não temos consciência, e da qual talvez não seja benéfico libertarmo-nos. Se a verdade é uma mulher, inapreensível, (im)púdica e mentirosa, não deixamos contudo de lutar por ela até ao esvaziamento de todas as ilusões consoladoras e conscientes do efeito doloroso do afastamento entre aquilo que não podemos mais legitimamente aceitar como verdadeiro e aquilo que constitui a base milenar do nosso conhecimento:

Tivemos de lutar contra nós próprios para conquistar cada palmo de verdade de verdade; tivemos que sacrificar quase tudo aquilo a que antes se prendiam o coração, o nosso amor e a nossa confiança na vida. Para isso é preciso ter grandeza de alma: servir a verdade é o mais duro dos serviços. - Que significa sermos honestos (rechtschaffen) nas coisas do espírito? Significa sermos severos contra o próprio coração, desprezar os “belos sentimentos”, fazer um caso de consciência de cada sim e de cada não!11

Esta “honestidade” (Rechtschaffenheit) nas coisas do espírito poderia também traduzir-se por um “tomar partido pela verdade”. Efectivamente, se reflectirmos sobre o léxico da sinceridade, vemos que dizer a verdade como dado objectivo, no sentido de “ser coerente entre aquilo que se tem por verdadeiro e aquilo que se afirma como tal”, não significa empenhar-se na verdade (podemos fazê-lo por acaso, em conversa, ou também para enganar o outro: a sinceritas diabolica dos medievais). Este tipo de sinceridade pode não comprometer-nos, de facto, com a verdade que - como diria Yvon Belaval (Le souci de la sincérité) pode ser completamente privada de significado para aquele que a habita12.

Não é assim para Zaratustra, o poeta que afirma de si mesmo: “Eu sou a verdade.” Mas quem é Zaratustra?

É ele alguém que promete? Ou alguém que cumpre o prometido? Alguém que conquista? Ou alguém que herda? Um Outono? Ou uma charrua? Um médico? Ou um doente curado? É um poeta ou um homem que fala a verdade? (Ist er ein Dichter? Oder ein Wahrhafitiger?) Um libertador ou um domador? Um bom ou um mau?13

Zaratustra é sem dúvida um veraz, um homem verídico, ou que fala a verdade. O seu enunciado “em verdade” vai para além da fórmula mecânica do “quinto evangelho”, do “evangelho anti-cristão”: é um compromisso com a verdade que o expõe à solidão, uma solidão que nasce do sinal de excepção que a verdade produz, irrompendo na inércia do que é conhecido, daquilo que presumimos conhecer. A veracidade de Zaratustra é a virtude de um espírito atento à verdade, é o ser consequente com a verdade e tem que ver com a esfera da coragem.

Chamo veraz/verídico [Wahrhaftig] - explica, de facto, Zaratustra - àquele que se aventura em desertos sem deuses, depois de ter despedaçado o seu coração reverente. […] Livre da felicidade do servo, redimida de deuses e adoradores, destemida e temível, grande e solitária: assim é a vontade do veraz14.

No deserto moraram desde sempre os verazes, os espíritos livres, como senhores do deserto […]15.

II

O deserto, para Nietzsche, é o símbolo do niilismo: atraversá-lo significa render-se e morrer em desoladas latitudes, ou então consolar-se com miragens fugazes e inconsistentes, com poesias metafísicas. O Wahrhaftig, o homem verídico, bebeu até ao fim o amargo cálice do niilismo, encontrando, por fim, um caminho para a saída, que é só seu.

É o fim do espaço de indiferença nos confrontos com a verdade que caracterizava, por exemplo, o homem de Acerca da verdade e da mentira, que se preocupava apenas com as desagradáveis consequências práticas das mentiras recíprocas16. Se “quando não se pode saber nada de verdadeiro, a mentira é permitida” (como Nietzsche afirma nos fragmentos do período de Acerca da verdade e da mentira17), é apenas aparente o paradoxo de que agora, justamente, a não-verdade reconhecida de estruturas estáveis e permanentes do ser (o mundo “verdadeiro”, que Nietzsche explica que se tornou fábula) e a aceitação do fluxo do devir constituem para Zaratustra a sua nova, terrível verdade (“A minha verdade é tremenda, porque até agora se chamou verdade à mentira”); uma verdade que - com a irrupção do pensamento do eterno retorno - mostra não ser de modo nenhum hostil à vida, antes representante da sua íntima realização e sua justificação suprema.

Uma “verdade” que, com a desagregação da consideração metafísica/tradicional da realidade, restitui ao mundo a sua dimensão poética e criativa mais própria: o sentido de todo o agir de Zaratustra, de acordo com o que ele declara, é efectivamente que ele “imagina como um poeta”, substituindo ao caos uma unidade e reordenando os seus fragmentos, sem, porém, cair na armadilha fraudulenta dos bardos.

A espécie dos poetas, da qual Zaratustra se declara cansado, é infeliz. Se Zaratustra não os tolera, mas também não se zanga com eles como com outras máscaras de hipocrisia voluntária, é porque eles não podem senão mentir. A isso os obriga a sua própria natureza de poetas (a vocação criativa que Zaratustra deseja também para os seus discípulos) e também a incapacidade de avançarem mais além no abismo do conhecimento. Na medida em que são incapazes de aprender (têm a incapacidade dos maus discípulos: schlechte Lerner), e ao contrário daqueles que aprendem, eles não podem não mentir; românticos, embriagados da Natureza - da qual esperam que ela desnude os seus próprios segredos -, os poetas têm de se ater ao engano da superfície.

Nisto, contudo, todos os poetas acreditam: que quem estiver de orelhas atentas, quando deitado na erva ou em encostas, algo fica sabendo acerca das coisas que estão entre o céu e a terra. E se lhes sobrevêm sentimentos ternos, então os poetas acham sempre que a própria Natureza está apaixonada por eles e se aproxima deles sorrateiramente para lhes dizer ao ouvido segredos e amorosas lisonjas: é disso que eles se ufanam e se pavoneiam diante de todos os mortais! Ah! Há tanta coisa entre o céu e a terra, com as quais só os poetas se permitiram sonhar um pouco!18

Se não é por acaso que esta última afirmação é uma paráfrase de Hamlet, talvez ainda o seja menos que nesta passagem tenha sido notada uma referência ao acto II da cena I de Fausto.

“Aqueles que poetam” são também voluntariamente impostores (o aparato crítico remete para uma variante de Opiniões e sentenças diversas: “O poeta como farsante/Der Dichter als Betrüger”)19; ferozmente hostis ao homem do conhecimento e à sua “honestidade intelectual” (Redlichkeit), “aqueles que poetam” partilham com os teólogos e os metafísicos, “ávidos de Deus”, uma certa doença da vontade, que faz parte do niilismo:

Foram o sofrimento e a impotência que criaram todos os além-mundos. [...] Uma lassitude que quer chegar ao extremo com um único salto, com um salto mortal, uma pobre lassitude ignorante, que até já nem quer mais querer: foi ela, pois, que criou todos os deuses e além-mundos20.

Nessa poderosa defesa da imanência que é o capítulo “Dos visionários do além-mundo (“Von den Hinterweltern”), Deus é uma invenção de poetas e, com Deus - um concentrado de mentira -, também tudo aquilo que invoca estabilidade, essência e unidade. Mas o pensamento de Deus é capaz, como qualquer pensamento poderoso, de investir e perturbar a componente essencial para o homem que é a temporalidade: “Deus é um pensamento que torna torto tudo quanto é direito e põe a girar tudo o que está parado. Como? O tempo desapareceria e tudo quanto é transitório seria unicamente mentira”.21

Noutra passagem, Zaratustra avisa-nos de que “todas as coisas direitas mentem”, e de que a verdade é curva: se, no primeiro sentido, Deus é entendido como hostil à evidência inegável do transitório, do tempo e do devir, agora é a própria circularidade do anel que fornece uma possível “verdade”, a qual se opõe à opressão mentirosa de cada concepção metafísica e de cada estrutura dada.

O amante da verdade deve abster-se destas construções totalizantes. Ou melhor, avisa Zaratustra: “A toda essa doutrina do Uno, do Pleno, do Imóvel, do Satisfeito e do Imperecível, chamo-lhe eu má e misantrópica”, pois “tudo quanto é imperecível... é também apenas uma metáfora (alles das Unvergängliche - das ist auch nur ein Gleichniss)! E os poetas mentem demasiado”22.

Não é certamente por acaso - nunca o é em Nietzsche - que Zaratustra utilize aqui, invertido, o final do Fausto de Goethe; e o contraste com o célebre verso do Chorus Misticus volta a abrir a primeira canção do Príncipe Vogelfrei, expressamente dedicada a Goethe, o poeta dos poetas (verso em que se pode ver um interessante efeito specular):

J.W. Goethe, Faust, vv. 12104-12111:

«Alles Vergängliche / Ist nur ein Gleichnis; / Das

Unzulängliche, / Hier wird’s Ereignis; / Das

Unbeschreibliche, / Hier ist’s getan; / Das Ewig-Weibliche /

Zieht uns hinan».

«Tudo o que passa/ É metáfora só;

O que não se alcança/ Em corpo aqui está;

O indescritível/ Realiza-se aqui

O Eterno Feminino/ Atrai-nos para si.” [trad. João Barrento, modificada]

F. Nietzsche, An Goethe23:

«Das Unvergängliche / Ist nur dein Gleichniss!

Gott der Verfängliche/ Ist Dichter-Erschleichniss…

Welt-Rad, das rollende, / Streift Ziel

auf Ziel: / Noth - nennt’s der Grollende, / Der Narr nennt’s - Spiel…

Welt-Spiel, das herrische, / Mischt Sein und Schein: -

Das Ewig-Närrische / Mischt uns - hinein!...»

«A Goethe

O imperecível/ é apenas a tua metáfora!

Deus, o insidioso /É manha dos poetas…

Roda do mundo, que ao girar/ Aflora alvo sobre alvo:

Carência - chama-lhe o rancoroso,

O louco chama-lhe - jogo…

Jogo do mundo, que imperioso/ Mistura ser e aparecer: -

A Eterna-Loucura/Mistura-nos - para dentro dela!... »

O tema da canção é o imperioso jogo do mundo, a eterna e inocente leveza que doravante substituirá a visão de um mundo carregado com o peso metafísico. O dualismo entre Ser e Aparência (Sein und Schein) desvanesceu-se, a eterna brincadeira ou buffoneria (e não o eterno feminino) redimiu-nos, assimilando-nos ao fluxo do devir (hinein e já não hinan). O imperecível não é senão uma metáfora: e enquanto (afirma Zaratustra) “as melhores metáforas devem falar do tempo e do devir”, devem ser uma justificação e um louvor, a mentira poética faustiana fala, pelo contrário, uma linguagem metafísica onde o eterno feminino24 e a intervenção da Graça abrem a Fausto as portas de uma ordem cósmica transcendente.

Não podemos também esquecer que Mefistófeles é um campeão do niilismo (“Sou o espírito que nega sempre!/ E com razão, pois tudo aquilo que nasce é digno de morrer./ Por isso o melhor seria que nada nascesse”), tal como a morte de Fausto é um precipitar na espiral do vazio. Ao coro, que comenta “Es ist vorbei!” (“passou!”), Mefistófeles responde quase com um acento anti-zaratustriano:

- Passou! Palavra sem sentido.

Passou, porquê?

Entre passar e o nada, que diferença há?

De que serve tanta coisa criada?

O que se cria desfaz-se logo em nada!

‘Passou!’ Qual é disto o sentido?

É como se nunca tivesse sido,

Mas, como se fosse, segue em rodopio.

Quanto a mim, prefiro o Eterno-Vazio25.

E se Fausto se irá declarar derrotado por Mefistófeles apenas se se sentir obrigado a dizer: “Instante demora-te: és belo!” - mas será apenas o suspiro nostálgico de um niilista às portas da morte (Mefistófeles: “Nem prazeres nem fortuna o faz contente, […]/ O derradeiro, oco, insípido instante/ É esse que ele quer reter” [v. 11586 ss]) - é exactamente na aceitação plena e alegre do que passa e na sua eternização na plenitude do instante que Zaratustra colocará, ao invés, a própria verdade e a própria proposta de redenção26.

A redenção (Erlösung) indicada por Zaratustra remete, de facto, para uma nova relação com o tempo e com a necessidade. As noções de permanência e de estabilidade explodiram: o devir é o fundamento único e paradoxal. Ao invés, a vontade de verdade que caracteriza a metafísica (com o seu medo do devir e do movimento), implicando estruturas estáveis e permanentes do mundo, tem como consequência necessária o niilismo e é dominada pelo espírito de vingança.

Sabemo-lo bem pelo capítulo “Da visão e do enigma”: só a solução do problema da temporalidade poderá valer como superação definitiva do niilismo e como premissa para a construção do Übermensch, o “sobrehumano” ou o “além-do-homem”.

Se, nas “Ilhas afortunadas”, assistíramos à refutação do Pleno, do Satisfeito e do Imperecível, de acordo com a “verdadeira doutrina da vontade e da liberdade”, no capítulo “Da redenção” Zaratustra completa o que já ali fora expresso, precisando que à vontade é necessário um passo ulterior que consiste - como se sabe - no aprender a “querer para trás”. Este parece ser “o seu dizer sim até à justificação, à redenção também de todo o passado”, o núcleo central e a tarefa de Zaratustra, confirmada em Ecce Homo: reunir passado e futuro sob a porta do instante até que aquilo que até agora nos oprimiu com a sua inelutabilidade se revele também como um produto do nosso querer, numa relação de determinação recíproca27.

À vontade libertada de todo o espírito de gravidade - chamemos-lhe passado, finalidade, responsabilidade, culpa ou Deus - abrem-se novos espaços de criação: tal como a criança heraclitiana incessantemente cria (e destrói) no seu feliz jogo sem finalidade. Com o fim da mentira milenar e da estrutura edípica do tempo, o pensamento do eterno retorno restitui inocência ao devir e uma riqueza de sentido a cada instante; doutrina cosmológica e tensão moral, ele inclui também uma verdadeira relação de re-criação do mundo - uma criação poética?28 -, redimido tanto do acaso como da mera brutalidade dos factos (assim é, assim quis que fosse)29.

Considerações finais

Subtraído às simplificações ideológicas que o nivelam, o mundo da experiência - o mundo da vida - abre-se a horizontes interpretativos infinitos e revela-se quase polimórfico.

A divindade do devir e do polimorfismo é Dioniso, e Zaratustra, “a alma que é e que mergulha no devir”, que acede a todos os opostos, que liga todas as contradições numa nova unidade (“Mas este é o próprio conceito de Dioniso”)30, fala a linguagem dionisíaca do ditirambo. Portanto, é verdadeiramente um poeta: mas já não é um nostálgico cantor de naturalidades perdidas; já não mascara o que esconde; e sobretudo, já não é “efígie, coluna de um Deus” que guarda os seus templos. “Só louco, só poeta!”31, precisamente, onde o poeta conta e é toda a leveza de um mundo doravante libertado e redimido.

Material suplementar
Referências
DERRIDA, J. Breve storia della menzogna, Prolegomeni. Trad. de C. Arnone. Roma: Castelvecchi, 2006.
GOETHE, J. W. Faust. Trad. de João Barrento. Lisboa: Relógio d’Água, 1999.
NAUMANN, G. Zarathustra-Commentar. v. II. Leipzig: Haessel, 1889-1901.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Edição de Colli e M. Montinari. Berlin/New York/München: de Gruyter, DTV, 1980.
NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Edição de G. Colli e M. Montinari. Berlin/New York: de Gruyter, 1967s.
PLATÃO. O Banquet. Trad. de Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa: Edições 70, 1992.
PLUTARCO. Solon. In: Plutarch, Lives I, Theseus and Rhomulus. Lycurgus and Numa. Solon and Publicola. Cambridge: Harvard University Press/London: Loob Classical Library, 1914.
SEVERINO, E. L’anello del ritorno. Milano: Adelphi, 1999.
WEICHELT, H. Zarathustra-Kommentar. Leipzig: Felix Meiner, 1922x.
WILLIAMS, B. Truth and Truthfulness: An Essay in Genealogy. Princeton: Princeton University Press, 2002.
Notas
Notas
1 Cf. Plutarco, Solon, 29, 6-7.
2 Za (Assim falou Zaratustra); II “Dos poetas” (KGW VI, I, p. 159). O comentário de Hans Weichelt remete a este propósito para o paradoxo do mentiroso cretense (Cf. Hans Weichelt, Zarathustra-Kommentar, Leipzig, Felix Meiner, 1922, p. 104n).
3 Bernard Williams, Truth and Truthfulness: An Essay in Genealogy, Princeton, Princeton University Press, 2002.
4 FW 357 (KGW V, II, p. 279). Veja-se também GM III, 27 (KGW VI, II, p. 365).
5 JGB 177 (KGW VI, II, p. 103).
6 WILLIAMS (2002, p. 8).
7 AC 54. Nietzsche refere Zaratustra neste parágrafo: “Não nos deixemos enganar: os grandes espíritos são cépticos. Zaratustra é um céptico”.
8 FW 344 (KGW V, II, p. 256).
9 Ibidem. Em Acerca da verdade e da mentira em sentido extra-moral, ao invés, Nietzsche atribuía ao nascimento de uma verdade convencional, construída através da linguagem, um grande valor funcional. O desejo de verdade era aqui limitado e pragmático (“os homens tentam evitar, não tanto serem enganados, como serem prejudicados pelo engano:... no fundo, não odeiam o engano, antes as consequências más e hostis de certas espécies de engano”). Trata-se do contrário do aforismo da Gaia Ciência, onde o desejo de verdade é urgente e penetrante.
10 MA 34 (KGW IV, II, p. 49).
11 AC 50 (KGW VI, III, p. 228).
12 De resto, também Zaratustra avisa que “a incapacidade para a mentira está ainda longe de ser amor à verdade. Acautelai-vos!” (Za IV, Do homem superior 9).
13 Za II, “Da redenção” (KGW VI, I, p. 173).
14 Sì, KGW VI, I, p. 128.
15 Za II, “Dos sábios famosos” (KGW VI, I, p. 128) [trad.de Paulo César de Souza, modificada].
16 “Nas relações morais com os outros homens, o homem pretende a verdade e di-la, é sobre isso que se funda qualquer vida comunitária. Pensa-se antecipadamente nas consequências desagradáveis das mentiras recíprocas. É daqui que surge o dever da verdade. Ao narrador épico concede-se a mentira, porque nesse caso não se prevê nenhum efeito prejudicial” (KGW III, III, p. 39). Em Da Verdade e da Mentira e nos fragmentos escritos no mesmo período dizer a verdade a todo o custo é entendido como qualquer coisa de socrático e só a sinceridade da arte pode ser honesta.
17 Cf. KSA 7. 451-452, 19[97].
18 Za II, “Dos poetas” (KGW VI, I, p. 159).
19 falta espaço aqui“O poeta como farsante: mima como alguém que sabe [...], e consegue-o diante daqueles que não sabem: por fim, acaba por acreditar em si mesmo. Assim conquista o sentimento da honestidade. - Os homens sentimentais vão ao seu encontro e dizem que ele possui a verdade superior: pois, de tempos a tempos, cansam-se da realidade. Sono e sonho para o cérebro - é isso para os homens o artista” (KGW IV, IV, p. 260).
20 Za I, “Dos visionários do além-mundo” (KGW VI, I, p. 309). Também ligado à doença da vontade e à superfície está a abertura das regiões do “espírito”. O início do capítulo “Dos poetas” (“Desde que conheço melhor o corpo, - disse Zaratustra a um discípulo - que o espírito é para mim apenas um modo de dizer espírito; e tudo o que é ‘imperecível’ - não é também senão um símbolo” (KGW VI, I, p. 159) remete para aquilo que Zaratustra já tinha afirmado sobre aqueles que vivem num além-mundo (“Acreditem em mim, irmãos! Era o corpo que desesperava do corpo - com os dedos do espírito enganado tacteava as paredes últimas. Acreditai em mim irmãos! Era o corpo que desesperava da terra - ele escutava como lhe falava o ventre do ser”: KGW VI, I, p. 30), torna explícita a equivalência. Cf. também o KSA 11. 85, 25[288] (KGW VII, II, p. 81). Poderíamos usar com a antítese Leib-Geist (que Gustav Naumann, no já clássico Zarathustra-Commentar, vol. II, Leipzig, Haessel, 1899-1901, p. 122, transforma em Physis-Psyche/Seele), para lembrar um dos maiores frequentadores dos recessos da alma: Fausto.
21 Za II, “Nas ilhas afortunadas” (KGW VI, I, p. 106).
22 Ibidem.
23 KGW V, II, p. 323.
24 Cf. Za, “Dos poetas”: “E até somos ávidos das coisas que as velhas, à noite, contam umas às outras. É aquilo a que nós próprios chamamos o eterno feminino em nós” (KGW VI, I, p. 159).
25 “CHOR: Es ist vorbei. / MEPHISTOPHELES: Vorbei! ein dummes Wort. / Warum vorbei? / Vorbei und reines Nicht, vollkommnes Einerlei! / Was soll uns denn das ew'ge Schaffen! / Geschaffenes zu nichts hinwegzuraffen! /”Da ist's vorbei!” / Was ist daran zu lesen? / Es ist so gut, als wär' es nicht gewesen, / Und treibt sich doch im Kreis, / als wenn es wäre. / Ich liebte mir dafür das Ewig-Leere” (Fausto, vv. 11596 e ss) [trad. de João Barrento, modificada; itálicos da autora].
26 “Sois espíritos esfomeados: tomai então esta verdade como aperitivo: o imperecível - é apenas uma metáfora [Gleichniss]” (KSA 10. 372, 10[24] (KGW VII, I, p. 386).
27 “Eu afastei-vos dessas fábulas quando vos ensinei: ‘A vontade é criadora.’ Todo o ‘aconteceu’ é um fragmento, um enigma, um caso atroz - até que a vontade criadora diga a esse respeito: ‘Mas foi assim que eu o quis!’ […] E quem lhe ensinou a reconciliar-se com o tempo? E com algo que é superior a toda a reconciliação? A vontade, que é vontade de poder, tem de querer algo que esteja acima de qualquer reconciliação… Mas como lhe sucede isso? Quem lhe ensinaria ainda a querer também para trás?” (Za II, “Da redenção” (KGW VI, I, p. 173).
28 Recordo o que afirma Diotima de Mantineia: “Por exemplo: sabes que a ideia de criação ou poesia é algo muito amplo, pois toda e qualquer passagem do não-Ser ao Ser se efectua por um acto de criar; de tal sorte que, mesmo as obras produzidas na totalidade dos ofícios são criações, como criadores ou poetas são todos os seus artífices” (Platão, O Banquete, trad. de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, 205b-c).
29 Segundo Emanuele Severino: “A “vontade que cria” traz ao ser qualquer coisa de absolutamente novo, não reconduzível ao passado. Ela inventa, tal como a vontade do poeta [...]. Zaratustra é, ao mesmo tempo, um poeta (criador) e aquele que diz a verdade (ou seja, que diz que a criação está essencialmente ligada ao eterno retorno). [...] A redenção do passado é unificação dos fragmentos, libertação daquilo que o devir tem de espantoso e casual - no hoje e no passado, para além de naquilo que virá -, porquanto é vivido fora da “verdadeira doutrina” da vontade, ou seja, aquela que é simultaneamente doutrina do eterno retorno.” (Emanuele Severino, L’anello del ritorno, Milano, Adelphi, 1999, p. 185-186).
30 EH, Assim falava Zaratustra, 6.
31 Veja-se “O canto da melancolia”, cantado pelo feiticeiro no livro IV de Zaratustra, que depois é cantado pelo próprio Nietzsche no ditirambo “Só louco! Só poeta!” que abre os Ditirambos de Dioniso.
Autor notes
a MCF, Professora Associada de História da Filosofia do Departamento de Estudos Humanísticos da Università del Salento. Campus de Lecce. Doutora em Disciplinas Histórico-Filosóficas, e-mail: mariacristina.fornari@unisalento.it
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