Resumo: O presente artigo parte da difundida opinião de que poetas são mentirosos para analisar a posição paradoxal de Nietzsche em relação à crítica da vontade de verdade: por um lado, sua denúncia da falsidade entranhada nos ideais epistemológicos e morais mais sublimes de nossa tradição; por outro lado, a reconstituição da gênese da probidade intelectual inerente à consciência científica moderna como tradução sublimada da veracidade cristã. Em conclusão, num tensionamento ente Nietzsche e Goethe, interpreta o ensinamento do eterno retorno como verdadeira recriação poética do mundo, que o redime do acaso e da brutalidade dos fatos, e torna possível a superação do niilismo.
Palavras-chave: Verdade, Mentira, Moral, Honestidade, Niilismo.
Abstract: This article starts from the widespread opinion that poets are liars to analyze Nietzsche's paradoxical position in relation to the critique of the will to truth: on the one hand, his denunciation of the falsity ingrained in the most sublime epistemological and moral ideals of our tradition; on the other hand, the reconstitution of the genesis of intellectual probity inherent to modern scientific consciousness as a sublimated translation of Christian veracity. In conclusion, in a tension between Nietzsche and Goethe, it interprets the teaching of the eternal return as a true poetic recreation of the world, which redeems it from hazard and the brutality of facts, and makes it possible to overcome nihilism.
Keywords: Truth, Lie, Morality, Honesty, Nihilism.
Artigo
Poetas e homens verídicos diante do niilismo: Der Dichter als Betrüger - O Poeta como Mentiroso
Poets and truthful men in the face of nihilism: Der Dichter als Betrüger - The Poet as Liar
Recepção: 14 Maio 2022
Aprovação: 07 Agosto 2022
A sagacidade procura enganar a própria verdade.Baltasar Gracían.
“Os poetas mentem demasiado”: a célebre sentença de Sólon contra as mentiras narradas por Téspis da Ática nas suas tragédias1 e recordada por Nietzsche com as palavras de Homero no aforismo 84 de A Gaia Ciência (“Viel ja lügen die Sänger!”) poderia estar inscrita sobre a porta de entrada de Assim falou Zaratustra.
Zaratustra, de quem se fala de forma poética e que é, no fundo, também um poeta, convida-nos a não nos fiarmos nos seus próprios ensinamentos, nas suas próprias verdades:
Pois que te disse, em tempos, Zaratustra? Que os poetas mentem demasiado?... Mas também Zaratustra é poeta. Acreditas, agora, que aqui ele disse a verdade? Por que crês tu nisso? O discípulo respondeu: ‘Acredito em Zaratustra.’ Mas Zaratustra abanou a cabeça e sorriu2.
Mas se cada povo tem a sua verdade, a dos Persas é, como sabemos, esticar bem o arco e dizer sempre a verdade. Zaratustra é persa, portanto nele encontramos a verdade que esperamos. Então, em que devemos acreditar? Devemos confiar em Zaratustra? É a verdade o que ele nos ensina? E qual? Qual é a verdade que a poesia esconde ou não alcança, poesia essa que, ao mesmo tempo, é a única que a pode exprimir?
Na obra Genealogia da verdade3, o filósofo britânico Bernard Williams chama a nossa atenção para um problema muito actual, gerado pela tensão entre duas posições cujo conflito provoca um verdadeiro mal-estar intelectual. Por um lado, um compromisso constante e sistemático nos confrontos com a “veracidade” (truthfulness), ou pelo menos com uma aversão ao engano e às suas máscaras; por outro, o crescimento da suspeita nos confrontos com a verdade (truth). O compromisso constante e quotidiano nos confrontos com a veracidade (pensemos na investigação, no exercício da crítica, na verificação dos poderes) está constantemente em tensão com a dúvida sobre se existe qualquer coisa que seja a verdade, até ao descrédito em que esta acaba por cair. Afirma Williams:
Estas duas coisas, a devoção nos confrontos com a veracidade (truthfulness) e a suspeita dirigida à ideia de verdade (truth) estão ligadas entre si. O desejo de veracidade conduz a um processo crítico que enfraquece a certeza de que o que existe seja uma verdade estável, seja uma verdade formulável sem excepções.
Era exactamente isto que Nietzsche definia com a autossupressão da moral por moralidade: uma tensão para o verdadeiro que faz com que o engano seja tolerável, um exercício de veracidade realizado sempre com maior rigor (“Die immer strenger genommene Begriff der Wahrhaftigkeit”4) que, para Nietzsche, conduz de facto ao autodesmascaramento da moral cristã - e de Deus, “a nossa mais longa mentira” - como obra de falsários, ao proibir-se a mentira em nome da consciência científica e do asseio intelectual, que não são senão a tradução sublimada daquele desejo de veracidade.
O valor da veracidade inclui, portanto, a necessidade de descobrir a verdade, ater-se a ela e proclamá-la, mesmo com o preço de perecer dela. Pelo contrário, “acerca daquilo que é a ‘veracidade’, talvez ainda ninguém tenha sido suficientemente verídico” (“Über Das, was ‘Wahrhaftigkeit’ ist, war vielleicht noch Niemand wahrhaftig genug”5).
Mas Williams - que amava tanto Nietzsche, que dizia gostar de o citar de vinte em vinte minutos -, provoca-nos:
Se não acreditais verdadeiramente na existência da verdade, qual é o objecto da vossa paixão pela veracidade? Ou [...] na perseguição da verdade, presumis resultados dignos de fé a respeito de que objecto? Não se trata de uma dificuldade abstracta ou de um mero paradoxo6.
Só demonstrando uma disposição íntima para a verdade se pode evitar o risco de “perder tudo”: e uma verdadeira genealogia do “verdadeiro” e do “verídico” como a que foi tentada por Williams - e, segundo o que ele próprio diz, guiado por Nietzsche - estará, para o filósofo inglês, em condições de demonstrar o valor intrínseco e não meramente instrumental do verdadeiro e a necessidade de tomar partido por este último.
Por outro lado, e paradoxalmente, se o compromisso com a verdade se joga sobretudo no exercício da ciência, a assumpção do valor preventivo e não funcional da verdade é, precisamente aqui, total. Nietzsche diz-nos ainda que, se “convicções são prisões”7, a disciplina do espírito científico começa exactamente no não conceder-se a si mesmo mais nenhuma convicção. As hipóteses tornam-se tais apenas quando passam pelo crivo da suspeita: na sua base, uma convicção mais imperiosa do que toda as outras, a fé na necessidade da verdade, a pergunta em redor da qual
deve-se não só responder de antemão afirmativamente, mas até num tal grau que nessa resposta se exprimam o princípio, a crença e a convicção de que “nada é mais necessário do que a verdade e, em relação a ela, tem tudo o resto apenas um valor de segunda ordem”8.
A fé incondicionada no valor da própria verdade da ciência não deriva do cálculo utilitário das consequências, mas do amor pela verdade a qualquer custo, do não querer enganar, nem mesmo a si mesmo: “e com isso - precisa Nietzsche - estamos no terreno da moral”9.
Com a sua vontade de verdade, o homem verídico (der Wahrhaftiger) afirma, porém, um mundo diferente do da vida, da natureza e da história (sabemos que a vontade de verdade pode ser um princípio hostil à vida, uma oculta e dolorosa vontade de morte: “Mas assim a nossa filosofia não se torna tragédia? A verdade não se torna inimiga da vida, inimiga do bem?”10): na base desta vontade está uma espécie de fé metafísica, da qual não temos consciência, e da qual talvez não seja benéfico libertarmo-nos. Se a verdade é uma mulher, inapreensível, (im)púdica e mentirosa, não deixamos contudo de lutar por ela até ao esvaziamento de todas as ilusões consoladoras e conscientes do efeito doloroso do afastamento entre aquilo que não podemos mais legitimamente aceitar como verdadeiro e aquilo que constitui a base milenar do nosso conhecimento:
Tivemos de lutar contra nós próprios para conquistar cada palmo de verdade de verdade; tivemos que sacrificar quase tudo aquilo a que antes se prendiam o coração, o nosso amor e a nossa confiança na vida. Para isso é preciso ter grandeza de alma: servir a verdade é o mais duro dos serviços. - Que significa sermos honestos (rechtschaffen) nas coisas do espírito? Significa sermos severos contra o próprio coração, desprezar os “belos sentimentos”, fazer um caso de consciência de cada sim e de cada não!11
Esta “honestidade” (Rechtschaffenheit) nas coisas do espírito poderia também traduzir-se por um “tomar partido pela verdade”. Efectivamente, se reflectirmos sobre o léxico da sinceridade, vemos que dizer a verdade como dado objectivo, no sentido de “ser coerente entre aquilo que se tem por verdadeiro e aquilo que se afirma como tal”, não significa empenhar-se na verdade (podemos fazê-lo por acaso, em conversa, ou também para enganar o outro: a sinceritas diabolica dos medievais). Este tipo de sinceridade pode não comprometer-nos, de facto, com a verdade que - como diria Yvon Belaval (Le souci de la sincérité) pode ser completamente privada de significado para aquele que a habita12.
Não é assim para Zaratustra, o poeta que afirma de si mesmo: “Eu sou a verdade.” Mas quem é Zaratustra?
É ele alguém que promete? Ou alguém que cumpre o prometido? Alguém que conquista? Ou alguém que herda? Um Outono? Ou uma charrua? Um médico? Ou um doente curado? É um poeta ou um homem que fala a verdade? (Ist er ein Dichter? Oder ein Wahrhafitiger?) Um libertador ou um domador? Um bom ou um mau?13
Zaratustra é sem dúvida um veraz, um homem verídico, ou que fala a verdade. O seu enunciado “em verdade” vai para além da fórmula mecânica do “quinto evangelho”, do “evangelho anti-cristão”: é um compromisso com a verdade que o expõe à solidão, uma solidão que nasce do sinal de excepção que a verdade produz, irrompendo na inércia do que é conhecido, daquilo que presumimos conhecer. A veracidade de Zaratustra é a virtude de um espírito atento à verdade, é o ser consequente com a verdade e tem que ver com a esfera da coragem.
Chamo veraz/verídico [Wahrhaftig] - explica, de facto, Zaratustra - àquele que se aventura em desertos sem deuses, depois de ter despedaçado o seu coração reverente. […] Livre da felicidade do servo, redimida de deuses e adoradores, destemida e temível, grande e solitária: assim é a vontade do veraz14.
No deserto moraram desde sempre os verazes, os espíritos livres, como senhores do deserto […]15.
O deserto, para Nietzsche, é o símbolo do niilismo: atraversá-lo significa render-se e morrer em desoladas latitudes, ou então consolar-se com miragens fugazes e inconsistentes, com poesias metafísicas. O Wahrhaftig, o homem verídico, bebeu até ao fim o amargo cálice do niilismo, encontrando, por fim, um caminho para a saída, que é só seu.
É o fim do espaço de indiferença nos confrontos com a verdade que caracterizava, por exemplo, o homem de Acerca da verdade e da mentira, que se preocupava apenas com as desagradáveis consequências práticas das mentiras recíprocas16. Se “quando não se pode saber nada de verdadeiro, a mentira é permitida” (como Nietzsche afirma nos fragmentos do período de Acerca da verdade e da mentira17), é apenas aparente o paradoxo de que agora, justamente, a não-verdade reconhecida de estruturas estáveis e permanentes do ser (o mundo “verdadeiro”, que Nietzsche explica que se tornou fábula) e a aceitação do fluxo do devir constituem para Zaratustra a sua nova, terrível verdade (“A minha verdade é tremenda, porque até agora se chamou verdade à mentira”); uma verdade que - com a irrupção do pensamento do eterno retorno - mostra não ser de modo nenhum hostil à vida, antes representante da sua íntima realização e sua justificação suprema.
Uma “verdade” que, com a desagregação da consideração metafísica/tradicional da realidade, restitui ao mundo a sua dimensão poética e criativa mais própria: o sentido de todo o agir de Zaratustra, de acordo com o que ele declara, é efectivamente que ele “imagina como um poeta”, substituindo ao caos uma unidade e reordenando os seus fragmentos, sem, porém, cair na armadilha fraudulenta dos bardos.
A espécie dos poetas, da qual Zaratustra se declara cansado, é infeliz. Se Zaratustra não os tolera, mas também não se zanga com eles como com outras máscaras de hipocrisia voluntária, é porque eles não podem senão mentir. A isso os obriga a sua própria natureza de poetas (a vocação criativa que Zaratustra deseja também para os seus discípulos) e também a incapacidade de avançarem mais além no abismo do conhecimento. Na medida em que são incapazes de aprender (têm a incapacidade dos maus discípulos: schlechte Lerner), e ao contrário daqueles que aprendem, eles não podem não mentir; românticos, embriagados da Natureza - da qual esperam que ela desnude os seus próprios segredos -, os poetas têm de se ater ao engano da superfície.
Nisto, contudo, todos os poetas acreditam: que quem estiver de orelhas atentas, quando deitado na erva ou em encostas, algo fica sabendo acerca das coisas que estão entre o céu e a terra. E se lhes sobrevêm sentimentos ternos, então os poetas acham sempre que a própria Natureza está apaixonada por eles e se aproxima deles sorrateiramente para lhes dizer ao ouvido segredos e amorosas lisonjas: é disso que eles se ufanam e se pavoneiam diante de todos os mortais! Ah! Há tanta coisa entre o céu e a terra, com as quais só os poetas se permitiram sonhar um pouco!18
Se não é por acaso que esta última afirmação é uma paráfrase de Hamlet, talvez ainda o seja menos que nesta passagem tenha sido notada uma referência ao acto II da cena I de Fausto.
“Aqueles que poetam” são também voluntariamente impostores (o aparato crítico remete para uma variante de Opiniões e sentenças diversas: “O poeta como farsante/Der Dichter als Betrüger”)19; ferozmente hostis ao homem do conhecimento e à sua “honestidade intelectual” (Redlichkeit), “aqueles que poetam” partilham com os teólogos e os metafísicos, “ávidos de Deus”, uma certa doença da vontade, que faz parte do niilismo:
Foram o sofrimento e a impotência que criaram todos os além-mundos. [...] Uma lassitude que quer chegar ao extremo com um único salto, com um salto mortal, uma pobre lassitude ignorante, que até já nem quer mais querer: foi ela, pois, que criou todos os deuses e além-mundos20.
Nessa poderosa defesa da imanência que é o capítulo “Dos visionários do além-mundo (“Von den Hinterweltern”), Deus é uma invenção de poetas e, com Deus - um concentrado de mentira -, também tudo aquilo que invoca estabilidade, essência e unidade. Mas o pensamento de Deus é capaz, como qualquer pensamento poderoso, de investir e perturbar a componente essencial para o homem que é a temporalidade: “Deus é um pensamento que torna torto tudo quanto é direito e põe a girar tudo o que está parado. Como? O tempo desapareceria e tudo quanto é transitório seria unicamente mentira”.21
Noutra passagem, Zaratustra avisa-nos de que “todas as coisas direitas mentem”, e de que a verdade é curva: se, no primeiro sentido, Deus é entendido como hostil à evidência inegável do transitório, do tempo e do devir, agora é a própria circularidade do anel que fornece uma possível “verdade”, a qual se opõe à opressão mentirosa de cada concepção metafísica e de cada estrutura dada.
O amante da verdade deve abster-se destas construções totalizantes. Ou melhor, avisa Zaratustra: “A toda essa doutrina do Uno, do Pleno, do Imóvel, do Satisfeito e do Imperecível, chamo-lhe eu má e misantrópica”, pois “tudo quanto é imperecível... é também apenas uma metáfora (alles das Unvergängliche - das ist auch nur ein Gleichniss)! E os poetas mentem demasiado”22.
Não é certamente por acaso - nunca o é em Nietzsche - que Zaratustra utilize aqui, invertido, o final do Fausto de Goethe; e o contraste com o célebre verso do Chorus Misticus volta a abrir a primeira canção do Príncipe Vogelfrei, expressamente dedicada a Goethe, o poeta dos poetas (verso em que se pode ver um interessante efeito specular):
J.W. Goethe, Faust, vv. 12104-12111:
«Alles Vergängliche / Ist nur ein Gleichnis; / Das
Unzulängliche, / Hier wird’s Ereignis; / Das
Unbeschreibliche, / Hier ist’s getan; / Das Ewig-Weibliche /
Zieht uns hinan».
«Tudo o que passa/ É metáfora só;
O que não se alcança/ Em corpo aqui está;
O indescritível/ Realiza-se aqui
O Eterno Feminino/ Atrai-nos para si.” [trad. João Barrento, modificada]
F. Nietzsche, An Goethe23:
«Das Unvergängliche / Ist nur dein Gleichniss!
Gott der Verfängliche/ Ist Dichter-Erschleichniss…
Welt-Rad, das rollende, / Streift Ziel
auf Ziel: / Noth - nennt’s der Grollende, / Der Narr nennt’s - Spiel…
Welt-Spiel, das herrische, / Mischt Sein und Schein: -
Das Ewig-Närrische / Mischt uns - hinein!...»
«A Goethe
O imperecível/ é apenas a tua metáfora!
Deus, o insidioso /É manha dos poetas…
Roda do mundo, que ao girar/ Aflora alvo sobre alvo:
Carência - chama-lhe o rancoroso,
O louco chama-lhe - jogo…
Jogo do mundo, que imperioso/ Mistura ser e aparecer: -
A Eterna-Loucura/Mistura-nos - para dentro dela!... »
O tema da canção é o imperioso jogo do mundo, a eterna e inocente leveza que doravante substituirá a visão de um mundo carregado com o peso metafísico. O dualismo entre Ser e Aparência (Sein und Schein) desvanesceu-se, a eterna brincadeira ou buffoneria (e não o eterno feminino) redimiu-nos, assimilando-nos ao fluxo do devir (hinein e já não hinan). O imperecível não é senão uma metáfora: e enquanto (afirma Zaratustra) “as melhores metáforas devem falar do tempo e do devir”, devem ser uma justificação e um louvor, a mentira poética faustiana fala, pelo contrário, uma linguagem metafísica onde o eterno feminino24 e a intervenção da Graça abrem a Fausto as portas de uma ordem cósmica transcendente.
Não podemos também esquecer que Mefistófeles é um campeão do niilismo (“Sou o espírito que nega sempre!/ E com razão, pois tudo aquilo que nasce é digno de morrer./ Por isso o melhor seria que nada nascesse”), tal como a morte de Fausto é um precipitar na espiral do vazio. Ao coro, que comenta “Es ist vorbei!” (“passou!”), Mefistófeles responde quase com um acento anti-zaratustriano:
- Passou! Palavra sem sentido.
Passou, porquê?
Entre passar e o nada, que diferença há?
De que serve tanta coisa criada?
O que se cria desfaz-se logo em nada!
‘Passou!’ Qual é disto o sentido?
É como se nunca tivesse sido,
Mas, como se fosse, segue em rodopio.
Quanto a mim, prefiro o Eterno-Vazio25.
E se Fausto se irá declarar derrotado por Mefistófeles apenas se se sentir obrigado a dizer: “Instante demora-te: és belo!” - mas será apenas o suspiro nostálgico de um niilista às portas da morte (Mefistófeles: “Nem prazeres nem fortuna o faz contente, […]/ O derradeiro, oco, insípido instante/ É esse que ele quer reter” [v. 11586 ss]) - é exactamente na aceitação plena e alegre do que passa e na sua eternização na plenitude do instante que Zaratustra colocará, ao invés, a própria verdade e a própria proposta de redenção26.
A redenção (Erlösung) indicada por Zaratustra remete, de facto, para uma nova relação com o tempo e com a necessidade. As noções de permanência e de estabilidade explodiram: o devir é o fundamento único e paradoxal. Ao invés, a vontade de verdade que caracteriza a metafísica (com o seu medo do devir e do movimento), implicando estruturas estáveis e permanentes do mundo, tem como consequência necessária o niilismo e é dominada pelo espírito de vingança.
Sabemo-lo bem pelo capítulo “Da visão e do enigma”: só a solução do problema da temporalidade poderá valer como superação definitiva do niilismo e como premissa para a construção do Übermensch, o “sobrehumano” ou o “além-do-homem”.
Se, nas “Ilhas afortunadas”, assistíramos à refutação do Pleno, do Satisfeito e do Imperecível, de acordo com a “verdadeira doutrina da vontade e da liberdade”, no capítulo “Da redenção” Zaratustra completa o que já ali fora expresso, precisando que à vontade é necessário um passo ulterior que consiste - como se sabe - no aprender a “querer para trás”. Este parece ser “o seu dizer sim até à justificação, à redenção também de todo o passado”, o núcleo central e a tarefa de Zaratustra, confirmada em Ecce Homo: reunir passado e futuro sob a porta do instante até que aquilo que até agora nos oprimiu com a sua inelutabilidade se revele também como um produto do nosso querer, numa relação de determinação recíproca27.
À vontade libertada de todo o espírito de gravidade - chamemos-lhe passado, finalidade, responsabilidade, culpa ou Deus - abrem-se novos espaços de criação: tal como a criança heraclitiana incessantemente cria (e destrói) no seu feliz jogo sem finalidade. Com o fim da mentira milenar e da estrutura edípica do tempo, o pensamento do eterno retorno restitui inocência ao devir e uma riqueza de sentido a cada instante; doutrina cosmológica e tensão moral, ele inclui também uma verdadeira relação de re-criação do mundo - uma criação poética?28 -, redimido tanto do acaso como da mera brutalidade dos factos (assim é, assim quis que fosse)29.
Subtraído às simplificações ideológicas que o nivelam, o mundo da experiência - o mundo da vida - abre-se a horizontes interpretativos infinitos e revela-se quase polimórfico.
A divindade do devir e do polimorfismo é Dioniso, e Zaratustra, “a alma que é e que mergulha no devir”, que acede a todos os opostos, que liga todas as contradições numa nova unidade (“Mas este é o próprio conceito de Dioniso”)30, fala a linguagem dionisíaca do ditirambo. Portanto, é verdadeiramente um poeta: mas já não é um nostálgico cantor de naturalidades perdidas; já não mascara o que esconde; e sobretudo, já não é “efígie, coluna de um Deus” que guarda os seus templos. “Só louco, só poeta!”31, precisamente, onde o poeta conta e é toda a leveza de um mundo doravante libertado e redimido.