Artigo
Reflexões sobre o Niilismo e seus desdobramentos
Reflections on nihilism and its offshotts
Reflexões sobre o Niilismo e seus desdobramentos
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 183-199, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 28 Março 2022
Aprovação: 13 Abril 2022
Resumo: O presente artigo articula os resultados de uma interpretação conceitual da temática do niilismo na filosofia de Nietzsche, considerando a riqueza semântica da questão e a multiplicidade de seus aspectos, numa análise que procura destacar a relevância e atualidade da contribuição de Nietzsche para o tratamento de alguns dos principais questionamentos da filosofia contemporânea.
Palavras-chave: Niilismo, Crise, Cultura, Valores, Orientação.
Abstract: This article articulates the results of a conceptual interpretation of the theme of nihilism in Nietzsche's philosophy, considering the semantic richness of the issue and the multiplicity of its aspects, in an analysis that seeks to highlight the relevance and actuality of Nietzsche's contribution to the treatment of some of the main questions of contemporary philosophy.
Keywords: Nihilism, Crisis, Culture, Values, Orientation.
Introdução
Numa anotação que permaneceu inédita e que integra o espólio filosófico de Fredrich Nietzsche, lemos a seguinte formulação lapidar: “O niilismo como um estadonormal. Niilismo: falta a meta; falta a resposta para o ‘por que’? O que significa niilismo? - que os supremos valores se desvalorizam. Ele é ambíguo (zweideutig)”. (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 350s). Niilismo significa, então, de acordo com este texto, um estado normal de desagregação, de esvaziamento e perda de sentido, de meta, de finalidade. Um processo que se desenvolve, portanto, fundamentalmente no âmbito dos valores, das referências axiológicas, que provêm para uma civilização as perspectivas de sentido para o pensamento e a ação.
São estes os valores supremos, aqueles que dão coesão e organicidade a uma cultura. Nesse sentido, o niilismo sinaliza uma perda de forças, um enfraquecimento e a dissolução de uma dada unidade cultural; é, portanto, uma formação decadencial - e, segundo Nietzsche, não apenas um sintoma, mas a lógica própria da decadência. Razão pela qual o niilismo faz-se acompanhar de fenômenos típicos dos períodos declinantes: o ceticismo gnosiológico e ético, a libertinagem do espírito, a corrupção dos costumes, a fraqueza da vontade, a necessidade de estimulantes fortes.
Como lógica da decadência, o niilismo obedece a uma dinâmica insólita: é um acontecimento epocal “necessário”, a consequência derradeira e inexorável de virtualidades inerentes ao cerne espiritual dos valores superiores, no momento de seu exaurimento, quando são levados a experimentar seus próprios limites: “Por que é, pois, doravante necessária a ascensão do niilismo? Porque são nossos próprios valores de até aqui que nele extraem sua última conclusão: porque o niilismo é a lógica, pensada até o fim, de nossos grandes valores e ideais, porque primeiro temos que vivenciar o niilismo para chegar a ver por trás daquilo que era propriamente o valor destes “valores” ... Nós temos necessidade, alguma vez, de novos valores ...”. (NIETZSCHE, 1980, XIII, p. 189s). Quando os valores supremos são levados até a extração de suas derradeiras consequências, o resultado é o perfilar-se da vacuidade de sua pretensão à subsistência e universalidade. “Descrevo o que vem, o que não pode mais vir de outro modo (nicht mehr anders kommen kann): a ascenção do niilismo. Esta história já pode ser contada: pois aqui é a necessidade mesma que está em operação. Este futuro já fala em centenas de sinais, desse destino anuncia-se por toda parte” (NIETZSCHE, 1980, XIII, p. 189s).
I: O Que Significa ‘Niilismo Europeu’
Aquilo que Nietzsche se propõe a descrever, em perspectiva genealógica e crítica, é o niilismo europeu, portanto, um processo que se desenrola prima facie na Europa. Mas o sintagma não designa apenas uma localização física, um território geopolítico. A Europa é, para Nietzsche, antes de tudo, o nome de um espaço cultural e compreende também todas as sociedades que se formaram e se desenvolveram sob a influência dos valores culturais da Europa; neste sentido, Europa corresponde ao que denominamos Ocidente, mas sem deixar de irradiar seus efeitos também para outras latitudes e longitudes do planeta.
No sentido em que Nietzsche analisa o fenômeno, o “niilismo europeu” é, então, um acontecimento de significado histórico-mundial, ao longo do qual a consciência filosófica - partindo da Europa -, ao fazer experiência da perda de força vinculante por parte dos valores que até então constituíam os alicerces de nossa civilização ocidental e que proporcionavam também as coordenadas de orientação para o pensar e o agir, reconhece não apenas a falta de sentido de tais valores, mas também, e de modo ainda mais agudo, a perda de qualquer horizonte de sentido em que se encontra mergulhada a modernidade cultural.
É com base nisso que Heidegger pode afirmar: “O niilismo é um movimento histórico, não uma qualquer visão e uma qualquer doutrina, representadas por quem quer que seja. […]. O niilismo é, antes, pensado em sua essência, o movimento fundamental da história do Ocidente. Ele mostra uma tal profundidade que o seu desenrolar apenas pode ter como consequência catástrofes mundiais. O niilismo é o movimento histórico-mundial dos povos da Terra que entram no âmbito de poder da modernidade. Daí que ele não seja só um fenômeno da era presente, nem sequer só o produto do século XIX, no qual desperta certamente um olhar mais agudo para o niilismo, tornando o nome usual. O niilismo tampouco é apenas o produto de nações singulares cujos pensadores e escritores falam propriamente do niilismo. Aqueles que se presumem livres dele empreendem talvez do modo mais fundamental o seu desenrolar. É inerente à inquietude deste mais inquietante de todos os hóspedes que a sua proveniência própria não possa ser mencionada” (HEIDEGGER, 1980, p. 252s).
Esta é, para Nietzsche, uma experiência radical de esgotamento dos valores antigos, que traz à tona um vácuo axiológico angustiante: a ausência de novos valores, capazes de reconhecimento universal, o aflorar de um elemento nadificante (nihil) que, desde a origem (ainda que isso se passasse em nível inconsciente e velado), minava os valores cardinais de nossa cultura, a partir dos quais hauríamos nossa própria autocompreensão. No entanto, para que tal revelação ocorra, é necessário que a concreção histórica desses valores tenha alcançado sua plenitude - o que não poderia ter acontecido no passado, mas é um espetáculo reservado para nossos dias. “O que eu narro”, escreve Nietzsche, entre 1887 e 1888, “é a história dos próximos dois séculos ... Aqui, não louvo, nem censuro, [o fato de OGJ] que ela venha: creio numa das maiores crises, num instante da mais profunda autorreflexão do homem.” (NIETZSCHE, 1980, XIII, p. 56s).
No plano desta autorreflexão, o niilismo mostra-se como um processo histórico essencialmente equívoco (zweideutig), cuja característica é a reunião, num único elemento, de qualidades opostas, contrastantes. “Compreensão global (Gesammt-Einsicht): o caráter equívoco (zweideutig) de nosso mundo moderno, justo os mesmos sintomas poderiam apontar para o declínio ou a fortaleza. E os sinais de fortaleza da maioridade conquistada poderiam ser mal-entendidos como fraqueza, em razão da (retardatária) desvalorização do sentimento (Gefühls-Abwerung), advinda da tradição” (NIETZSCHE, 1980, p. 468).
À mencionada equivocidade corresponde um descompasso temporal no plano do sentimento de difícil apreensão conceitual - uma defasagem que afeta especialmente o sentimento de valor. É o sentimento de valor que, enredado nessa ambivalência, não se coloca à altura do seu tempo. “Todo terrível e poderoso movimento da humanidade criou também, ao mesmo tempo, um movimento niilista. Sob determinadas circunstâncias, seria um sinal de um incisivo e essencialíssimo (allerwesentlichstes) crescimento, de transição para novas condições de existência, que viesse ao mundo a forma mais extrema (extremste) do pessimismo, o autêntico niilismo. Isto, eu compreendi” (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 468). Por essa razão, o niilismo extremo gera um estado de indiferenciação e confusio, que é um dos elementos mais característicos do diagnóstico do presente feito por Nietzsche, e que exige refinada sensibilidade, discernimento e compreensão.
II: A Escalada do Niilismo e a Modernidade Cultural
Nietzsche detectava na modernidade um o período de obscuridade (Unklarheit) e confusão, um momento, na história da escalada do niilismo europeu, que tipifica, segundo ele, a disposição de espírito própria do homem moderno, que vivencia a crise de uma desorientação permanente em suas diversas esferas de existência, manifestada na impossibilidade de distinguir e julgar com segurança seus próprios cursos de ação; em não saber mais onde se situam entrada e saída, acima e abaixo, esquerda e direita, o sim e o não, sem coordenadas de orientação, e numa desesperada compulsão a conciliar tudo com tudo. “‘Não sei para onde vou; sou todo aquele que não sabe para onde vai’ - suspira o homem moderno... Dessa modernidade estávamos doentes - da paz viciada, do compromisso covarde, de todo desasseio do moderno Sim e Não” (NIETZSCHE, 2007, p. 10).
“Não sei para onde vou” é expressão que denota a incerteza e hesitação próprias do desorientado, confundido não somente em sua localização espacial, mas também tornado inseguro e vacilante em sua faculdade de julgar, incapaz de diferenciar entre fato e valor, regra e exceção, ser e dever-ser. Nesse sentido, a modernidade seria, para Nietzsche, a era da indistinção e incerteza, de um desconcertante ofuscamento - obliteração da visão e do juízo, como contraditória herança do Esclarecimento (Aufklärung), o movimento histórico, político e cultural da Luzes, no qual o homem moderno depositava suas esperanças de emancipação intelectual e moral.
Crise é o nome de tais processos, momentos de desorganização do acervo simbólico, especialmente o ethos de uma sociedade, desestabilização que repercute nas práticas concretas e habituais no cotidiano da vida. São períodos de desagregação nos quais os valores éticos, até então hígidos e vinculantes, embaralham-se e confundem-se; e, embora permaneçam em vigor, sua vigência é espectral, já que, uma vez esvaziados, perdem sua cogência e capacidade de oferecer sustentação. Para Nietzsche, se é verdade que, então, temos necessidade de novos valores, vivemos, no entanto, em meio às sombras do niilismo imperfeito - em vãs tentativas de escapar deste sortilégio; portanto, numa situação em que só conseguimos agravar o problema do niilismo.
Esta frustração expressa o efeito corrosivo do niilismo extremo: “Proposição principal: em que medida o niilismo completo é a consequência necessária dos ideais de até agora. O niilismo incompleto, suas formas: nós vivemos em meio a elas - as tentativas de escapar do niilismo sem transvalorar aqueles valores: produzem o contrário, elas tornam o problema mais agudo” (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 476). Portanto, os impasses que enfrentamos, juntamente com os desafios e as angústias que nos oprimem, refletem esta condição.
Por conseguinte, é antes de tudo necessário fazer a experiência do niilismo completo, para chegar a descobrir, em seu extrato mais profundo, qual era o valor daqueles valores. Por isso, não há como contornar a injunção dessa falta de clareza; ao contrário, é necessário atravessar inteiramente esse limiar de insegurança; pois é apenas na consumação desta travessia, levada ao extremo, que emerge o nihilum de tais “valores” - o seu autêntico valor, e com ele o espectro sinistro de um Nada (nihil), que corrói a seiva axiológica, solapa e desacredita as bases em que se firmaram nossas avaliações, expondo o substrato imponderável de nossas crenças. Nesse sentido, a escalada niilismo desvela os subterrâneos do ideal, seu lado ominoso e sombrio, a negatividade velada por sua face solar e emancipatória, juntamente com o que nela há de barbárie e destruição.
É sob a pressão deste antagonismo que nossos referenciais mais elevados podem mostrar-se como chegaram a ser o que efetivamente são, e como funcionam na atualidade - na desorientação permanente em que se encontra suspensa nossa existência. Confirma-se, assim, o caráter bifronte de todo acontecimento historicamente decisivo, tanto no pensar quanto no agir. Para fazer uso de uma significativa metáfora cunhada por Giorgio Agamben, vivemos uma realidade espectral, em que a máquina biopolítica da modernidade, tendo sido transtornada em seu princípio de constituição e funcionamento, passa a girar no vazio, convertendo a biopolítica em tanato-poder. Legitima-se a suspeita de que valores mais elevados de nossa civilização podem ser também instrumentalizados como dispositivos de captura e dominação, suscitando a desconfiança e a vertigem de não podermos mais acreditar em valor algum, uma aflição diante do inelutável sentimento da ausência de todo valor e desejabilidade, que nos esforçamos por elidir.
Assedia-nos, então, a pergunta: seria isso sintoma de uma inaudita barbárie em meio à mais sofisticada proliferação de recursos técnicos e científicos, materiais e espirituais - uma barbárie civilizada, portanto? Este seria, enfim, o saldo remanescente de nosso processo civilizatório: escravidão mental e regressão do espírito? Este é o pathos que Nietzsche descreve como o afeto que acompanha o advento do niilismo extremo, uma experiência que, segundo ele, deveria tornar-se figura do mundo nos dois séculos subsequentes à publicação de suas últimas obras: “(este Pathos está aí (ist da), o novo horror (der neue Schauder)” (NIETZSCHE, 1980, XIII, p. 56s). O que estaria em mutação na escalada do niilismo, de que seriam sinais, entre outros acontecimentos, a falta de clareza no pensamento, a indistinção no juízo, o turvamento da percepção? O que se torna obliterada é a perspectiva do sentido dos fatos, o sentimento de valor ficando à deriva, na confusão das referências, numa crise que desconcerta o pensamento e mina os alicerces da ação. Como distinguir, nessa atmosfera, entre causa e efeito, entre o velho, sobrevivido, e o novo, já que a própria irracionalidade dominante pode ser interpretada também como sintoma de mutação em curso, de algo que apenas se anuncia?
A constelação formada pelos valores instituídos e abandonados fornece, por certo, alguns indicadores de direção. Estes compõem um círculo cada vez maior, mais completo e repleto de referências que, no entanto, e ao mesmo tempo, é sentido por nós no registro da vacuidade e da falta. Valores e princípios existem, circulam e se reconduzem, mas são desgastados e corroídos pelo niilismo, razão pela qual já não asseguram mais fundamentos sólidos, nem enunciam diretrizes normativas confiáveis para a práxis moral e política - fazemos a experiência de uma vigência desprovida de eficácia, sentida como fracasso, como da futilidade dos nossos esforços e empenhos.
Este é, para Nietzsche, o nosso problema-limite, pois nossas percepção e interpretação do presente são tributárias da mesma forma que o pensamento, as categorias analíticas e os modelos de ação que examinamos e criticamos, num circuito de autorreferencialidade que não podemos evitar. Somos nós mesmos, ao dissecar nossa própria carne, que nos reduplicamos em sujeitos e objetos de nossos experimentos. E, com isso, nos enredamos num antagonismo dilacerador, na “suspeita de uma oposição entre o mundo em que até agora nos sentíamos em casa com nossas venerações - em virtude das quais, talvez, tolerávamos viver - e um outro mundo, que somos nós próprios: uma inexorável, radical, profundíssima suspeita sobre nós mesmos, que se apodera de nós, europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderia colocar as gerações vindouras diante deste terrível ou-ou: ‘ou abolir vossas venerações, ou - vós mesmos!’ Este último seria o niilismo; mas o primeiro não seria também ... o niilismo? - Esse é nosso ponto de interrogação” (NIETZSCHE, 2001, p. 223).
O franco e intimorato reconhecimento desta condição insustentável é o tributo exigido pela probidade intelectual, que constitui, para Nietzsche, a derradeira virtude do homem moderno, o resto do ideal ascético que nós mesmos somos, daqueles ideais que até então nos proporcionaram um horizonte de sentido para a existência; é esta honestidade que nos compele a assumir, em toda sua radicalidade, a incômoda condição de resto, de semente e caroço, que forma o âmago e a potência de execução do ideal. “Constatamos em nós necessidades implantadas pela duradoura interpretação moral, que agora nos parecem como necessidades do não-verdadeiro: por outro lado, é nelas que parece apoiar-se o valor, é por elas que suportávamos viver. Este antagonismo: não estimar o que conhecemos, e não mais poder estimar aquilo com o que gostaríamos de continuar a nos enganar, resulta num processo de dissolução” (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 211s). Este legado espiritual nos capacita e, ao mesmo tempo, constrange para a tarefa da inversão e (auto)supressão do ideal, mediante a exigência de não reproduzir e perpetuar suas armadilhas.
O niilismo incompleto é, para Nietzsche, um fator dominante nesse processo de dissolução; só conseguimos produzir o contrário das metas visadas, tornando ainda mais agudo o nosso problema - ter de viver com o niilismo (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 476). Ultrapassar este limite exige o trânsito desta figura para outra modalidade de existência, permanecendo, no entanto, ainda em meio ao niilismo. “O niilista completo - olho do niilista, que idealiza mesmo naquilo que há de horrível, que pratica infidelidade para com suas recordações (ele as deixa cair, desfolhar-se; ele não se protege mais contra colorações pálido-cadavéricas, como o faz a fraqueza, que rega e conserva o que é distante e passado; e aquilo que ele não faz em relação a si mesmo, ele também não o faz em relação ao passado inteiro do homem, ele o deixa cair” (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 476).
Deixar cair, desfolhar-se, não temer e não se proteger contra a decomposição e a palidez cadavérica, não congelar o remoto passado: esta seria, em Nietzsche, uma perspectiva de superação do niilismo incompleto, um gesto difícil, a exigir um excedente de coragem e violência contra si mesmo. À sombra do niilismo incompleto e passivo, as mais variadas tentativas de elisão ocupam o procênio, insinuando-se em tudo o que conforta, tranquiliza, acalma, entorpece, ofusca, confunde, insinuando-se em diferentes disfarces, sejam eles religiosos, estéticos, morais ou políticos. É nessa penumbra que avulta o risco de escolher instintivamente o que nos é mais pernicioso. O niilismo incompleto é, portanto, a expressão de um estado de aturdimento, que vive e se consome na nostalgia do absoluto perdido, no apego desesperado aos sucedâneos de Deus, no espaço vazio do ideal decaído.
III: Falta de Clareza e Confusão: Nietzsche, Kafka, Agamben
Podemos atualizar este diagnóstico a partir de elementos de nossa própria situação existencial, sobretudo da crise de valores que afeta todas as dimensões de nossa vida, com reflexo especialmente agudo no plano ético-político. Esta situação pode ser adequadamente compreendida à luz das análises a que Nietzsche submete os desdobramentos do niilismo e seus efeitos, pois Nietzsche fulmina como desonestas as alternativas de recuo em relação a esse limiar alcançado, e denuncia toda tentativa de edulcoração moralista dos fatos. É curioso observar que também na obra de Giorgio Agamben encontramos um diagnóstico semelhante de análoga situação.
Portanto, poderíamos encontrar fartamente em Nietzsche importantes subsídios para compreender fenômenos dos quais pretende dar conta uma arqueo-genealogia da política nas sociedades ocidentais modernas - tal como ela se formula ao longo do programa Homo Sacer de Giorgio Agamben. Nesse sentido, poderíamos, então, situar a filosofia jurídico-política de Agamben no horizonte histórico-filosófico esboçado pela genealogia nietzscheana do niilismo europeu. E podemos fazê-lo por um viés ou perspectiva para a qual confluem os dois pensadores: o estatuto e a função da lei na gênese da sociedade política, e a relevância estratégica da literatura como operador diagnóstico. No caso de Agamben, em particular, da literatura de Franz Kafka e do papel que nela cumpre a relação entre o ser humano e a Lei - verdadeira chave de interpretação para o diagnóstico da modernidade política pelo autor de O Estado de Exceção.
Agambem vale-se da literatura de Franz Kafka - mais precisamente, da interpretação feita por Walter Benjamin do estatuto e da função da lei na obra de Kafka - como alegoria e princípio-chave para decifração da confusão vigente na realidade política de nossas sociedades. Para Agamben, a literatura de Kafka oferece um quadro ideal da situação em que a lei ultrapassou todos os seus limites, confundindo-se e tornando-se idêntica à vida que ela, no entanto, deveria interpretar, ao conferir-lhe, na distância, um sentido normativo, ordenado e regular.
Dada essa confusão entre a regra e o caso, a aplicação da lei, que deveria ser parâmetro de julgamento, torna-se ela mesmo fato, e com isso se torna indiferente à sua própria transgressão, pois o que transforma uma ação num fato tipicamente jurídico é a interpretação que lhe é conferida em termos normativos pela lei; portanto, não a sua facticidade, mas a dimensão do sentido ou a significação que o mesmo assume ao ser subsumido sob a norma, como conteúdo dado para um esquema de interpretação. Considerada a partir deste ponto de vista, a modernidade cultural e política, segundo Agamben, é gravada por uma fusão anômala e conflitante de qualidades antitéticas, na qual as antinomias não são suprimidas ou abolidas, mas mantidas, conservadas e fomentadas.
Sob esse aspecto, a literatura de Franz Kafka oferece um quadro ideal da confusio entre Direito e fato, ser e dever, normalidade e exceção - típica em Kafka -, e que proporciona a ambiência ideal para uma forma de vida caracterizada como “existência pantanosa” (Sumpfdasein), pelo enredamento numa condição dilemática, na qual os personagens circulam permanentemente num espaço de indistinção, inquietante e sombrio, sem poder diferenciar com segurança entre ser e sentido, habitando uma zona opaca, na qual tudo se confunde, e todos são, ao mesmo tempo, carrascos e vítimas, acusadores e condenados, réus, juízes e funcionários, incapazes de decidir sem equivocidade sobre o certo ou errado, justiça ou injustiça, virtude ou vício, verdade ou falsidade.
“No Estado de Exceção, Agamben descreve dois aspectos para ele significativos da obra de Kafka: o diagnóstico crítico do estado do mundo e as marcas aí contidas de uma redentora inversão dessas relações. Por um lado, ele encontra na obra de Kafka a “mais precisa exposição da vida no estado de exceção”; por outro, segundo Agamben, as “personagens de Kafka” são “interessantes para nós porque elas, cada uma com sua estratégia própria”, procuram desativar “essa forma espectral do direito no estado de exceção”. “O ‘estado de exceção’ é uma situação na qual um poderoso soberano suspendeu as leis existentes e, enquanto isso, estende seu próprio poder (Macht) e domínio (Herrschaft) sobre todos os aspectos da vida de seus súditos, ao impor a eles seu ordenamento. Enquanto o estado de exceção, proclamado pelo soberano, impregna todos os domínios da vida, e submete o planeta inteiro a uma lei arbitrária e repressiva, a inversão messiânica desta situação deve eliminar (abschaffen) a lei e soltar (entlassen) para a vida numa nova liberdade. De acordo com Agamben, só quando a vida assumiu em si mesma a lei, de forma que ela suprime a lei, ao invés de deixá-la dominar sobre a vida - um processo que corresponderia a um cumprimento definitivo da lei e uma supressão dela daí decorrente, a humanidade seria redimida. Agamben ilustra sua concepção do ‘estado de exceção’ repressivo, assim como de sua messiânica inversão desse estado em inúmeras remissões aos contos de Kafka” (LISKA, 2014, p. 222).
É nesse contexto que adquire a plenitude de seu sentido a confrontação entre posições de Gershom Scholem e Walter Benjamin sobre a literatura de Kafka - em particular suas alegorias da Lei e do fim da profecia. Vigência sem significado (Geltung ohne Bedeutung): nada melhor do que esta fórmula, com a qual Scholem caracteriza o estado da lei no romance de Kafka, para tipificar a situação, pois a fórmula define o enredamento no qual o nosso tempo está imerso e do qual não consegue encontrar saída.
Numa carta-resposta endereçada a Walter Benjamin, Scholem escreve: “Você pergunta o que eu entendo pelo ‘nada da revelação’? Entendo por isso um estado no qual a revelação parece ser sem significado (Bedeutung), no qual ela ainda afirma a si mesma, no qual ela tem validade (Geltung), mas não significação (Bedeutung). Um estado no qual a riqueza da significação perdeu-se, e o que se encontra no processo de aparecimento (pois a revelação é um tal processo) ainda não desapareceu, ainda que esteja reduzida ao ponto zero de seu conteúdo, por assim dizer. Este é obviamente um caso limite, no sentido religioso, e se ele pode efetivamente chegar a ocorrer é um ponto muito duvidoso. Eu certamente não posso compartilhar sua opinião de que realmente não importa se os discípulos perderam a ‘Escritura’, ou se eles não podem decifrá-la, e vejo isso como um dos maiores erros que você poderia ter cometido. Quando eu falo em nada da revelação, faço isso precisamente para caracterizar a diferença entre essas duas posições” (SCHOLEM, 1989, p. 140s.).
É necessário não perder de vista que, na obra de Scholem, o que está em jogo com a palavra “revelação” é justamente a Lei hebraica, a Torah. “Portanto, o ‘nada de revelação’ denota um momento paradoxal na história da tradição, aquele de uma decisiva (mas não definitiva) ruptura, no qual a lei já perdeu seu princípio de autoridade, mas no qual sua sombra continua a perfilar-se no horizonte de nossa cultura. Aquele momento histórico é certamente apenas uma corporificação imperfeita de todas as possíveis conotações do ‘nada da revelação’, na medida em que ele é um ‘caso limite da religião’, sempre ameaçando balançar abaixo ou além de seu próprio eixo, seja em puro e simples ateísmo ou em formas mais ou menos radicais de dúvida ou angústia religiosa. Mas é precisamente esta instabilidade, esta perambulação por uma fronteira, que é ela mesma volátil, que impede a compreensão do ‘nada de Revelação’ em termos da lógica dos opostos e que nos permite vislumbrar seu significado apenas através do labirinto de ficção” (MOSÈS, 2009, p. 157.).
Nesta descrição, encontramos um perfeito análogo da aporia que caracteriza a falta de orientação decorrente do niilismo incompleto. Em virtude desta semelhança, pode-se aproximar a situação dilemática deste “nada de revelação” do conceito agambeniano de bando, tal como este é definido em Homo Sacer I: O Poder Soberano e a Vida Nua: “Por toda parte sobre a terra, os homens vivem hoje sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantêm unicamente como ‘ponto zero’ do seu conteúdo, incluindo-os em uma pura relação de abandono. Todas as sociedades e todas as culturas (não importa se democráticas ou totalitárias, conservadoras ou progressistas) entraram hoje em uma crise de legitimidade, em que a lei (significando com este termo o inteiro texto da tradição no seu aspecto regulador, quer se trate da Torah hebraica ou da Shariah islamica, do dogma cristão ou do nomos profano) vigora como puro ‘nada da Revelação’. Mas esta é justamente a estrutura original da relação soberana, e o niilismo em que vivemos não é nada mais, nesta perspectiva, do que o emergir à luz desta relação como tal” (AGAMBEN, 2002, p. 59).
Ora, esta sobrevivência fantasmática dos supremos valores de nossa tradição (designados, nesse caso, pelo sintagma Lei), reduzidos ao seu grau zero de significado, e cuja vigência se encontra em estado de permanente suspensão, é descrita em termos consideravelmente similares também por Nietzsche na Gaia Ciência - aqui ela corresponde ao estado existencial do presente, à sombra do Deus morto: “Novas lutas. - Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos - uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada - Quanto a nós - nós teremos que vencer também a sua sombra!” (NIETZSCHE, 2001, p. 135).
Este cenário é o do niilismo extremo, em suas diferentes variantes. A inflexível lucidez com a qual Nietzsche se situa no cerne do niilismo extremo pode ser uma contribuição de imenso valor para reflexão filosófica em nossos dias, sobretudo num tempo em que os valores, os princípios e as instituições com base nos quais foram forjadas nossas sociedades ingressam num processo de desgaste progressivo e de irreversível perda de legitimidade. É o caso do cenário político e sociocultural esboçado como pós-modernidade e pós-democracia, com o esgotamento das possibilidades de ação, como friabilidade do solo sobre o qual assentávamos nossas formas de vida até então e a impossibilidade de vislumbrar o que se anuncia como janela de futuro.
“Se […] vemos na impossibilidade de distinguir a lei e a vida - ou seja, na vida tal como e vivida na aldeia ao pé do castelo1 - o caráter essencial do estado de exceção, então a confrontar-se estão aqui duas diversas interpretações deste estado: de um lado aquela (é a posição de Scholem) que nele vê uma vigência sem significado, um manter-se da pura forma da lei além do seu conteúdo; do outro, o gesto benjaminiano, para o qual o estado de exceção transmutado em regra assinala a consumação da lei e o seu tornar-se indiscernível da vida que devia regular. A um niilismo imperfeito, que deixa subsistir indefinidamente o nada na forma de uma vigência sem significado, se opõe o niilismo messiânico de Benjamin, que nulifica até o nada e não deixa valer a forma da lei para além do seu conteúdo. Qualquer que seja o significado exato destas duas teses e sua pertinência com respeito à interpretação do texto kafkiano, o certo é que toda investigação sobre o relacionamento entre vida e direito em nosso tempo deve hoje voltar a confrontar-se com elas” (AGAMBEN, 2002, p. 61).
Este cenário parece ter sido antecipado por Nietzsche com sua história do niilismo europeu. As crises éticas, sociais, políticas e culturais que transtornam nossas sociedades contemporâneas se figuram como fenômenos de niilismo incompleto: um estado de indiferenciação e confusio que afeta também nossa autocompreensão. Para Nietzsche, o “anúncio da morte de Deus” já era um presságio desse futuro, pelo menos para aqueles cujo olhar e suspeita são refinados e fortes o suficiente para tomar consciência do que realmente aconteceu - e de “tudo quanto irá desmoronar, agora que esta refinada crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela arraigado: toda nossa moral europeia, por exemplo” (NIETZSCHE, 1980, III, p. 573).
A percepção de que a escalada do niilismo traz consigo o desmoronamento e a catástrofe dos ideais, a perempção da tradição, a perda do sentido e da desorientação, o sentimento da ausência de valor e de desejabilidade. Explorando com atenção mais concentrada a rede de correspondências entre Nietzsche e Agamben se pode levar ainda mais adiante a analogia descrita: para Agamben, como também para Nietzsche, este é o nosso problema-limite, o impasse perante o qual cabe perguntar, por fim, se nele e com ele não nos manteríamos ainda encerrados num estado de dissolução permanente, ou melhor, numa torturante nostalgia do que irremediavelmente perdemos, a saber, prisioneiros de uma paradoxia, de um desejo cuja realização tornou-se impossível, pois é o desejo daquilo em que não podemos mais acreditar.
Ao criticar o ideal, todo ideal, somos levados a fazê-lo em virtude do próprio ideal criticado: este antagonismo, escreve Nietzsche, consiste em não poder apreciar aquilo que nós conhecemos, ao mesmo tempo em que também não podemos mais acreditar naquilo com o que ainda gostaríamos de nos iludir. Justamente este antagonismo mobiliza o processo de dissolução (Cf. NIETZSCHE, 1980, XII, p. 212).
Considerações Finais
A reconstituição genealógica da escalada do niilismo contém a essencial crítica nietzscheana do dogmatismo filosófico e da própria história da filosofia. Dela faz parte uma autorreferencialidade que nada tem a ver com deficit lógico do pensamento, mas que descortina um dos mais profundos aspectos da meditação sobre o niilismo europeu, até mesmo do próprio destino da filosofia. Na base desta autorrefrencialidade encontra-se uma ambiguidade e um paradoxo: viver com o niilismo talvez seja um indício de potência alcançada, daquela força que se revela precisamente como possibilidade resistir à tentação nostálgica do absoluto perempto:
Quais são aqueles que se demonstrarão como os mais fortes? Os mais comedidos, aqueles que não têm necessidade de extremos artigos de fé, aqueles que não apenas admitem, mas amam, uma boa parte de acaso, de non-sense, aqueles que podem pensar no homem com uma significativa diminuição de seu valor, sem tornar-se por isso pequeno e fraco: os mais ricos em saúde, que estão à altura da maioria dos malheurs (infortúnios), e por isso não temem tanto os malheurs - homens que estão seguros de seu poder, e representam como orgulho consciente a alcançada força do homem (NIETZSCHE, 1980, XII, p. 217).
À sobra do niilismo extremo, faz-se mais do que nunca necessária a mais sofisticada arte da interpretação, para tornar possível uma nova compreensão, a apuração da faculdade de sentir e julgar, para discernir, decifrar e mesmo adivinhar; mais do que nunca, é preciso não se deixar confundir pelos sinais dos tempos, libertar-se das estreitas perspectivas de um maniqueísmo precipitado. Situar-se lucidamente em meio ao mais extremo niilismo exigirá pensar sem subterfúgios a perspectiva de uma existência desprovida de sentido e meta, porém fazendo-o em chave afirmativa. Aqui estará o signo da potência alcançada: poder dispensar, sem ressentimento, convicções absolutas e valorações incondicionais.
Referências
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SCHOLEM, G. The Correspondence of Walter Benjamin and Gershom Scholem 1932-1940. Trad. de Gary Smith and Andre Lefevere. New York: Sdwcken Book, 1989.
Notas
Autor notes