Editorial

Niilismo: o Desafiador Diagnóstico de Nietzsche para nossa Cultura do Século XX e XXI*

Friedrich Nietzsche: Legacy and Prospects; Friedrich Nietzsche: Erbe und Perspektiven

PAUL VAN TONGEREN
Universidade Radboud de Nijmegen, Holanda

Niilismo: o Desafiador Diagnóstico de Nietzsche para nossa Cultura do Século XX e XXI*

Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 200-208, 2022

Pontificia Universidade Catolica Parana

Resumo: O presente artigo examina o conceito, o diagnóstico e o prognóstico feito por Nietzsche a respeito do niilismo europeu e sua história, e o analisa como uma das mais importantes de suas contribuições para a filosofia e a cultura de nosso tempo.

Palavras-chave: Niilismo, verdade, veracidade, valores, crítica.

Abstract: This article examines Nietzsche's concept, diagnosis and prognosis of European nihilism and its history, and analyzes it as one of the most important of his contributions to the philosophy and culture of our time.

Key words: Nihilism, truth, veracity, values, criticism.

Introdução

Não existe uma resposta única para a questão a respeito de como Nietzsche contribuiu, em geral, para nossa presente cultura, e para a filosofia em particular. Uma pode referir-se à sua introdução ao princípio da pluralidade (em sua epistemologia: a pluralidade de perspectivas; em sua metafísica: a pluralidade das vontades de poder; em ‘ética’: a pluralidade das morais ou de possibilidades morais; em seu estilo de escrita: a pluralidade das máscaras, et cetera). Outra importante (embora relacionada) contribuição é sua libertação da filosofia de todas as espécies de dogmatismo (seja, para aquela matéria, este dogmatismo metafísico, moral ou estilístico); o próprio Nietzsche denominou seu Zaratustra ‘o maior presente jamais feito à humanidade’ (EH3 Prefácio 4). Neste artigo, quero mencionar ainda outro candidato a ser sua mais importante contribuição, que é uma pretensão que Nietzsche explicitamente formula para nossa era presente: seu diagnóstico e prognóstico de nossa cultura como sendo niilista.

Colocação do Problema

É principalmente na fase final do pensamento de Nietzsche (de 1885 em diante) que o conceito de ‘niilismo’ se torna central em seu pensamento. Uma das mais notáveis características do que ele escreve sobre isto é seu anúncio e predição para o futuro próximo. No final do século 19, Nietzsche escreve sobre o que nos atingirá nos dois séculos seguintes: o vigésimo e o vigésimo primeiro século, isto é, nossa era presente. Portanto, a contribuição de Nietzsche para nosso presente era nos confrontar com a tarefa de fazer face à questão: se reconhecemos sua diagnose do niilismo e, se o fazemos, o que devemos e podemos fazer a este respeito. Para responder plenamente a essas questões, necessitaríamos muito mais do que umas poucas páginas, mas podemos nos preparar para, no mínimo, tentar entender o que ele efetivamente pensa com sua pretensão a respeito ‘deste mais ominoso de todos os hóspedes’, que ‘encontra-se à porta’ (2[127], KSA 12.125).

O Niilismo e seus Sentidos

Para um correto entendimento do que Nietzsche escreve a respeito do niilismo é importante não identificarmos niilismo com a assim chamada “morte de Deus”, mas distinguirmos várias espécies de niilismo, que são ao mesmo tempo diferentes estágios naquilo que Nietzsche descreve como a história do desenvolvimento do niilismo. O niilismo, tal como conceituado por Nietzsche, tem pelo menos três diferentes estágios, e o seu conceito um tríplice significado: ele é (numa ordem cronológica invertida) (3) a corrosão da (2) estrutura protetora que foi construída para ocultar (1) o absurdo da vida e do mundo.

O niilismo (1) é por vezes também indicado como “pessimismo grego”, mas a mim parece ser a base do conceito de niilismo de Nietzsche (cf. o célebre apontamento-Lenzer-Heide, parágrafo § 1, 5[71], KSA 12.211). O niilismo (2) é o modo como Nietzsche se refere à história da cultura europeia desde Platão (e o Cristianismo é ‘Platonismo para o povo’), incluindo o século 19; e o niilismo (3) se refere ao que está acontecendo desde então, isto é, o que Nietzsche algumas vezes rotula como “a morte de Deus”, o que ele descreve como a história dos séculos por vir, e com vistas a que ele faz todas estas outras bem conhecidas distinções (como entre niilismo ativo e passivo, completo e incompleto etc.).

O niilismo é, portanto, não somente e não primariamente a corrosão ou o debilitamento minando o “sentido”, como é sumarizado na expressão “a morte de Deus” (niilismo 3). Ao contrário: de acordo com Nietzsche, o próprio “Deus” é um conceito niilista; a história da filosofia, a ciência, a moralidade, a política, a religião e a arte europeias são, elas mesmas, profundamente niilistas (no sentido do niilismo - 2). É somente por causa da estrutura niilista da cultura europeia que a morte de Deus se tornou possível, e é (e continuará a ser) um evento tão ameaçador. Somente porque a “verdade” ou a ideia de verdade e a vontade de verdade foram a força motriz da cultura europeia que elas poderiam eventualmente minar a edificação inteira que elas construíram; uma construção que, por um lado, nos protegeu contra a perspectiva de que não há verdade, mas que, por outro lado, fez isto imaginando um mundo verdadeiro por detrás ou para além de toda realidade aparente (contingente etc.): uma construção - em outras palavras (nas de Samuel Beckett) - que nos fez “esperar por Godot”, mesmo aceitando que “Mr. Godot não virá hoje”, para não reconhecer que não existe Godot.

Nietzsche sugere que o fato de que não existe Godot, não existe Deus, nenhum princípio ou verdade, beleza e divindade absoluta, torna a existência humana extremamente difícil. Seres humanos (pelo menos depois que Sócrates pôs um fim à “era trágica dos gregos”, e desde que, portanto, os seres humanos tornaram-se incapazes de suportar o caos e o absurdo sem negá-los) não podem viver sem a diferença entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio, isto é, eles não podem viver sem o que é indicado por estas palavras, isto é, sem “sentido”.

Para entender isso, podemos pensar no que a tradição filosófica considerava quando chamou o ser humano um como animal rationale. Aristóteles o explicou de uma maneira muito incisiva, ligando uma característica a outras duas definidoras do ser humano: porque o homem é um dzooion logon echoon, ele(a) é um dzooion politikon. Pois logos lida com sentido (isto é: com a diferença entre to sympheron e to blaberon, to dikaion and to adikon; Pol. 1253 a15). E porque nós não podemos viver (pelo menos não como seres humanos, não de um modo humano) sem sentido, não podemos viver como indivíduos isolados, solitários; isto é: porque nós somos logikoi, nós somos politikoi. Necessitamos uns dos outros; necessitamos de comunicação e de comunidade para nos apoderarmos deste sentido, compartilhando nossas interpretações a respeito dele. Quando somos confrontados com a falta de fundamento de nossas interpretações, quando o niilismo se impõe sobre nós, nossa existência como seres humanos é ameaçada, e somos condenados à guerra e/ou à solidão.

O niilismo-2, isto é, o niilismo desta construção que supostamente nos protegeria contra o niilismo-1, consiste - para colocá-lo de maneira muito breve - na negação do mundo aparente em proveito de um mundo verdadeiro. A contingência deste mundo é colocada em perspectiva em relação à eternidade do mundo verdadeiro; o mal neste mundo em relação à bondade de seu criador e ao nosso dever moral ou ideal ético; a imperfeição da realidade factual em relação à perfeição do ideal. A idealidade do mundo verdadeiro é, de acordo com Nietzsche, uma desvalorização do mundo real. A história da niilista cultura europeia pode ser resumida, portanto, como a história da construção de um mundo ideal, a história do “idealismo” nesse sentido.

Nietzsche notoriamente completa essa história da construção de um mundo ideal com a história de sua (des)construção, resumindo tudo no Crepúsculo dos Ídolos como a história de um erro, Geschichte eines Irrthums (CI, KSA 6.80f). Pois este mundo ideal sucumbe, por fim, son sua propria irrealidade. A busca pela verdade desmascara a ideia de verdade como uma ilusão, a virtude moral da honestidade mina a moralidade mentirosa da qual faz parte. A crítica de Nietzsche à metafísica e à moralidade não é a causa de sua perdição, ela apenas traz à tona a força autodissolutora da construção idealista.

A ruína da estrutura protetiva causa o niilismo-3: a catástrofe niilista de nossa era: “uma inexorável, fundamental, profundíssima suspeita” a respeito de nós mesmos, que cada vez mais e de modo cada vez pior se apodera de nós, europeus, e que facilmente poderia colocar as gerações vindouras diante desta terrível alternativa: “ou vós suprimis as vossas venerações ou, então - a vós mesmos!” Esta última seria o niilismo; mas a primeira não seria também - o niilismo? - (GC 346).

Quem abandona ou abole as próprias reverências, isto é, seus ideais, abolirá, como resultado, a si mesmo.

Niilismo e Autorreferencialidade

Em sua crítica do niilismo-2, Nietzsche é constantemente consciente da autorreferencialidade desta crítica. Isto é mais aparente na crítica da vontade de verdade ou veracidade, que é, nela mesma, motivada precisamente por aquilo que ela critica (cf. BM 1). Mas é o mesmo caso em todos os domínios da crítica do niilismo por Nietzsche. Ele é consciente do fato de que, em sua crítica aos ideais tradicionais, ele repete o idealismo. Em seu louvor da honestidade como probidade intelectual, ele se apoia na “boa consciência”, aquela venerável, longa trança de um conceito, que nossos avós prendiam na parte de trás de suas cabeças, e muitas vezes também na parte de trás de seu entendimento (BM 214; cf. também BM 227). Em seu anelo por verdadeiros amigos, ele repete a concepção idealista de amizade, que ele critica, et cetera.

Esta autorreferencialidade se torna extremamente clara - penso eu - no terceiro ensaio de sua Genealogia da Moral, que é sobre ideais; não (como diz a maioria dos intérpretes) apenas sobre um tipo particular de ideal, o assim chamado ideal “ascético”, antes, porém, sobre o ascetismo de todos os ideais e sobre o modo pelo qual estes ideais continuam a atuar em tudo o que pensamos e criamos, mesmo na própria crítica de Nietzsche a esses mesmos ideais. Em sua crítica dos ideais, ele é dependente de… um ideal mais uma vez; mesmo daquele que ele ainda está procurando.

A crítica feita por Nietzsche do niilismo repete as estruturas criticadas, mas não faz isso ingenuamente. Isso demonstra expressamente como essa crítica necessariamente se enreda nessas estruturas idealistas, concluindo que o reconhecimento dessa inevitabilidade é um ponto além do qual não se pode ir adiante: “que sentido teria o nosso ser inteiro se não fosse este: que em nós a vontade de verdade torna-se consciente de si mesmo como um problema?” (GM III 27).

Possível Niilismo do Próprio Nietzsche

Isso possivelmente poderia ser chamado nihilism-4: o niilismo do próprio Nietzsche e o niilismo que ele prediz para a nossa era. Com vistas a este niilismo, não há, para Nietzsche - em minha opinião - nenhum além. O que ele acrescenta a essa história do niilismo, como ele a descreve, não é muito esperançoso: nós permanecemos aprisionados no anseio por aquilo em que não podemos mais acreditar; ou não podemos deixar de criticar os ideais de que necessitamos para viver: esse antagonismo, não apreciar aquilo que conhecemos; e não poder mais apreciar aquilo com o que gostaríamos de nos enganar: produz um processo de dissolução (§ 2, 5[71], KSA 12.212).

O texto de A Gaia Ciência, do qual citei anteriormente a descrição por Nietzsche da catástrofe niilista termina com: “Este é nosso ponto de interrogação” (GC 346). Se procurarmos pela resposta para essa questão nos escritos de Nietzsche, encontraremos somente experimentos que tentam incorporar essa situação; experimentos nos quais ele se encena de maneiras sempre mais opostas: “Nietzsche contra Wagner”, “Dionysos contra o Crucificado”. Finalmente, porém, ele parece se perder nesses experimentos. Mas, ao invés de elaborar esses experimentos, eu concluo retornando à nossa situação no século 21.

Considerações finais

Penso que podemos reconhecer o problema que Nietzsche aponta em vários domínios culturais, embora possamos não estar conscientes dele como um problema. Muitos estudiosos e cientistas, enquanto buscam o verdadeiro conhecimento, ridicularizam a ideia de que existe algo como “Verdade”; muitas pessoas que são pluralistas e relativistas em relação à moralidade ficam horrorizadas se confrontadas com aqueles que não têm convicções morais absolutas; algumas vezes as pessoas sentem-se gratas por sua existência ou por aquilo que acontece a elas, mas consideram inapropriada sua gratidão, pois não há Deus a quem se dirigir. Muitos outros exemplos poderiam ser acrescentados. Mais do que nunca somos confrontados com essa paradoxal fidelidade àquilo que deixamos para trás, ou essa dissociação daquilo que nós, não obstante, promovemos.

Mas - como já sugeri -, enquanto Nietzsche considera ser essa situação uma ameaça ou uma catástrofe, nós dificilmente vemos o ser atingidos por ela. Somos lembrados de uma das primeiras aparições do anúncio por Nietzsche do que ele mais tarde chamará de “niilismo”, o famoso discurso proferido pelo homem louco sobre a morte de Deus no aforismo 125 de A Gaia Ciência. O homem louco está falando para pessoas “que não acreditam em Deus”, e que (portanto) não entendem as tremendas consequências desse evento. Ele conclui: “Eu chego cedo demais […] ainda não é o meu tempo. Esse evento tremendo ainda está a caminho, ainda, ainda em andamento; ele ainda não alcançou o ouvido dos homens”.

Nietzsche foi demasiadamente otimista quando pensou que o niilismo iria irromper plenamente em um ou dois séculos? Ou era incorreto o seu diagnóstico? Colocar essas questões diante de nós talvez seja sua mais importante contribuição para a cultura atual. É difícil não ser tocado por ela se reconhecermos que ela diz respeito à nossa possibilidade de pensamento verdadeiro e de vida significativa.

Lista das abreviaturas de obras de Nietzsche

KSA - Samtliche Werke: Kritische Studienausgabe, em 15 volumes. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin, New York, Munchen: Walter de Gruyter, DTV, 1980.

KGW - Werke: Kritische Gesamtausgabe. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari.

Prosseguida por Wolfgang Muller-Lauter, Karl Pestalozzi et allii., Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1967 e seguintes. Seção IX: O Espólio Manuscrito. A partir da primavera de 1885 em transcrição diferenciada. Ed. Marie-Luise Haase, Michael Kohlenbach, Martin Stingelin et allii, em associação com a Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften, Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2001 e seguintes.

KGB - Kritische Gesamtausgabe Briefe. Edição Completa das Cartas. Ed. von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1975-2004.

AC O Anticristo

EH Ecce homo

GC A Gaia Ciência

GT O Nascimento da Tragédia

BM Além de Bem e Mal

HH Humano, Demasiado Humano

A Aurora

NW Nietzsche contra Wagner

PHG A Filosofia na Época Trágica dos Gregos

SE Schopenhauer como Educador

CE Considerações Extemporâneas

WA O CAsoWagner

VM Sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra-Moral

AS O Andarilho e sua Sombra

OP Miscelânea de Opiniões e Sentenças

Za Assim falou Zaratustra

Notas

3 Nota do tradutor: V. lista de abreviaturas no final deste artigo. Algarismos romanos, seguidos de números entre colchetes (por exemplo, 2[127]) indicam os manuscritos e fragmentos inéditos, que fazem parte do espólio filosófico de Friedrich Nietzsche, dos quais foram retiradas as passagens citadas. Nos demais casos, os numerais indicam aforismos ou seções de obras, ou então primeiramente os volumes e em seguida as páginas desta mesma edição.

Autor notes

a PVT é Professor emérito, Doutor em Filosofia, e-mail: info@paulvantongeren.nl
* Tradução de Oswaldo Giacoia Junior. Uma versão em inglês deste artigo foi publicada em: Yulia V. Sineokaya and Ekaterina A. Poljakova (Ed). Friedrich Nietzsche: Legacy and Prospects; Friedrich Nietzsche: Erbe und Perspektiven. Moscow: LRC Publishing House, 2017, p. 202-206.
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