Artigo
Verdades e mentiras na obra inicial de Nietzsche
Truth and Lies in Nietzsche's Early Worka
Verdades e mentiras na obra inicial de Nietzsche
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 209-233, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 14 Maio 2022
Aprovação: 08 Agosto 2022
Resumo: O presente artigo toma como diretriz uma pergunta fundamental: o que significa ver a filosofia do ponto de vista de uma vida afirmável e sustentável? Com base nessa pergunta, examina-se a natureza da alternativa filosófica proposta por Nietzsche ao ascetismo entranhado no âmago da filosofia ocidental, a autoridade com que esta alternativa é enunciada, bem como a relação existente entre a referida alternativa e o ascetismo por ela radicalmente criticado.
Palavras-chave: Dogmatismo, Essencialismo, Ascetismo, Dualismo, Metafísica.
Abstract: This article takes as a guideline a fundamental question: what does it mean to see philosophy from the point of view of an affirmable and sustainable life. Based on this question, it examines the nature of the philosophical alternative proposed by Nietzsche to asceticism ingrained in the heart of Western philosophy, the authority with which this alternative is enunciated, as well as the relationship between that alternative and the asceticism radically criticized by it.
Keywords: Dogmatism, Essentialism, Asceticism, Dualism, Metaphysics.
Introdução
A crítica feita por Nietzsche ao ascetismo inerente à tradição filosófica ocidental parece, por vezes, compreender o inteiro conjunto deste legado cultural, como se este gênero de filosofia fosse um sintoma de ódio ascético autodestrutivo pela vida; outras vezes, porém, a crítica nietzscheana parece ter em vista apenas o dualismo metafísico de proveniência platônico-cristã. Esta ambiguidade suscita a necessidade de um exame da alternativa oferecida por Nietzsche ao ascetismo filosófico, bem como da autoridade com que esta alternativa é enunciada.
I
Nietzsche é amplamente reconhecido pela sua crítica à tradição filosófica clássica. Porém, há um problema óbvio na forma como essa crítica é entendida. Em certos momentos, ela parece inteiramente depreciativa, sustentando que a filosofia é, em si mesma, algo de patológico, sendo sempre sintoma ou sinal de uma espécie de degeneração espiritual e ética, um ódio autodestrutivo à vida (tal como não pode existir uma “boa” versão da alquimia, da astrologia, ou da misoginia, uma versão aperfeiçoada ou melhor de tal doença é inconcebível). Noutros momentos, esta crítica parece visar somente a filosofia essencialista, ou metafisicamente realista, ou dualista, ou Platónico-cristã, o que levanta naturalmente a questão de saber qual é a alternativa filosófica oferecida por Nietzsche, a natureza da autoridade com que a enuncia, e que relação há entre essa alternativa e o tão criticado ascetismo.
Há uma miríade de formas de abordar os textos de Nietzsche com vista a tratar esta questão. Concentrar-me-ei aqui numa das versões iniciais: o contraste entre os pontos de vista trágico e socrático e as suas implicações na obra de Nietzsche no início da década de 1870. Levanto esta questão em virtude de alguma insatisfação com muitas das caracterizações mais amplamente conhecidas e mais influentes da relação de Nietzsche com a filosofia tradicional. Estas incluem um conjunto de caracterizações de Nietzsche como:
O último metafísico da tradição ocidental. Na leitura de Heidegger, Nietzsche, estando investido numa metafísica da vontade de poder radical e sem precedentes, teria trazido à luz os pressupostos subjacentes a toda a filosofia moderna, donde decorreria o inelutável niilismo, destino de toda a filosofia depois de Platão.
Um “sabotador” e terapeuta psicológico. Este é o Nietzsche que revela as verdadeiras ou secretas motivações da atividade filosófica; ou mesmo um naturalista, um terapeuta dos instintos.
Um esteta ou literato. Este Nietzsche compreende as visões do mundo filosóficas e as suas proposições normativas como, por assim dizer, poemas, matéria de gosto ou de estilo, cujos juízos normativos sobre a vida só podem ser baseados em critérios estéticos.
Nietzsche como uma espécie de antropólogo cultural ou etnólogo de poltrona, para quem as proposições filosóficas e religiosas, bem como as práticas políticas e morais que estas sustentam, não são mais do que rituais tribais ou práticas míticas do nosso clã, integradoras e indutoras de conformismo; um etnólogo capaz de revelar a função essencialmente prática de tais rituais na nossa comunidade.
Um provocador, experimentador, terapeuta de choque, desmantelador. Este é um Nietzsche capaz de revelar o imoralismo de toda a moralidade, a crueldade da piedade cristã, o medo e a covardia do igualitarismo moderno, não em virtude de uma qualquer teoria totalizante do imoralismo ou da crueldade, mas tão somente graças a uma intensa sensibilidade à real crueldade do cristianismo, à arbitrariedade imoral e crua contingência que presidem à avaliação moral. Este Nietzsche é o mais internalista dos críticos; é o Nietzsche que se limita a usar máscaras, assumir papéis, e que nisto vai vestindo visões filosóficas de forma mais autêntica e intensa do que aqueles que as subscrevem. Uma força da natureza, mas desconstrutiva, se tal é concebível: a um tempo “todos os nomes da história” e “dinamite”.
Há, por fim, o sentido que está mais à superfície; que Nietzsche não é um crítico da filosofia, mas ele próprio um crítico filosófico; não alguém insatisfeito com a metafísica como tal, mas apenas com uma metafísica sob o feitiço da estabilidade da linguagem e da forma lógica; sendo ele próprio um expoente de uma metafísica do fluxo radical, da identidade instável, mutável e provisória; um defensor do tempo cíclico e mítico (o Nietzsche de Löwith, Klossowski); o Nietzsche deleuziano das forças ativas; o teórico dos Macht quanta, da vida como uma expressão de força incessante e destituída de sentido (o Nietzsche quasi-leibniziano de Günther Abel); o idealista linguístico e conceitual e o epistemólogo relativista, tão caro aos comentadores anglófonos; o moralista cujos ensinamentos morais parecem fundar-se no modo como as coisas realmente são, e não em como gostaríamos que fossem.
Este último Nietzsche tem uma teoria das forças, ou pulsões, da realidade dionisíaca, dos valores, da linguagem, da vontade, da aparência; teoria atrás de teoria, sem qualquer posição geral contra a teoria. O ponto de vista trágico assenta na filosofia do dionisíaco; a crítica genealógica, na natureza de toda a avaliação possível e na natureza humana em geral; a crítica psicológica, numa deslocação das concepções ingênuas e distorcidas do desejo humano e da alma para numa concepção verdadeira.
Em contrapartida, o Nietzsche mais radical e contemporâneo é totalmente antiteórico e antifilosófico, inimigo do ideal ascético e céptico em relação à atribuição de qualquer valor à verdade, dado que, para este Nietzsche, ela simplesmente não existe.
Há ainda o Nietzsche meramente filosófico, aquele que não é um “pensador de vulto””, nem um grande filósofo, mas apenas genericamente filosófico, talvez até um tanto subfilosófico. Este é o Nietzsche que é arrumado a par de Voltaire, LaRochefoucauld, Heine, Emerson, Carlysle, Huxley, mesmo Spengler; um dos mais magistrais ensaístas que alguma vez existiu, mas, na essência, um moralista; um Camus, não um Heidegger; como filósofo, um eco schopenhaueriano-wagneriano, ao invés de uma voz nova, um Wittgenstein.
Mas a questão em causa nestes vários Nietzsches, quando colocada desta forma, teria de nos levar às complexidades da recepção da sua obra, e da função que “Nietzsche” tem desempenhado na história intelectual europeia moderna; exigiria uma compilação dos muitos livros proveitosos que têm vindo a surgir no que parece constituir uma série de “Nietzsche em...”. Nietzsche na Alemanha, em Inglaterra, em França, em Itália, na Rússia (julgo que há livros com todos estes títulos).
A minha visão pessoal é a de que existem amplos indícios textuais, na acepção exegética corrente, para sustentar cada uma destas versões. Espero conseguir dar alguns passos no sentido de explorar até que ponto e de que forma todos elas se tornaram influentes, ao explorar com maior detalhe os contrastes acima referidos. A minha pergunta orientadora é a que surge na primeira e explosiva obra de Nietzsche, e que havia de subsistir ao longo de toda a sua vida: o que significa ver a filosofia (e, por fim, a ciência, a moralidade e a arte) “do ponto de vista da vida” e, em particular, do ponto de vista de uma vida “possível” (ou, por contraste, “impossível”). Embora Nietzsche não viesse a prosseguir a via da “metafísica do artista” que inicialmente avançou como a mais adequada à possibilidade da vida, nunca abandonou como problema central a questão de saber o que é necessário para uma vida afirmável ou sustentável, tal como nunca abandonou a sua asserção de que a filosofia tradicional, a religião e o ponto de vista moral se tinham revelado respostas inadequadas a uma tal questão. (É típico de Nietzsche que o enunciado mais sucinto da resposta que ele próprio acaba por oferecer ocorra apenas parabolicamente, na tensão entre as duas “amantes” de Zaratustra, a “vida” e a “sabedoria”, o contraste originário com o socratismo estabelecido em O Nascimento da Tragédia, tal como é típico dele que o que parece ser a solução de Zaratustra para esta questão seja “sussurrado ao ouvido da vida”, nunca nos sendo contado o que Zaratustra disse!)1
Mas enquadrar desta forma a matéria em causa obriga-nos a perguntar qual é, ao certo, a questão para a qual o socratismo seria uma resposta inadequada, a questão da possibilidade de vida. Como espero começar aqui a mostrar, a visão de Nietzsche sobre esta matéria é muito mais complexa e esquiva do que poderá parecer à primeira vista.
Por conseguinte, proponho-me a simplesmente mergulhar desde logo nela, oferecendo um resumo daquela que me parece ser a tese de O Nascimento da Tragédia, pelo menos a tese relevante para nós no que toca a esta questão em particular.
Essa tese diz respeito à origem e desaparecimento da tragédia grega no período clássico; uma questão familiar e de um interesse profundo (a razão, as circunstâncias e o significado de, a dado momento dos ritos orgíacos em grande medida femininos, associados a Dioniso - a dança da cabra ou o sacrifício das cabras, a tragoidia -, uma personagem individual ter começado a falar vestindo a pele do grande deus sofredor, Dioniso; e por que razão, a certa altura, a prática de as pessoas se juntarem no escuro, enleadas num qualquer sentimento continuado de santidade religiosa e sossego, para assistirem seres humanos fingindo que eram todo o tipo de outros seres, quer humanos quer divinos, a sofrer destinos terríveis e dolorosos, tornou-se uma experiência cultural central, lançando as sementes de toda a tradição dramática ocidental). Nietzsche oferece uma resposta a esta questão entretecendo-a com argumentos sobre a música e a cultura contemporâneas, argumentos esses que revelam as profundas influências de Schopenhauer e Wagner.
Até certo ponto, e graças a estas influências, dir-se-ia que, à superfície, os argumentos de Nietzsche são característicos do mal-estar romântico tardio. O Nascimento da Tragédia parece celebrar a natureza mais profundamente reveladora das experiências primárias pré-reflexivas, e mesmo pré-racionais e pré-verbais, uma intoxicação dionisíaca que dissolve a individualidade. Argumenta ele que restos vitais desta experiência musical dionisíaca originária estão ainda presentes na função inicial do coro e das odes corais, bem como nos atrozes fracassos dos heróis trágicos. Tanto no horror como no heroísmo dos feitos excessivos que Agamémnon ou Orestes se vêm obrigados a realizar, na demanda gorada de Édipo para alcançar a sabedoria, ou no sofrimento de Prometeu, há algo que decifra o Ur-eine, o verdadeiro caos, arbitrariedade e acaso que se escondem por detrás das nossas fracas, ainda que belas, tentativas de produzir ordem, nomos, inteligibilidade. (A verdadeira figura da sabedoria dionisíaca, que exige uma indiferença a qualquer norma ou limite, é assim, segundo Nietzsche, o incesto de Édipo, um desejo que ele tem que ter e, simultaneamente, não pode ter. O mesmo é válido no caso de Prometeu, tal como Nietzsche o vê, cujo “sacrilégio” é “necessário”, mas que também deve paradoxalmente exigir justiça e equilíbrio. Daí decorre a sabedoria trágica: “Alles Vorhandene ist gerecht und ungerecht und in beidem gleich berechtigt (Tudo o que existe é justo e injusto, e em ambos os casos é igualmente justificado)” (NT 9, KSA 1.71).2
Com efeito, na invulgar “teoria da ação teatral” de Nietzsche, as personagens representadas em frente ao coro são experienciadas coletivamente enquanto projeções desta massa intoxicada; imagens oníricas cuja instabilidade, fragilidade e mesmo a arbitrária inabitabilidade que é comum a todas elas são realmente experienciadas enquanto tais na experiência dramática coletiva. Tudo isto contrasta com as limitações e o otimismo iludido da procura socrática de sentido por via do logos, da definição, e da esperança numa estrutura inteligível que possa ser encontrada sob as aparências, ou então para além delas. E, tal como referido, isto assemelha-se ao previsível contraste entre a lâmpada expressiva do romantismo e o espelho refletor dos clássicos, entre a evidência intuitiva e as limitações das abordagens reflexivas, racionais ou empíricas.
Mas Nietzsche vai muito além dessas polaridades costumeiras ao tratar o trágico em si mesmo como uma categoria ética complexa, ao compreender a experiência dramática no quadro de questões muito mais vastas relativas à afirmação e avaliação, à própria sustentabilidade da vida enquanto tal (a palavra que usa para caracterizar a função da tragédia é Rechtfertigung, justificação, e por razões que em breve se tornarão claras, é importante lembrar os ecos que este termo faria soar nos leitores alemães de Nietzsche: Rechtfertigung durch die Gnade ou im Glauben, ou seja, o sentimento de justificação acentuado por Lutero, e a justificação ou a “habitabilidade” da existência por via da graça e da fé, e não uma qualquer noção com fundamentos metafísicos ou filosóficos)3. Na sua versão da tragédia, esta não se resume a uma intoxicada destituição do eu, numa tensão instável com indivíduos oníricos e deuses olímpicos enfaticamente, se bem que irracionalmente, joviais. Há também um ponto de vista plenamente trágico, uma forma de apreciar e julgar que só se entende no contraste com o ponto de vista socrático e, finalmente, com o ponto de vista moral. Estas questões avaliativas convocam o problema do sofrimento e da justificação num sentido mais amplo. A questão que Nietzsche considera ser aquela a que a tragédia responde é, diz ele, uma possível resposta à sabedoria de Sileno: Sileno, aquele que diz que melhor seria não ter nascido; não sendo possível, melhor será morrer jovem.
É tudo isto que o leva, como veremos, a estabelecer um contraste radical com a filosofia socrática. Este contraste tem como eixo questões que permaneceram relevantes ao longo da obra posterior de Nietzsche: o problema das aparências ou ilusões (aqui sob a forma da questão da justificação estética, bem como da metafísica do artista) e a questão mais lata que Sócrates introduz, como contraponto a tal justificação, aquilo que Nietzsche chama “o valor da verdade”.
II
Historicamente, O Nascimento da Tragédia é uma manta de retalhos composta a partir de três ensaios que Nietzsche, o Wunderkind de 26 anos, apresentou na forma de palestras públicas em Basileia, em 1870, e que depois afinou para o seu primeiro e importante livro: “O Drama Musical Grego”; “Sócrates e a Tragédia”; e “A Visão do Mundo Dionisíaca”.4 Porque era esperado que Nietzsche, o tão aclamado estudante de Ritschl, o grande filólogo de Leipzig, viesse a ser o próximo grande vulto da filologia alemã, a natureza ostentosamente pouco ortodoxa dos seus argumentos no campo da erudição clássica, e a sua forma inédita (sem notas de rodapé!), dominaram a desastrosa recepção do livro. Isto deu-se, em particular, em razão da recusa de Nietzsche em aceitar os traços da cultura grega que durante tanto tempo pareceram dar conforto aos intelectuais alemães, a edle Einfalt e a stille Grösse de Winckelman. Para Nietzsche, não eram a simplicidade, a forma, a clareza, a escultura, a arquitectura e a luz (a ordem) que tornavam os gregos gregos, mas antes o sexo, a violência, o sangue, a luxúria, o álcool, as orgias, a música e a escuridão da alma humana (o excesso). Nietzsche levou muito a sério as origens históricas da tragédia nos festivais dionisíacos, traçou uma ligação entre o significado da experiência trágica e estas intoxicações orgíacas, e lançou mão da teoria da vontade de Schopenhauer, o colapso do principium individuationis numa pura vontade destituída de um eu, bem como da experiência da música, para explicar a natureza de uma tal experiência dionisíaca assumiria, e interrogar que significado poderia ter.
Ao estabelecer estes pontos, O Nascimento da Tragédia introduz um ator central no drama nietzschiano, e que assim permaneceria até aos seus últimos dias de sanidade, Dioniso, o maior deus do mundo grego helenístico, celebrado em festivais orgíacos nas encostas dos montes, sobretudo por mulheres, as mênades (mulheres em delírio). Dioniso foi o deus padroeiro dos dois maiores festivais dramáticos gregos, as Leneias e as Dionísias Urbanas, e, mais tarde, dos festivais dramáticos cômicos e trágicos. As histórias da sua origem eram invulgares, mesmo pelos padrões gregos. Numa delas, Zeus impregnara Sémele. Hera, fazendo-se passar por enfermeira, soube por Sémele que Zeus era o pai; fingiu recusar-se a acreditar nisso a não ser que Sémele conseguisse persuadir Zeus a surgir na sua verdadeira forma; Sémele assim fez, mas nisto é fulminada e transformada em nada. (Dioniso nasce, assim, em consequência da impossibilidade de haver vida sem ilusão. É tão impossível tolerar um Zeus sem disfarces como o é tolerar uma vida plenamente dionisíaca, que nos desmembraria). Antes de Sémele morrer, Zeus arranca Dioniso do seu ventre e insere-o na sua própria coxa, que faz as vezes de ventre (a história está cheia de ambivalências quanto às dualidades homem-mulher e vida-morte, ambivalências essas que voltam a surgir na dualidade maior de Nietzsche, a que opõe o dionisíaco e o apolíneo; e sugere, para além disso, que a fonte da nossa Zerissenheit pode também ser a fonte do nosso nascimento). Outros relatos sublinham também o caráter duplamente natural de Dioniso (Deméter, engravidada por Zeus, é destruída por Hera, mas o coração de Dioniso é salvo e comido por Sémele, que mais tarde o dá à luz). Dioniso é, pois, uma figura da morte e dissolução que pode, ao mesmo tempo, produzir ou sustentar a vida, o que é relevante quer na ingestão ritual do bode sacrificado no festival quer na versão de Nietzsche da afirmação trágica.
Do mesmo modo, no seu relato de Apolo, Nietzsche insiste em algo comum a muitas das abordagens alemãs oitocentistas à religião grega: que esta era, nos seus fundamentos, um fenômeno estético, por oposição a doutrinal ou sectário. Os gregos experienciavam o mundo do Olimpo como um mundo onírico, simultaneamente encantador e aterrador; os sacrifícios e rituais eram, inicialmente, um festival estético comunitário, em que noções da vontade de um deus, do apaziguamento, do perdão etc. não poderiam ter desempenhado os papéis que posteriormente assumiriam no Ocidente (um ponto a favor de Nietzsche, apontado por Blumenberg, entre outros: não há indícios de controvérsias doutrinárias ou exegéticas. Diferentes relatos de Prometeu, Dioniso, Ulisses, Pandora etc. coexistiam serenamente, sem que existam indícios de que alguém estivesse muito preocupado em saber qual deles seria verdadeiro.5 É isto, precisamente, que tanto parece apoquentar Sócrates na República; os poetas podiam dizer o que bem entendessem sobre os deuses e ninguém parecia importar-se com o que era “verdade”. Como veremos, perante esta questão e a crítica de Sócrates à mimese, ou seja, aos poetas fingirem ser quem bem lhes apetecesse, Nietzsche havia de argumentar que Sócrates incorre num erro de categoria grosseiro, não conseguindo ou recusando-se a compreender que os poetas não são maus filósofos, ou filósofos incompletos).
O que pôs Nietzsche em maus lençóis foi a sua sugestão, em O Nascimento da Tragédia, de que a experiência trágica grega não era essencialmente religiosa nem politicamente edificante, nem tampouco uma forma de representar o excesso a fim de nos reconciliarmos com os limites. Era precisamente o contrário! Onde Aristóteles vira em Prometeu ou Édipo o excesso como hybris, Nietzsche via um “amor titânico pelo homem”, e uma “sabedoria excessiva” que não podia ser contida ou evitada (pelo menos não sem disso decorrer o ponto de vista moral que ele viria a odiar); “O ‘titânico’ e o ‘bárbaro’ eram, no fim de contas, precisamente uma necessidade, como o apolíneo!” (NT 4, KSA 1.40). “O excesso (Übermass) revelava-se como a verdade” (NT 4, KSA 1.41) (a natureza desta necessidade é, com efeito, a questão central d’O Nascimento da Tragédia e do seu tratamento de Sócrates). A tragédia era abordada como uma forma de revelar a inevitável e necessária (e mesmo, em certo sentido, bem-vinda) dissolução dos limites, da forma, e mesmo da própria sustentabilidade das personagens individuais, e, contudo, não deixava de ser um modo de afirmar a vida, um “outra vez, de capo”, apesar de tudo isso, um pessimismo heroico.
Assim, o drama trágico era entendido como envolvendo a perpétua oposição entre duas pulsões naturais, ou “pulsões artísticas”, o dionisíaco e o apolíneo. Estas representavam quer a inevitabilidade do mundo onírico grego das artes plásticas, da escultura e das tentativas heroicas dos indivíduos de estabelecer, no seio de tais ordens oníricas, a identidade, a norma, a medida, o limite, quer a inevitável desintegração dessa estabilidade ilusória, que cabia ao informe dionisíaco. Ao recusar-se a negar tal inevitabilidade, ou ao esquivar-se a ela, a própria experiência trágica revelava, ao mesmo tempo que ajudava a gerar, um outro modo de afirmação corajosa, a afirmação trágica, e até mesmo uma justificação estética da existência.
Finalmente, para encerrar este breve resumo (deixando de lado o “renascimento da tragédia”, as questões wagnerianas que começam em NT 16), Nietzsche oferece também um relato do fim da tragédia e de como o ponto de vista trágico perde autoridade cultural. O principal vilão desta história é, evidentemente, Eurípides, embora Sócrates seja muitas vezes apontado como a raiz da sua decadência.
Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e omnipotente, e voltar a construí-la de novo puramente com base numa arte, uma moral e uma visão do mundo não dionisíacas - tal é a tendência de Eurípides, que agora se nos revela em luz meridiana (NT 12, KSA 1.82)
O que é por vezes descrito como o acasalamento sexual entre o dionisíaco e o apolíneo, ou a “expressão de duas pulsões artísticas entrelaçadas”, é agora visto como inaceitável ou impossível. O elemento dionisíaco presente no arrojo, no fervor religioso e no excesso heroico de Édipo, Prometeu ou Antígona parece agora, do ponto de vista da “frieza” plenamente apolínea, algo simplesmente irracional, imprudente, injustificado e, por conseguinte, injusto. O acaso, o sofrimento aleatório, a pré-história que herdamos e não conseguimos controlar, tudo isto surge agora ou como simplesmente injusto e inaceitável, ou como uma razão, ainda que irreprimível e irredimível, para acolher a sabedoria de Sileno. O dionisíaco é “escorraçado do palco” por um “poder demoníaco que fala através de Eurípides”: Sócrates.
Mesmo as imagens “cintilantes” do mundo onírico apolíneo surgem agora como mera “falta de compreensão e poder de ilusão”, da qual Sócrates infere “a íntima insensatez e a detestabilidade da existência” (NT 13, KSA 1.89). A virtude deve agora tornar-se conhecimento, formulável em definições; a vida não examinada não vale a pena ser vivida; ninguém pratica o mal sabendo que está a fazê-lo.
Quem se der conta com clareza de como depois de Sócrates, o mistagogo da ciência, uma escola de filósofos sucede a outra, qual onda após onda, de como uma universalidade jamais pressentida da avidez do saber [Wissensgier], no mais remoto âmbito do mundo civilizado, e enquanto efectivo dever para com todo o homem altamente capacitado, conduziu a ciência ao alto-mar, de onde nunca mais, desde então, ela pôde ser inteiramente afugentada, […] não poderá deixar de enxergar em Sócrates um ponto de inflexão e um vórtice da assim chamada história universal (NT 15, KSA 1.99-100).
III
Como já foi dito, os aspectos importantes deste contraste com o socratismo, para voltar ao tópico da crítica à filosofia, prendem-se com dois temas, e os contornos da relação entre eles não são de todo nítidos.
O primeiro tema diz respeito à questão geral da possibilidade do socratismo. Presumamos que exista algo como a sabedoria trágica: um tipo distinto de apreciação da instabilidade dionisíaca e de uma desordem “real” do cosmos; uma espécie de prazer, de deleite na atividade da cultura humana, atividade formativa e apolínea, deleite esse que se pode, em virtude do tipo de apego e fidelidade à existência que promove, chamar Rechtfertigung, ou justificação.6 A substituição de uma tal sabedoria pressupõe a possibilidade de se estabelecer algum tipo de verdade filosófica. Com efeito, pressupõe-se duas coisas: é possível alcançar um logos racionalmente coeso, de algum modo fundado naquilo que verdadeiramente existe, e alcançá-lo é essencial para a justificação e, em última instância, para a sustentabilidade da própria vida; a vida examinada, e só a vida examinada, “é digna de ser vivida”.
É comum considerar que Nietzsche nega esta possibilidade, e que o faz lançando contra ela uma série de contra-argumentos filosóficos que corresponderiam aos seus posicionamentos. No entanto, n’O Nascimento da Tragédia Nietzsche é cauteloso no modo como enuncia as suas dúvidas quanto ao otimismo socrático. Ou seja, constrói um argumento de cunho mais histórico do que teórico: o de que a tradição filosófica pós-socrática minou o seu próprio optimismo (deixando claro, mais tarde, que se refere sobretudo a Kant): “[…] nesses limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a sua própria cauda - e então irrompe a nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser apenas suportado, precisa da arte como meio de protecção e remédio” (NT 15, KSA 1.101). Porém, noutras obras deste período, uma das quais analisaremos em breve, Nietzsche parece atacar o optimismo socrático de forma mais direta. Nenhuma linguagem filosófica poderia alguma vez ser adequada à realidade tal como ela é em si mesma (por esta ser instável, caótica, informe); a linguagem é uma malha de metáforas e tropos linguísticos que de forma alguma pode ser adequada ao real; os termos são sempre metáforas cujo caráter metafórico foi esquecido; toda a pretensão de se enunciar algo de verdadeiro, num sentido filosoficamente útil, o sentido exigido por Sócrates, é, segundo os critérios que o próprio Sócrates aceita, falsa. Nietzsche parece mesmo afirmar que qualquer pretensão de verdade é necessariamente falsa (esta metafísica contra-socrática é invocada n’O Nascimento da Tragédia, nas passagens onde Nietzsche fala da “montanha mágica do Olimpo que se abre” revelando-nos “as suas raízes”. “O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre si e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos”. Logo em seguida, Nietzsche evoca os “poderes titânicos da natureza” (NT 3, KSA 1.35).
Mas a outra questão implicada nas dúvidas de Nietzsche quanto ao socratismo é de natureza diferente. Diz respeito não tanto à questão de a procura socrática da verdade ser, ou não, em si mesma inerentemente possível, quanto ao que julgamos que isso poderá fazer por nós, que tipo de função redentora terá, ou poderia ter, o passarmos a saber aquilo que Sócrates quer que saibamos. A esta questão - aquela que, a meu ver, interessa realmente a Nietzsche acima de todas as outras, mesmo que as aparências e os floreados retóricos apontem noutro sentido - chama ele à questão do “valor da verdade”. Tentar compreender o que Nietzsche quer dizer com uma “justificação” que não seja “socrática” dependerá muito do tipo de questão que se tome como primordial no desenvolvimento das observações de Nietzsche sobre a “filosofia” (a própria possibilidade do socratismo, ou a possibilidade de que o socratismo possa alcançar a função redentora e sustentadora que para ele é reclamada).
Para enunciar o meu ponto de vista sem rodeios, penso que mesmo quando Nietzsche quer levantar a questão da possibilidade da verdade, fá-lo num plano mais fenomenológico, internalista e histórico, inquirindo sobre o “destino” da promessa socrática e não sobre a sua possibilidade intrínseca. Penso que Nietzsche não acredita nessa “possibilidade intrínseca”, ou questão transcendental, tal como ela foi classicamente enunciada, dada a forma como ele entende a relação entre a consideração de tais questões (a possibilidade da verdade) e as “avaliações da vida”, o compromisso com e o apego ao que ele chama, genericamente, os “valores” implicados em qualquer consideração desse tipo. A sua pergunta central, dominante ou orientadora, é sempre o valor da verdade, ou o que pensamos que “a verdade” alcançará, tendo também sempre presente, num plano mais geral, a questão das várias formas por meio das quais o apego às várias vidas possíveis surge e é sustentado.
É certo que é difícil manter estas duas questões separadas, pois parecem, nas obras de Nietzsche, logicamente implicadas. Afinal de contas, uma boa razão para atacar a proposta socrática (a de substituir a sabedoria trágica pelo autoconhecimento) como sendo ingenuamente otimista é o argumento de que ela é, pura e simplesmente, impossível; e não que, caso fosse possível, esta não pudesse fazer por nós aquilo que Sócrates promete. Ou, para voltar ao paradoxo habitual, não há, em última análise, forma de explorar aquilo que poderia cumprir esse tipo de função na “vida” se não vier a par de uma “descrição verdadeira da vida” e das suas “condições”. Diga-se que essa descrição não tem que ser necessariamente “verdadeira” no sentido realista que o socratismo lhe daria, mas antes num sentido pós-kantiano, mais sofisticado, antirrealista, enquanto satisfação-dos-nossos-melhores-critérios-cognitivos, falível, perspéctica-mas-não-necessariamente-falsa-simplesmente-o-melhor-que-conseguimos; verdadeira, portanto, não no sentido das grandes nominalizações e substancializações que Nietzsche contesta na filosofia pós-platônica, mas de uma forma que consegue, ainda assim, afastar-nos das implicações radicais do ataque ao valor da verdade em si mesma (implicações enunciadas, por exemplo, no Terceiro Ensaio da Genealogia da Moral) e encaminhar-nos de volta às verdades nietzschianas, à metafísica da vontade-de-poder-fluxo-radical, à cosmologia do eterno retorno, e à psicologia auto-engrandecedora do poder - é deste tipo de “verdades” que se fala. Também não creio que uma tal suspeita revele adequadamente o problema com que Nietzsche está a lidar (o lugar primordial da questão do valor da verdade), mas sustentar este argumento demorará algum tempo.
IV
Podemos começar por sublinhar que o Nietzsche-adversário-de-Sócrates e filósofo-do-devir não se enquadra bem n’O Nascimento da Tragédia. Por um lado, a passagem que acaba de ser citada da secção 3, sobre a “montanha mágica do Olimpo” que se abre diante de nós, “revelando as suas raízes”, é ela própria apresentada de forma algo conjectural, enquanto imagem. Ela revela as suas raízes, “gleichsam”, “por assim dizer”. Por outro lado, a dimensão dionisíaca n’O Nascimento da Tragédia é tratada, para usarmos a linguagem de um período posterior de Nietzsche, de um modo perspéctico. Os deuses titânicos não são menos artifícios estéticos do que os deuses olímpicos, e o dionisíaco nunca é apresentado como “a vida em si mesma”, mas sim na fórmula de Nietzsche como uma “horrível profundeza da consideração do mundo” (Weltbetrachtung) (NT 3, KSA 1.37). O argumento que Nietzsche apresenta como contraponto à visão de Schiller sobre a poesia “ingênua” pretende ser um argumento genérico sobre uma experiência estética: “não é de modo algum um estado tão simples, resultante de si mesmo e, por assim dizer, inevitável” (Ibid.). De facto, desde o início do ensaio (secção 2), o dionisíaco é tratado como uma energia ou potência artística (cf. Kunstmächte) ou pulsão artística, pulsão para a arte (cf. Kunsttriebe), e não como o estado das “coisas em si”, a que os poderes formativos do apolíneo teriam resistido temporariamente e sem sucesso. Na forma como Nietzsche viria a invocar estes poderes míticos num período posterior da sua obra, qualquer apelo à força específica do “apolíneo” desaparece: tanto a necessidade da forma como a resistência à forma enquanto sustentabilidade e “justificação” da vida podem, conclui ele, ser contidas sem reserva num único termo: Dioniso (isto torna a visão da arte proposta em O Nascimento da Tragédia surpreendentemente modernista, mesmo num sentido pós-Impressionista, como tem sido apontado, nos últimos anos, por alguns teóricos da estética alemães7). Não há qualquer invocação de uma “vida real”, “originária”, caótica; toda a vida, assim é sugerido, é, e deve ser, vivida - ou, na expressão habitual, “conduzida” (ou mesmo, em Assim Falou Zaratustra, “chicoteada”) - apenas na medida em que é justificada, de uma forma ou outra; os festivais intoxicantes, a par da produção de música, são formas de conduzir uma vida e de assim a justificar.
Mas o principal indício que nos leva a negar que Nietzsche estaria a essencializar a realidade dionisíaca, ou a tratar essa “consideração do mundo” como a terrível “verdade” a que Sócrates, com má-fé, simplesmente se esquiva por via da criação de um mundo para além deste, encontramo-lo na forma como Nietzsche descreve o fim da tragédia. Na sua essência, a visão de Nietzsche não é, ao contrário do que nos diz a maioria das interpretações e a dimensão superficial de muitas das suas próprias formulações, que Sócrates e Eurípedes são, de alguma forma, pessoalmente responsáveis, em virtude da sua decadência, ou graças ao que hoje em dia chamaríamos a sua timidez burguesa, por matar a tragédia e minar o ponto de vista trágico. Da perspectiva de Sócrates e Eurípides, talvez se tratasse, de fato, de “escorraçar” Dioniso para fora do palco, e é possível afirmar, post facto, que tudo indica que “Eurípides combateu e venceu a tragédia de Ésquilo” (NT 12, KSA 1.83); mas tem que ter ocorrido previamente uma transformação muito mais ampla para que essa contestação tenha sido possível. Nietzsche enuncia explicitamente a natureza desta transformação prévia no início daquele que é o ponto de viragem do ensaio, a seção 11.
A tragédia grega sucumbiu de maneira diversa da de todas as outras espécies de arte, as suas irmãs mais velhas: morreu por suicídio [Selbstmord], em consequência de um conflito insolúvel [unlösbaren Conflictes], portanto tragicamente, ao passo que todas as outras expiraram serenamente em idade avançada, com a mais bela e tranquila morte (NT 11, KSA 1.75).
O “acontecimento” Eurípides é classificado como uma “longa luta” que a própria tragédia trava com a morte (NT 11, KSA 1.76). Na seção anterior, Nietzsche já tratara o mito dionisíaco, e a sua função de criação de sentido e justificação, como sendo possível num dado tempo, por algum tempo:
Pois é o destino de todo o mito arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma suposta realidade histórica e ser tratado por alguma época ulterior como um facto único com pretensões históricas […] Pois esta é a maneira como as religiões costumam morrer […] o sentimento para com o mito morre e em seu lugar entra a pretensão da religião a ter fundamentos históricos […] Através da tragédia, o mito chega ao seu mais profundo conteúdo, à sua forma mais expressiva; uma vez mais ele se ergue, como um herói ferido, e nos seus olhos, com derradeiro e poderoso brilho, arde todo o excesso de força, juntamente com a calma cheia de sabedoria do moribundo (NT 10, KSA 1.74).8
Este mesmo sentimento é articulado muito mais tarde, na discussão de “O Problema de Sócrates” em Götzendämmerung, da seguinte forma: “A velha Atenas caminhava para o fim. - E Sócrates entendeu que o mundo inteiro necessitava dele - do seu engenho, da sua cura, da sua arte singular de autopreservação” (CI O problema de Sócrates 9, KSA 6.71).9
O que quer que Nietzsche queira afirmar que é indevidamente otimista no socratismo não parece estar ligado a uma qualquer verdade metafísica que Sócrates evitasse ou distorcesse. Contudo, outras obras do início da década de 1870 poderão sugerir que o profundo ceticismo de Nietzsche face a Sócrates se assenta numa visão geral sobre a natureza das coisas em si e os efeitos inevitavelmente “falsos” ou “deturpadores” de qualquer linguagem, ou em argumentos, amplamente citada em muitas obras recentes, contra a própria “verdade”, e não apenas contra a “fé na verdade”.
Muitos destes argumentos se encontram, de forma compacta, no ensaio de 1873, “Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral”. Aí poderá parecer que Nietzsche enuncia uma rejeição generalizada da possibilidade de qualquer proposição verdadeira, sustentando que existe um mundo em si que nunca conseguiremos captar através da linguagem, sendo esta apenas um instrumento prático que de forma alguma é capaz de corresponder ao mundo. Assim,
Só mediante o processo do esquecimento pode alguma vez o homem chegar a presumir que possui uma “verdade” no grau que acabámos de indicar [in dem eben bezeichneten Grade. Sublinhe-se a qualificação do tipo de “verdade” em causa para Nietzsche] (VM, KSA 1.878).10
Julgamos saber algo sobre as coisas elas próprias quando falamos de árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não dispomos senão de metáforas das coisas - as quais não correspondem de forma alguma aos entes [Wesenheiten] originais (VM 1, KSA 1.879).
E, por fim, a passagem mais célebre:
O que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias e antropomorfismos, numa palavra: uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas, e que, depois de um longo uso, parecem a um povo como fixas, canónicas e vinculativas: as verdades são ilusões que esquecemos que o são; são metáforas que foram gastas, e que ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como moedas, mas como metal (VM 1, KSA 1.880-1).
Ora, se “as verdades são ilusões que esquecemos que o são”, então a tentativa de Sócrates de justificar a vida através da sua compreensão, apelando à verdade, seria certamente um ponto de partida impossível. Mas se é nesta base que se assenta a proposta de Nietzsche de uma “justificação” alternativa para a vida, então, em primeiro lugar, essa base parece ser, pura e simplesmente, má filosofia, e não uma alternativa à filosofia. O ensaio não nos dá qualquer razão válida para acreditarmos que o fato de existir uma dimensão metafórica da linguagem explica, por si só, que não possam ser dadas condições de verdade relativamente fiáveis para o enunciar de proposições. Não há nenhuma razão particular para pensarmos que seja necessária uma teoria realista e direta da referência, ou uma qualquer teoria da referência, ou mesmo uma teoria do sentido, para que se estabeleçam condições de verdade, e certamente não há nenhuma boa razão para crermos que sabemos que o que dizemos é, e não pode senão ser, “falso”. Esta possibilidade parece manifestamente inconsistente com a própria tese que é enunciada. Para mais, parece grosseiramente inconsistente com a obra posterior de Nietzsche, que, na sua Genealogia, por exemplo, afirma ter descoberto muitas verdades “desagradáveis” sobre as origens da moral.
Podemos lidar com este último problema seguindo os trâmites habituais da exegese acadêmica: há períodos diferentes no desenvolvimento de Nietzsche, este mudou de ideias; deixou de acreditar que havia uma verdade em si à qual ninguém tinha acesso, ou que todas as afirmações são forçosamente “falsas”; numa acepção relativa e perspéctica, algumas coisas podem, afinal, ser tidas como verdadeiras, ou sê-lo nos termos de uma assertividade legítima, mas improvável - e por aí fora. (Maudmarie Clarke foi tão longe quanto possível nesta via, e com tanto detalhe quanto é possível a quem seguir essa direção, ao argumentar que a ruptura decisiva surge em 1882, na seção 54 de A Gaia Ciência, em que a própria possibilidade conceitual de uma coisa em si é rejeitada).11
Mas já neste texto Nietzsche afirma que “A ‘coisa em si’ […] é algo de incompreensível [unfasslich] para o criador da linguagem e, ao mesmo tempo, algo que não vale de todo a pena procurar alcançar” (VM 1, KSA 1.879) (estritamente falando, isto significa que o argumento de que a linguagem terá forçosamente de apreender erroneamente as coisas, i.e. as coisas em si, é, ele próprio, “incompreensível”). Contudo, como acontece em muitas outras obras deste período, o alvo do seu ataque não é uma teoria geral da possibilidade da verdade. O seu ataque aponta antes ao tipo de verdades que “o homem da verdade, o cientista, o filósofo” (Ibid.) quer estabelecer, e à razão pela qual as quer estabelecer. É isto que suscita o desprezo e o ceticismo de Nietzsche. Todo o argumento realista que procure estabelecer a existência de “qualidades essenciais” e as esperanças redentoras no conhecimento do real, não aparências, é, e continuará a ser sempre, o seu alvo ao longo de todo o seu percurso. Em particular, terá sempre a mira apontada àqueles que consideram que tais verdades podem ser estabelecidas mediante um exame dos compromissos que assumimos ao usar a linguagem.
São as verdades filosóficas e potencialmente redentoras (ou “justificadoras” da vida) que melhor são compreendidas como sendo “realmente” um “exército móvel de metáforas” etc. É em virtude de tais qualidades estéticas, Nietzsche vai argumentando neste ensaio, que elas poderão servir de justificação (no sentido particular em que a “vida” pode ser justificada), pese embora o “esqueçamos” e tentemos ligar asserções sobre a “honestidade” e a “essência” (para recorrer a dois dos seus exemplos) a propriedades reais, existentes no mundo. Na ausência desse conforto e confirmação realistas, a função redentora de tais verdades teria fracassado, ou é nisso que somos levados a acreditar “depois de Sócrates”.
É este o argumento central, afinal de contas, do início parabólico do ensaio sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral - o qual cito aqui na sua versão completa, endereçada a Cosima Wagner em 1872:
Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares houve em tempos um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais cheio de soberba e hipocrisia da história universal, mas foi só um minuto. Depois de a natureza ter respirado algumas vezes, o astro arrefeceu, e os animais inteligentes tiveram de morrer. Também já era tempo, pois embora se vangloriassem do quanto tinham compreendido, no final compreenderam, para seu grande dissabor, que tinham compreendido tudo falsamente. Morreram e, ao morrerem, amaldiçoaram a verdade. Tal era a natureza destes animais desesperados, que tinham inventado o conhecimento. (CP 1, KSA 1.750-760)
Tal como O Nascimento da Tragédia, esta passagem descreve uma espécie de morte natural (ou histórica) da esperança socrática no conhecimento. Um minuto de conhecimento é o suficiente para descobrimos que não sabemos o que precisamos de saber para viver, e morremos a amaldiçoar a verdade. Neste e em muitos outros ensaios deste período, a atenção de Nietzsche está voltada para as expectativas depositadas no conhecimento filosófico, e os seus comentários procuram sempre mostrar que, na medida em que tais asserções podem desempenhar funções redentoras ou justificadoras, responder a Sileno, ou oferecer uma resposta à pergunta elementar “Wozu leben?”, fazem-no esteticamente, sem que ofereçam qualquer resposta cognitiva. Por outras palavras, só à luz dos pressupostos comuns à tradição socrático-filosófica, segundo os quais um conhecimento redentor da realidade em si mesma e, por conseguinte, da Ideia do Bem, é aquilo que mais precisa de ser alcançado, é que tais asserções acabarão por se revelar como “falsas”.
Que esta é a questão que interessa a Nietzsche - que tipos de “verdades” poderiam “fazer” aquilo que Sócrates reivindica para elas, isto é, fazer a vida valer a pena; e se tais verdades são possíveis - torna-se evidente com base nas outras discussões do mesmo período. Num conjunto de fragmentos de 1872 sobre a figura do Filósofo (“Reflexões sobre a Luta entre Arte e Conhecimento”, NL 1872, 19[98], KSA 1.452), Nietzsche escreve:
O filósofo do conhecimento trágico. Domina a pulsão descontrolada para o conhecimento [den entfesselten Wissenstrieb, uma pulsão que, no texto de Nietzsche, diz frequentemente respeito ao problema das esperanças filosóficas, não é a pulsão para a verdade em si mesma], não através de uma nova metafísica. Não estabelece uma nova fé. Sente como trágico o facto de o chão da metafísica lhe ter sido retirado, e nunca se deixará satisfazer com o jogo variegado e rodopiante das ciências. Cultiva uma vida nova; devolve à arte o que lhe é de direito (NL 1872-73, 19[35]).
Mais adiante, no mesmo caderno, lê-se:
Ser inteiramente veraz - o prazer nobre e heróico do ser humano, no meio de uma natureza que é mentirosa. Mas isto só é possível [e sublinho, enfaticamente, que, para Nietzsche, é possível] num sentido muito relativo. Isso é trágico. É esse o trágico problema de Kant! A arte adquire agora uma dignidade nova. Em contrapartida, as ciências perdem um certo grau de dignidade (NL 1872, 19[104]).
A veracidade da arte: só ela, agora, é honesta.
Assim, após um imenso desvio, voltamos de novo à condição natural (a dos gregos). Revelou-se impossível construir uma cultura com base no conhecimento (NL 1872, 19[105]).
V
Mas, por fim e em contrapartida, como é possível que uma “justificação” estética ou religiosa ou não filosófica sirva de base a uma “cultura”? E porque “agora”? - esta é uma questão que exige alguma que se dê alguma atenção à forma como Nietzsche trata o cristianismo. Estas interrogações conduzem-nos de volta à questão geral: qual, na óptica de Nietzsche, poderá ser uma possível justificação da vida, o que implica e, em particular, o que está implicado quando ela falha? Há elementos da sua abordagem que se destacam pela sua clareza, embora muito poucos sejam claros. É suficientemente claro que Nietzsche aborda o problema de uma vida possível (uma vida que pode ser afirmada, e solidamente sustentada, ao longo do tempo) como um problema geral de teleologia prática e, por conseguinte, de finalidade. “Conduzir” uma vida implica ter um sentido abrangente daquilo que vale a pena suportar, arriscar, sacrificar etc., um sentido que nos proporcione uma hierarquia, e dê coerência às decisões (uma vez mais, o exemplo mais claro é, para Nietzsche, o mais estranho: os filósofos, que ao longo da sua vida almejam afincadamente algo que poderá nem sequer existir, a sabedoria, pelo que se poderá dizer que amam não a vida, mas a morte, o que deve existir depois ou para além da vida). É também muito claro que ele não pensa que este “sentido” orientador possa ser um princípio ou norma racional, ou que possa ser alcançado por via de uma verdade filosófica. Para citar novamente de Gotzendammerung:
Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem, em última análise, ser verdadeiros: têm valor apenas como sintomas - em si mesmos, tais julgamentos são idiotices. É preciso estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de apreender esta espantosa finesse, o facto de o valor da vida não pode ser estimado (CI O problema de Sócrates 2, KSA 6.68).
No entanto, é ainda insuficientemente clara a razão que leva Nietzsche a pensar que tais princípios, leis morais, normas racionais, evidências filosóficas sobre a hierarquia natural não nos poderiam oferecer este sentido orientador. Por um lado, ele pensa que, historicamente, já dispomos de provas suficientes nesse sentido. Estes elementos não se mostraram capazes de cumprir tal função orientadora, que serviria de sustentação à vida. E, depois de Kant, as perspectivas só pioraram. A experiência socrática desembocou no niilismo. Por outro lado, sugere Nietzsche, só se “as coisas como realmente são”, ou a natureza dos universais ou o que Deus realmente quer, forem já importantes para mim é que um tal empreendimento poderia sustentar e ajudar a afirmar a minha “vida”. Saber que lei pode ser tida como inapelavelmente vinculativa para todos os agentes racionais poderá ser algo interessante de determinar, mas não há nada intrínseco a essa determinação, insiste Nietzsche, que pudesse explicar por que razão tal conclusão deve importar, ou ter valor, para mim (de fato, como ele sugere sempre, se tentarmos explicar esse “ter-importância”, “ter-valor” em tais casos, acabamos sempre por detectar uma psicopatologia, ou sentir seu cheiro; somos assim empurrados para a linguagem do medo, do ressentimento, da cobardia etc.) E é também claro, por fim, que a intenção Nietzsche é a de enquadrar este problema, o saber de que forma as finalidades e os tele poderão vir a importar, não “naturalmente” ou “individualmente”, mas num plano cultural e histórico mais amplo: para os gregos, ou para o Ocidente, ou para o Cristianismo.
A linguagem estética dos primeiros ensaios de Nietzsche sugere que ele pensava que a experiência do drama trágico teria um “efeito estético” próprio, uma “exibição” ou apresentação ou aparência que fosse orientadora e “justificadora” de si própria; que participar nessas experiências, e só nessa experimentação, poderia gerar uma tal experiência do sentido das coisas; e que ele pensava que nenhum princípio moral ou político poderia ser “eficaz” ou motivador na ausência desse “efeito” (isto é, sem aquilo a que Schiller e mesmo Kant perfilharam como a Versinnlichung das ideias).
Assim, na Segunda Consideração Extemporânea, “Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida”, diz que, num certo sentido, a nossa compreensão da história pode ser “a favor da vida”, ou hostil à vida, ou irrelevante para a vida, e Nietzsche esforça-se por deixar claro que isto nada tem que ver com o que gostaríamos que fosse verdade sobre o passado, como se pudéssemos fingir que alguns acontecimentos ocorreram ou não, e nada que ver, igualmente, com um cepticismo geral quanto à objetividade na história, nem tampouco com um qualquer argumento de que toda a escrita da história não passa de um exercício de poder ao serviço de uma determinada visão da vida. Na verdade, a história antiquária e monumental exige que sejamos capazes de estar certos de muita coisa sobre o passado, e a história crítica só o será se for verdadeiramente libertadora. O problema prende-se, antes, com a função de um “sentido histórico”, ou surge quando alguma atitude perante o passado começa a funcionar de uma forma “justificadora da vida”, assumindo um papel que não é nem justificado nem desmentido por qualquer facto sobre o passado, ou quando o sentido histórico começa a funcionar “esteticamente”, à semelhança do “ponto de vista trágico”. Consequentemente,
O sentido histórico, quando reina dr forma descontrolada [ungebändigt] e extrai todas as suas consequências, extingue o futuro pois destrói as ilusões e rouba das coisas existentes a atmosfera sem a qual não podem viver. A justeza histórica, mesmo quando é efectivamente exercida e com pura conscienciosidade [sublinho que Nietzsche admite a possibilidade de tais virtudes], é por isso mesmo uma virtude terrível, por sepultar e sabotar o que vive: o seu julgamento é sempre um aniquilar [ihr Richten ist immer ein Vernichten] (CE II, KSA 1.295).12
Considerações finais
Quando “a justiça reina sozinha”, prossegue Nietzsche, “o instinto criador é enfraquecido e desanimado” e, sobretudo, “apenas no amor, apenas nas sombras da ilusão do amor é que o homem cria […]” (CE II, KSA 1.296). “Todo aquele que é obrigado a já não amar incondicionalmente tem as raízes da sua força arrancadas de si”, e “talvez somente quando a história suportar transformar-se em obra de arte […] poderá conservar ou mesmo despertar os instintos” (Ibid.).
Esta “atmosfera” que deve “rodear cada ser vivo” para que ele viva, um “círculo de névoa e mistério”, ou “uma ilusão nevoenta […], uma nuvem envolvente e protetora” (CE II, KSA 1.298), não é tratada como wishful thinking, ou como uma ilusão que apenas projetássemos para nós mesmos, mas sim em termos de um crescimento orgânico, daquilo que vai “nutrir” ou ajudar a “amadurecer” e, por conseguinte, como um problema da esfera do eros, e não da vontade ou da criação na sua acepção romântica. O problema constitui um problema porque, como Nietzsche vai sugerindo insistentemente, a “possibilidade básica de conduzir uma vida” tem como eixo fundamental a questão do eros, e nós compreendemos pouco ou nada sobre as condições de possibilidade de o desejo ser despertado e sustentado. É por demais claro que não é por via de argumentos que o eros é excitado e sustentado, e não menos claro que Nietzsche quer invocar de novo a velha oposição platônica entre justiça e eros, reconhecendo que existe uma profunda (ou trágica) incompatibilidade entre eles, mas insistindo que isto não pode ser simplesmente “resolvido” à maneira da República, ou seja, favorecendo a justiça, arredando os poetas, fazendo exercício físico nus, pela eugenia, com casamentos ditados por números, com o eros como o “monstro de muitas cabeças” do Livro IX13. Isto porque, sugere Nietzsche, precisamos de um eros para a justiça, para a grandeza, para uma medida absoluta, um eros que, em si mesmo, não pode ser medido de forma justa, pois deve ser espontâneo, daimónico. Daí, uma vez mais, a verdade mais profunda destas primeiras obras:
Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado (NT 9, KSA 1.71).
Referências
CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
JÄHRIG, D. Welt-Geschichte: Kunst-Geschichte. Köln, 1975.
LAMPERT, L. Nietzsche's Teaching. New Haven: Yale University Press, 1986.
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Trad. de Helga H. Quadrado. Lisboa: Relógio d’Água, 1997.
NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, F. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. São Paulo: Hedra, 2017.
PLATT, M. What does Zarathustra Whisper in Life's Ear. In: Nietzsche-Studien 17. Berlin: De Gruyter, 1988. p. 174-194.
VOLKER, G. Pathos und Distanz. Stuttgart: Reclam, 1988.
Notas
Autor notes