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O processo de orientação de Nietzsche em seu apontamento de Lenzerheide, de 7 de junho de 1887a
Nietzsches orientierungsprozess in seiner Lenzerheide-aufzeichnung vom 7. juni 1887
Nietzsche's orientation process in his Lenzerheide notes of june 7, 1887
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 234-277, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana

Artigo


Recepção: 06 Fevereiro 2022

Aprovação: 26 Maio 2022

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.34.062.DS11

Resumo: O apontamento-Lenzerheide, de 7 de junho de 1887 é considerado um texto central sobre o entendimento de Nietzsche a respeito do niilismo. Ele o redigiu num trem, na estação entre Chur e Sils Maria, depois de ter concluído o quinto livro de A Gaia Ciência, seu mais corajoso, profundo e sereno livro de aforismos, e, portanto, antes de ter redigido em Sils Maria, em poucas semanas, as três dissertações de Para a Genealogia da Moral. Entre ambas as coisas, parece que ele tentou tornar claro para si o todo de seu pensamento, e, nesse processo, particularmente a conexão dos temas suscitados em Assim Falou Zaratustra: os temas do niilismo, do além-do-homem, da vontade de poder, do eterno retorno do mesmo e da ordem de escalonamento (Rangordnung2). Na maioria das vezes, isto foi compreendido de um modo tal que Nietzsche, com isso, aproxima-se mais fortemente de um “sistema” como, em particular, Alfred Baumler e Martin Heidegger tentaram construí-lo. A nova edição do espólio de Nietzsche, na transcrição diferenciada da Seção IX3 da edição completa das obras de Nietzsche permite conhecer mais precisamente como Nietzsche se orientou em seu pensamento e como elaborou, passo a passo, seus pensamentos. Neste estudo, o apontamento de Lenzerheide é lido tendo em vista o processo de orientação que nele se realiza, e são tornadas claras as decisões de orientação que Nietzsche toma de parágrafo para parágrafo. Ao final, não resulta daí nenhum sistema, mas um distanciamento da “magia do extremo”, que Nietzsche primeiramente segue, ao longo de muitos parágrafos. Nietzsche medita (besinnt) sobre os pontos extremos de seu filosofar, e os retoma. Ele só faz isso aqui, no apontamento-Lenzerheide. Isso significa que, também com o niilismo, tem-se que viver comedidamente (maßvoll).

Palavras-chave: Apontamento-Lenzerheide, niilismo, eterno retorno, magia dos extremos, moderação (Mäßigung).

Zusammenfassung: Die Lenzerheide-Aufzeichnung vom 7. Juni 1887 gilt als der zentrale Text zu Nietzsches Verständnis des Nihilismus. Er hat sie auf der Station zwischen Chur und Sils-Maria erkennbar auf einen Zug niedergeschrieben, nachdem er das V. Buch der Fröhlichen Wissenschaft, sein mutigstes, tiefstes und gelassenstes Aphorismenbuch, abgeschlossen hatte und bevor er dann in Sils-Maria innerhalb weniger Wochen die Abhandlungen Zur Genealogie der Moral verfasste. Dazwischen scheint er versucht zu haben, sich über sein Denken im Ganzen und dabei insbesondere über den Zusammenhang der herausgehobenen Themen aus Also sprach Zarathustra, der Themen des Nihilismus, des Übermenschen, des Willens zur Macht, der ewigen Wiederkehr des Gleichen und der Rangordnung, klar zu werden. Das ist meist so verstanden worden, dass er sich hier am stärksten einem ,System‘ annähert, wie es insbesondere Alfred Baeumler und Martin Heidegger zu konstruieren versucht hatten. Die neue Edition von Nietzsches Nachlass in differenzierter Transkription in der IX. Abteilung der Kritischen Gesamtausgabe von Nietzsches Werken lässt nun genauer erkennen, wie Nietzsche sich in seinem Denken orientiert und seine Gedanken schrittweise erarbeitet hat. In dieser Studie wird die Lenzerheide-Aufzeichnung im Blick auf den Orientierungsprozess gelesen, der sich in ihr vollzieht, und werden die Orientierungsentscheidungen deutlich gemacht, die Nietzsche von Abschnitt zu Abschnitt trifft. Daraus ergibt sich am Ende kein System, sondern eine Distanzierung von der „Magie des Extrems“, der Nietzsche über viele Abschnitte zunächst folgt. Nietzsche besinnt sich auf das Extreme seines Philosophierens und nimmt es zurück. Das tut er nur hier in der Lenzerheide-Aufzeichnung. Man muss, bedeutet das, auch mit dem Nihilismus maßvoll leben können.

Schlüsselbegriffe: Lenzerheide-Aufzeichnung, Nihilismus, Ewige Wiederkunft, Magie des Extrems, Mäßigung.

Circunstâncias e Caráter do Apontamento-Lenzerheide

No V Livro de A Gaia Ciência, no qual Nietzsche elaborou seu filosofar com nova densidade e profundidade, livro publicado no final de junho de 1887, depois que ele o concluíra definitivamente, no final de abril de 1887, não comparecem mais os temas do além-do-homem e do eterno retorno, que ele tinha elaborado, em grande medida, em Assim Falou Zaratustra; os temas da vontade de poder e dos senhores da Terra permanecem nos bastidores. Isso é tanto mais notável porque Nietzsche anexou por fim o quinto livro de A Gaia Ciência aos quatro livros publicados primeiramente em 1882, que conduzem à “gravidade” do eterno retorno e ao surgimento de Zaratustra. Ele deveria mostrar, em tom jovial, como lidar com o trágico advento do niilismo, e tornou-se, ao mesmo tempo, o mais sereno e mais pregnante dos livros aforismáticos de Nietzsche1. O livro tratava detalhadamente da questão da compreensibilidade, mas não tornava claro como os temas tratados se conectavam; no ponto central colocavam-se, ao invés disso, as vinculações e liberdades do filosofar. A visão de conjunto ficava a cargo do leitor. Manifestamente, o próprio Nietzsche experimentou aqui uma falta. Ainda durante a redação conclusiva do V livro de A Gaia Ciência, em março de 1887, ele escreve ao amigo de confiança, Franz Overbeck: “a coerção [...] está posta sobre mim com o peso de cem toneladas, construir nos próximos anos um edifício articulado de pensamentos […]!”2.

Um começo para tanto, o mais grave em seus escritos, Nietzsche o faz em 7 de junho de 1887, na localidade alpina de Lenzerheide, que precisamente se desenvolve para um local de cura. De início ele ainda está indeciso a respeito de onde ele quer passar o verão: se de novo em Sils-Maria, ou em outra parte. Ele esperou quatro semanas em Chur, um vale dos Alpes renanos, até que a Engadina não estivesse mais tão fria, e as passagens estivessem livres da neve; e ele aproveitou o tempo para leituras na biblioteca, entre outras também leituras sobre Spinoza e sobre o Budismo. Os ensinamentos de seu Zaratustra, que ele, por fim, mantivera retidos, movimentam-no de novo. Manifestamente num trem, sem uma prévia divisão, e quase sem correções posteriores, ele redige um panorama não sobre os complexos temáticos altamente diferenciados de Para Além de Bem e Mal e do V Livro de A Gaia Ciência, mas sobre os grandes temas de Zaratustra e sua significação para a vida dos homens, agora e no futuro. E nisso ele vai longe, regressando até os primórdios da história espiritual da Europa. Dessa vez ele anota não apenas, como o faz tão frequentemente, palavras-chave, miolos de sentenças e títulos, mas redige o assim chamado “apontamento-Lenzerheide”: um texto cursivo com 11 páginas de caderno em 16 parágrafos numerados; isso, porém, a lápis, que ele, de resto, utiliza, na maioria das vezes, para rápidas anotações. Esse não é nem um “fragmento”, nem uma mera “anotação”, nem ainda uma “versão preparatória” (Vorstufe) para um escrito posteriormente publicado, mas um texto de espécie peculiar. Ele é detalhadamente formulado e em grande parte poderia ter sido publicado da forma como se encontra. Ele teria contribuído muito para o entendimento da filosofia de Nietzsche, para ele mesmo e para seus leitores e leitoras, e, como apontamento, também contribuiu para tanto. No entanto, Nietzsche não o promoveu para impressão. Por quê? Só vamos poder responder a essa pergunta depois de ter percorrido seu processo de orientação, tal como ele se documenta no apontamento.

Nietzsche parece tê-lo iniciado espontaneamente e tê-lo redigido num ímpeto. Não se encontram planos para ele, e o título “O Niilismo Europeu”, só lhe foi conferido retroativamente, como se pode reconhecer - ele o acrescentou na parte final inferior da página anterior do caderno de notas, onde ainda deixava lugar o esboço de um escrito de condolências. Apenas isso não é algo inusitado em seu trabalho. No entanto, é inusitado que ele tenha, com efeito, manifestamente acrescentado algumas poucas complementações e correções durante a escritura, mas que não tenha retrabalhado o texto em seu todo, como ele frequentemente fazia, numa versão ulteriormente desenvolvida e reescrita. Durante ou depois da escritura, ele deve ter tomado a decisão de não publicá-lo ou, de todo modo, não publicá-lo assim. O apontamento-Lenzerheide permaneceu como tal, e pertence inteiramente ao espólio. Dessa forma, ele permite ainda mais lançar um olhar no espontâneo e filosófico processo de orientação de Nietzsche. Como quase nenhum outro texto, ele torna claro como, para Nietzsche, se produzem passo a passo as conexões de seu pensamento - provisoriamente e em tela de juízo, e visivelmente sem meta previamente concebida3.

O apontamento-Lenzerheide [L]4 encontra-se no caderno de notas N VII 3, que Nietzsche utilizou, de acordo com Mette e Montinari, do verão de 1886 até o outono de 18875, em uma curiosa ambientação. Nietzsche anota também aqui principalmente projetos de pensamentos filosóficos, para então elaborá-los posteriormente. Entre outras coisas, ela faz planos com vistas à Para a Genealogia da Moral, que ele, então rapidamente redigirá em Sils - para onde ele parte de novo; e lista para ela 53 temas ainda sem ligação (p. 131-121, escritas de trás para frente). No interior dessa listagem, são registrados insights explosivos, como “o princípio de conservação de energia exige o eterno retorno” (p. 122); ao lado disso‚ “1. Causalismo - tudo é vontade/contra vontade/ 2. Não existe nenhuma vontade” (p. 179). Ele também projeta páginas de rosto/título, agora Para a Genealogia da Moral (p. 154, p. 34) que, portanto, ele já tinha em mente, mas também para outras obras, como “Dionysos filósofo”, e um prosseguimento de Assim falou Zaratustra (“Dos Homens Superiores. Ou: A Tentação de Zaratustra”, p. 79 f.); ele projeta também um plano ulterior para “A Vontade de Poder. Ensaio de uma Transvaloração de Todos os Valores” (p. 33). Antes disso, depois disso, em meio a isso, e por vezes sobre isso ele anota simultaneamente o necessário para as “coisas próximas”: rol de coisas a providenciar (meias, luzes, penas de aço, Maggi, chá, açúcar, livros); e a resolver (“dar corda no relógio”, “lavar a luva”, escrever cartas para...); também uma tabela para um plano de dieta mensal, que ele, porém, não cumpre, endereços de fornecedores, e ainda destinos de viagem, locais de refeição, disposições para viagem (Turim - Sils - Nizza), lista de nomes para envio de exemplares de autor, projetos de cartas, entre outras uma para a irmã, para evitar pedidos de dinheiro para seus planos antissemitas, informações sobre uma oferta de habitação em Celerina, e sobretudo sempre detalhadas listas de despesas. O que é filosoficamente mais profundo encontra-se ao lado do que é o mais cotidiano; num deles, Nietzsche lembra-se do outro. Ele escreve também tal caderno, quanto ao principal, de trás para frente, mas, visivelmente, uma vez primeiro a partir do lado esquerdo; outra vez a partir do lado direito; por vezes também, ao longo de muitas páginas, escreve projetos de títulos de atravessado, ou de ponta cabeça; algumas coisas cuidadosamente com tinta, outras são rapidamente lançadas a lápis6.

Contrariamente a isso, o apontamento-Lenzerheide encontra-se de modo francamente monolítico nas páginas 13-24. O instrumento de escrita não se altera, o curso da escrita é muito regular e as distâncias entre as linhas tornam-se simplesmente maiores com o tempo; no fluxo da escrita, os traços podem ter se afrouxado. Aqui Nietzsche escreve no caderno na sequência usual, de frente para trás, e sem deixar livres, como de costume, os versos das páginas para ulteriores considerações. O apontamento é retroativamente datado “apontamentoLenzer Heide 10 de junho de 1887”; o título, retroativamente acrescentado, é sublinhado várias vezes e emoldurado duas vezes. Nietzsche raramente fazia datações, na maioria das vezes apenas quando ocorrências pareciam a ele particularmente importantes; também não é comum o duplo enquadramento.

O Apontamento-Lenzerheide como processo filosófico de orientação

Ponto de partida dos “preconceitos” da “hipótese-moral {cristã}”

No próprio apontamento, Nietzsche inicia expressamente com uma “hipótese”, que ele denomina “hipótese-moral”. Ele não parte de um saber ou de uma certeza, também e justamente não em coisas de moral, a cujos “preconceitos” ele anteriormente dedicara vários livros de aforismos. Ele também deixa de lado quem levantou essa hipótese. Para si próprio, ele não precisa notar isso em especial. Em regra, pensa ele, a esse respeito, por um lado em Sócrates, por outro lado em Paulo. Quanto à moral que eles mesmos propagaram, ambos, porém, não pensavam em hipóteses; eles a consideravam como certa e verdadeira. É hipótese de Nietzsche que “a moral” ou, mais precisamente, uma determinada moral, cunhou a cultura e a história espiritual da Europa; mas, resumindo, ele a apresenta como a hipótese da própria Europa. Ele não a submete à prova, em vista de seu teor de verdade, como costuma acontecer com hipóteses; para ele, é claro desde há muito tempo, que ela não tem nenhum teor de verdade, mas é apenas “preconceito”. Ao invés disso, ele pergunta pelas “vantagens” da “hipótese-moral” para a “vida”. Para Nietzsche, ela não tem seu sentido nela mesma, como a filosofia e a teologia permanentemente tentaram mostrar; ela só tem sentido como “um meio de conservação” que literalmente dá sustentáculo “ao homem”. Ela tem uma função de orientação: Nietzsche suspeita nela “o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico”, que ameaça com desorientação, angústia e desespero. De acordo com isso, importa a Nietzsche desde o princípio o sustentáculo da orientação humana no niilismo ameaçador.

Como a diferenciada transcrição da KGW IX mostra, Nietzsche acrescenta posteriormente o complemento “{cristã}”: a “hipótese-moral” que ele tem em vista não é, com efeito, exclusivamente cristã, todavia é só por meio do Cristianismo que ela adquiriu todo seu peso na Europa (“o Cristianismo é Platonismo para o povo”; BM, Prefácio). Aqui Nietzsche pode ter-se lembrado do apontamento no caderno de notas W I 8, que ele usou entre o outono de 1885 e o outono de 18867. Os parágrafos desse apontamento muito menos abrangente são também enumerados - aqui, no entanto, retroativamente -, primeiro em algarismos arábicos em oito pontos; em seguida em algarismos romanos em quatro pontos, processo em que Nietzsche inverte a numeração depois do ponto 8: um originário nono (9) ponto torna-se o ponto I. Portanto, ele faz também aqui a tentativa de criar para si uma ordenada visão de conjunto, hesita, porém, na ordenação. E aqui ele começa na primeira camada de texto com “O ocaso do Cristianismo - em sua moral”. Numa próxima camada, ele acrescenta na margem superior, do lado esquerdo: “[C a] {1. Ponto de partida: é um erro indicar ‘necessidades sociais constringentes’ ou ‘degenerescências fisiológicas’ ou até corrupção como causas do niilismo. Estas sempre ainda permitem interpretações inteiramente diferentes. Mas numa interpretação totalmente determinada: na cristã-moral incrusta-se o niilismo}”.

Não se trata, portanto, de moral em geral, mas de uma determinada moral, a moral cristã. E Nietzsche faz esta moral cristã responsável por uma determinada figura do niilismo, que ele aqui determina como “{a {radical} recusa de valor, sentido, desejabilidade}”. Numa outra camada de texto, na parte de cima, do lado direito, ele acrescenta: “[C b] {necessidade constringente, necessidade anímica, corporal, intelectual em si não é capaz, em absoluto, de produzir o niilismo, isto é, a {radical} recusa de valor, sentido, desejabilidade}”.

Ele assume isso como premissa no apontamento-Lenzerheide. De acordo com isso, o Cristianismo reage ao niilismo originário ou “primeiro”, a recusa - ou, quando também se olha para o processo (Tatbestand) que então se mostra -, a simples ausência de “valor, sentido, desejabilidade”, com uma específica moral que agora, depois que ela começa a tornar-se questionável e indigna de fé, demonstra-se como mera “hipótese-moral”. Mas com a angústia perante o niilismo, que mostra claramente a ausência de valor e sentido, e com isso sua mera desejabilidade, a Europa permaneceu sob o sortilégio do niilismo, sua moral é devida a ele, e tornou-se assim, ela mesma, uma espécie de niilismo. E essa espécie, por sua vez, manteve a filosofia europeia sob seu sortilégio8.

Cabia a Nietzsche o desvelamento deste niilismo secundário, cristão e filosófico. Com isso, viria novamente à tona o niilismo originário, primário. Nesse sentido, Nietzsche antepõe ao apontamento no caderno de notas W I 8, em cima, do lado esquerdo, numa outra camada de texto, a frase tornada célebre: “[C c] {{O niilismo está à porta: de onde nos vem este mais ominoso de todos os hóspedes?}}”

Os pontos singulares desse apontamento [C] tratam então do “ocaso do Cristianismo” por sua própria moral, desde então estabilizadora da orientação humana, e pelas consequências a serem esperadas. O Cristianismo perece, como Nietzsche pretende demonstrar, por sua própria moral: ele produziu, como Nietzsche já tinha tornado claro em GC 357, um “sentido de veracidade”, que por fim volta-se contra ele mesmo, e, por meio disso, desvela como “mendacidade” a fé em Deus que salva do niilismo originário, cujos mandamentos foram edificados como moral vigente. No prefácio quase simultâneo para a nova edição de Aurora, Nietzsche apreende essa figura como “autossuprassunção da moral” (A, Prefácio 4)9. A formulação reaparece então nas proximidades do apontamento-Lenzerheide,10 entretanto topologicamente separada por meio de cálculos de custos, planos de viagem e minutas de carta.

No prosseguimento de [C], Nietzsche toca nas consequências da autossuprassunção da moral na religião, na ciência, na política e na arte. Ele mantém também em vista o “Budismo indiano”, e pergunta aqui sobretudo como a “ciência” lida com o redescoberto niilismo. Como reação à “falta de sentido” da existência, uma vez que a ciência ainda acredita na verdade, poderia vir à tona a “anti-cientificidade” que conduz à “auto decomposição” (Selbstzersetzung) da ciência. Com [a formulação, OGJ.11]‚” {desde Copérnico o homem rola a partir do centro para o x}”, que Nietzsche anota no canto inferior esquerdo, do lado esquerdo, sem clara ordenação em relação ao resto, e então assume em Para a Genealogia da Moral (III 25), ela mesma conduziu à proximidade do niilismo originário. Politicamente, sustenta Nietzsche nos pontos 6-8 deste apontamento em W I 8, o niilismo manifesta-se agora como “nacionalismo” e “anarquismo”, nos quais Nietzsche, em igual medida, vê manifestações de dissolução; de modo mais distante na historiografia e no “romantismo” tornado arte - também aqui não falta a indicação ao romantismo de Wagner. De acordo com Nietzsche em [C], tudo isso, porém, poderia também ser o “grande ponto de partida” de uma “elevação do homem”, a saber, se nesta necessidade constringente se encontrasse o “estamento redentor, o homem, o justificador”. Pensar-se-ia na figura do Além-do-Homem, mas Nietzsche não o nomeia; dos grandes ensinamentos de Zaratustra, ele menciona apenas a vontade de poder, também não o eterno retorno.

No que diz respeito ao eterno retorno, isto se altera no texto concentrado do apontamento-Lenzerheide [L]. Primeiramente, Nietzsche diferencia, no primeiro parágrafo, os “preconceitos” da moral cristã em três pontos: 1. Eles dão um sustentáculo ao homem singular, ao conferir a ele um valor absoluto, apesar de sua pequenez e casualidade no fluxo do devir e do passar. Nietzsche vê aqui o núcleo da moral cristã: todos os homens devem ter um valor absoluto, portanto incondicional; e eles o têm, se bem que nem de longe na ordem social, mas sim perante Deus, excelso sobre todas as coisas, em quem se crê. 2. A moral cristã serve aos “advogados de Deus” a todos aqueles que publicamente a defendem: pois eles podem conferir “ao mundo {apesar do sofrimento e do mal} o caráter da perfeição” - ao conferir simultaneamente aos homens “aquela liberdade”, com base na qual eles próprios podem ser feitos responsáveis pelos sofrimentos e pelo mal. Desse modo, como Nietzsche ainda acrescenta no texto, por toda parte o mal adquire {“sentido”}: o sentido de compreender isso como castigo por ações contrárias à moral cristã. A imperfeição do mundo é justificada às custas dos homens, que têm de penar sob ela; e os teólogos e filósofos, por meio disso, conquistam poder sobre os homens. 3. Em suas justificações, eles pressupõem “no homem um saber” a respeito de valores absolutos e, com isso, apoio em um saber incondicional. Para isso, Nietzsche utiliza a fórmula de Spinoza do “conhecimento adequado”, na qual confluem ética e metafísica.

A filosofia de Spinoza harmoniza-se com o Cristianismo, mesmo que o judeu Spinoza não se reporte diretamente a ele. Ele, porém, [Spinoza, OGJ.] considera diferentemente o “conhecimento adequado”; e já indica com isso um caminho para fora do niilismo: ao excluir todo desejar e esperar, com ajuda de seu método matemático, (mos geometricus), ele quis tornar pensável que só se poderia amar a realidade efetiva, tal como ela é - caso se tivesse dela um conhecimento adequado. Poder-se-ia perscrutá-la em todas as suas conexões, ver seu perfeito acoplamento, e se poderia então somente amá-la, mesmo aquilo em que primeiramente se visse o mal. Os males e o sofrimento que há neles dissolvem-se e, assim, ninguém seria culpado por eles. Com esse panteísmo, com a aptidão para ver Deus em tudo e, com isso, a absoluta valorização do universo e do homem nele, Spinoza teria chegado ao mesmo tempo muito perto do ateísmo: pois se Deus tem de ser conhecido em sua criação, na natureza, e em nenhuma outra parte, então não se pode diferenciá-lo dela; e se poderia então, de igual modo, dizer que ele não existe. Se essa era a consequência lógica do Cristianismo e também já do Judaísmo, que produziu o Cristianismo, então ela salvaria do niilismo: ela o desnudaria e o transvaloraria, ao mesmo tempo - poderíamos dizer, de modo igualmente válido, tanto que “nada tem sentido” como que “tudo tem sentido”; em nome de Deus, dizer-sim tanto à ausência de sentido quanto à significatividade (Sinnhaftigkeit) da natureza. Um tal paradoxo paira também diante de Nietzsche; a partir da fórmula amor dei intellectualis [amor intelectual de Deus] advém então a fórmula amor fati [amor do destino]. Desse modo, Spinoza permanece como um importante ponto de referência no prosseguimento do apontamento-Lenzerheide.

No apontamento em W I 8 ([C]) Nietzsche já tinha constatado que a moral cristã estaria em “declínio”; e, em virtude disso, seu tempo seria aquele no qual o niilismo originário tornar-se-ia de novo consciente. Na ambiência próxima do apontamento-Lenzerheide, em acréscimo, ele anota no N VII 3 (de novo em meio a cálculos de despesas e planos de viagem; ele lista ali também possíveis “passeios a pé” em Lenzer Haide):

[U] Niiilismo: declínio de uma {(a saber, da moral)} avaliação global {faltam as novas forças interpretativas}

Para a história dos valores

A vontade de poder e suas metamorfoses

{(o que foi a vontade de moral até aqui)}

O eterno retorno como martelo12.

Sobre isso, na primeira camada, ele reuniu pontos de divisão como 1. Filosofia da história. 2. Psicologia. 3. Cultura dos gregos. 4. Filosofia da moral. 5. História da filosofia grega; pontos sobre os quais ele, porém, escreveu de novo, tornando-os ilegíveis. As palavras-chave citadas acima, ao contrário, são mantidas livres das re-escrituras, de modo que elas permanecem bem visíveis. Nietzsche poderia tê-las usado como formulário (Merkblatt); ele as retrabalha no apontamento-Lenzerheide, sem que elas prescrevam um plano para este: a avaliação global moral sucumbe, mas não são visíveis as “forças interpretativas” de uma nova orientação. Assim, oferece-se para isso a vontade de poder livre da moral: ela é capaz de “metamorfoses”; pode tornar-se também uma vontade de moral, que pode então colocar-se contra a vontade de poder; mas que, por fim, tem de conhecer a si mesma como vontade de poder, e com isso tem de suprassumir (aufheben) a si mesma. Com isso, Nietzsche encontrou um modelo de “história dos valores”; esta é sua ideia de como “a hipótese- moral cristã” se dissolverá a si mesma, e a ideia que ele então segue no apontamento-Lenzerheide. Seu aporte próprio deve ser então apenas o pensamento-do-eterno-retorno, como golpe de martelo, que desencadeia a autossuprassunção da moral cristã em seu autoconhecimento como vontade de poder. Em nenhum outro lugar em seus escritos Nietzsche soletra essa ideia com semelhante consequência. Entretanto, não surge daí nenhum “sistema” logicamente formado. Isso permanece um processo de orientação para ele mesmo, e tal processo de orientação propicia insights consideravelmente mais ricos do que seria possível em um “sistema”.

O “processo de dissolução” pela “autossuprassunção” da moral cristã

Primeiramente Nietzsche traz para perto seu argumento da autossuprassunçao da moral e o formula de modo tal que ele se torna um “estimulante” para seguir acompanhando o niilismo.

[L 2a] Mas entre as forças que a moral cultivou estava a veracidade: esta volta-se por fim contra a moral, descobre sua teleologia, seu modo interessado de consideração - e agora este insight na mendacidade incorporada, que a gente se desespera por afastar de si, atua precisamente como estimulante.

Todavia o otimismo iluminista desaparece: a gente pode então estar bem pronto e disposto para o insight no niilismo; no entanto, Nietzsche tem de constatar ao mesmo tempo, a gente não pode se despojar sem mais da “duradoura interpretação moral”; permanecem então profundamente implantadas as “necessidades do não-verdadeiro”‚ “das quais parece depender o valor pelo qual nós13 suportamos viver”; as “necessidades” de orientação precedem os “insights”, como Kant já tinha constatado, os dominam e os justificam14. O “processo de dissolução” da moral cristã não segue simplesmente um insight, mas permanece dependente das necessidades de conservação da orientação humana; as necessidades de sustentáculo, mais profundamente subjacentes, resistem ao esclarecimento. Como Kant já tinha visto, e Nietzsche também vê agora, a gente tem de se colocar num outro registro filosófico; ao invés de meras necessidades de pensamento e processos de pensamento, tem-se de partir de necessidades vitais e processos vitais, que não são separados nos processos de orientação; o conceito de orientação, que Nietzsche quase não utiliza, abrange ambas as coisas.

Surge assim o “antagonismo” logicamente não solucionável: “[L 2b]não apreciar aquilo que conhecemos, e não poder (dürfen) mais apreciar aquilo com que gostaríamos de nos enganar”.

“Nossa” orientação no mundo, cunhada pela moral cristã, oscila entre o estimulante insight e a “necessidade” vital de conservação, que dele se defende. De bom grado, Nietzsche utiliza aqui o conceito de “instinto”:15 a gente se mantém por instinto na velha orientação moral, mesmo que ela, com base em melhores insights, não possa mais se manter. A partir dos fundamentos, a orientação moral torna-se insegura, entra em agonia, mas não desaparece.

Num apontamento anterior, Nietzsche já tinha tateado também nesse antagonismo, e na agonia que daí se segue

[A] […] A interpretação-moral do-mundo acaba em negação do mundo (crítica do Cristianismo).

Antagonismo entre ‚melhoramento‘ e fortalecimento do tipo homem.

Infinita interpretabilidade do mundo: toda interpretação um sintoma de crescimento ou de declínio.

As tentativas até aqui para superar o Deus moral(panteísmo, Hegel etc.)

A unidade (o monismo) uma necessidade da inércia; a maioria da interpretação sinais da força. Não querer abstrair do mundo seu caráter inquietante, enigmático!16

Ele contrapõe “necessidade” e “força”, a necessidade de permanecer no antigo e a força para novas interpretações. Essa força é empregada para lidar com a “infinita interpretabilidade do mundo”, para utilizá-la produtiva e criativamente17. Dá angústia colocar-se diante da infinita interpretabilidade do mundo; pois ela não oferece nenhum apoio firme, como era dado anteriormente pela moral cristã. Portanto, o antagonismo entre a necessidade ou o instinto de se manter ligado à moral costumeira e ainda fortalecê-la e a força para insights em novas possibilidades de interpretação do mundo, com vistas a um trato produtivo e criativo com elas, torna-se o “antagonismo” entre “melhoramento” e fortalecimento do tipo homem; “melhoramento” no sentido da velha moral, “fortalecimento” no sentido de novos horizontes da orientação humana. A insegurança da orientação torna-se então “estimulante” para orientar-se sobre a orientação, ela mesma. A esse respeito, Nietzsche lembrou, em GC 373, dos cientistas naturais que pensam de modo estreitamente mecanicista: eles não devem querer despir a existência de “seu multívoco caráter”; o “bom gosto” de saber que algo vai “além de (seu) horizonte” deve proteger das simplificadoras “interpretações-do-mundo”. Pois elas conduziriam, por sua vez, a “um mundo essencialmente absurdo (sinnlos)”, a um mundo que seria tão pobre de sentido como se limitássemos a música à matemática, e assim então “a vida” à moral, à moral cristã.

Alternativa da “moderação” de hipóteses extremas pela amenização da necessidade constringente da sociedade

No apontamento-Lenzerheide Nietzsche não necessita mais introduzir separadamente tais indicações adicionais. Ao invés disso, ele tenta apreender o problema do sentido de modo mais amplo e profundo, e aqui o tom permanece sombrio e ameaçador. Todavia, primeiramente Nietzsche pondera - apesar de seu ponto de vista anteriormente consignado, de sua convicção (Meinung) de que a “necessidade anímica, corporal, intelectual” não é suficiente para produzir o niilismo - se o problema do sentido não poderia simplesmente desaparecer, ao mesmo tempo que a necessidade constringente. Pois surgiu entrementes, graças à ciência, à técnica e à indústria um novo valor e apoio na “vida”, e por meio deles esta “[L 3a] não é mais em tal medida insegura, casual, absurda em nossa Europa”.

Com o crescente conforto e a regressão dos males e do sofrimento, ameniza-se visivelmente a necessidade de uma unitária instituição de sentido do mundo, na qual todos, em igual medida, podem se apoiar e de acordo com a qual podem se comportar; pergunta-se menos por esta necessidade, o “primeiro niilismo” não atua mais tão ameaçadoramente.

[L 3b] Uma tal prodigiosa potenciação do valor do h[omem] {do valor do mal, etc.} não é mais agora tão necessária, nós suportamos uma significativa moderação desse valor, nós podemos admitir muito absurdo e acaso: o alcançado poder humano permite agora um redução dos meios de cultivo, dos quais a interpretação moral era o mais forte. “Deus” é uma hipótese demasiado extrema.

Necessidades constringentes podem não produzir determinadas hipóteses extremas; pelo abrandamento das necessidades constringentes, porém, a extremidade das mesmas torna-se visível. Aqui Nietzsche está muito perto de onde ele chegará ao final. Ele teria podido se poupar, se quisermos dizer assim, longos desvios em seu processo de orientação. No entanto, ele não apanha a palavra-chave “moderação” mas a palavra-chave “extremo”. A observação de realidades históricas, para as quais, de resto, ele é tão aberto, não basta para ele; ele não quer explicar a amenização da necessidade de sentido na Europa por mero alívio da condição de vida. Com isso, ele permanece fiel ao ponto de vista anteriormente anotado, e o niilismo ameaçador permanece o problema diretor. E se foi necessária uma “hipótese tão extrema” como a existência de um único e supremo Deus, que ao mesmo tempo causa e regula moralmente o acontecer total do mundo, então também o niilismo, a intepretação do mundo sem este “Deus moral”, tem de ser o mais profundo pensável. O curso do pensamento gira em torno do extremo. Nietzsche procura e quer o extremo.

A permanente orientação pelo extremo de Nietzsche

Num apontamento pesadamente trabalhado do outono de 1887, Nietzsche se confessa expressamente como “mago” ou, como ele então se corrige, como a “magia do extremo”:

[E 1]Uma A invencível magia, que nos permite contar com a vitória, sem mentira assim como sem verdade {combate por nós, aquela que com {{o}} olho de Venus, {{que}} prende nosso adversário e o atrai para nós {{mesmo enfeitiça e torna cego}}, isto é a bruxaria {magia} {magia} do extremo , do mais extremo {o olho de Vênus}: {a bruxaria que tem tudo o que há de mais extremo exerce a tirania {{a sedução, que exerce tudo o que é o mais extremo}}: nós imoralistas - {nós não {nós somos}} hoje os extremíssimos18.

De acordo com isso, o extremo não se encontra na coisa, ele pode ser também um meio, uma estratégia retórica, para convencer a si e aos outros do extremo na coisa, para seduzir para ele - e assim ele pode tornar-se a própria coisa na qual se acredita. Nietzsche pensa reconhecer uma das “leis da vida”, como ele sempre de novo formula,19 nisso que “[L 4a] posições extremas não são substituídas por posições moderadas, mas de novo por extremas, porém inversas”.

Trata-se aqui, portanto, de uma lei dos processos de orientação. Todavia, é seguro que isso não é coercitivo: com efeito, posições radicais foram e são frequentemente respondidas em filosofia com posições radicais e por vezes ainda mais radicais; precisamente no século XIX, no tempo da grande re-orientação depois do idealismo, isso estava na ordem do dia. Mas existem permanentemente no cotidiano, na política e na filosofia também tentativas de “moderação”. Entretanto, no apontamento-Lenzerheide, Nietzsche coloca sua pretensa lei na base de sua ulterior análise do “niilismo atual”. Só no final ela é rompida, mas não de modo duradouro.

Quanto à moral cristã, numa folha dupla do caderno de notas W II 3 de novembro de 1887-março de 1888, ele apoia sua lei numa outra. Ele começa no lado esquerdo, mais uma vez, com re-orientações extremas:

[E 2a] Chega o tempo em que nós temos que pagar isso {pagar por isso}, ter sido cristãos ao longo de dois milênios; nós perdemos a gravidade que nos fazia viver, - nós não sabemos {durante um tempo} nem sair nem entrar. De súbito, nós nos precipitamos em avaliações opostas com a {igual} medida de energia, que precisamente produziu uma tal extrema sobre-valoração do h, no homem./ {com a qual nós fomos cristãos - com a qual nós o insensato exagero do h cristão no homem produziu]20.

Ele postula uma “energia” para extremas re-orientações, que se mantenha em “extremas sobre(va)lorizações” que progressivamente caem todas umas nas outras; portanto uma força originária para orientações fortes, convincentes, que se implantam com vigor. O discurso sobre “energia” soa mais científico do que o discurso sobre “bruxaria” e “magia”. No entanto, isso poderia iludir. Em processos de convencimento, sobretudo naqueles de Nietzsche, a “magia do extremo” é bem observável, aquela energia é, ao contrário, apenas uma admitida grandeza auxiliar, que deve tomar da “magia” o mágico, o enigmático.

Para a imposição da “avaliação oposta”, Nietzsche estabelece naquele apontamento, um processo em quatro “períodos”, que ele lista no lado direito da página dupla. O primeiro é: “[E 2b]O período da obscuridade, das tentativas de conservação do ‚antigo ideal‘, da conciliação {de todas as modalidades de conservar o antigo e não deixar escapar o novo}”.

Esse seria o tempo do “antagonismo”, do qual ele fala no apontamento-Lenzerheide, e talvez também o tempo para “moderaç[ões]”. Todavia, é decisivamente conservado, como Nietzsche sustentou no lado esquerdo, o “eterno valor da pessoa”, na figura da “igualdade da pessoa” no “socialismo”, o “ideal-moral” na figura do “privilégio do não-egoísta, da autonegação, da vontade de negação”, e o “além” como “anti-lógico X” de um mundo aparentemente verdadeiro; nisso que a gente, todavia, tenta - ainda que não se acredite mais em Deus - ‚ “extrair da leitura do acontecer a divina direção em velho estilo”; no sentir, antes como depois, “a vitória do bem e a destruição do mal como tarefa”. Quer-se entender: “[E 2c] mesmo a suprema espiritualidade e arte como consequência de uma despersonalizada {despersonalização} e estado desinteressado. {como des-interessamento} (como consequência de uma espécie de perfeição moral)”. E: “[E 2d] permite-se à igreja imiscuir-se ainda em todas as vivências essenciais e principais pontos da vida do indivíduo, para dar a eles a bênção de um sentido superior: por exemplo, ao casamento”.

Deve se seguir a este período um

[E 2e]Período da clareza: compreende-se que todo conhecimento da natureza e da história não nos autoriza mais tais ‚esperanças‘, - que todos os antigos ideais são ideais hostis à vida. (- introduzindo processos de rebaixamento e enfezamento sob {nascidos da décadence e determinantes da décadence ainda que também} [sob] o esplêndido traje {domingueiro} das morais [da moral] [que] {o antigo e o novo são opostos fundamentais, os antigos valores nascidos da vida declinante, os novos da vida ascendente},

Aqui é inserido ainda: “[E 2f] {nós entendemos o antigo e {de há muito} não somos fortes o suficiente para um novo”.

Depois disso, admite Nietzsche, teria de surgir um “período dos três grandes afetos”/do desprezo, da compaixão, da destruição, finalmente o período da catástrofe, e teria de desencadeado por “um ensinamento” “que peneira os homens)…”. Decerto, ele pensa de novo, e isso ele não precisa anotar para si, no ensinamento do eterno retorno. Desse modo ele representa para si a “história do niilismo europeu” (Geschichte des europ. Nihilismus)21.

A re-orientação como conversão no outro extremo transcorre também depois disso não de maneira refletida e querida, e já de modo algum como criação de novos valores, mas, como também estabelece o apontamento Lenzerheide, como um “afeto” desencadeado por uma necessidade constringente. Com isso, por fim, essa teria de ser entendida “psicologicamente”. Ela deveria então ser descrita de tal modo que permanece subsistente à necessidade de sentido, nutrida ao longo de milênios, mesmo depois de sua grande frustração; ainda se continua a exigir um sentido do todo, da vida em geral, ainda que a gente tenha se “tornado desconfiado” em relação a isso. Pelo menos no primeiro dos quatro mencionados períodos, vive-se, então, em “suspeita”, como Nietzsche escreveu na GC 346. De novo, uma tal suspeita não tem de significar psicologicamente que se caia de um extremo no outro. Mas Nietzsche reintroduz novamente, também em sua hipótese psicológica, a lei da conversão de um dos extremos no extremo contrário, por ele admitida. E então segue-se como que logicamente: “[L 4]Uma interpretação foi a pique; mas como ela valia como a interpretação, isso parece como se não houvesse em absoluto nenhum sentido na existência, como se tudo fosse em vão.”

A suspeitada paralisia pelo duradouro “em vão”

O extremo “tudo em vão” torna-se agora a nova palavra-chave e o pivô para o que se segue. Nos esforços para a superação de necessidades constringentes, “em vão” significa: eles permanecem sem resultado. Em necessidade constringente, encontrar sentido e dar sentido são um esforço, o esforço para chegar a uma nova, auxiliadora e sustentadora orientação. Foi assim também, quando buscou-se na Europa um sustentáculo absoluto num “Deus moral”, mas isso parece agora não mais ter êxito novamente. Agora, não é claro, então, se “a energia” é suficiente para tanto. No começo do novo parágrafo do apontamento-Lenzerheide, Nietzsche não quer estabelecer firmemente que “este em vão” já é “o caráter do nosso niilismo atual”. Isso seria para ele uma simplificação extrema, e só restaria ainda “por demonstrar”. Mas Nietzsche não quer demonstrar isso; na citada visão de conjunto sobre os sintomas e sobre a “história do niilismo eur.”, no caderno de notas W II 3, isso não comparece. Isso permanece, da parte dele, uma hipótese, uma contra-hipótese de igual modo extrema. Com ela, Nietzsche assume que o desconfiar volta-se agora contra “todos os valores”. Se estimativas de valor provêm de necessidades de sentido, que surgem de necessidades constringentes, que podem novamente desaparecer, seguramente não se poderá mais confiar incondicionalmente em nenhum valor, mas nem por isso já desconfiar de todos os valores. No entanto, psicologicamente, argumenta Nietzsche, a frustração com “todos os valores até aqui podem ser tão fortes que a gente se veja numa comédia” de valorações, que simplesmente “se prolonga, mas não chega, em absoluto, perto de nenhuma solução” - se é então esperada uma tal “solução”22. Se ela é esperada, então o extremo “tudo em vão” paralisará, tornar-se-á, segundo Nietzsche, de novo em ponto superlativo, o “pensamento mais paralisante”.

No entanto, não é simplesmente o niilismo, com o seu “em vão”, que paralisa, senão que, depois que as valorações em geral foram frustradas, não se consegue mais livrar-se da desconfiança em relação a elas. Numa outra folha dupla do caderno de notas N VII 3, na qual trata-se do mesmo modo “do problema do niilismo (contra o pessimismo, etc.)”, Nietzsche acrescenta a isso, do lado direito, “o trabalho científico vive da ‘crença’ na associação (Verband) e no prosseguimento do trabalho científico, de modo que o indivíduo singular pode trabalhar ainda naquela parte tão pequena, na confiança de não trabalhar em vão”: a valorização do próprio trabalho é parte da valorização do todo, aqui da ciência em geral. Ambas podem fortalecer-se ou frustrar-se mutuamente. Se o próprio trabalho científico não tem êxito, pode-se procurar a “culpa” disso em si mesmo, ou na ciência e suas instituições. Somente no segundo caso é “tudo em vão”. Nietzsche, porém, apenas olha para isso, ele não pondera relativizações compensatórias entre os dois casos, senão que acrescenta, imediatamente, a constatação geral: “Há uma grande paralisia: trabalhar em vão, em vão lutar. - -”23 Assim, no apontamento Lenzerheide ele também vai de novo inteiramente para o extremo: “[L 5] A duração, com um ‘em vão’, sem meta e finalidade, é o pensamento mais paralisante, a saber ainda quando se compreende que foi enganado, e, todavia, sem o poder de não se deixar enganar”.

Fortalecimento do “em vão” por meio de uma hipótese científica?

Conscientemente, Nietzsche torna-se agora desmedido (maßlos), pensa conscientemente de modo extremado - e espera, ao mesmo tempo, poder assegurar cientificamente o extremo. No parágrafo seguinte, ele ousa o seu grande, o seu maior experimento mental:

[L 6a] Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido e meta, mas inevitavelmente retornando, sem um final no nada: “o eterno retorno”. Isto é a mais extrema forma do niilismo: o nada (o “sem-sentido” [das Sinnlose]) eterno!

O “nada”, é claro, não pode ser nenhum nada metafísico; pois tão logo a gente o pensa e, por sua vez, ao fazê-lo, a gente só pode pensar auto-contraditoriamente - isso permanece correto no ego cogito, ego existo de Descartes. Ao invés disso, o nada é experimentado como “o sem-sentido”: num “desespero” ([L 9]), no qual não se conhece mais nada até o fim, no qual não se enxerga nenhuma conexão, perdeu-se inteiramente a orientação. O nada, no sentido de Nietzsche, é a perda da conexão e da visão de conjunto relativamente à orientação humana, é a ausência de orientação: experimenta-se isso assim, e isso angustia. Mais tarde, a filosofia da existência enlaçou-se aqui. Nietzsche pensa ainda numa “forma europeia do Budismo”, e nela em Schopenhauer e seu erudito tédio da vida (“o final no nada”);24 com isso ele concluirá a terceira e última dissertação de Para a Genealogia da Moral, aqui ainda sem mencionar o pensamento do retorno. No apontamento-Lenzerheide ele primeiramente ainda o reforça, e retoma, por falta de outras provas, suas inéditas tentativas de comprovação científica: “[L 6b] A energia da matéria e da força coage a uma tal crença. Essa é a mais científica de todas as hipóteses possíveis”.

Aqui também ele parte da conservação da “energia”; nesse caso, da física. Mas mesmo que sua hipótese fosse sustentável, que o princípio físico de conservação da energia, no decurso do tempo, só permitisse muitas finitas constelações de energia, de modo que elas teriam de se repetir eternamente,25 a extrapolação filosófica para um “eterno retorno” - Nietzsche a coloca aqui entre aspas - também de todas as vivências permaneceria uma “crença” questionável. A extrapolação, por sua vez, é um experimento mental extremo no extremo experimento mental com o niilismo.

Aqui, porém, Nietzsche insere o único adendo mais longo ao apontamento-Lenzerheide: “[L 6c] {Nós negamos fins conclusivos [Schluß-Ziele]: se a existência tivesse um, então ele teria de ter sido alcançado.}” Esta negação de “fins conclusivos”, de fins aos quais devem se direcionar o agir e a existência humana em geral, já basta para o experimento mental com o grande-em-vão, com a grande paralisia; para tanto não é necessário, de modo algum, o pensamento do eterno retorno. A grande paralisia jaz imediatamente no niilismo como “recusa radical de valor, sentido, desejabilidade”, na mera ausência de sentido, e assim de modo mais profundo do que se poderia provar cientificamente.

Comparação com o panteísmo de Spinoza: nele já é possível uma “crença no eterno retorno”?

O adendo ao parágrafo 6 poderia ter ocorrido quando Nietzsche escrevia o sétimo. Pois agora Nietzsche medita de novo sobre Spinoza, que subtraiu do processo a “representação da finalidade”, e a “despeito disso tinha afirmado o processo”. E pouco antes de Nietzsche ter vivenciado, em 1881, a inspiração do pensamento-do-retorno junto à rocha piramidal no lago de Silvaplana (EH, Za 1), ele descobrira Spinoza como “precursor”26. Isso não pode ter sido nenhum acaso; Spinoza e o pensamento do eterno retorno corriam estreitamente juntos no pensamento de Nietzsche. Spinoza parecia-lhe tão assustadoramente próximo, que Nietzsche posiciona-se pessoal e filosoficamente de maneira áspera em relação a ele, como frequentemente ocorre em suas contraposições com grandes figuras da história do pensamento, tanto em seus apontamentos quanto em escritos dirigidos à publicação, entre eles um poema de zombaria, de não muito bom gosto,27 só para não ser confundido com ele. Também sobre o pensamento de Spinoza, que Nietzsche em grande parte só conhecia de segunda mão, ele não estava efetivamente esclarecido; como com Sócrates ou Cristo, ou com o profundamente crente e todavia extremamente esclarecido Pascal, ele nunca pode “lidar até o fim” (fertig werden) com Spinoza. Por vezes ele reconhecidamente errou em sua interpretação de Spinoza28.

No apontamento-Lenzerheide, ao contrário, ele permanece cauteloso, avança tateando com perguntas. O próprio Spinoza não desenvolve nenhuma doutrina do eterno retorno; mas poderia o pensamento do eterno retorno conciliar-se com sua ética?29 Como exposto acima, no panteísmo de Spinoza o niilismo, como negação de todos os valores desejáveis e a afirmação de tudo aquilo que é e acontece, seriam conciliáveis entre si. Desse modo, o eterno retorno não seria o martelo, com o qual se poderia destroçar a moral judaico-cristã; ou então somente auscultá-la, como a um ídolo, senão que poderia integrar-se nela. Com a negação dos fins por Spinoza, ficariam desativadas também “aquela liberdade” do parágrafo 1 e as imputações morais de culpa que ela possibilita. O “Deus moral” estaria superado, porque Deus não é mais pensado como juiz extramundano.

Mas, para Nietzsche, isto não pode ser: se “o panteísmo” coage “de igual modo, a uma crença no eterno retorno” , ele busca “uma oposição” ao panteísmo. Mas ele risca imediatamente no texto “alcançado”, e o substitui por “anelado”: ele vê que é difícil distanciar-se de Spinoza. O eterno retorno seria pensável em Spinoza, se partimos de sua figura da única substância que, sob atributos espirituais e corporais, apresenta-se em modos individuais. Na segunda parte da Ética, encontra-se uma nota sobre a substância da natureza como “indivíduo” corporal, cujas partes são, de novo, indivíduos infinitamente diferentes, mas que aí permanece um todo:30 no sentido da tentativa de prova científica de Nietzsche, assim deveriam os movimentos individuais dos modos individuais da única substância reproduzir-se alguma vez em suas constelações individuais.

Onde se encontraria, então, a oposição ao panteísmo? A questão continuou a ocupar Nietzsche também depois do apontamento-Lenzerheide. Num apontamento do caderno de notas W II 2 do outono de 1887, agora em forte reelaboração, ele introduz mais uma vez os argumentos do parágrafo 1 do apontamento-Lenzerheide:

A hipótese-moral como uma {para fins da} justificação de Deus, e da existência, em geral, assim já em Epicteto (Simplício) {significava: muito bem apresentada no comentário de Simplício a Epicteto] a livre voluntariedade do mal O mal tem de ser voluntário {(para {só com isso} poder acreditar {pode ser acreditado}] na livre voluntariedade {de} todo bem; e por outro lado a finalidade redentora de todo mal e sofrimento {: em todo mal e sofrimento jaz uma finalidade redentora}.

O conceito de culpa como não regredindo até os últimos fundamentos da existência, e o conceito de castigo como uma benesse educativa, consequentemente {como} um ato de um bom Deus.

Domínio absoluto da valoração moral sobre todas as outras: não se duvida de que Deus não pode ser mau, e que nada de nocivo possa fazer; quer dizer, não se duvida que (pensava-se, quanto à perfeição, apenas numa perfeição moral) a perfeição {meramente} uma perfeição moral31.

Segundo outro apontamento no mesmo caderno, contrariamente a isso, não se trata mais no panteísmo do dever-ser-bom de um Deus moral, mas de que sem nenhuma valoração, tudo é tão bom tal como o é - foi subtraída a ‘moralização’ de Deus:

A gente (Man) {o homem {o homem moderno o h. mais novo}} exerceu a {sua} força idealizadora com vistas a um Deus, principalmente numa {crescente} moralização do mesmo - o que significa isto? {Nada de bom, uma diminuição da força do h.-}

Em si, o contrário seria possível {a saber}: e há sinais disso. a perfeita plenitude {Deus pensado como o ser-liberado da moral, a inteira plenitude} das oposições vitais comprimindo em si e como {ela em} redimindo-a, justificando-a em divina agonia, elevando-a sobre o {: - Deus como redenção do {o além, o acima, o sobre o miserável ponto de pobreza {bitolado [Eckensteher]-ponto de vista da avaliação moral {e do vértice perspectivo do como ‘bem e mal‘}32.

Desse modo, sem “representação de finalidade” e sem “moralização” de Deus, poder-se-ia afirmar, “apesar disso, o processo”. O “sentido” se encontraria, então, simplesmente no processo e na afirmação do próprio processo: “[L 7a] Esse seria o caso, se algo no interior daquele processo fosse alcançado em todo momento - e sempre o mesmo.

Um processo sem representação de finalidade alcança algo em todo momento e, considerado em abstrato, em todo caso o mesmo, a saber, seu mero prosseguimento. Justamente isso Spinoza tentou mostrar more geometrico, segundo o método lógico-matemático: que a natureza criada por Deus e idêntica a ele é um processo transcorrendo de acordo com uma necessidade divina, que em todo momento alcança sua finalidade, sem ter uma finalidade para além disso. O processo é e permanece sempre perfeito e pleno de sentido. Sobre e para além deste insight não é necessário nenhum outro apoio na orientação filosófica; para Spinoza, em todo caso, isto era o bastante. E assim ele também não precisava do pensamento de um eterno retorno: “[L 7b] Spinoza conquistou uma tal posição afirmativa, na medida em que todo momento tem uma necessidade lógica: e ele triunfou, com seu fundamental instinto lógico, sobre uma tal constituição do mundo”.

Os homens não podem, com o seu pensamento limitado, nunca efetivamente adequado sempre reproduzir circunstanciadamente o processo, e por isso podem ser compelidos a duvidar de seu sentido e buscar refúgio em representações de finalidade e imputações de culpa. Mas isso não afeta o panteísmo, enquanto tal; ao contrário, a partir dele torna-se visível que uma moral desta espécie é apenas uma representação auxiliar. Assim, porém, na “posição afirmativa {de todas as coisas}”, que Nietzsche procura, não se mostra, a “oposição ao panteísmo” por ele almejada - exceto que Spinoza pode prescindir do extremo experimento mental com o eterno retorno.

O Caso Especial de Spinoza

Todavia, Nietzsche não quer endossar o panteísmo de Spinoza; opõe-se a isso tudo o que ele até então escrevera sobre a morte de Deus, por um lado e, por outro lado, sobre Spinoza. Então, em seu processo de orientação, ele toma agora um outro caminho: ele deixa de lado as reflexões gerais e explica o caso spinoza como um “caso singular”, faz dele uma aparição de exceção. Já em 1884 ele tinha anotado para si: “Que algo como o amor-dei de Spinoza pôde ser novamente vivenciado, é seu grande acontecimento”33.

De acordo com isso, como Nietzsche constata agora no apontamento-Lenzerheide, Spinoza confiou menos em suas deduções do que em seu “instinto fundamental”, para “bendizer triunfalmente todo momento da existência univ.” e, nesse sentido, acomoda para si os seus argumentos, para os quais algo contribui. Nietzsche, por seu lado, generaliza isso, não lógica, mas psicologicamente, em seu próprio sentido. Em linguagem nossa, para aquele triunfo, a orientação de um indivíduo tem de ser tão amplamente desenvolvida, conformada e exercitada que “[L 8]Todo traço fundamental de caráter, que subjaz no fundo de todo acontecer, que se expressa em todo acontecer, […] experimentado por [ele] como seu traço fundamental de caráter”. E nisso é vivenciado como “bom, pleno de valor, com prazer”. Sua orientação teria de ser como que tão preenchida pela ausência de finalidade e ausência de sentido da existência, para além de sua perfeição divina, que seria possível viver bem com isso.

A gente tem de deixar isso assim: o que um indivíduo finalmente vivencia como determinante de seu estado de ânimo (stimmig), o que se encaixa convincentemente em sua orientação, é finalmente coisa sua e apenas limitadamente reconstituível pelos outros, principalmente quando se trata de indivíduos extraordinários como Spinoza. Nietzsche é consciente disso, uma vez que vivencia a si mesmo como indivíduo extraordinário, ele se confronta benevolentemente com Spinoza. Mas com isso ele não precisa também assumir o panteísmo de Spinoza, ainda que possa estar muito próximo dele. Emerge agudamente aqui a individualidade de todo filosofar, que filósofos e filósofas, via de regra, só dificilmente podem confessar, e que Nietzsche, porém, em suas obras, sempre de novo tenta tornar clara. De acordo com Nietzsche, a gente teria de ser um indivíduo comparável com ele, com vivências comparáveis, para poder reconstituir e assumir seus argumentos, em toda sua força de convencimento. Para um filosofar que se orienta na pretensa universalidade de argumentos, mostram-se aqui fronteiras. Além de Spinoza, Nietzsche não tem nenhum exemplo humano de que a afirmação do devir tem êxito plenamente, e o niilismo não apresenta mais nenhuma ameaça. Para si próprio, ele invocou novamente Dionysos em BM 295 - como Deus de um filosofar ao qual ele mesmo eternamente retorna. Esse Deus filosófico, porém, não pensa o pensamento-do-eterno-retorno, ele o vive, ele o realiza. No apontamento-Lenzerheide, Nietzsche não parece pensar nele, em todo o caso, ele não o nomeia.

Como o apontamento torna claro, Nietzsche respeita o panteísmo de Spinoza como resposta ao niilismo originário; ao fazê-lo, porém, permanece nisso: levar ao extremo o pensamento do eterno retorno; a saber, de maneira tal que ele não se encaminha para um perfeito sentido do mundo em seu todo, mas, sem um Deus, encaminha-se para sua perfeita ausência de sentido. Se a “hipótese-moral-cristã” deixa-se conciliar com o primeiro, não, porém, com o segundo. Assim Nietzsche deixa o panteísmo de Spinoza repousar sobre si mesmo, e segue o segundo, o seu caminho. Sem outra fundamentação, ele encontra outra decisão de orientação, ele se re-orienta.

Novo ponto de partida (Neuansatz) com a vontade de poder e o ódio da moral por ela

Na segunda metade do apontamento-Lenzerheide, que se inicia com o parágrafo 9, Nietzsche começa, com um novo “agora”, pelo pensamento-da-vontade-de-poder, para então, com a ajuda dele, voltar-se contra a moral cristã. Nesse passo, ele não se orienta mais, ou não se orienta mais principalmente pelas relações do homem com Deus, mas pelas relações destes entre si. Desse modo, fica restringido o âmbito de conservação, proteção e consolo da moral, em cujo conceito altamente generalizado, mas também concretizado, ele, de todo modo, permanece; tornam-se possíveis asserções mais específicas. E mostra-se aí que o valor absoluto dos homens em sua pretensa igualdade diante de Deus só vale condicionalmente entre os homens: aqui são diferenciados os mais poderosos e os menos poderosos, os mais fortes e os mais impotentes, repressores e reprimidos, os mais bem sucedidos e os mais malogrados. E “[L 9a] a impotência em relação aos homens, não a impotência em relação à natureza, produz a mais desesperada amargura contra a existência”.

Aqui “a moral” - ainda no sentido da moral de um absoluto igual valor de todos os homens - atua equivocamente. Ela bem que protege do desespero pela desigualdade e pelos tratamentos desiguais entre os homens, ao conferir aos mais impotentes, mais fracos, aos reprimidos, o direito de desprezar os mais poderosos, mais fortes, e repressores, e nisso dá um firme apoio à orientação deles. Mas ao mesmo tempo ela gera hostilidade e ódio: “[L 9b] A moral tratou os donos da violência, os violentos, os‚ senhores ‘em geral como os inimigos, contra os quais o h[omem] comum deve ser protegido, quer dizer, primeiramente encorajado, fortalecido”.

Porém, o que liga as duas coisas é, então, sua “vontade de poder” - uns impõem-se com ela, os outros têm de sofrer com isso, e por causa disso odeiam a vontade de poder: “[L 9c] A moral, consequentemente, da maneira mais profunda, ensinou a odiar e desprezar o que é o traço fundamental de caráter dos dominadores: suavontade de poder”.

Nos mais poderosos, os mais impotentes odeiam o poder, ele mesmo. Se, porém, a vontade de poder é o princípio de toda ordem da realidade, como Nietzsche tornou claro em BM 36, então eles odeiam a própria realidade, enquanto, por seu turno, idealizam moralmente a si mesmos, pela hipótese do igual valor de todos os homens. Enquanto se mantêm as ordenações de poder, mantêm-se também a auto-idealização moral dos impotentes; quanto mais perceptíveis tornam-se as ordenações de poder, mesmo sob condições de vida, em seu conjunto, mais favoráveis, tanto mais significativo torna-se o apoio moral na hostilidade contra ordenações de poder em geral. Ódio e desprezo costumam ter duração; aqui não é de se esperar nenhuma oscilação, nenhum processo de dissolução, nenhum em-vão caminhando para o vazio; sabe-se com o que a gente tem de se lidar, contra o que a gente se volta, e a gente pode se manter nisso por muito tempo. O niilismo originário pode ser esquecido, o consolo moral o encobre com sucesso.

Tanto mais duramente, Nietzsche conclui daí, tem de atuar o rompimento do consolo moral por meio de sua autossuprassunção ou auto-transvaloração: “[L 9d] Abolir, negar, destruir esta moral, isto seria prover com uma sensação e valoração inversa o impulso mais bem odiado”.

Reconhecer e aprovar a vontade de poder nos mais fortes significa confessar para si mesmo a própria impotência, e nisso ficar ainda pior do que antes. Segundo a argumentação na primeira metade do apontamento, isto teria de desencadear um afeto e um efeito massivo, de novo uma inversão de posições extremas: “[L 9e] Se o sofredor, o reprimido, perdesse a fé em ter um direito a seu desprezo pela vontade de poder, então ele entraria no estágio do desespero sem esperança”.

Um novo niilismo teria de surgir, a existência teria de tornar-se sem-sentido de uma nova maneira, e isso seria perceptível, na existência dos homens, lá onde a vida fosse o mais fortemente vivenciada.

Ainda pior, no entanto, tornar-se-á o desespero - é então a conclusão de Nietzsche -, se os impotentes, que se apoiam na moral, aplicam a si mesmos a consequência, e vêm “[L 9f] que mesmo naquela ‘vontade de moral’ só estaria disfarçada aquela ‘vontade de poder’, que também aquele odiar e desprezar é ainda uma vontade de poder”.

A “vontade de moral” conhece a si mesma como “vontade de poder” assim que ela vê que seu próprio sentido consiste (liegt) na hostilidade, portanto numa vontade de poder contra a vontade de poder. O que ela odiava nos poderosos, ela tem agora que perceber em si mesma, e com isso também odiar a si mesma. Sua hostilidade torna-se desprovida de fundamento, e tanto maior sua dúvida em relação a si mesma; rompe-se o apoio que “a moral” dera para a orientação dos sofredores, impotentes, malogrados; perde-se o sentimento moral de superioridade perante os que são superiores de fato, o pretenso “escalão moral mais elevado”, no sentido da assumida santidade (Gottgefälligkeit) superior. O valor próprio é desvalorado.

A hipótese-moral-cristã protege os malogrados, porém contradiz a ordem de escalonamento (Rangordnung) dos homens na sociedade

Assim [fica, OGJ.] a nova orientação de Nietzsche: com o pensamento da vontade de poder, a argumentação para o rompimento da “hipótese-moral-cristã” torna-se plausível e conclusiva; Nietzsche vê-se agora perceptivelmente sobre trilhos mais seguros. No parágrafo seguinte, ele extrai uma primeira soma, agora na perspectiva do filósofo que olha para o todo. Ele começa com a sentença geral, que agora vale para ele como assegurada e que, por causa disso, ele formula como uma proposição, um dogma: “[L 10a] Não existe nada {na vida}, que tenha valor, além da do grau superior de poder - suposto, precisamente, que a vida mesma é vontade de poder”.

Com isso, a premissa do primeiro parágrafo do apontamento-Lenzerheide, sobre o “valor absoluto” do homem, pode ser concretizada e reformulada:

[L 10b] A moral protege do niilismo os malogrados, ao ter atribuído a todos um infinito valor, um valor metafísico, ao tê-los inserido numa ordenação que não concordava com o poder e a ordenação de escalonamento mundanos: ela ensinou resignação (Ergebung), humildade etc.

Agora é a contradição em relação à ordem de escalonamento exercida na sociedade que leva à catástrofe: “[L 10c]suposto que pereça a crença nesta moral, então os malogrados não teriam mais seu consolo - e pereceriam”.

Não são os próprios homens que perecem, mas sua autoidealização moral, e com ela o mais estável sustentáculo dado até aqui para sua orientação, que os preservou da visada no niilismo originário. Porém Nietzsche pensa isso agora de novo no extremo.

O niilismo desvelado atua junto malogrados como vontade de autodestruição

Como anteriormente os conceitos “extremo” e “em-vão”, agora o conceito “sucumbir” cria a conexão: isso não deve ser, como ficaria próximo, nenhum paulatino tornar-se-mais-fraco e autodissolver-se, mas um “ir-a-pique” (Sich-zu-Grunde-Richten), “uma autodestruição”: “[L 11 a] O sucumbir apresenta-se como um -‚ ir-a-pique, como um instintivo selecionar daquilo que tem de destruir”.

Os “sintomas desta autodestruição dos malogrados”, que Nietzsche primeiramente introduz, produzem, com efeito, uma impressão bastante discreta. Eles devem ser “[L 11 b] a autovivissecação, o envenenamento, a intoxicação, romantismo”. “Sintomas” que, de resto, Nietzsche também menciona para a décadence contemporânea, com os quais, com efeito, principalmente na França, pode-se viver muito bem. Mas Nietzsche quer mais, ele vincula a eles a “[L 11 c] instintiva necessitação para ações com as quais a gente torna os poderosos inimigos mortais (- como que criando seus próprios carrascos)”.

Portanto, os sintomas do “niilismo russo”, por vezes assassino, e do anarquismo. Nós pensamos hoje, de imediato, “nos poderosos” do século 20 e 21, em figuras tão extremas como Stalin e Hitler, Mao Tse Tung e Ho Chin Min, Baschar al-Assad e Kim Jong-un. A conclusão de Nietzsche, que, ao contrário disso, tinha diante de si os inofensivos csares Alexander II e Alexander III, Napoleão III, o príncipe Bismarck e o imperador Guilherme II, produz o efeito de um prognóstico espantoso. Pelo menos a Adolf Hitler rendeu-se voluntariamente a esmagadora maioria do povo alemão. Mas mesmo um Nietzsche não pôde prever as dimensões da matança no século 20. Se os seus pensamentos extremos se demonstram subsequentemente como realistas, eles eram, todavia, também para ele mesmo, pensamentos quase incogitáveis. Ele se serve de novo de seu argumento da conversão de um extremo no outro: depois que ele intensificou o tornar-se sem consolo em um sucumbir e o sucumbir numa vontade de autodestruição, ele faz desta por fim uma “vontade de destruição” e uma “vontade de nada” em geral, de modo tal que os “malogrados” “[L 12a] colocam-se sobre o terreno do princípio contrário e querem poder, ao forçar os poderosos a serem o carrasco deles”.

Se a gente vê que as coisas resultam de tal modo que o seu privilégio moral neste mundo é destruído, então, nesta impotência, a gente quer ver também destruído o mundo em sua totalidade.

Nietzsche concluirá nesse ponto as três dissertações de Para a Genealogia da Moral, que logo se seguirão a isso. Lá ele não entra mais na vontade de destruição e aniquilamento dos frustrados. Na obra publicada, no início do quinto livro de A Gaia Ciência (GC 343), ele permanece no anúncio geral da “longa plenitude e sucessão de ruptura, destruição, declínio, convulsão, que é iminente” e “da qual provavelmente ainda não existiu nada igual sobre a terra”.

Precisamente pelo abrandamento da necessidade constringente da sociedade, o niilismo, reforçado pelo ensinamento do eterno retorno, torna-se ativo

No parágrafo seguinte, Nietzsche se assegura da sintomática do niilismo, tal como ela surge nos “niilistas” russos, ativos em seu tempo, os quais vivem em “condições configuradas de modo relativamente muito mais favorável”, e exibem um “grau considerável de cultura espiritual”; e, tendo-os em vista, coloca novamente em jogo “o ensinamento do eterno retorno”. Junto a eles, esse pensamento poderia atuar efetivamente como doutrina, a doutrina poderia reforçar a atividade deles, e intensificá-los em seu “fazer-não” (L 12). A ponderação, no parágrafo 3, de que os homens, sob condições de vida mais favoráveis, não teriam mais tanta necessidade de “um antídoto contra o primeiro niilismo”, ele a esmaece agora com o conceito de “niilismo ativo”, que precisamente poderia irromper “[L 13a] por ocasião de um certo esgotamento espiritual, pela prolongada guerra de opiniões filosof., levada ao ponto do desesperado ceticismo contra os filósofos” como visivelmente ocorreu com os atentados anarquistas na Rússia. Ele parece também pensar neles num apontamento do outono de 1887; a fórmula “niilismo ativo” ele acrescenta posteriormente:

{niilismo como sinal do intensificado poder do espírito, como niilismo ativo}

Ele pode ser um sinal de fortaleza, a força do espírito pode ter crescido tanto, que as finalidades de até aqui (convicções‘, artigos de fé) são inadequadas

[…]

Por outro lado, um sinal de fortaleza insuficiente para agora produtivamente também instituir-se de novo uma finalidade, um por que? uma crença.

Ele alcança seu máximo de força relativa como força violentadora de destruição: como niilismo ativo. Seu contrário é {seria} o pessimismo niilismo cansado, que não mais ataca: sua mais célebre forma o Budismo: como niilismo passivo

O niilismo exibe um {patológico} estado intermediário: seja porque as forças produtivas ainda não são suficientemente fortes: seja porque a décadence ainda hesita, e ainda não inventou seus meios auxiliares.

E no último parágrafo ele acrescenta ainda: “{patológica é a prodigiosa generalização, a conclusão por nenhum sentido, em absoluto}”.

Essa conclusão, e com isso também esse niilismo, seja ele como ativo ou passivo, o próprio Nietzsche manifestamente não o compartilha, tanto mais, porém, o “pressuposto desta hipótese”:

Que não existe nenhuma verdade; que não existe nenhuma constituição absoluta das coisas, nenhuma “coisa em si”

- isto mesmo é um niilismo, e, a saber, o mais extremo. Ele coloca o valor das coisas precisamente nisso: que a este valor não corresponde nenhuma realidade, mas apenas um sintoma de força por parte da instituição de valor, uma simplificação para fins da vida34

De acordo com isso, a “força” reside na própria orientação no niilismo como “estado normal”, de uma “avaliação” (Werth-Ansetzung), da qual sabe-se que ela é apenas uma “simplificação para fins da vida”. Quer dizer: precisamente quando se vai ao extremo - não por meio de atentados políticos, mas por meio de experimentos mentais filosóficos -, torna-se possível uma “moderação”, na figura de uma orientação tornada consciente de suas próprias condições.

A crise da sociedade pode levar a uma ordem mais sadia de escalonamento de forças

Também no apontamento-Lenzerheide ele segue isso agora. Do ativismo político ele retorna aos seus pressupostos “fisiológicos”, que, em vista da sociedade europeia como um todo, parecem a ele ter-se tornado quebradiços e mórbidos. Assim, a “crença no eterno retorno” teria de ser experimentada como “maldição”, quanto mais a gente se torna consciente dela, “o prazer na destruição” teria de intensificar-se numa “ira cega”, principalmente se a gente soubesse que também o “niilismo e o prazer da destruição” já existiam “deste eternidades”, portanto, que eles mesmos se repetiriam eternamente. No Anticristo, Nietzsche irá contrapor a isso sua “maldição ao Cristianismo” para, como ele pensa, coagir os homens desesperados - ou tornando-se paulatinamente desesperados - a uma radical nova orientação na figura de uma transvaloração de todos os valores. De insights, ele espera os mais fortes efeitos. Nisso ele permanece Aufklärer, mesmo que anteriormente, ainda no segundo parágrafo do apontamento-Lenzerheide, ele tenha colocado diante dos olhos mais uma vez a força limitada dos insights do esclarecimento. Mas também agora o insight é, para ele, apenas uma parte ou um estimulante do recém irrompido “prazer de destruição”. Só as duas coisas juntas, insight e prazer de destruição, tornam-se fecundas e produtivas: numa “crise”, que “purifica” - purifica das autoidealizações morais. Ela seria a chance de ordenar de novo as relações inter-humanas: não ao compensar as desigualdades, no sentido do valor absoluto e igual de todos os homens, mas, pelo contrário, ao trazê-las claramente à tona e suscitar a formação de ordenações sociais correspondentes. Aqui ele introduz o tema da ordem de escalonamento (Rangordnung) como “[L 14a] uma ordem de escalonamento das forças do ponto de vista da saúde [.]”.

Nietzsche destaca também expressamente para si mesmo que não pode mais tratar-se aí de uma ordem de escalonamento de estamentos (Stände). Saúde é pensada não apenas corporal, mas também espiritualmente. Ela deve consistir em que se pode conhecer e serenamente reconhecer “[L 14b] os que ordenam como os que ordenam, os que obedecem como os que obedecem” no sentido de superioridades e inferioridades espirituais: “[L 14c] Naturalmente à margem de todos as ordens sociais existentes”35.

Os mais comedidos serão os mais fortes, e não terão mais necessidade de nenhum “extremo artigo de fé”

A crise que Nietzsche espera e afirma irá se prolongar por séculos, assim suspeita ele em outras passagens. Quanto mais fundamentalmente ela purifica, mais claros se tornarão também os ensinamentos do niilismo, do eterno retorno, da vontade de poder, do além-do-homem, da transvaloração de todos os valores e da ordem de escalonamento, e desdobrar-se-á seu efeito entre os homens. Todavia, parece impor-se, por fim, a ele a pergunta: como eles atuarão sobre alguém como ele mesmo, que já adquiriu para si alguma serenidade e jovialidade em face da “escalada do niilismo”36, como ele demonstrou anteriormente no quinto livro de A Gaia Ciência. Ele não nomeia a si mesmo aqui, não fala de “eu”, de “nós”, mas parece, no entanto, meditar sobre seu próprio processo de orientação. Ao fazê-lo, ele não se coloca acima das coisas, não pressupõe para si nenhum supremo ponto de vista “teórico”, nenhum metaplano, como hoje se diz; mas também e precisamente como filósofo, vê-a si mesmo como parte do acontecer; pois somente assim ele pode assumi-lo e atuar sobre ele. Se já como filósofo “atemporal”, então ele tem de sê-lo sob as condições de seu tempo, de sua vida. No prefácio a O Caso Wagner, ele escreverá:

O que, em primeiro e último lugar, um filósofo exige de si? Superar em si mesmo seu tempo, tornar-se ‚atemporal‘. Com o que, portanto, deve ele travar seu mais duro combate? Com aquilo em que ele é precisamente o filho de seu tempo. Pois bem! Tão bem quanto Wagner, eu sou filho deste tempo, quer dizer, um décadent: só que eu compreendi isso, só que eu me defendi disso. O filósofo em mim defendeu-se contra isso (CW, Prefácio).

Como filósofo, ele cai naquela oscilação que ele descreveu no segundo parágrafo do apontamento-Lenzerheide, a luta entre o insight e sua defesa e ofuscamento, que ele vivenciou até o fim em seu não resolvido relacionamento com Wagner, oscilando entre respeito e desprezo. Ele falaria de “autossuprassunção”, acrescenta ele no mencionado prefácio, se esta não fosse, mais uma vez, uma palavra demasiado “bela”, embelezadora, na boca de um “moralista” idealizante. Contra o “grande cansaço”, com efeito, ele pode proceder com “autodisciplina”, não pode superá-lo duradouramente, tão pouco quanto pode desfazer-se de seu amor por Wagner, e contra ele tem de escrever panfletos, para manter a distância em relação a ele.

Esta parece ser a situação também no final do apontamento-Lenzerheide: com ensinamentos extremos, Nietzsche tentou pensar extremadamente o niilismo; mas com isso ele já demonstrou fortaleza? Então ele se pergunta agora: “[L 15a] Quais [homens] se demonstrarão aqui como os mais fortes?”

O parâmetro para isso não é mais a verdade dos ensinamentos. Isto seria agora demasiado simples, pois, com efeito, também o parâmetro da verdade foi colocado em questão pelos ensinamentos. Tanto quanto ainda pode tratar-se de verdade, esta seria a verdade a respeito das condições sob as quais a verdade ainda seria pensável e suportável37. Por fim, Nietzsche escreveu, em Para Além de Bem e Mal, sobre esta “verdade” da verdade:

Alguma coisa poderia ser verdadeira: ainda que isto fosse um grau supremo nocivo e perigoso; sim, poderia pertencer à constituição fundamental da existência, que a gente sucumbisse no conhecimento completo dela, - de modo que a fortaleza de um espírito se medisse precisamente pelo quanto de ‚verdade‘ que ele ainda suportasse; de modo mais claro, até que grau ele teria necessidade de diluí-la, encobri-la, adoçá-la, embotá-la, falsificá-la (BM 39).

No prefácio a Ecce homo ele formulará isto da seguinte maneira concisa e pregnante: “Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Isto se tornaria para mim sempre mais a autêntica medida de valor (EH, Prefácio 3).

Num outro apontamento de 1887, ele conecta essa força para a verdade sobre a verdade com um “resoluto niilismo”. Logo depois do apontamento-Lenzerheide, ele anotará:

“Quanta ‘verdade’ suporta e ousa um espírito?” Pergunta de sua fortaleza. Um tal pessimismo poderia desembocar naquela forma de um dionisíaco dizer-sim ao mundo tal como ele é, até seu absoluto retorno e eternidade: com o que estaria dado um novo ideal de filosofia e sensibilidade {Uma tal maneira de pensar antecipa toda possibilidade de um resoluto niilismo: com o que não deve ser dito que teria de terminar numa vontade de nada}38.

Também aqui não se pode estar seguro da verdade; não apenas não há aqui nenhum supremo ponto de vista “teórico”, mas, em geral, nenhum ponto fixo mais, no qual a gente poderia se apoiar. Num apontamento preparatório ao prefácio de Ecce homo, Nietzsche cunhará sua fórmula de “filosofia experimental”, com a qual primeiramente ele quer perscrutar “as possibilidades do niilismo mais fundamental”, para desse modo chegar a um “dionisíaco dizer-sim ao mundo”39. Para Nietzsche, o dionisíaco não permite mais nenhum sustentáculo.

Ao final de seu processo de orientação no apontamento-Lenzerheide, Nietzsche se pergunta como um tal resoluto niilismo permanece dominável, portanto, como ele sempre ainda possibilita a orientação, e não impele para um cego, furioso desespero, ao qual, com efeito, o próprio Nietzsche também não sucumbe. Ele formula agora de modo mais precavido, modesto, comedido: a palavra “comedimento”, do terceiro parágrafo, retorna novamente e de novo em sentido afirmativo. Os “mais fortes” poderiam ser precisamente não os mais extremos, mas aqueles “[L 15 b] que podem pensar a respeito do h[omem] com uma significativa moderação de seu valor, sem tornar-se com isso pequenos e fracos”. Estes seriam os “[L 15 c] que estão seguros de seu poder, e os que com orgulho representam a alcançada força do h[omem]”.

O conceito “Além-do-Homem” não é declinado aqui. Com frequência, já se pensou isso de tal modo que precisamente o “Além-do-Homem” ou “os Além-do-Homem” seriam aqueles capazes de pensar o eterno retorno, como “a mais extrema forma de niilismo”, e de viver com isso; e a respeito disso há também indicações em Nietzsche40. Portanto, o ensinamento do Além-do-Homem teria sido esperado justamente aqui, no final do apontamento-Lenzerheide. Nietzsche não o evoca de novo. Ao invés disso, ele agora “modera” o conceito de homem - não em face dos homens costumeiros, dos quais ele permanentemente se distancia, e também faz distanciar-se o seu Zaratustra, mais precisamente em face de um conceito, por sua vez extremo, de Além-do-Homem. O homem tem de se elevar acima do homem de até aqui, que buscou seu apoio na moral cristã ou na moral dela derivada, para se envolver com o mundo que perdeu Deus, e com o niilismo originário e “normal”, e ainda poder orientar-se sob essas condições. Mas, para tanto, ele não tem de ser capaz de algo sobrehumano: ele tem simplesmente de renunciar à certeza absoluta de toda espécie, o que é difícil o bastante, portanto, poder “[L 15 d] não apenas confessar uma boa parte de acaso, sem-sentido, porém amar”.

Não se é dependente de um valor absoluto do homem para estar seguro de seu próprio valor. A gente tem somente de se ter mostrado “à altura da maioria dos infortúnios”, para não “temer tanto outros infortúnios”. A gente tem de, sempre em novos experimentos de orientação, tornar-se “sem medo” (Furchtlosen), como Nietzsche intitulou no quinto livro da Gaia Ciência.

O destemor proveniente de experiências de vida e pensamento, nós o denominamos hoje segurança de orientação; e a segurança de orientação atua, para aqueles que dela têm menos, como superioridade de orientação. Quem pode se orientar pior, segue de bom grado aqueles que melhor o podem, “obedece” a eles, na linguagem de Nietzsche, como “os que ordenam”, reconhece aqui voluntariamente “uma ordem de escalonamento de forças”. Os superiores em orientação, têm, porém, então, “poder” sobre eles - o poder vem da superioridade de orientação, ele não tem de ser mau, ele só se torna assim quando é abusado em proveito próprio dos superiores41. Ele é poder sob condições e por certo tempo e, enquanto tal, é apreciado, não odiado, pelos impotentes, desprovidos de orientação.

A isso segue-se então a conclusão: ao final do apontamento-Lenzerheide, Nietzsche medita sobre o extremo de seu filosofar e o recolhe em refletida moderação. Ele faz isso precisamente aqui, onde ele chegou à extremidade do extremo. Os superiores em orientação, homens poderosos nesse sentido, instituem parâmetros, eles próprios, como “espíritos livres” e “indivíduos soberanos”42. Em suas capacidades de orientação, eles podem estar seguros de que, mesmo em “extremos artigos de fé”, eles não sucumbem mais à magia do extremo, mas a “moderam”. E, portanto, eles são “os mais fortes”: “[L 15 e] [o]s mais comedidos, os que não têm necessidade de extremos artigos de fé.[.]” Quanto à coisa, isto significa que também com o niilismo pode-se viver comedidamente43.

Pergunta aberta pelo valor do efeito do pensamento do eterno retorno

Como isto acontece, Nietzsche não expõe mais aqui. Ele deixa em aberto com pergunta e com um conclusivo travessão: “[L 16] Como um tal homem pensaria no eterno retorno? -” 44. A questão poderia ser uma pergunta retórica: um pensador comedido pensa extremos artigos de fé’ para criar para si o espaço de manobra para poder pensar também de outra maneira. E para tanto, Nietzsche formulou pouco antes disso, também no quinto livro da Gaia Ciência, seu “ideal”,

o ideal de um espírito que ingenuamente, quer dizer, involuntariamente e a partir de uma exuberante abundância e potência joga com tudo aquilo que até aqui foi chamado santo, bom, intocável, divino; para o qual o que há de mais elevado, aquilo em que o povo tem sua justa medida de valor já significaria tanto quanto perigo, declínio, rebaixamento, ou no mínimo algo como distração, cegueira, momentâneo esquecer de si mesmo; o ideal de um humano-sobre-humano bem estar e benevolência, que com suficiente frequência parecerá desumano; por exemplo, ao colocar-se ao lado de toda seriedade terrestre de até então, ao lado de toda espécie de solenidade em gestos, palavra, tom, olhar, moral e tarefa, como sua mais encarnada paródia involuntária - e com o qual , apesar disso tudo, só então talvez se eleve a grande seriedade, só então é colocado o autêntico ponto de interrogação, o destino da alma faça uma inflexão, o ponteiro avance, a tragédia comece... (GC 382)

Já aqui aparece o conceito de Além-do-Homem, na moderada figura “humano-sobre-humano” - em oposição a “Humano, Demasiado Humano”. Nietzsche cita de novo a passagem em Ecce Homo, agora também tendo em vista Zaratustra, que ele tinha deixado ensinar seus maiores ensinamentos (EH, Za 2). Depois de ter-se concentrado, no apontamento-Lenzerheide, ainda uma vez mais, nesses ensinamentos, para alcançar uma visão de conjunto sobre a conexão dos mesmos, os ensinamentos do eterno retorno e do além-do-homem quase não vêm mais à tona depois, na obra promovida à publicação, exceto no olhar retrospectivo de Ecce homo. Permanecem em aberto seu valor e seu efeito.

Uma semana depois do apontamento-Lenzerheide, em 17 de junho de 1887, numa carta de Sils-Maria, ele escreve a Franz Overbeck:

Aguentar esses últimos anos - isto foi talvez o mais difícil que, em geral, meu destino exigiu de mim. A um tal chamado, como foi meu Zaratustra, a partir do mais recôndito da alma, não ouvir nenhum som de resposta, nada, nada, sempre unicamente silenciosa solidão mil vezes multiplicada - isto tem alguma coisa de terrível, que suplanta todo conceito, nisso o mais forte pode sucumbir-- oh, e eu não sou “o mais forte”! Desde então, sinto-me como se tivesse sido mortalmente ferido, eu me admiro de que ainda viva. Mas não há nenhuma dúvida, eu vivo ainda, e quem sabe tudo o que eu ainda tenho de vivenciar! (Carta Nº. 863, KSB 8.93 s.).

Para Nietzsche, de acordo com isso, o mais difícil de tudo não é aguentar seus pensamentos extremos, mas, antes de tudo, permanecer sozinho com eles. E, no entanto, ele não promoveu à publicação o apontamento-Lenzerheide, tão impressionante e de tão grande ajuda para o entendimento de seu filosofar. Por quê? A associação entre os grandes ensinamentos de Zaratustra poderia não ter lhe parecido suficientemente meditada, não suficientemente “amadurecida”: as quebras em sua argumentação, as decisões, por vezes tomadas espontaneamente ao longo do percurso, e que não seguem critérios contínuos, ficaram claras na apresentação de seu processo de orientação. Ele poderia ter se tornado cético em relação aos próprios ensinamentos, mesmo que ele também os inclua em outros planos de obra. Ele poderia tê-los destinado para aquela grande obra, que ele anuncia por volta do final da terceira dissertação de Para a Genealogia da Moral, à qual ele, porém, nunca chega:

- Basta! Basta! Deixemos estas curiosidades e complexidades do espírito mais moderno, nas quais há tanto para rir quanto para se aborrecer: precisamente nosso problema pode prescindir delas, o problema da significação do ideal ascético, - o que tem ele que fazer com ontem e hoje! Aquelas coisas devem ser tratadas por mim num outro contexto, mais fundamentalmente e mais duramente (sob o título ‘Para a História do Niilismo Europeu‘; remeto, para tanto, a uma obra que eu preparo: A Vontade de Poder. Tentativa de uma Transvaloração de Todos os Valores (GM III 27).

Chegado em Sils, Nietzsche redige rápida e correntemente as três dissertações de Para a Genealogia da Moral, para as quais ele já fizera planos. Ele quer agora demonstrar detalhadamente a autossuprassunção da moral, o insight em suas origens imorais - e então interrompe com a “vontade de nada”, a que chegou no parágrafo 11 do apontamento-Lenzerheide. A crítica da moral permanece, então, o único grande tema. O “edifício articulado” de seus pensamentos, também mais tarde Nietzsche não o desenvolve mais. Ao invés disso, ele se decide expressamente contra o “sistema”, mesmo que leve adiante a “tentação” para tanto (CI, Sentenças e Flechas 2). E assim, para isso somos remetidos ao apontamento-Lenzerheide, que não apresenta nenhum sistema, mas um processo de orientação.

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Notas

1 Nota do tradutor: traduzo Rangordnung por ordem de escalonamento, e não por hierarquia, como ocorre com frequência em muitas traduções de Nietzsche, tanto para o português como para outros idiomas. Com esta escolha léxica, evita-se a ressonância metafísica e teológica do termo, induzida pelo étimo hiero [ιɛρο, o sagrado, o sacro, poder sagrado], bem como por archein [αρχɛιν, o princípio, a origem, o poder originário]. Tais associações induzem principalmente aos planos cosmológico, religioso, social e político - e não correspondem às peculiaridades crítico-genealógicas próprias do pensamento de Nietzsche.
2 Conferir nota do tradutor (nota nº 6) abaixo.
4 Carta Franz Overbeck aus Nizza, 24. März 1887, Nr. 820, KSB 8.49. [Nota do tradutor: a sigla KSB corresponde à edição histórico-crítico-filológica das cartas de Nietzsche, organizada por G. Colli e M. Montinari, em oito volumes (1986). A KSB corresponde à KSA (Kritische Studienausgabe), edição histórico-crítico-filológica de estudo dos escritos de Nietzsche, também organizada por G. Colli e M. Montinari, em quinze volumes (1980).
5 Na compilação A Vontade de Poder o apontamento-Lenzerheide foi arbitrariamente desmembrado. Manifestamente os editores Elisabeth Förster-Nietzsche e Heinrich Köselitz não quiseram, por meio dele, irritar sua própria ordenação sistemática dos pensamentos de Nietzsche.
6 O apontamento-Lenzerheide ocupou fortemente a pesquisa; mais recentemente, muitas dissertações e capítulos de livro foram dedicados a ele. O artigo de Horst Baier, „Das Paradies unter dem Schatten der Schwerter“. Die Utopie des Zarathustra jenseits des Nihilismus; in: Nietzsche-Studien 13 (1984), 46-68, aqui 56-59, faz referência a isso detalhadamente, com intenção polemica; Manfred Riedel, Das Lenzerheide-Fragment über den europäischen Nihilismus, in: Nietzsche-Studien 29 (2000), 70-81, e: Nietzsches Lenzerheide-Fragment über den europäischen Nihilismus. Entstehungsgeschichte und Wirkung, o.O., o.J. [2000] discute com eles, com um olhar permanente para o Budismo. Seguem-se Marcus Andreas Born, Nihilistisches Geschichtsdenken. Nietzsches perspektivische Genealogie [Diss. Wuppertal 2009], München (Wilhelm Fink Verlag) 2010, 146-165, e Michael Skowron, Dionysischer Pantheismus. Nietzsches Lenzer Heide-Text über den europäischen Nihilismus und die ewige Wiederkehr/-kunft, in: Nietzscheforschung 20 (2013), 355-377. Todos eles dão prosseguimento ao método de Heidegger de ligar especulativamente os pensamentos do eterno retorno e da vontade de poder com ajuda de “passagens” correspondentes extraídas de escritos de Nietzsche, e tentam indicar um hígido contexto sistemático entre os temas do apontamento. Assim como Heidegger, que só tinha diante de si o apontamento-Lenzerheide na forma fragmentada, na qual o oferecia a compilação A Vontade de Poder, não se fez, na agregação de ulteriores “passagens” às “doutrinas” de Nietzsche nenhuma diferença entre obra e espólio; Riedel, como Heidegger, preferiu o espólio, porque ele via na obra promovida à impressão uma ‘paixão pelo belo falar‘, uma “compulsão para a encenação poética do pensamento” (72 s.). A partir de diferentes formulações por Nietzsche de “retorno” (Wiederkehr) [no parágrafo 6] e “readvento” (Wiederkunft) [nos parágrafos 7, 13, 14, 16], Skowron deriva que o retorno seria niilista, o readvento, porém, superaria o niilismo, e que ambos seriam suprassumidos (aufgehoben) na “vida” como vontade de poder. No entanto, o apontamento-Lenzerheide não proporciona isto. Born considera a interpretação especulativa de Heidegger, que ele refere detalhadamente, ao mesmo tempo ‘profunda‘, mas em sua “completa sistematização” demasiado distante do pensamento de Nietzsche. (163). Eu mesmo apresentei uma primeira exposição do apontamento-Lenzerheide no contexto da interpretação da obra Para a Genealogia da Moral (STEGMAIER, 1994); uma segunda, que a prolonga, em Stegmaier (1999). A exposição seguinte só pode se construir com base na KGW IX e procede rente ao texto, ou contextualmente. Paul van Tongeren (2018) colocou o apontamento-Lenzerheide no ponto central de seu livro. Assim como já Riedel e Born, ele centra o foco sobre a tese do niilismo; no entanto, que ele então desenvolve tendo à mão uma cuidadosa elaboração (Aufarbeitung) de todos os textos de Nietzsche a respeito das diferenciações do niilismo. Todavia, também ele reúne ‘passagens‘ como textos concluídos. Desse modo, o processo filosófico de orientação em Nietzsche, os pontos de detenção e as modalidades de argumentação, que este acrescenta passo a passo, ainda ficam quase invisíveis dessa forma.
7 Espólio [Nachlass=N] verão de 1886 - outono de 1887, KSA 12.211-217, KGW IX 3, N VII 3, 13-24. [Nota do Tradutor: KSA é a sigla para Kritische Studienausgabe, edição crítica de estudos da obra de Nietzsche, editada em 15 volumes por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. KGW é a sigla para Friedrich Nietzsche, Werke. Kritische Gesamtausgabe, Editada originalmente por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Prosseguida por Wolfgang Müller-Lauter; Karl Pestalozzi. Nona Seção (IX. Abteilung: Der Handschriftliche Nachlaß/Espólio Manuscrito) publicada a partir da primavera de 1885 em transcrição diferenciada (facsimilar) por Marie-Luise Haase; Michael Kohlenbach.
8 Uma vez que Nietzsche escreveu no caderno de notas N VII 3 em diferentes direções; e precisamente lá, onde havia lugar, a cronologia dos apontamentos é aqui extraordinariamente difícil de determinar, como Beat Röllin comunicou-me por carta. No entanto, o enquadramento temporal estabelecido por Mette e Montinari entre o verão de 1886 e o outono de 1887 deve ser acertado, ainda que algumas notícias de ocasião nas primeiras e últimas páginas (“Loescher”, “Fino” e outras mais) tenham de provir ainda de Turim, na primavera de 1888. Com frequência, Nietzsche utilizava seus cadernos de anotação uns ao lado dos outros.
9 Espólio, outono de 1885 - outono de 1886, 2[127] e [128], KSA 12.125-128, KGW IX 5, W I 8, 95 s. (ver. Kap. II 2). A compilação A Vontade de Poder se abre com este “aforismo”; Montinari desmembra o apontamento em dois “fragmentos”. No entanto, eles ocupam uma página dupla, e pertencem um ao outro topológica e tematicamente.
10 Paul van Tongeren (2018, p. 99s), tornou claro como o niilismo se apresenta em Nietzsche em muitas dobras e camadas, e encontrou uma feliz formulação para a estrutura destas camadas: “Nietzsche can be said to distinguish four phases of stages of nihilism. These four phases comprise the whole history of European culture from the pre-Socratic Greeks to his own 19th century and beyond that up to our current days. The shortest possible summary-in an inverted chronological order, meant to indicate the dynamics of the development-would probably read as follows: Nihilism is (4) the conscious experience of an antagonism, that is the result of (3) the decline of (2) the protective structure that was built to hide (1) the absurdity of life and world”.
11 Sobre o conceito de Nietzsche de auto-suprassunção (à diferença do de Hegel) comparar. Stegmaier (1992, 299s; e 305 s.); Zittel (1995); Giacoia Jr. (1997).
12 Espólio. Verão 1886 - Outono 1887, 5[72], KSA 12.217, KGW IX 3, N VII 3, 28.
13 Inserção do tradutor.
14 Espólio Verão 1886 - Outono 1887, 5[70], KSA 12.210 f., N VII 3, 8.
15 Nota do tradutor: no original, lê-se “wi” seja, supostamente, grafia reduzida do pronome pessoal Wir (nós).
16 Kant, I. Was heißt: Sich im Denken orientiren? [O que significa orientar-se no pensamento?]. In: Akademie-Ausgabe, Bd. VIII, 131-147, aqui 136-139.
17 Comparar, por exemplo, espólio, final de 1886 - primavera de 1887, 7[6], KSA 12.273-283, hier 274, und 7[62], KSA 12.316 f., aqui 316, Mp XVII 3 (ainda não na KGW IX).
18 Espólio. Outono de 1885 - Outono de 1886, 2[117], KSA 12.120, KGW IX 5, W I 8, 109. Aqui Nietzsche acrescenta novamente ao ‚niilismo‘, no lado direito, palavras-chave numeradas; ‚gênese das estimativas de valor‘, o martelo como o ensinamento que suscita (herbeiführt) a decisão.“
19 Comparar Constâncio (2013).
20 Espólio, outono de 1887, 10 [94], KSA 12.510, KGW IX 6, W II 2, 72. Na versão de Montinari: ‚A magia, que combate por nós, o olho da Vênus, que enfeitiça e torna cego mesmo nosso adversário, isto é a magia do extremo , a sedução que exerce tudo o que há de mais extremo: nós imoralistas - nós somos os extremíssimos ...‘- Comparar Stegmaier (2021).
21 Comparar, nos escritos promovidos à publicação: GM III 27; GD, Moral als Widernatur 6; AC 56.
22 Espólio. Novembro 1887 - Março 1888, 11[148] u. [149], KSA 13.69-71, KGW IX 7, W II 3, 134 f.
23 Tongeren (2018, p. 87-99), reuniu, além disso, outras indicações extraídas de escritos de Nietzsche, principalmente a partir do espólio.
24 Comparar: Stegmaier (2016, p. 256-261); Sommer (2016).
25 Espólio. Verão de 1886 - Outono de 1887, 5[59], KSA 12.206 f., KGW IX 3, N VII 3, 117 f. Em Montinari, o apontamento segue bem de perto o apontamento-Lenzerheide; no caderno de notas, ao contrário, ele está bastante distante. Todavia, tematicamente ambos remetem um ao outro.
26 Quanto ao paralelo com o Budismo, comparar Riedel, Das Lenzerheide-Fragment, 78-81; em relação à permanente referência a Schopenhauer, cf. Constâncio (2012). - Nietzsche não nomeia aqui expressamente Schopenhaer.
27 Sobre a crítica, comparar. Felix Hausdorff alias Paul Mongré (1897); 2004 (p. 349-354).
28 Cartão postal a Franz Overbeck, enviado de Sils-Maria em 30. Juli 1881, Nr. 135, KSB 6.111.
29 Comparar. Stegmaier, Von Nizza nach Sils-Maria, 302.
30 Comparar Rupschus; Stegmaier (2009). Sobre a contraposição entre Nietzsche e Spinoza com vistas ao pensamento-do-retorno, comparar Stegmaier; Boehm (2019). Entrementes, a literatura multilingue sobre Nietzsche e Spinoza não é mais abrangível com um olhar (überschaubar). Exposições próximas ao texto são dadas em Sommer (2012); e Benoit (2014).
31 Nietzsche não menciona - e sobre isto Skowron, Dionysischer Pantheismus, 364, novamente chama a atenção - que Schopenhauer em O Mundo como Vontade e Representação I, § 54 (Sämtliche Werke, hg. v. Arthur Hübscher, Bd. 2, Leipzig: Brockhaus, 1938, 334 f.), considerou o pensamento do ‚retorno‘ do mesmo justamente no sentido em que Nietzsche o introduziu, então, na GC.341, como prova da afirmação da vontade-de-viver: "Um homem que tivesse incorporado firmemente em sua maneira de ver as verdades até agora referidas, mas que, ao mesmo tempo, não tievesse chegado por experiência própria, ou por insight mais amplo a que em toda a vida o sofrimento contínuo há que ser reconhecido como essencial, mas que encontrasse satisfação na vida, para quem nela tudo estivesse perfeitamente bem, e que, em calma ponderação, desejasse o curso de sua vida, tal como ele o experimentou até então, com duração infinita; ou desejasse seu retorno sempre de novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, voluntariamente e com prazer assumisse as mazelas e tormentos, aos quais está submetido, um tal homem se postaria, com firmes, resistentes ossos, sobre o arredondado e duradouro solo da Terra e nada teria a temer“. O ponto de vista de Schopenhauer, no entanto, é diferente do de Nietzsche: se a vida retorna eternamente, para aquele que assim a assume, então não apenas desaparece o medo da morte, mas sua alegria de viver ainda aumenta, ele está o mais longe do suicídio que se possa pensar. A vida torna-se mais leve, não, como para Nietzsche, mais pesada pelo pensamento do retorno. - Que, no apontamento-Lenzerheide, Nietzsche fale do ‘retorno‘ primeiramente entre aspas, poderia ser simplesmente uma indicação de que ele aqui, como frequentemente, pensa em Schopenhauer e se recorde da passagem referenciada; no entanto, depois de, no parágrafo 7, primeiro ainda conservar as aspas, ele se desfaz delas, e nos parágrafos 13, 14 e 16 fala do eterno retorno sem aspas, no sentido que lhe é próprio.
32 Spinoza, Ética, II; escólio ao lema VII, axioma III; in: Spinoza (1967).
33 Espólio; verão de 1887, 10[151], KSA 12.541, KGW IX 6, W II 2, 39.
34 Espólio; verão de 1887, 10[203], KSA 12.580 f., KGW IX 6, W II 2, 1.
35 Espólio; verão - outono 1884, 26[416], KSA 11.262.
36 Espólio, outono de 1887, 9[35], KGW IX 6, W II 1, 115.
37 A diferença entre o espiritual e o social desaparece se Rangordnung é traduzido por hiérachie ou hierarchy, sendo então entendido como hierarquia social e política. Comparar: Alberts (2022; no prelo).
38 Espólio; novembro de 1887 - março de 1888, 11[119], KSA 13.56, KGW IX 7, W II 3, 146, e frequentemente. Nietzsche retoma aqui o tópos da crise: “Eu não louvo, eu não censuro {aqui}, que ele venha: eu creio que há uma das maiores crises, um instante da mais profunda autorreflexão {do homem}: se o homem se recupera disso, se ele domina esta crise, esta é uma pergunta pela sua força: isto é possível...” Ele conclui o apontamento: “o que eu narro é a história dos próximos dois séculos...”
39 Comparar Stegmaier (1985).
40 Espólio; outono de 1887, 10[3], KSA 12.455, KGW IX 6, W II 2, 139.
41 Espólio; primavera - verão de 1888, 16[32], KSA 13.492, KGW IX 9, W II 7, 144.
42 Comparar. Müller-Lauter (2000).
43 Comparar: Stegmaier (2018).
44 Comparar: Giacoia Jr. (2011).
45 Oswaldo Giacoia Jr. mostrou, como se poderia hoje, num outro continente, sob novas condições e com uma nova espécie de “caos” - no Brasil - de maneira comedida “escapar do niilismo”: Giacoia Jr. (2018).
46 Zuletzt konnte Born, Nihilistisches Geschichtsdenken, 157, hier nur „einen bewussten Abbruch des Gedankens“ sehen.

Autor notes

a Tradução de Oswaldo Giacoia Junior.
b WS é filósofo, professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Greifswald e CoEditor dos Nietzsche-Studien, e-mail: stegmai@uni-greifswald.de


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