Artigo

Sobre os sentidos da crise na crítica de Husserl ao naturalismo

About the meanings of the crisis in the critical of Husserl to Naturalism

CARLOS DIÓGENES CÔRTES TOURINHO
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Sobre os sentidos da crise na crítica de Husserl ao naturalismo

Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 300-318, 2022

Pontificia Universidade Catolica Parana

Recepção: 06 Novembro 2021

Aprovação: 04 Fevereiro 2022

Resumo: O presente artigo aborda dois sentidos do tema da crise em Husserl: um teórico e outro prático. O primeiro result a do projeto de naturalização da consciência e das ideias, ao passo que o segundo está relacionado a uma crise da humanidade europeia. O artigo mostra que o diagnóstico husserliano da crise somente se torna possível na medida em que o exercício da tarefa crítica denuncia os contrassensos da doutrina naturalista nos sentidos teórico e prático, revelando a relação indissociável entre ambos.

Palavras-chaves: Edmund Husserl, tarefa crítica, naturalismo, crise da humanidade.

Abstract: The present paper approaches two meanings of the theme of crisis in Husserl: a theoretical and a practical one. The first results from project of naturalization of the consciousness and ideas, while the second is related to crisis in European humanity. The paper shows that the husserlian diagnosis of the crisis is only possible insofar as the exercise of the critical task exposes the contradictions of the naturalist doctrine in the theoretical and practical sense, revealing the inseparable relationship between them.

Keywords: Edmund Husserl, critical task, naturalism, crisis of humanity.

Introdução

Pode-se dizer que a crítica de Husserl ao naturalismo denuncia a ameaça de uma crise que se revela, ao menos, em dois sentidos: um “teórico” e outro “prático”. O primeiro deles é, em grande parte, decorrente do projeto de naturalização da consciência e das ideias (projeto cujos pressupostos incorreriam, conforme veremos, em problemas de fundamentação teórica), ao passo que o segundo encontra-se relacionado a uma crise da cultura e, por conseguinte, da própria humanidade europeia. Mais precisamente, o primeiro sentido nos remete para os contrassensos teóricos do projeto em questão, ao passo que o segundo concentra-se sobre os perigos que tais contrassensos teriam para a cultura, uma vez incorporados na formação da mentalidade do homem europeu. O diagnóstico da iminência de uma crise - em ambos os sentidos “teórico” e “prático” - somente se torna possível, em Husserl, pelo exercício contínuo e permanente de uma “tarefa crítica” (kritische Aufgabe)1. Trata-se, antes de tudo, de examinar, no plano teórico, até que ponto a aceitação de certos pressupostos não implicaria problemas de fundamentos, decorrentes da sobreposição de domínios originariamente heterogêneos (tais como, os domínios do real e do ideal, da psicologia do conhecimento e da teoria do conhecimento etc.). Mas também é parte dessa tarefa diagnosticar em que medida tais contrassensos teóricos não seriam seguidos por contrassensos práticos, responsáveis por uma crise crescente da própria cultura e, mais particularmente, da humanidade europeia, na primeira metade do século XX. A tarefa crítica se torna, neste sentido, uma presença obrigatória ao longo de todo o itinerário husserliano. Do contrário, o próprio programa da fenomenologia estaria na iminência de incorrer nos problemas de fundamentos denunciados por Husserl. Dentre as doutrinas que caem sob a ação de tal tarefa crítica, não há dúvidas de que o Naturalismo - seu discurso e seus pressupostos - torna-se, mais frequentemente, alvo das denúncias husserlianas. O presente artigo tem como objetivo discernir os sentidos teórico e prático de uma crise produzida, aos poucos, pelo naturalismo, elucidando a relação indissociável entre tais sentidos. Passemos, então, a um exame mais detido da luta husserliana contra a doutrina naturalista, da ameaça de uma crise teórica e prática que resulta, aos olhos de Husserl, dessa doutrina e do papel preponderante da tarefa crítica para diagnosticar e, ao menos, aspirar um caminho que pudesse remediar a crise em questão.

O projeto de naturalização da consciência e o sentido “teórico” da crise

Dentre as doutrinas que, em Husserl, caem sob a ação da tarefa crítica, aquela contra a qual o autor lutou ao longo de todo o seu incansável trabalho teórico foi, sem dúvida, a doutrina do Naturalismo. Grosso modo, o discurso naturalista parte da concepção segundo a qual pensar o mundo consiste em pensá-lo tão somente como uma realidade de fatos naturais, incluindo o próprio homem como um fato natural em meio a outros. Alguns naturalistas são citados por Husserl, tais como: Oswald Spengler (1880-1936) e Ernst Haeckel (1834-1919)2. No caso desse último, trata-se de um biólogo e filósofo alemão, cujo trabalho contribuiu, decisivamente, para a disseminação do evolucionismo de Darwin, além de ser um grande expoente do positivismo. Em O Monismo como elo entre Religião e Ciência (Der Monismus als Band zwischen Religion und Wissenschaft), de 1893, Haeckel defende uma “filosofia monista da natureza” (monistischen Naturphilosophie), na qual insiste em uma unidade fundamental da natureza orgânica e inorgânica, ambas subordinadas à determinação de leis físico-químicas, às quais as ciências naturais recorrem para a explicação dos fenômenos da natureza (HAECKEL, [1893]). No que concerne à matéria orgânica, Haeckel apoia-se na teoria evolucionista de que os organismos vivos - distribuídos em graus de complexidade nos reinos “vegetal” e “animal” - se encontrariam subordinados aos mesmos princípios determinantes da evolução das espécies. Seja como for, a concepção monista e, portanto, “unitária” da natureza preserva, em Haeckel, no que concerne à matéria orgânica, o que se convencionou chamar, entre os evolucionistas, princípio de “continuidade filogênica” (NOËL, 1979). Contra toda uma tradição segundo a qual o homem deveria manter-se em descontinuidade em relação ao restante dos animais, o autor defende a referida continuidade, inserindo o homem em uma mesma árvore genealógica juntamente com o restante das espécies. Enquanto um organismo biológico, o homem recebe, segundo Haeckel, estímulos ambientais e responde aos mesmos, procurando manter-se em conformidade com as exigências de adaptação do meio ambiente. As espécies que não forem bem-sucedidas em atender a tais exigências seriam, conforme nos ensina o princípio da seleção natural, extintas do curso da evolução3.

No que concerne, especificamente, ao homem e às origens de sua vida psíquica, Haeckel é categórico em afirmar que, em uma filosofia unitária da natureza, as funções psíquicas do homem não teriam origem senão no sistema nervoso central4. Contra um dualismo metafísico “vertical”, para o qual o espírito e o corpo seriam duas realidades distintas, o autor mantém-se, em seu monismo naturalista, adepto de um dualismo “horizonal” de estímulos ambientais e respostas comportamentais, no qual o homem é apenas um organismo biológico que, juntamente com os demais, responde às exigências de adaptação do meio ambiente. Todas as atividades psíquicas do homem, incluindo a própria consciência - considerada por Haeckel a mais perfeita dessas atividades (HAECKEL, 1893) - derivam, como funções do sistema nervoso central, de uma mesma origem e seriam resultado de um longo período de evolução pelo qual passou o homem como organismo biológico. Como pano de fundo do discurso naturalista, esse dualismo horizontal assumiria, já a partir do final do século XIX e, mais explicitamente, do século XX, um papel decisivo na própria História da Psicologia.

Sabemos que é somente no último quarto do século XIX que a psicologia aspiraria, pela primeira vez em sua história, a um estatuto de “cientificidade”, aliando-se com o método experimental das ciências naturais. Apoiado na psicofísica de Theodor Fechner (1801-1887), para quem as ocorrências mentais estariam, indissociavelmente, relacionadas a correlatos fisiológicos5, o projeto da psicologia experimental teria início em Leipzig com Wilhelm Wundt (1832-1920), a quem os comentadores atribuem o mérito de criar o primeiro laboratório e a primeira revista de psicologia experimental de que se têm notícias na Europa (DWELSHAUVERS, 1912). Batizada sob o nome de “Psicologia Fisiológica” (physiologischen Psychologie), tal ciência debutante investigaria, inicialmente, nos laboratórios de Leipzig, o tempo de reação das sensações que, por sua vez, seriam consideradas por Wundt como os elementos últimos fisiológicos dos estados mentais6. Num cenário fortemente marcado pelo ideário positivista de ciência (segundo o qual conhecer não é senão descrever a regularidade dos fenômenos observados, inferindo, indutivamente, generalizações empíricas a partir de tal regularidade descrita), a psicologia que até então não era mais do que uma ciência debutante entre as ciências experimentais, seria, em pouco tempo, como nos diz o próprio Husserl em seu seminário de inverno de 1923/1924, intitulado Filosofia Primeira (Erste Philosophie), alçada ao posto de “protótipo da ciência autêntica em geral” (Prototyp echter Wissenschaft überhaupt) (HUSSERL, [1923/1924] 1956, p. 101). Por ter como objeto de investigação o homem como um ente psicofísico, sujeito psicológico (dotado de faculdades “cognoscitivas”), a psicologia tornava-se, apoiada no naturalismo, uma espécie de “philosophie première” (HOUSSET, 2000)7, assumindo o posto de uma ciência na qual encontraríamos os fundamentos para as ciências em geral e, até mesmo, para as ciências formais, tais como a Lógica e a Matemática. Nascia, então, o que se convencionou chamar “psicologismo” (uma tendência cujos contornos mais nítidos se consolidariam, cada vez mais, ao final do século XIX, tendo como adeptos um elenco de autores, tais como: Wundt, Mill, Lipps, Sigwart, dentre outros), conforme Husserl nos chama a atenção desde 1896 em Halle e, mais particularmente, em “Prolegômenos à Lógica Pura” (“Prolegomena zur reinen Logik”), publicado em 1900 como volume introdutório de suas Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen) (HUSSERL, [1900], 1913). Em seu projeto de fundamentação da Lógica na Psicologia, o psicologismo - consolidando, nos termos de Theodor Lipps, uma “física do pensar” (Physik des Denkens)8 - trata os princípios lógicos, as chamadas “leis do pensamento” (Gesetze des Denkens), em termos de leis naturais do pensamento, incorrendo em uma confusão de domínios entre o juízo como ato psicológico de pensar e o juízo como unidade ideal da lógica, tornando, enfim, homogêneos domínios de investigação que são, fundamentalmente, heterogêneos. Eis, grosso modo, o problema de fundamentos no qual incorre o psicologismo.

O assentamento das ciências da natureza (e, mais especificamente, da própria psicologia experimental) no discurso naturalista conduz, em última instância, como notamos com o psicologismo, ao projeto de naturalização de ideias (no qual conteúdos ideais do pensamento seriam reduzidos a meras ocorrências psicológicas), alinhado a uma naturalização da consciência (considerada tão somente como uma função do sistema nervoso central, conforme afirma Haeckel). Se o discurso naturalista consiste em pensar, inicialmente, a natureza como um todo unitário (unindo, como fatos naturais, a realidade orgânica e inorgânica), ao se voltar para o homem (concebendo-o como um “fato natural” em meio a outros), tal discurso se fecha em torno dessa dupla naturalização (das “ideias” e da “consciência”), cujos pressupostos incorrem, conforme vimos, em problema de fundamentos. A denúncia desse problema é resultado da postura incansável de Husserl em exercer a tarefa crítica, motivada, de certo modo, pela preocupação de que a filosofia pudesse incorrer em uma crise sem precedentes, ao se esvair em um naturalismo e, mais particularmente, nos contrassensos teóricos inerentes aos pressupostos naturalistas. Afinal, o relativismo cético inerente a esses pressupostos seria iminente, não deixando de se constituir com uma ameaça para a própria filosofia9. Para além de tais contrassensos, a tarefa crítica revelaria, nos anos subsequentes, as perigosas implicações da aceitação dos referidos pressupostos na formação da mentalidade do homem europeu. Passemos, então, para o outro sentido da crise.

Os perigos do naturalismo para a cultura e o sentido “prático” da crise

Após a primeira década, no importante artigo publicado em 1911 para o primeiro número da Revista Logos, intitulado “A Filosofia como Ciência de Rigor” (“Philosophie als strenge Wissenschaft”), Husserl volta a fazer, na primeira parte do artigo, severas críticas à doutrina naturalista, bem como aos contrassensos teóricos nos quais incorreriam seus pressupostos. O assentamento das ciências em um solo naturalista conduz, em última instância, ao projeto de naturalização das ideias (Naturalisierung der Ideen), alinhado à naturalização da consciência (Naturalisierung des Bewuβtseins). Se o exercício da tarefa crítica se volta, fundamentalmente, na primeira década do século XX, para a missão de denunciar os referidos contrassensos teóricos, ao final do prefácio do artigo de 1911, Husserl parece manifestar uma preocupação que, até então, não víamos, ao menos, explicitamente: a de que “...os contrassensos teóricos são inevitavelmente seguidos por contrassensos (discordâncias evidentes) no procedimento atual, teórico, axiológico e ético” (HUSSERL, [1911], p. 295). Daí a frase de Husserl, no artigo em questão, segundo a qual o naturalismo “significa uma ameaça crescente para a nossa cultura” (HUSSERL, [1911], p. 293)10. Trata-se apenas do primeiro sinal de uma preocupação que ainda se mantinha incipiente, mas que se intensificaria na década seguinte.

O próprio Husserl reconhece, em carta a Arnold Metzger, de 1919, que a Primeira Guerra Mundial (cuja ocorrência se deu entre 1914 e 1917) abalaria, decisivamente, os seus trabalhos teóricos (McCORMICK; ELLISTON 1981). Após a publicação de Ideias I (em 1913), o autor viveria, nos anos seguintes, uma situação dramática no plano pessoal: além de assistir, por conta da guerra, o desmembramento do círculo de colaboradores do período de Göttingen, testemunha a perda do colaborador e amigo pessoal Adolph Reinach (falecido em 1917, aos 24 anos, nos campos de batalha), além do filho mais novo, Wolfgang, morto igualmente no front, um ano antes. Se Husserl vive um verdadeiro drama na vida pessoal, enquanto filósofo o autor constrói uma espécie de “muro espiritual”, para que este que pudesse, na medida do possível, atenuar os impactos vividos durante e após a Primeira Grande Guerra. Mas, como lembra Arion Kelkel e René Schérer (KELKEL; SCHÉRER, 1964), para Husserl, fatos são fatos e é preciso aceitá-los. Sua resignação não significa, contudo, indiferença. Nas palavras do próprio autor: “O papel de espectador desinteressado é, demasiadamente, difícil de levar em conta nesta época por pessoas da nossa espécie” (apudKELKEL; SCHÉRER, 1964, p. 2). Recolhendo-se nessa muralha espiritual, indo até o seu limite máximo, Husserl não perderá de vista a sua intenção primária de constituir a filosofia como uma “ciência de rigor” (strenge Wissenschaft), cujos fundamentos serviriam de referência para as demais ciências11. Mas, para isso, o exercício da tarefa crítica face aos pressupostos naturalistas não poderia ser interrompido.

Um elenco de cartas e pequenos manuscritos, dirigido a Rudolf Eucken (1846-1926), Georges Bernard Shaw (1856-1950) e Arnold Metzger (1892-1974), redigido entre 1916 e 1919, deixa claro o engajamento de Husserl na continuação do exercício da tarefa crítica frente ao naturalismo12. Na carta a Metzger - para quem a crise seria o resultado de uma alienação da sociedade alemã frente aos seus próprios ideais autênticos, equiparando tais ideais a tudo aquilo que pudesse ser “útil”13 - Husserl reconhece que, ao final do século XIX, não notava ainda um crescente vazio de ideias e de metas diretoras, dominante na cultura europeia como um todo. Neste sentido, o autor admite que se dedicou, quase que exclusivamente, ao longo das duas primeiras décadas do século XX, ao desenvolvimento de um trabalho eminentemente teórico, tendo pouco olhar para os assuntos relacionados à vida prática e cultural, bem como pouca familiaridade com a diversidade cultural dos povos em geral14.

Mas, o contexto da época, além, é claro, de todo o drama pessoal, forçavam Husserl a desenvolver um trabalho que pudesse explorar, na crítica ao naturalismo, a frase do prefácio do artigo de 1911 sobre o perigo crescente que o naturalismo representa para a cultura. Mais precisamente, forçavam Husserl a apresentar um diagnóstico da crise. Afinal, qual a etiologia da crise vivida pelo homem europeu, consolidada com a Primeira Grande Guerra? Até que ponto os contrassensos teóricos dos pressupostos naturalistas não seriam, efetivamente, seguidos por contrassensos ético-sociais? Afinal, tais pressupostos foram, acriticamente, assumidos na formação da mentalidade do homem europeu, no seio de uma cultura que, cada vez mais, sobretudo, após a Primeira Guerra, dava sinais claros de um abalo significativo.

Um ponto marcante nas reflexões de Husserl sobre a crise da cultura ao final da segunda década nos remete para as célebres “Lições sobre Fichte” (Fichtes Menschheitsideal/ Drei Vorlesungen 1917) ministradas - em seu primeiro ciclo, para ex-combatentes que acabavam de chegar da guerra - em três ocasiões, na Universidade de Freiburg, entre 1917 e 191815. Na primeira dessas lições, Husserl deixa claro que, especificamente, o povo alemão sucumbiu, apoiando-se nas novas ciências exatas e dominados pela cultura da técnica, a uma espécie de “desvio” e, portanto, de afastamento, de toda uma tradição intelectual alemã (nas ciências, nas artes e na filosofia), da qual fazem parte Kepler, Göethe, Leibniz, Kant e seus sucessores. Aos olhos de Husserl, essa tradição caiu em declínio profundo no meio intelectual alemão a partir do final do século XIX. Com o intuito de revigorá-la, tais lições concentram-se em Fichte, a quem Husserl considera o porta-voz do espírito do Idealismo Alemão no século XIX, justamente por fomentar no povo alemão, após a invasão da Prússia por Napoleão, um “retorno interior a elevados ideais éticos e religiosos” (HUSSERL, [1917/1918] 1987, I, p. 268)16.

Em tais lições, Husserl nos fala dos cinco estágios do desenvolvimento moral da humanidade em Fichte. Confinada, inicialmente, ao domínio da experiência sensível (no qual se deixa impulsionar tão somente pelo que satisfaz os sentidos), a vontade humana não se apercebe e, com isso, mantem-se afastada de um agir em conformidade com o dever moral (“o segundo passo da humanidade, o primeiro para a vida verdadeira...”) (HUSSERL, [1917/1918] 1987, p. 286)17. Se a passagem dos impulsos da sensualidade para a “voz do dever” se torna necessária - como uma espécie de “renascimento interno” - para o desenvolvimento moral da humanidade, tal passagem não é, contudo, suficiente para se pensar uma moralidade superior, pois essa não pode consistir tão somente em um estado de mera negatividade dos sentidos e num amor formal à liberdade, conforme encontramos, segundo Fichte, na apatia dos Estoicos, cuja autonomia torna-se algo “frio e vazio” (kalten und leeren) (HUSSERL, [1917/1918] 1987, III, p. 287)18. Tal formalismo carece, portanto, de conteúdo e, mais precisamente, da determinação de valores positivos absolutos, mantendo-se, assim, como uma mera “eticidade” (Sittlichkeit). Aspirando a uma moralidade (Moralität) “superior e autêntica”, o segundo nível seria, então, em Fichte, sucedido por estágios subsequentes, identificados, respectivamente, pelo amor positivo a valores eternos que oferecem ao dever o seu conteúdo, tais como, o Belo e o Bem (Schön und Gute)19, e pela compreensão da importância desse amor como um “fim” - em sentido religioso, de uma consciência da unidade com Deus, na qual cada indivíduo se auto compreende como efeito das Ideias divinas, tornando-se ciente disso no amor de Deus (HUSSERL, [1917/1918] 1987, III). Por fim, o ponto mais elevado desse itinerário não consistiria, propriamente, em uma consciência meramente religiosa de Deus, mas sim quando a conectividade do divino e da vida humana torna-se tema de uma ciência perfeita e absoluta, capaz de fazer com que a fé seja elevada ao estatuto de uma intuição mais profunda do “porquê” e “como” (“Warum und Wie”) religiosos, permitindo, enfim, que a revelação de Deus no interior da pessoa humana atinja o seu nível mais alto (HUSSERL, [1917/1918] 1987, III, p. 292). Tem-se, assim, nas Lições sobre Fichte, o entrecruzamento definitivo dos domínios da Moralidade e da Religião.

Tais lições de 1917 e 1918 se tornam importantes, pois, anunciam, em Husserl, uma preocupação explícita com a crise vivida pela humanidade europeia, resultado de um “desvio” que, por sua vez, somente poderia ser remediado por um retorno a questões fundamentais relacionadas à vida prática, algo que somente se tornaria possível por meio da ideia de “renovação”, tematizada por Husserl cinco anos mais tarde no primeiro artigo publicado na revista japonesa Kaizo20.

O início dos anos 20 é marcado por uma nova rodada de reafirmação das críticas de Husserl ao naturalismo. Na Segunda Parte do Volume I do seminário de inverno de 1923/1924, intitulado Filosofia Primeira (Erste Philosophie), após fazer um histórico das origens do psicologismo, ao identificar em John Locke o grande patrono do “psicologismo epistemológico” e responsável por defender uma concepção naturalista da consciência, Husserl afirma, na Lição 17 do Capítulo 2, que enquanto o psicologismo (contendo o seu projeto de naturalização das ideias, alinhado à naturalização da consciência), bem como o objetivismo (para o qual não haveria outra realidade que não fosse, propriamente, uma realidade de fatos naturais objetivos, validada pela verificação) não fosse superado, nenhuma filosofia da razão se tornaria possível, ou melhor, nos termos do autor, nenhuma filosofia seria possível, seja ela qual fosse21.

Mas, os impactos de tal ameaça não deixariam de repercutir, uma vez mais, no mesmo período, nas reflexões sobre a crise da Europa. Eis o momento desse itinerário no qual os sentidos teórico e prático da crise encontram-se, explicitamente, lado a lado na crítica de Husserl ao naturalismo. Ao mesmo tempo em que ministrava o seminário de inverno de 1923/1924, publicava os seus primeiros artigos na Revista japonesa Kaizo, cuja palavra significa, justamente, “renovação” (Erneuerung). No primeiro desses artigos, intitulado “Renovação: Seu problema e Método” (“Erneuerung. Ihr Problem und ihre Methode”), de 1923, Husserl é categórico, ao afirmar que: a Europa está em crise e “Algo novo tem de ser feito” (“Ein Neues muß werden”) (HUSSERL, [1923] 1989, p. 4). A denúncia sobre os contrassensos teóricos dos pressupostos naturalistas revela agora a sua relação indissociável com as implicações de tais contrassensos na própria cultura europeia. O artigo em questão deixa claro a exigência de duas ações (conforme as Lições de 1917/1918 já previam, de certa forma): uma que pudesse diagnosticar a etiologia da crise e outra que pudesse aspirar um caminho para remediá-la. Reaparece, no referido artigo, a ideia da crise como resultado de um “desvio”, uma vez que, ao assumir pressupostos naturalistas, tal humanidade europeia afastara-se daquilo que Husserl considera ser o caminho de uma “humanitas autêntica” (echter Humanität). Mais precisamente, trata-se de um caminho que poderia recolocar o homem europeu em vias de exercer, novamente, uma racionalidade efetiva, o que, por sua vez, permitiria a essa humanidade reacender a aspiração por ideias e ideais absolutos, válidos incondicionalmente, independentemente de quaisquer acidentalidades. Ao fazê-lo, esse homem poderia, então, novamente, vivenciar a excelência de ser um membro importante dessa humanidade e de colaborar decisivamente com tal cultura, elevando-se acima de suas “preocupações e infortúnios individuais” (individuellen Sorgen und Mißgeschicke) (HUSSERL, [1923] 1989, p. 3). Eis, portanto, um momento do itinerário husserliano no qual a crítica ao naturalismo se torna peça fundamental para se pensar a recondução do homem europeu ao lugar no qual se entrecruzariam anseios cognitivos e éticos. Husserl anuncia, então, no artigo em questão, a necessidade de uma reforma racional da cultura (rationale Kulturreform) que começasse por reformar, justamente, a cultura fática (cuja atenção concentra-se tão somente em “matter of fact”), reacendendo, assim, nos círculos mais alargados do povo europeu, aquilo que se perdeu: a crença no exercício de uma racionalidade efetiva que pudesse permitir a esse homem aspirar, novamente, a um estado de excelência.

Mas, se o início da década de 20 traz os primeiros ensaios de Husserl acerca das reflexões sobre a crise da Europa, pouco mais de uma década após a publicação do primeiro artigo na revista japonesa, o autor consolida, definitivamente, tais reflexões. A famosa conferência de Viena, de 1935, traz uma nova rodada nas tentativas de Husserl de apresentar, junto ao público europeu, um novo diagnóstico da etiologia da crise da humanidade europeia. Afinal, tal humanidade encontrava-se, espiritualmente, “enferma”. Neste sentido, Husserl indaga: como se explica que uma medicina dos corpos tenha, no último século, logrado êxito em seus avanços e, no que concerne à medicina da vida do espírito (das nações e comunidades supranacionais), a civilização europeia não tenha testemunhado um êxito similar? (HUSSERL, [1935] 1976, I). A tese de Husserl consiste, grosso modo, em mostrar que, ao assumir os pressupostos naturalistas, a humanidade europeia sucumbiu a um esquecimento daquilo que o próprio autor considera a “forma espiritual” (geistige Gestalt) do homem europeu: a filosofia que, como forma cultural peculiar, promove uma “mudança” (Umstellung) de posição dos homens face ao mundo circundante, fazendo com que os mesmos não mais se limitem aos seus problemas finitos e circunstanciais, mas se voltem, nos termos do autor, para “tarefas infinitas” (unendlichen Aufgaben), capazes de religar cada indivíduo à humanidade como um todo. Pelo exercício da filosofia (irradiada, já na Antiguidade, em núcleos comunitários cada vez mais abrangentes), a figura deste novo homem - na condição de um “espectador desinteressado” (unbeteiligten Zuschauer) que somente aspira ver e descrever adequadamente as coisas - resolve dedicar a sua vida à teoria. Dada a radicalidade da posição filosófica, Husserl vê, na Filosofia, ao final da Parte I da conferência de Viena, uma forma cultural que deve exercer, de maneira contínua, a sua função de “arconte” (archontische) da humanidade europeia, capaz de guiá-la, teleologicamente, em sua evolução espiritual (HUSSERL, [1935] 1976, I). Porém, o grande obstáculo a tal restituição da unidade teleológica da vida espiritual do homem europeu consistiria em reverter o estado de pessimismo e descrença em relação às aspirações do ideal da razão filosófica, conforme Hussel já indicava desde 1923.

Combater o naturalismo e seus pressupostos, denunciar seus contrassensos teóricos e práticos, tornava-se uma tarefa inadiável. Inevitavelmente, o combate ao discurso naturalista manteria firme a crítica ao projeto de naturalização da vida do espírito. Daí Husserl alertar, na Parte II da conferência de Viena, para o absurdo da ingenuidade unilateral de se conceber o espírito em termos de uma só realidade psicofisiológica. Nas palavras do autor: “É um contrassenso considerar a realidade do espírito como um anexo real do corpo, atribuindo-lhe um ser espaço temporal dentro da natureza” (HUSSERL, [1935] 1976, II, p. 342)22. Ao reduzir o homem a um mero fato natural, a um organismo biológico que, dentre outros, responde, tão somente, em termos adaptativos, às exigências do meio ambiente, o naturalista trata, como vimos, a consciência como uma mera função do sistema nervoso central, desconhecendo os contrassensos inerentes a essa concepção.

O grande e último testemunho de Husserl contra os contrassensos dos pressupostos naturalistas acontece com a publicação (em vida) dos capítulos iniciais de A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie), em 1936. Como o próprio autor nos diz, os verdadeiros combates do nosso tempo são os combates entre uma humanidade já arruinada pela guerra, reduzida ao solo de suas particularidades, tais como nação, raça e cultura específicas (confinada ao objetivismo positivista de solo naturalista), e outra que ainda resiste e luta pela sua “autocompreensão” (Selbstverständnis), por uma nova radicação neste solo espiritual originário, mantendo a crença no ideal de uma philosophia perenis (HUSSERL, [1936] 1976). A aceitação de um solo meramente geográfico, circunscrito a cada uma das nações europeias, abriria, novamente, as portas para um relativismo cético, denunciado, no plano teórico, pela tarefa crítica. Daí o tom alarmante do discurso de Husserl, ao final do § 5 de A Crise das Ciências Europeias: “Nós, homens do presente, que surgimos neste desenvolvimento, encontramo-nos no grande perigo de nos afundarmos no dilúvio cético e, assim, de deixar escapar a nossa verdade própria” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 12)23. Afinal, perder a crença na possibilidade de se atribuir um sentido racional à existência, bem como ao mundo, implicaria, para Husserl, perder a crença no próprio homem enquanto “ser racional”, o que ameaçaria, aos olhos do autor, a própria filosofia, colocando-a na iminência de se esvair nos contrassensos inerentes ao discurso e pressupostos do naturalismo.

Considerações finais

A crítica de Husserl ao naturalismo nos chama a atenção para a ameaça de uma crise que tem, ao menos, dois sentidos indissociáveis: um teórico e outro prático. O exercício da tarefa crítica denuncia, por um lado, contrassensos teóricos inerentes ao projeto de naturalização da consciência e das ideias e, por outro, os impactos decorrentes da aceitação dos pressupostos naturalistas na formação da mentalidade do homem europeu. Além de denunciar os contrassensos do naturalismo, o exercício da tarefa crítica em Husserl nos mostra o entrecruzamento de uma preocupação que era, inicialmente, teórica e, aos poucos, passa a estar relacionada à vida prática. O exercício da tarefa em questão assume um lugar decisivo, enquanto uma “chave” que jamais se desliga no itinerário husserliano. Caberá a Husserl não apenas diagnosticar a etiologia da crise espiritual da humanidade europeia, mas também de apontar um caminho que pudesse remediá-la. Conforme mostramos, tal diagnóstico husserliano nos chama a atenção para um desvio dessa humanidade do caminho no qual o homem se encontraria, aos olhos de Husserl, em condições de dedicar a sua vida à teoria, tomando para si a tarefa de ver e descrever adequadamente as coisas. O retorno a este “solo espiritual” exigiria, por sua vez, como forma de remediar tal enfermidade espiritual, a colocação em prática de uma reforma da cultura fática, para a qual o homem não seria senão um fato natural. Afinal, qual lugar restaria para a filosofia em um mundo no qual os homens somente pudessem considerar como válido aquilo que se pudesse verificar objetivamente como um “fato”?

Nunca é demais lembrar que o século XX foi marcado por um avanço exponencial dos programas de pesquisa em Neurociência e em Inteligência Artificial, consolidando, na segunda metade do mesmo século, dentro do que se convencionou chamar de “Filosofia da Mente Contemporânea”, correntes de pensamento para as quais os estados mentais seriam reduzidos a propriedades físicas do cérebro ou mesmo a capacidades funcionais específicas, passíveis de serem executadas por outros sistemas (tais como, os computadores ditos “inteligentes”). Na consolidação desse cenário, vemos surgir a aspiração pelo projeto de uma “ciência da consciência”, nos moldes dos referidos programas de pesquisa24. Pode-se dizer, grosso modo, que os pressupostos naturalistas estariam na base da aspiração em questão e, com isso, o projeto de uma “biologia da consciência” assumiria um lugar de destaque25. Tudo isso acaba tornando, nesse mesmo cenário, as críticas de Husserl um tanto quanto atuais, seja no que se refere aos contrassensos teóricos inerentes à aceitação incondicional de uma neurophilosophy, seja no que concerne aos “perigos” que tal aceitação poderia representar para a vida prática26. Husserl parece ter tido, em seu tempo, uma atitude visionária, ao perceber tais contrassensos naturalistas.

Seja como for, a crise da humanidade europeia é, na visão de Husserl, o resultado de uma crise das ciências de seu tempo que, apoiadas nos pressupostos naturalistas e seduzidas pelas aspirações positivistas da época, terminam por “dar as costas” à própria filosofia (ciência primeira da qual derivaram, sistematicamente, as demais ciências), desamparando, assim, uma humanidade cuja existência encontrava-se reduzida à sua acidentalidade. Restaria, então, a difícil tarefa de recolocar tal humanidade no caminho do qual ela própria se afastou, restabelecendo, com isso, a unidade de sua vida espiritual. Tarefa essa que Husserl não pôde, em vida, presenciar, pois veio a falecer às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Mas, ainda assim, não se eximiu de denunciar os contrassensos que estariam na etiologia dessa crise, alertando-nos para a relação indissociável entre os seus sentidos “teórico” e “prático”.

Referências

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Notas

1 Pode-se dizer que, em Husserl, a tarefa crítica procura não somente exercer uma reflexão teórico-cognoscitiva sobre os fundamentos do conhecimento objetivo, nos alertando para a ingenuidade epistêmica das ciências positivas da natureza que, por sua vez, “dão as costas” para tal reflexão, mas procura também denunciar os contrassensos teóricos inerentes aos pressupostos naturalistas assumidos por tais ciências. Sobre o exercício da referida tarefa pela Teoria do Conhecimento, recomendamos a leitura dos §§ 32 e 33 do Capítulo 5 do curso de 1906/1907, intitulado “Introdução à Lógica e Teoria do Conhecimento”. Cf. Husserl, E. Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie - Vorlesungen1906/07. Husserliana (Band XXIV). Dordrecht, The Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1906/1907] 1984).
2 Em “Philosophie als strenge Wissenschaft” (1911), Husserl no diz: “O naturalista doutrina, prega, moraliza, reforma” (Der Naturalist lehrt, predigt, moralisiert, reformiert). Cf. Husserl, E. “Philosophie als strenge Wissenschaft”, p. 295. Ao final da frase, em nota de rodapé, o autor destaca: “Häckel e Ostwald podem nos servir como excelentes representantes [do naturalismo]” (“Häckel und Ostwald können uns dabei als hervorragenden Repräsentanten dienen”). Cf. Idem.
3 Sobre a especificidade do princípio de seleção natural em Darwin (Cf. NOËL, E. Le darwinisme aujourd´hui, pp. 33-53).
4 Nos termos de Haeckel: “toda atividade psíquica do homem, e mesmo a sua consciência, derivam de uma mesma origem, como funções do sistema nervoso central e, do ponto de vista monista, devem ser submetidos ao mesmo raciocínio”. Cf. Haeckel, E. Der Monismus als Band zwischen Religion und Wissenschaft, p. 23.
5 Para Fechner, a diferença entre mente e matéria seria apenas uma diferença no ponto de vista a partir do qual a entidade psicofísica poderia ser observada. Nos termos do autor: “Quando nos colocamos dentro de um círculo, seu lado convexo está escondido, coberto pelo lado côncavo; inversamente, quando nos colocamos fora do círculo, o lado côncavo é coberto pelo convexo. Ambos os lados estão indivisivelmente ligados tanto quanto o lado material e o mental do homem, e podem ser vistos como análogos aos seus lados interno e externo”. Cf. Fechner, G. T. Elements of Psychophysics. Volume I; pp. 2-4.
6 Segundo Georges Dwelshauvers, o pressuposto de que existe um “paralelismo” entre os elementos da vida mental e as excitações exteriores é o postulado básico da psicologia experimental empreendida por Wundt. Cf. Dwelshauvers, G. “Wilhelm Wundt et la Psychologie Expérimentale”, p. 141.
7 “O naturalismo é, então, levado a fazer da psicologia a filosofia primeira” (Cf. HOUSSET, 2000 p. 29).
8 Lipps afirma que a lógica é uma física do pensar ou ela não é nada (“Die Logik ist dann auch nach dieser Aufassung ihrer Aufgabe Physik des Denkens oder sie ist überhaupt nichts”). Cf. Husserl, E. “Prolegomena zurreinen Logik”, § 19, p. 55.
9 Pode-se dizer que, no modo de consideração natural, por mais êxito que o pensamento obtenha, fica confinado a inferir, a partir da observação dos fatos, proposições que não são senão “generalizações empíricas” que, como tais, não perdem o seu cariz episódico. Tais proposições inferidas dos fatos nos levariam, inevitavelmente, a um domínio de contingências. Se afirmarmos, em conformidade com o pensamento natural, a tese segundo a qual “todas” as proposições inferidas pelo pensamento consistem em generalizações da observação de fatos, estaremos supondo, ao menos, que a própria tese afirmada é uma “exceção” à regra. Do contrário, ela própria seria também o resultado de uma inferência de tal observação. Inviabiliza-se, com a referida tese naturalista, a apreensão intelectiva de conteúdos de pensamento que tenham valor absoluto, mantendo, com isso, as portas abertas para um relativismo cético.
10 “...eine wachsende Gefahr für unsere Kultur bedeutet”.
11 Segundo Alexandre Fradique Morujão, “Das Investigações Lógicas a A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, uma intenção primária dá corpo e articula os sucessivos trabalhos de Husserl, inéditos ou não. Esse denominador comum, podemos defini-lo como a exigência da filosofia como ciência rigorosa” (MORUJÃO, 2002, p. 147).
12 Sobre a crítica de Husserl ao naturalismo nas cartas mencionadas acima (Cf. MCCORMICK, P.; ELLISTON, F. “Selected Letters”. In: McCORMICK, P.; ELLISTON, F. Husserl, shorter Works, p. 352-364).
13 Cf. KOHÁK, E. “Edmund Husserl´s Letter to Arnold Metzger”. In: McCORMICK, P.; ELLISTON, F. Husserl, shorter Works, p. 358.
14 Sobre o depoimento de Husserl a Metzger (Cf. MCCORMICK, P.; ELLISTON, F. “Selected Letters”. In: MCCORMICK, P.; ELLISTON, F. Husserl, shorter Works, p. 360). Ainda sobre esse depoimento, James Hart (1995) lembra que Husserl parecia quase melancólico com sua falta de capacidade para entrar na política como outros filósofos o fizeram. Hart chama a atenção para duas passagens da carta a Metzger: o trecho no qual Husserl testemunha ter sido avisado, como Sócrates, por seu daimonion, para viver puramente como um teórico, como um “filósofo científico”; a passagem na qual Husserl admite que a tarefa de escrever um artigo sobre a guerra teria despertado nele um “rebuliço filosófico pretensioso”. Cf. Hart, J. “Husserl and Fichte: With special regard to Husserl´s lectures on ‘Fichte´s ideal of humanity’”, p. 138.
15 É preciso ressaltar que tais lições de 1917/1918 não representam um primeiro contato de Husserl com os escritos de Fichte. Ainda no período de Göttingen, nos cursos de verão de 1903, 1915 e 1918, Husserl ministrou cursos sobre A vocação do Homem, obra publicada em 1800. Após o período de 1918, embora não tenha, explicitamente, oferecido seminários sobre Fichte, os cursos sobre ética de 1919, 1920, 1921 e 1924 contêm seções dedicadas a Fichte, bem como a temas fichteanos. Sobre o assunto, conferir o excelente artigo de James G. Hart (HART, J. G. 1995, p. 135).
16 “...eine Innenwendung zu höchsten religiösen und ethischen Ideen”.
17Die zweite Menschheitsstufe, die erste zum wahren Leben...”.
18 “Também é claro que o estóico, que vive em uma postura defensiva constante contra os ataques de desejos sensíveis, é, portanto, ainda dependente desta postura, ainda intimamente ligado a ela e ainda sente o seu poder” (Es ist auch klar, dass der Stoiker in beständiger Abwehrstellung gegen die sinnliche Begierde lebt, also noch von ihr abhängig ist noch an ihr innerlich hängt, ihre Gewalt noch fühlt.) (HUSSERL, [1917/1918] 1987, III, p. 287).
19 “Mas se eles aparecem e enchem o coração de um amor entusiasmado, então o comando do dever chega tarde demais. O Belo e o Bem já se encontram escolhidos e realizados” (Sind sie aber in den Blick getreten und erfüllen sie das Hertz mit begeisterter Liebe, dann kommt das Pflichtegebot zu spät. Das Schöne und Gute ist schon gewählt und getan) (HUSSERL, [1917/1918] 1987, III, p. 287).
20 É importante destacar, contudo, uma mudança na posição de Husserl frente aos escritos de Fichte, sobretudo, quando comparamos as posições do autor nos períodos de Göttingen e de Freiburg. Inicialmente, Husserl se mostra um crítico de Fichte, conforme podemos constatar, a propósito do debate sobre o caráter originário do Eu da apercepção transcendental, na resposta do autor à carta de William Hocking, escrita em 1903: “Você não deve se deixar seduzir pela falta de clareza de Fichte e dos neofichteanos” (apud Hart, J. G 1995, 136). As considerações de Fichte sobre a ideia do eu da apercepção transcendental fizeram, conforme assinala Husserl, com que tal ideia fosse “imperfeitamente desenvolvida e esclarecida”, exercendo uma “influência maliciosa” (apud Hart, J. G 1995, 136). O tom duro das palavras de Husserl na primeira década daria lugar, com o passar dos anos, a um discurso elogioso e entusiasmado do autor para com os escritos de Fichte. Em 1915, Husserl diz a Heinrich Rickert que se “sentia em casa” dentro da tradição do Idealismo Alemão e, no mesmo período, confessa, junto a um círculo de estudantes de Brentano, a sua admiração por aspectos dessa tradição. Ao que tudo indica, as “Lições sobre Fichte” (1917/1918) parecem consolidar um estado de admiração, iniciado alguns anos antes, ainda no período da Primeira Guerra. Malgrado as diferenças de épocas e circunstâncias, ambos os autores falam ainda sob os “ares da guerra”: se Fichte conclama, em meio à invasão da Prussia por Napoleão, o povo alemão para um “retorno a elevados ideais éticos”, Husserl fala, insipirado nos escritos fichteanos mais poppulares, para ex-combatentes recém-chegados dos fronts na Primeira Guerra, sobre o ideal ético da humanidade. Um ponto decisivo para se pensar, no período das Lições, uma aproximação entre os dois autores, talvez seja, justamente, a indissociabilidade que encontramos, em ambos, entre os problemas de fundamentação “teorética” e os assuntos da “vida prática”. Se a Wissenschaftslehre de Fichte é indissociável de um ideal ético da humanidade, em Husserl, a intenção primária de constituir a filosofia como uma “ciência de rigor” (strenge Wissenschaft) encontra-se também alinhada ao ideal de uma humanitas autência, articulando aspectos da vida cognitiva, ética e social, conforme podemos atestar, em 1923, no primeiro artigo da revista japonesa Kaizo.
21 Cf. Husserl, E. Erste Philosophie, I, Cap. 2, Lição 17, p. 125.
22Die Realität des Geistes als vermeintlich realen Annexes an den Körpern, sein vermatichen raumzeitlich Sein innerhalb der Natur ist ein Widersinn”.
23 “Wir Menschen der Gegenwart, in dieser Entwicklung geworden, finden uns in der grösten Gefahr, in der skeptischen Sintflut zu versinken und damit unsere eingene Wahrheit fahren zu lassen”.
24 Sobre o projeto de uma “ciência da consciência”, o leitor poderá consultar as discussões e debates de Tucson, em especial, as partes IV, V e VI (Cf. HAMEROFF, S. R.; KASZNIACK, A. W.; SCOTT, A. C. Toward a Science of Consciousness. The First Tucson Discussions and Debates. Cambridge, Massachusetts, London: A Bradford Book, 1996).
25 Aqui, remetemos o leitor para a obra de Gerald M. Edelman, um dos neurobiologistas mais eminentes da segunda metade do século XX, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 1972. Em Biologie de la conscience (tradução francesa de Bright Air, Brilliant Fire: on the Matter of Mind), Edelman apresenta um estudo aprofundado da biologia do cérebro, bem como de sua evolução, fornecendo, através dos estudos em Neurociência, o que considera ser a “chave da consciência” ela mesma. Cf. Edelman, G. M. Biologie de la conscience. Paris: Éditions Odile Jacob, 1992.
26 É comum encontrarmos, dentre aqueles que defendem, na Filosofia da Mente Contemporânea, uma posição materialista (como por exemplo, Patrícia Churchland), a aceitação da tese segundo a qual os estados mentais não seriam senão estados e processos físicos cerebrais. (Cf. Churchland, P. S. Neurophilosophy. Toward a Unified Science of the Mind-Brain, pp. 278-295). Sabemos, porém, que a tese em questão assume uma redução do tipo “x nada mais é que”, inaceitável em termos epistêmicos, posto que, em ciência, toda hipótese contém explicações que, por definição, são “parciais”. Se não fosse assim, as ciências não evoluiriam, pois não haveria corrigibilidade das hipóteses formuladas. Para que isso aconteça, faz-se necessário a possibilidade do erro, imprescindível para as ciências, para a aprendizagem e, poder-se-ia dizer, para a própria evolução da vida. Eliminar tal possibilidade representaria, portanto, uma atitude “perigosa”. Se as formas mais radicais de materialismo terminam por eliminar o erro no debate sobre a mente, Husserl destaca, ao contrário, a importância do erro para as ciências, bem como para a vida prática. Conferir a letra “e” do § 9 de Krisis. Cf. HUSSERL, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, § 9 (letra “e”), p. 41.

Autor notes

a CDCT é Professor Associado III do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Membro do GT de Fenomenologia da ANPOF e Coordenador do Laboratório de Fenomenologia (LAFE/ UFF), Doutor em Filosofia, e-mail: cdctourinho@yahoo.com.br; cdctourinho@gmail.com
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