Resumo: O que Foucault entende por jornalismo e como ele se relaciona com a filosofia? Para responder à questão, escrutinamos declarações do autor francês acerca do assunto, especialmente sobre dois personagens: Nietzsche “o primeiro filósofo-jornalista” e Kant “o responsável por introduzir o hoje na filosofia”. Detalhando nuances, pretendemos mostrar em que o pensamento de Foucault se avizinha de um jornalismo radical, e em que deste ele se diferencia.
Palavras-chave: História, Acontecimento, Esclarecimento, Ontologia do presente..
Abstract: What does Foucault understand as jornalism? How does it is linked with philosophy? To answer that question, we scrutinize Foucault’s statements about it, especially on two characters: Nietzsche as a “first philosopher-journalist” and Kant as “the responsible to introduce the today in philosophy”. Detailing nuances, we intend to show in which Foucault’s thinking is near from a radical journalism, and in which it is different from that.
Keywords: History, Happening, Enlightenment, Ontology of the present.
Artigo
Notícias de um jornalismo radical: Michel Foucault, a atualidade e a filosofia
News of a Radical Journalism: Michel Foucaut, Actuality and Philosophy.
Recepção: 11 Junho 2020
Aprovação: 01 Março 2022
A vida de Michel Foucault foi marcada por deslocamentos. Pensador de uma geração cada vez mais globalizada, não surpreende vê-lo a dizer: “Considero-me um jornalista, na medida em que aquilo pelo que me interesso é a atualidade, isso que acontece ao nosso redor, isso que somos, o que vem ao mundo.” (DE II: 434). Se há algum estranhamento, ele não se deve só à tradução do termo que distorce ligeiramente o campo semântico. Em português, a palavra jornalista não reflete com a mesma clareza a relação dessa profissão com o que acontece diariamente. Do francês jour, o dia, nascem journal (simultaneamente, o noticiário impresso e diversos tipos de diário, como o pessoal ou o de bordo), journalisme, a grande área, e journaliste, a profissão responsável por mettre à jour, em bom português, por pôr em dia, por atualizar. O estranhamento, todavia, deve-se à sugestão inusitada de uma espécie de filósofo-jornalista, como ele admitiria na sequência de sua fala. Publicada na revista Manchete, em 16 de junho de 1973, a recolha de ditos pelo autor em uma entrevista leva o título “O mundo é um grande asilo”. Ali Foucault sugere que os governantes são os psicólogos, e o povo os pacientes. Assim sendo, é notável que o papel desempenhado por criminologistas, psiquiatras e todos os que estudam o comportamento mental do homem se torne cada vez mais importante. O motivo? - O poder político adquirira uma nova função, a terapêutica. E, neste grande asilo, qual seria o papel do filósofo? Conhecer o tempo e a eternidade? Perguntar-se pelo sentido metafísico e profundo? Foucault sugere algo menos pretensioso - compreender o que se passa ao nosso redor, o que vem ao mundo, como nos tornamos aquilo que somos. Ele admite, tempos depois, que, quando ouve alguém a falar de um assunto de maneira jornalística, não ri, mas quando ouve falar de uma crise “de um jeito sério, filosófico”, ele admite: - “Aí eu começo a rir. Pois o jornalismo é que tem um papel sério, é ele que a faz funcionar dia após dia, de hora em hora.” (DE II: 704). Nesse sentido, o que Foucault entende por jornalismo e como ele se relaciona com a filosofia?
Provisoriamente, podemos supor que o jornalismo não é só responsável por narrar o que se passa. No sentido conferido por Foucault, ele possui um papel perigosamente “enunciativo”, pois faz funcionar, ou seja, atualiza um assunto como uma crise, dia após dia. Ele não só direciona o olhar para um determinado recorte da atualidade, como ao enunciá-lo cria uma das maneiras de encarar essa atualidade. Não cria a realidade, expõe os problemas despertados por uma maneira de encará-la. O jornalismo recorta as escolhas cotidianas no interior do “grande asilo”, exibindo os vetores políticos e científicos em ação.
É nessa medida que a alusão de Foucault à Nietzsche surge:
A filosofia, até Nietzsche, teve por razão de ser a eternidade. O primeiro filósofo-jornalista foi Nietzsche. Ele introduziu a atualidade no campo da filosofia. Antes, o filósofo conhecia o tempo e a eternidade. Mas Nietzsche tinha a obsessão da atualidade. Penso que o futuro, nós o fazemos. O futuro é a maneira pela qual reagimos ao que acontece, é a maneira pela qual transformamos em verdade um movimento, uma dúvida. Se queremos ser mestres de nosso futuro, devemos colocar de modo fundamental a questão da atualidade. Isso porque, para mim, a filosofia é uma espécie de jornalismo radical (DE II: 434).
Ele sugere ter sido Nietzsche o primeiro filósofo-jornalista, e isso não é de se estranhar. O autor de Ecce Homo, cujo subtítulo é “Como alguém se torna o que se é”, exemplifica bem essa contínua busca por compreender a atualidade. Já nesse subtítulo é notória a intenção não de investigar a história do ser desde seus primórdios: Nietzsche não se pergunta “De onde viemos?”, “O que somos?”, mas parte de uma perspectiva específica com um ponto de emergência demarcado - a sua vida - para perceber qual o processo histórico permitiu este tipo de ser atual, que agora é, e não uma essência do que sempre foi. Assim ele transforma sua autobiografia numa avaliação do modo de vida de seu tempo e não de toda a humanidade, bem como confronta hábitos tão diversos que vão desde os mais elementares - como se alimentar e escolher uma morada - até os mais teoricamente sutis - tais como a arte do estilo. Ainda, ao ter sido o primeiro filósofo a tratar do extemporâneo/intempestivo sem desvinculá-lo da atualidade, nos termos de Foucault, podemos compreender melhor como ele introduziu a atualidade na filosofia. E em que consiste isso?
Em 1972, no Colóquio Nietzsche Hoje, Éric Clémens (1985) destaca a importância e a reverberação da crítica de Nietzsche à história monumental. E o faz partindo da seguinte citação:
Que os grandes momentos da luta dos indivíduos formem uma cadeia, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através de milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso - este é pensamento fundamental da crença em uma humanidade, pensamento que se exprime pela exigência de uma história monumental. Mas justamente nesta exigência de que o grandioso deve ser eterno, inflama-se a mais terrível das lutas. Pois todo o resto que vive grita “não”. O monumental não deve surgir - tal é a contrassenha (NIETZSCHE, 2002, p. 19).
Como devemos entender essa “contrassenha”, ou na tradução de Marco Antônio Casanova adaptada neste ponto, essa “solução contrária” sugerida por Nietzsche na Segunda Consideração Intempestiva? O autor alemão recorre a uma imagem com estilo grandiloquente: ele materializa “os grandes momentos da luta dos indivíduos” em uma cadeia de montanhas. Esse grande bloco de grandes momentos já passados é responsável por condensar para o leitor a impressão que possui da relação da humanidade com a história - uma relação extremamente nostálgica. Isso porque cada um desses grandes momentos ganha uma sobrevida demasiado monumental - são cumes de montanhas, ápices de humanidade, que querem erigir do passado não só algo vivo, algo que possa parecer razoável para qualquer historiador, mas também uma estrutura cujo topo, por sua maior proximidade com o sol, mantém-se claro, grandioso o suficiente para sintetizar as camadas anteriores. E, como Nietzsche admite mais de uma vez, a história é feita de arquivos incompletos, de coisas perdidas, de equívocos e lutas, menos do que de pontos extrailuminados, capazes de expressar alguma eternidade. A mais terrível das lutas, sugere o autor, é contra a crença de que tudo que é grandioso deva ser tomado pela história como eterno. Essa é a contrassenha a que ele se refere. Na medida em que se põe em questão a monumentalidade na história, todo o resto que vive está novamente apto para sentir o que é útil para o homem presente. Ele está ciente da deterioração da montanha, das mudanças de perspectiva que o tempo promove. Como o mesmo Nietzsche sugere um pouco mais adiante: “Através de que se mostra útil para o homem do presente a consideração monumental do passado, a ocupação com o que há de clássico e de raro nos tempos mais antigos?” (2002, p. 20). A reposta aparece algumas linhas depois resumindo o que ele compreende pelos três tipos de história e quais seriam, resumidamente, seus riscos. Cito-o:
Se o homem que quer criar algo grandioso precisa efetivamente do passado, então ele se apodera dele por intermédio da história monumental; em contrapartida, quem quer fincar o pé no familiar e na veneração do antigo cuida do passado como o historiador antiquário; e somente aquele que tem o peito oprimido por uma necessidade atual e quer a qualquer preço se livrar do peso em suas costas carece de uma história crítica, isto é, de uma história que julga e condena. Alguns infortúnios são causados pela transplantação impensada destas árvores: o crítico sem necessidade, o antiquário sem piedade, o conhecedor do grande sem o poder do grande, são tais árvores alienadas de seu solo materno natural e, por isto, degeneradas (NIETZSCHE, 2002, p. 25, §2).
Esse trecho descreve três maneiras de fazer história, ou estilos, como se fossem espécies; apresenta ainda e simultaneamente as forças e fraquezas que nelas ele percebe e as compara com árvores, como uma imagem para o estilo transplantado de maneira imprecisa, impensada e inconscientemente inconveniente (Sobre o naturalismo de Nietzsche, ver SCHACHT, 2011).
A história monumental caracteriza-se pela elaboração de algo grandiloquente a partir de um material que perdura por muito tempo - como uma árvore de grande porte, cujas sombras dificultam a vida dos vegetais ao seu redor - e, por isso, deve se ter extremo cuidado ao desejar “plantar” tal tipo de história. As raízes desses monumentos podem se ligar de tal maneira ao passado que inviabilizam uma relação salutar com o presente. Um exemplo contemporâneo desse tipo de atitude pode ser visto pelo desejo de retorno da ditadura por certo segmento da classe média brasileira: trata-se do grandiloquente doentio, da sombra que em seu conforto não permite que o resto que viva, fale.
Por sua vez, a história antiquária caracteriza-se um pouco como o oposto complementar da história monumental: finca o pé naquilo que é familiar, pequeno e antigo - e lembramos outra vez da imagem vegetal, já que pé, por catacrese, também é nome atribuído a frutíferas, como em “pé de laranja-lima”. É antiquária na medida em que é incapaz de abrir mão de pequenos detalhes, acumulando infinitamente os rastros do passado que lhe eram familiares. Cada indivíduo torna-se importante demais, como num jardim em que se insiste em manter todas as espécies a qualquer custo, perdendo de vista outros critérios que não o da preservação irrefletida de tudo. Esse tipo de história incapacita uma apreciação justa do presente, de modo semelhante à história monumental, como sugere Nietzsche “A história antiquária degenera-se justamente no instante em que a fresca vida do presente não a anima e entusiasma mais.” (2002, p. 28, §3). Para o historiador antiquário é difícil esquecer, e, só através de uma relação menos apegada a esses pequenos detalhes, é travado o combate sobre o que se herda: entre paixões e erros, entre isso que nos tornou o que somos e que não é necessário mais ser. Um bom exemplo desse tipo de historiador é aquele que defende a proteção de obras de arte feitas para serem experimentadas. Artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica desenvolveram diversos trabalhos (caso dos Bichos de Clark, e dos Bolides e Parangolés de Oiticica) baseados no pressuposto de que a materialidade do trabalho está intrinsecamente ligada ao seu uso (CLARK; OITICICA, 1996; OITICICA, 1986). Uma vez transformados em artistas notáveis, obras devotadas à experimentação se tornaram artigos de mera exposição, sob a alegação de que seu valor histórico e de mercado inviabilizavam a utilização cotidiana delas, que doravante devem ser preservadas. Nesse sentido, age o historiador antiquário: ele usa de um critério posterior - a preservação do objeto e de seu valor histórico-financeiro - para apagar a relação experimental que constituiu e constitui ainda o uso para o qual aquelas obras foram pensadas.
O trabalho do historiador crítico entra aqui. Ele explode e dissolve o passado (2002, p. 29, §3) inquirindo e julgando-o. Esse tipo de historiador enfrenta “por uma necessidade atual”, ou seja, por uma demanda do presente, o peso da história, e faz isso apoiado em uma história que, é verdade, discerne, mas também é judiciosa e condena. A vida daqueles que recorrem a esse gênero é perigosa na medida em que “a mesma vida que precisa do esquecimento exige a aniquilação temporária deste esquecimento” (Ibidem) - pode então perder a vivacidade que vem do passado. O crítico sem necessidade configura-se assim como aquele incapaz de olhar para trás: tudo o que não é novo, não lhe serve, tornando-se assim incapaz de herdar. Um exemplo interessante de atitude desse gênero é a relação de contínua obsolescência nutrida por parte da crítica musical, que exige novidades. Muitas vezes, ela critica sem motivos, um disco ou um grupo com a alegação de que não apresentam nada de relevante. Isso objetiva tornar obsoleto o disco ou o grupo antes mesmo de apreciar o que possivelmente haveria de diferente naquilo que aparentemente se repete. Há inúmeros exemplos, dos quais recordo um. Gilberto Gil fala da atitude da crítica à época do lançamento do disco Refavela:
A crítica em geral não era unânime em relação a nada que eu e meus colegas fazíamos. Acho que é uma birra natural do sistema, jornalistas/críticos de um lado e artistas de outro. Não caía bem para o jornalismo musical só falar bem. Havia uma espécie de questionamento geral em relação àquele conceito, aquela maneira de encarar a música brasileira, ainda resquícios da velha questão tropicalista, das inovações versus o conservadorismo. "Esse menino aí de novo inventando mais uma dessas histórias", era um pouco isso, tinha um pé atrás. Que já vinha também se manifestando em relação ao Black Rio, como foi com o funk até dois, três anos atrás (CANÔNICO, 2017).
A novidade trazida por Refavela consiste numa pesquisa de outras raízes musicais, ligadas à verve africana que Gil visitou durante a composição do disco, bem como uma ressignificação da favela no interior da canção, misturando elementos de bossa nova - como o violão joão-gilbertiano - com elementos do candomblé, do congado, do movimento black power, da funk music, da tropicália, do axé, numa mistura de cores que embaralha as cartas da crítica. A evidente dificuldade da crítica de assimilar o disco poderia estar ligada à afirmação inovadora para uma sociedade com preconceitos em relação à cultura negra. A pergunta de “Ilê Ayê” despertou alguma dificuldade de assimilação: “Que bloco é esse? Eu quero saber | É o mundo negro que vieram mostrar pra você.” Surpreende a crítica, então, que o disco tenha sido bem acolhido pelo público superando as vendas de discos anteriores, um pouco como surpreende o historiador que sua condenação seja revertida em uma celebração pública daquilo que ele deseja condenar.
É verdade que a interpretação aventada por Clémens não se aprofunda nessas nuances do pensamento Nietzsche. Seu expediente consiste em uma “teologia negativa”, cujo objetivo é afastar-se dos que se restringem a atribuir a Nietzsche a crítica da história monumental. Ele questiona muito sumariamente as interpretações de Karl Schlechta, Eugen Fink, Martin Heidegger e Jules Vuillemin. Como ele sugere “é impossível escamotear o tempo e o lugar do discurso - os acontecimentos de nossa história” (1985, p. 199), ou seja, o objetivo dessa crítica a certas maneiras de fazer história é agregar um elemento até então ignorado, qual seja, o de que inclusive os discursos possuem uma exterioridade. O expediente da apresentação passa, então, a um sobrevoo sobre a leitura foucaultiana de Nietzsche. O autor atribui-lhe a capacidade de relacionar a linguagem da interpretação e a da história, mas sugere simultaneamente e, de maneira bastante vaga, que o “acontecimento parece ocorrer apenas com a condição de ser captado por um olhar, uma ‘teoria’” (1985, p. 199), ou seja, para ele Foucault incorre em um tipo de platonismo, no qual a história efetiva governaria os acontecimentos. Essa acusação vaga consiste em uma aproximação equivocada. A crítica de Foucault à história segue Nietzsche nesse ponto, qual seja, o de repensar o sentido histórico para além desses três modos de fazer a história. Isso implica uma posição que não é nem supra-histórica - como nos casos da história monumental ou antiquária que nutrem uma relação com uma origem, com algo que literalmente atravessaria o tempo para se apresentar a nós de modo completamente preservado - nem é completamente a-histórica, porque não faz um uso desnecessário da crítica, ou seja, quer preservar a possibilidade de repensar o que já foi, bem como de ter olhos para ligar os problemas do passado ao presente. Trata-se de pensar a história “efetiva”, portanto essa que não governa, mas dá visibilidade ao que surge de único e agudo, cujo exemplo pode ser visto no supracitado lançamento de Refavela, uma vez que independentemente do olhar da crítica musical, algo surge de maneira aguda a questionar preconceitos historicamente arraigados, ressignificando o lugar da favela na cultura vigente. Sobre o acontecimento ainda, cito Foucault:
Acontecimento: é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que enfraquece, se amplia e envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada. As forças que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica mas ao acaso da luta. (DE II, p. 148).
A “definição” oferecida pode ser dividida em dois momentos. No primeiro, negativo, todos os predicados não atribuídos ao acontecimento são pensados a partir de uma relação de forças, que, mesmo que possa resultar em um conflito, é voluntária entre partes. Uma decisão consiste em escolher entre algo e seu contrário; um tratado resulta, é verdade, de discussões que levam a um termo “comum”; um reino se estabelece com base na servidão “voluntária” dos súditos ao rei; a batalha resulta da incapacidade de se chegar a um acordo voluntário, constituindo assim o seu limite.
Somente ao inverter o modo pelo qual essas forças são pensadas é que compreenderemos melhor o segundo momento, positivo, em que ele atribui ao acontecimento predicados que o definem. Foucault inverte a relação de forças dispostas no primeiro, sugerindo que o que se passa na história resulta de ações não completamente voluntárias, sem destinação ou mecânica que se lhes comande. Em todos os exemplos é “o acaso da luta” que ele faz salientar: o que seria “o poder confiscado” senão aquele em que o rei é surpreendentemente deposto? Como pensar um “vocabulário retomado e voltado contra aqueles que o utilizam” senão recorrendo a afirmação atual de termos antes usados para ultrajar, como é o caso de queer (BUTLER, 2017, p. 107)? Como entender “uma dominação que enfraquece, se amplia e envenena” sem recordar a intenção de criar um homem capaz de se manter consumindo no capitalismo tardio, ainda que com a atenção enfraquecida ou sustentada por medicamentos (CRARY, 2014)? Quando Foucault sugere que as “forças em jogo na história não obedecem a uma destinação ou a uma mecânica”, ele quer com isso sugerir que o trabalho do intelectual não é, como anteriormente se supunha, semelhante ao do profeta, qual seja, o de fazer um prognóstico preciso sobre o que seremos. Isso porque o pressuposto do qual parte é o de que as forças em jogo, ou seja, as ações que compõem a história efetiva são aleatórias a ponto de não ser possível estudá-las com o mesmo grau de simplificação com que se estuda a realidade física.
Nessa medida, ele se distancia, por exemplo, de Lévi-Strauss, para quem as ciências sociais não deveriam se ater ao plano dos acontecimentos. Cito um trecho do importante capítulo de Tristes trópicos, “Como se faz um etnógrafo”:
Marx ensinou que a ciência social se constrói tão pouco no plano dos acontecimentos quanto a física a partir dos dados da sensibilidade: o fim é construir um modelo, estudar suas propriedades e as diferentes maneiras pelas quais reage no laboratório, para em seguida aplicar essas observações na interpretação do que se passa empiricamente e que pode estar muito distante das previsões (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 55).
O que gostaríamos de salientar é a concepção de que a etnografia, bem como o conceito de história por ela pressuposto, deve partir de modelos “laboratoriais”, para em seguida testar o funcionamento desses modelos no mundo, segundo a sugestão do etnógrafo. Desse modo, ele estaria apto a privilegiar o sentido supra-histórico presente nas ações - exatamente aquilo que Foucault critica ao longo de seu trabalho e destaca na citação anterior. Ao abrir mão de pensar os acontecimentos, autores, como Lévi-Strauss, passam a pressupor que é possível escrever a história como resultante de estruturas que estão para além das vontades individuais, um pouco como se fosse possível encontrar seu funcionamento, sua regularidade para além de qualquer voluntarismo. A sugestão de Foucault é a de que a história efetiva não obedece nem às leis da física mecânica nem a um destino prévio: as relações de força implicadas são muito mais complexas porque nos acontecimentos há algo do acaso, do que não se pode determinar à partida, sem uma regularidade atemporal, um destino, sujeito a alterações e rupturas abruptas em uma determinada situação.
Como sugere Patrick Singy, em seu verbete “Estruturalismo” (SINGY, 2014apud LAWLOR, 2014, p. 493), Lévi-Strauss teria defendido uma diferença fundamental entre etnologia e história. Apesar de partilhar objetivos, metas e métodos, a etnologia concerniria antes às condições inconscientes da existência social (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 23-4), enquanto a história parece desempenhar o papel de estabelecer suas condições “conscientes”. Assim, se, por um lado, a história elaborada por Foucault pode ser vista como uma aplicação da etnologia de Lévi-Strauss ao ocidente, buscando algo que seria uma espécie de seu inconsciente em As palavras e as coisas (DEI, p. 665-666); por outro, há uma diferença crucial entre os dois autores, a saber, a noção de inconsciente por eles adotada. Segundo Singy, Foucault sempre concebe o inconsciente como algo histórico, afastando-se do estruturalismo, enquanto Lévi-Strauss alega haver algo que permanece fundamentalmente o mesmo em qualquer civilização, qual seja, a estrutura (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 27; 219-20).
Ao final daquela definição de acontecimento, Foucault acrescenta uma referência ao §12 da segunda dissertação de A genealogia da moral, que colabora para a compreensão de sua proximidade em relação à Nietzsche. Cito o último:
Logo, o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças - mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem-sucedidas (NIETZSCHE, 1998, §12, grifos nossos).
Como a citação de Foucault, esse trecho de Nietzsche contrapõe duas visões de como algo se torna aquilo que se é. Na primeira, critica a crença de que o desenvolvimento de algo resulta de um progresso objetivo, eficaz e quase laboratorial. Para Nietzsche, a crença em tal perspectiva esconde os indícios do funcionamento do poder, ao privilegiar uma narrativa que minimiza as forças despendidas no processo. Somente na medida em que consideramos a diversidade das forças e das resistências, das defesas e reações, ou seja, somente quando a história aborda “os resultados de ações contrárias” é que ela percebe como algo se torna aquilo que se é.
Assim, como vimos até aqui, a sugestão de que a história efetiva resulta de um combate constante - e não esporádico - em que os acontecimentos se sucedem de forma surpreendente serve ao propósito de se opor à história tradicional. Se essa tende a dissolver essas lutas em um movimento teleológico, em um encadeamento natural, conferindo certo voluntarismo ou casualidade inclusive às batalhas, a história efetiva salienta o caráter acidental dos acontecimentos. Imprevisíveis, eles nos tornam aquilo que somos, e só através do trabalho genealógico de reconstituição desses acasos é possível fazer a história sair do laboratório.
Esse desvio ajuda a compreender melhor a afirmação de que Nietzsche é o primeiro filósofo-jornalista. Como vimos, ele não está interessado em relatar os monumentos do passado, em contar as relíquias do antiquário ou mesmo em reiterar críticas contínuas e desnecessárias. Ao impelir pensar os modos pelos quais se escreve a história, ele permite contemplar como as lutas atuais, os problemas que nos cercam estão configurados. Um pouco como o jornalista que para pensar o presente reconstitui o acaso das lutas recentes, Nietzsche introduz a atualidade na filosofia. Ele o faz ao discutir, como é o caso de A genealogia da moral, como a emergência de conceitos para ele presentes, tais como “culpa”, “má-consciência”, “Bem e mal” estão ligados a uma série de acidentes que a história monumental não só não permite reconstituir, como não os conecta com o presente, não os vê como uma “questão” para nós, mas como critérios naturais.
Na referência em que sugere ser Nietzsche o primeiro filósofo-jornalista, Foucault fala da filosofia como uma espécie de jornalismo radical. Na medida em que está comprometida com as questões presentes, ela não só deve descrever os acontecimentos presentes. Seu radicalismo, ao que parece, está ligado à capacidade de pensá-los através da história. O relato elaborado a partir desse ato de jornalismo é radical na medida em que assume uma responsabilidade com o porvir e, não simplesmente, com o presente. Nesse sentido é mais fácil compreender o porquê, e o cito, “o futuro nós o fazemos”, uma vez que “O futuro é a maneira pela qual reagimos ao que acontece, é a maneira pela qual transformamos em verdade um movimento, uma dúvida.” (DE II, p. 434). Em certa medida, Foucault chama a atenção para a ideia de que a verdade, pelo menos a verdade sobre a nossa história resulta do movimento que fazemos sobre o que acontece, como o pensamos, transmitindo assim uma mensagem para o porvir. Se hoje é possível pensar que a filosofia foi responsável por escolha originais, isso talvez se deva à luta por ela travada para transformar um movimento, uma dúvida, em verdade - nessa medida ela procurou “fazer” o futuro. O que há de diferente nesses tempos de filosofia como jornalismo radical consiste na investigação sobre o que nos tornou o que somos - uma novidade para história do pensamento. Se antes o objetivo era encontrar verdades universais e inabaláveis, a lição de uma história genealogicamente engajada é a de que as verdades têm datação e estudar essa datação ajuda a compreender o que somos e lidar com o que seremos.
No capítulo sobre a Revolução Iraniana, escrito por Eribon na biografia de Foucault (1990, p. 261-70), o autor reconstitui com precisão os principais momentos dessa investida jornalística do autor. É preciso dizer, em todo caso, que após essa polêmica, na qual Foucault mergulhou profundamente entre 1978-79, ele assumirá ser um jornalista neófito:
Não sei fazer história do futuro. E sou um pouco desajeitado em prever o passado. Gostaria, todavia, de tentar compreender o que está acontecendo, pois nos dias presentes nada chegou ao fim e os dados ainda vão rolar. Talvez seja esse o trabalho do “jornalista”, mas é verdade que sou apenas um neófito (DE III, p. 714).
Menos do que tratar dos sucessos e insucessos de uma investida pessoal em um assunto, esse trecho salienta um ponto importante acerca da relação entre o jornalista e o filósofo. Se por um lado ele tem consciência de que seus gestos colaboram na construção do futuro, por outro deixa claro não fazer nem “história do futuro”, ou seja, não pretende adivinhar o que vai acontecer; tampouco admite ter jeito para “prever o passado”, ou seja, dizer de uma vez por todas porque algo se passou tal como se passou. O trabalho do jornalista, mesmo após uma investida de neófito, deixou-lhe a convicção que se trata de compreender o que está acontecendo, ou em termos aqui trabalhados, como algo se tornou aquilo que agora é.
Como sugere Pelegrini (2015, p. 160), as reportagens de ideias que são elaboradas em 1978 procuravam conexão mais direta entre o intelectual e o nascimento das ideias, no momento mesmo do acontecimento, e se esse projeto ambicioso não deixa um legado óbvio - Foucault se recusará, como sugere Eribon (1990, p. 270), por um longo período, a atuar de maneira mais direta política e jornalisticamente; por outro lado, há o fortalecimento da preocupação com presente. Digo que essa investida de neófito lhe deixou convicções sobre esse papel ambíguo, bem como algum legado, porque a retomada do texto de Kant sobre o Iluminismo coincide com o ano de elaboração dessas reportagens de ideias: 1978.
No início desse ano, ele publica uma introdução ao reconhecido trabalho de Georges Canguilhem, O normal e o patológico, em que faz uma reconstituição do cenário intelectual da França nos anos 60, então marcada por diversas clivagens - Marxistas e os não, freudianos e os não, especialistas em disciplinas e filósofos, universitários e os não, teóricos e políticos. Em seguida, sugere haver uma outra clivagem entre o que chama de filosofia da experiência - ligada aos trabalhos de Sartre e Merleau-Ponty - e a filosofia do saber na qual filiava Canguilhem na linhagem de Cavaillès, Bachelard e Koyré. Salienta que essa segunda linhagem, por suas escolhas, transmite a impressão de ser a mais teórica, voltada para tarefas especulativas. Apesar disso, esse tipo de reflexão liga-se ao presente de uma maneira intrigante. Uma das razões principais para estabelecer essa ligação é a conexão entre esse modelo de pensar história do saber e um pensamento racional que não se põe mais a questão sobre a natureza em geral, sobre os fundamentos, os poderes e direitos abstratos, mas segundo uma história e uma geografia específicas. E para Foucault dois textos foram inaugurais dessa atitude de reflexão sobre a atualidade:
Essa questão é aquela que Mendelssohn, e posteriormente Kant ensaiaram responder em 1784, na Berlinissche Monatsschrift: Was ist Aufklärung? Esses dois textos inauguram um “jornalismo filosófico” que foi, com o ensino universitário, uma das duas grandes formas de implantação institucional da filosofia no século XIX (e sabe-se o quanto ele foi fecundo em certo momentos, como nos anos 1840 na Alemanha). Eles também deram à filosofia acesso a toda uma dimensão histórico-crítica.
A novidade nessa declaração situa outro alemão como um dos inauguradores do que Foucault chama de “jornalismo filosófico”. Se Nietzsche foi o primeiro filósofo-jornalista, é a Kant que Foucault retornará a partir de 1978 para destacar o pioneirismo de atribuir à filosofia uma dimensão histórico-crítica a partir de um texto de jornal. A questão foi enviada ao Berlinissche Monatsschrift por um reverendo em uma nota de rodapé aos leitores do jornal: Was ist Aufklärung? (BRESOLIN, 2015). O editor encaminhou-a a sua comunidade e entre as diversas respostas ao reverendo, as mais conhecidas foram as de Mendelssohn e, evidentemente, a de Kant. Todavia, Foucault não detalha nesse momento o conteúdo ou a história do texto. Ele se reporta aos objetivos públicos, vislumbrados aqui em uma visada rápida. Como ele mesmo sugere:
Esse trabalho comporta sempre dois objetivos que, de fato, não podem se dissociar e se reveem um ao outro sem cessar: por um lado, procurar qual foi (em sua cronologia, em seus elementos constituintes, em suas condições históricas) o momento no qual o Ocidente pela primeira vez afirmou a autonomia e a soberania de sua própria racionalidade - Reforma luterana, Revolução Copernicana, filosofia de Descartes, matematização galileana da natureza, física newtoniana; por outro, analisar o “momento presente” e procurar, em função do que foi a história dessa razão, e em função também do que pode ser seu balanço atual, qual relação é preciso estabelecer com esse gesto fundador - redescoberta, retomada de um sentido esquecido, realização ou ruptura, retorno a um momento anterior, etc. (DE III: 431).
Nesse momento, a leitura de Foucault enfatiza a autoafirmação da autonomia, da soberania da racionalidade ocidental; e uma espécie de balanço de sua atualidade, um estado da situação presente dessa racionalidade em relação a momentos anteriores. O expediente que essa leitura cumpre nessa Introdução ao livro de Canguilhem não deve ser menosprezado como um desvio de tema. Foucault irá traçar resumidamente como a questão sobre a atualidade e a herança do Iluminismo serão recebidas por diferentes intelectuais do século XIX e XX para chegar aos filósofos da ciência que ele gostaria de enfatizar, ligando-os através de uma sugestão: a de que o Iluminismo retorna “não pela tomada de consciência das possibilidades atuais e libertas daqueles que podem ter acesso a elas, mas como uma maneira de interrogar sobre os limites e sobre os poderes dos quais ele abusou.” (DE III, p. 433). Não se trata mais da afirmação da supremacia da razão ocidental, mas da crítica à razão ocidental feita graças a esse diagnóstico da atualidade. Trata-se de notar os abusos cometidos pelo Iluminismo numa chave que inevitavelmente aproxima esses trabalhos aos da teoria crítica, porém com uma ênfase diferente na filosofia da ciência. Nesse sentido, compreende-se como o diagnóstico sobre os limites do normal e do patológico, levado a cabo por Canguilhem, conecta-se com a atitude do texto de Kant a partir de uma estratégia diferente da deste texto. Se este investigou sua atualidade com vistas num melhor uso público da razão que realiza uma tendência natural a ser livre - ou seja, de modo a que todos na esfera pública passassem a usufruir da racionalidade atual e superior do Iluminismo Ocidental que fornece os princípios do bom governo (KANT, 1784); aquele investiga os limites da normalidade para pôr em suspeita a naturalidade com que essa racionalidade governa os corpos na atualidade (CANGUILHEM, 2009). Ambos falam de suas atualidades, mas com objetivos públicos distintos. Kant vê a emancipação de uma menoridade através de um uso público da razão; o que Foucault vislumbra em Canguilhem, e talvez esteja em seu próprio trabalho, é o mesmo uso público da razão a questionar o limite naturalizável entre o que é ou não é normal. Em outros termos, eles salientam o quanto a racionalidade acaba por moldar os limites entre normal e anormal de tal modo a tornar natural o que é, em verdade, inscrito na história, datado em um tempo.
Em todo caso, Foucault se pergunta por mais de uma vez sobre as relações entre esse tipo de jornalismo e a filosofia. Na primeira conferência em que fala um pouco mais sobre o texto de Kant, em maio de 1978, ele ressalva:
Não se pode esquecer que era um artigo de jornal. Seria preciso fazer um estudo sobre as relações entre a filosofia e o jornalismo a partir do final do século XVIII. (...) É muito interessante ver a partir de qual momento os filósofos interveem nos jornais para dizer alguma coisa que para eles é interessante e que, portanto, se inscreve em uma certa relação pública com algum apelo (QCr, p. 40).
Esse objetivo vagamente declarado naquela ocasião surge uma segunda vez, em 1979, em “Por uma moral do desconforto”. O que chama a atenção é a citação do texto de Kant, não a discussão sobre os conceitos de revolução e ruptura - e, como ressalta Pelegrini (2015), em consonância com o problema da Revolução Iraniana. Gostaria de dar continuidade ao problema com o trecho a seguir, no qual Foucault se pergunta:
É preciso inscrever essa pergunta singular [Was ist Aufklärung?] na história do jornalismo ou da filosofia? Sei somente que não há muitos filósofos, desde então, que não se colocam em torno da questão: “Agora, o que somos? Qual então é o momento frágil a ponto de não podermos separar nossa identidade e o que ela traz consigo?” Todavia penso que essa questão, é também, no fundo, do ofício do jornalista. O cuidado de dizer o que se passa (...) não é tão habitado pelo desejo de saber como isso pode acontecer, em qualquer lugar e sempre; mas mais pelo o desejo de se tornar [devenir] isso que se esconde sob essa palavra precisa, flutuante, misteriosa, absolutamente simples: “Hoje” (DE III, p. 783).
A retomada de temas anteriores reaparece de uma maneira bastante improvável, mas interessante. Ao se perguntar sobre o limite entre o trabalho jornalístico e o filosófico, Foucault nota com precisão o que os aproxima atualmente: não tanto o “desejo de saber” como algo que acontece em geral - ou seja, não uma “vontade de saber” que faz juízos historicamente amplos e gerais - mas, numa tradução livre, um “desejo de devir”, o que a palavra “hoje” esconde. Uma vez mais vislumbramos o mote nietzschiano, agora a partir de um texto de Kant, isto é, em ambos o jornalismo filosófico investiga como algo se torna aquilo que agora, e não para sempre, é. Investigação flutuante, ela depende de um questionamento cuidadoso que atenta aos ponteiros modernos do relógio.
Noutro comentário breve, escrito nessa mesma época, mas publicado em 1980, Foucault sugere que “A Aufklärung, para usar uma expressão de G. Canguilhem, é o nosso ‘passado mais atual’”. E sugere na sequência:
por que não começar uma grande pesquisa histórica sobre a maneira pela qual a Aufklärung foi percebida, pensada, vivida, imaginada, conjurada, anatemisada, reativada na Europa dos séculos XIX e XX? Poderia ser um trabalho histórico-filosófico interessante. As relações entre historiadores e filósofos poderiam ser postas então a prova. (DE IV, p. 35).
Essas questões fazem eco às anteriores. Por um lado, ele desloca seu interesse do âmbito jornalístico ao citar a discussão anterior, mas se refere à relação entre história e filosofia no âmbito da questão sobre o Iluminismo. Outro elemento pouco citado é a referência à Canguilhem, uma inspiração improvável, mas salientada mais de uma vez. A expressão “passado mais atual” é notável, pois remete a isso que compõe o atual, sem, no entanto, se restringir ao agora - neste caso, a ênfase é outra vez na Aufklärung como ponto a ser investigado para perceber o que o “ocidente” se tornou.
A próxima menção ao texto é de uma apresentação geral de seu trabalho intitulada “O Sujeito e o Poder”. Foucault defende que seu trabalho “não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise” (DE IV, p. 231), mas fazer uma “história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”. Kant e a Aufklärung desempenham um papel estratégico nesse texto, pois para Foucault é a partir de Kant que a tarefa da filosofia será “prevenir a razão de ultrapassar os limites daquilo que é dado na experiência” (DE IV, p. 224). Adiante retoma o texto de 1784 para salientar uma possível alternativa para a filosofia, numa tarefa diferente daquela da “filosofia universal”. A análise crítica do presente se tornou algo crucial e cada vez mais importante. Isso porque ao estudarmos o que nos tornamos poderíamos chegar à conclusão de que, cito Foucault,
o problema político, ético, social e filosófico que se põe para nós hoje não é o de ensaiar liberar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas de nos liberar do Estado e do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos é imposta há vários séculos (DE IV, p. 232).
Seria imprudente insistir demasiado na ideia de um filósofo-jornalista? Mesmo que a resposta seja positiva, as sutis mudanças de posição demonstram a resistência de Foucault em relação aos papeis predeterminados, a formas de subjetividade preconcebidas. Nota-se essa busca por liberar novas possibilidades de ser em diversos momentos desse percurso deformado: em um Estado civil que nos pede um rosto - uma individualidade - é preciso sugerir novas formas que nos liberem dessa relação em que o sujeito é somente sujeitado a dispositivos. O caso é o de se tornar outro no presente em que se é. A crítica aos limites de seu tempo permitiu a Kant ser outro em relação a seu próprio presente. Com a mesma atitude, Foucault suscita não se conformar.
Uma abordagem ulterior ao texto de Kant encontra-se na aula de 5 de janeiro de 1983, a primeira do curso O governo de si e dos outros. Várias das intuições defendidas aqui correspondem a uma organização sistemática das anteriores sobre o texto de Kant com alguns acréscimos que surgiriam também posteriormente tanto no artigo posteriormente publicado sob o título “O que são as Luzes?” (DE IV, p. 562-78), como no último texto a que deu aval de publicação “A vida: a experiência e a ciência” sobre Canguilhem. Ambos guardam um forte parentesco com o conteúdo dessa aula que, em relação ao conteúdo do curso, funciona como uma epígrafe. Ao final da primeira hora de aula, após uma contextualização detalhada do ambiente de publicação do texto, Foucault age como um jornalista-filósofo, um analista do presente da filosofia ao ceder a uma tentação. Para ele, Kant teria sido responsável por fundar duas tradições críticas.
A primeira seria a analítica da verdade, “que coloca a questão das condições em que um conhecimento verdadeiro é possível” (GSO, p. 21). Menos do que uma postura política, essa forma de filosofia preocupa-se com as diversas maneiras pelas quais seria possível postular alguma verdade. As hipóteses que surgem a partir dessa forma de filosofia fornecem condições satisfatórias para dizer que o conhecimento de algo é verdadeiro. A expressão “analítica da verdade” sugere um processo de análise sobre essas condições, um inquérito sobre os caminhos pelos quais seria possível afirmar a verdade sobre um fenômeno. Caminhos percorridos, por exemplo, por Gottlob Frege, Bertrand Russell e por Ludwig Wittgenstein em seus primeiros trabalhos.
A segunda forma de filosofia seria a ontologia do presente. Menos do que encontrar as condições para o verdadeiro conhecimento verdadeiro, importa se perguntar qual o campo atual de experiências possíveis da atualidade, como se dá para nós o presente. Ontologia porque procura dar conta das condições dessa experiência - de como algo pode ou vem a ser. Ontologia do presente, porém, por não ser de qualquer experiência, mas daquelas inseridas na história, dotadas de um lugar no tempo, presenciadas por quem procura mostrar como o presente se forma no tempo, como ele é vivido e percebido por aqueles que o viveram.
O que seria esse “presente”? A resposta passa por três etapas: 1) pela determinação de um elemento do presente a reconhecer, distinguir, decifrar; 2) pela exposição de como esse elemento porta ou exprime um processo presente que concerne ao pensamento; 3) por perceber em que medida quem fala faz parte desse processo de percepção de um presente (GSO, p. 13). O exemplo de Kant ajuda a compreender melhor essa resposta. Ao pensar a Aufklärung, ele: 1) reconhece a importância desse elemento para o pensamento de seu tempo; 2) mostra como a tópica da Aufklärung porta consigo um processo inacabado e presente, em curso, mas que não deixa de ser objeto de reflexão; 3) e faz perceber o quanto ele mesmo, Kant, está envolvido nesse processo, fazendo menos uma análise neutra da Aufklärung do que se inserindo em um debate atual.
Por um lado, a personagem do jornalista nos ajuda a compreender o interesse de Foucault pela atualidade e possibilita uma nova maneira de perceber a filosofia. Por outro, seu afastamento sutil e paulatino da personagem é sintomático e, ainda que se refira ao texto de Kant e à importância de pensar o presente, já não fala com a mesma regularidade de um jornalismo filosófico. Há um hiato. Isso talvez se deva à certa necessidade de deslocamento, e não se deve menosprezar o papel estratégico que essa personagem desempenha para compreender o autor. As deformações de percurso parecem ser característica crucial para um modo de fazer filosofia que não exige para si rostidade ou narrativa de si. Em todo caso, essa personagem nos dá notícias. Ela acena a um pensamento radicalmente comprometido com a atualidade à filosofia, sob o signo do que chamou de ontologia do presente.