Tradução
Auguste Comte e a filosofia positiva
Auguste Comte und die positive Philosophiea
Auguste Comte e a filosofia positiva
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 359-389, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 19 Janeiro 2021
Aprovação: 28 Outubro 2021
Prefácio à Tradução
O texto cuja versão portuguesa ofereço aqui é uma peça fundamental do pensamento do jovem Brentano, quando de suas atividades em Würzburg e do início de seu trabalho em docência. Como muitas pesquisas mais recentes têm explicitado em detalhe, Brentano foi consideravelmente influenciado no início de sua vida intelectual não apenas pela tradição de leitores germânicos de Aristóteles no séc. XIX, à qual pertenceu, e.g., Adolf Trendelenburg, mas também pelo empirismo de John Stuart Mill e o positivismo de Auguste Comte ( cf. ALBERTAZZI, 2006; BINDER, 2017; BRITO, 2015; FISETTE, 2018; TĂNĂSESCU, 2017). Muito de suas peculiares visões acerca da natureza e das tarefas de uma “filosofia científica”, tal como preconizada pela quarta de suas Habilitationsthesen (1866), foi definido em rigoroso diálogo como esses dois últimos pensadores.
Os caminhos para recompormos a imagem geral desta “filosofia científica” são tortuosos: compreendem trabalhos mais programáticos, como Über die Gründe der Entmutigung auf philosophischem Gebiet (1874) e Über die Zukunft der Philosophie (1892); discussões sobre o método e o caráter fundamental de uma ciência em específico, a psicologia, tal como presentes na Psychologie vom empirischen Standpunkt (1874) e nos manuscritos tardios sobre Deskriptive Psychologie (1890); discussões sobre história da filosofia, das ciências e teoria do conhecimento, em manuscritos como Nieder mit den Vorurteilen! (1903); entre outras fontes (BRENTANO, 1874; 1968; 1970; 1982). A despeito da dificuldade envolvida, a relevância de se recompor essa imagem se deixa atestar com facilidade quando notamos que a discussão sobre a cientificidade da filosofia tem lugar em diversas expressões do pensamento austro-germânico, como nas muitas frentes de trabalho da Sociedade Filosófica da Universidade de Viena (BLACKMOORE, 1998), e, a partir do piso especificamente brentaniano, com a fenomenologia de Edmund Husserl, a psicologia de Carl Stumpf e os gestaltismos de Graz e Berlim (SPIEGELBERG, 1965; 1972).
A inspiração e o apoio intelectual de Brentano em Comte, portanto, são uma página dessa detalhada história. E ela tem no texto ora traduzido um de seus pilares fundamentais. A princípio, Auguste Comte und die positive Philosophie foi pensado como o primeiro de uma série de sete artigos sobre positivismo, nos quais Brentano começou a trabalhar antes do semestre de verão de 1869 (FISETTE, 2018, p. 74-75; HEDWIG, 1987, p. 361; SCHMIT, 2002, p. 292). De acordo com as memórias de Stumpf sobre seu mestre, este oferecera na Universidade de Würzburg, naquele semestre, tanto preleções em metafísica, abrangendo teologia e cosmologia, quanto um seminário livre sobre Comte e o positivismo francês (STUMPF, 1919, p. 97-98). Dos sete artigos previstos, apenas o primeiro fora publicado em 1869 no periódico Chilianeum: Blätter für katholische Philosophie, Kunst und Leben. Os manuscritos de Brentano deste tempo, contendo tanto parte do conteúdo para a composição do artigo publicado, como esboços dos subsequentes, foram publicados no volume póstumo coligido por Klaus Hedwig e intitulado Geschichte der Philosophie der Neuzeit (BRENTANO, 1987). O artigo a seguir, portanto, resta como a mais importante fonte sobre o tema do positivismo entre as publicações feitas pelo próprio Brentano em vida. E, para além disso, como sua leitura também mostra, trata-se de um trabalho de interesse ainda para as incursões do pensamento de Brentano pelos temas de Deus e da filosofia da história, contando, no que se refere a esta última, com um esboço relevante de sua doutrina cíclica das evoluções e degradações pelas quais necessariamente passa o pensamento filosófico em seu fluir histórico.
A presente tradução foi preparada em março de 2020 e contou com a contribuição - mediata ou imediata - de um certo número de outras pessoas, que têm de ser aqui reconhecidas. A primeira contribuição foi encontrada na excelente tradução do mesmo texto para o francês pelo Prof. Dr. Denis Fisette (Université du Quebec à Montreal) e pelo Dr. Hamid Taieb (Humboldt Universität zu Berlin). (BRENTANO, 2018) O encontro desta tradução, ainda que um pouco tardio, permitiu-me voltar algumas vezes ao meu próprio trabalho e aprimorá-lo em pontos relevantes, corrigindo inconsistências e melhorando sua textualidade. Outra contribuição essencial foi oferecida pelo Ms. Klaus Sellge (Husserl Archiv Köln) na interpretação do raro vocábulo “ultrirt” - em grafia atual, “ultriert” -, que ocorre pelo fim do texto de Brentano em um comentário sobre um dito recorrente da Igreja de seu tempo e não consta em nenhum léxico que me tenha sido de acesso, não importa se geral ou especializado, se por vias concretas ou digitais. A partir de seus esclarecimentos, foi possível chegar à tradução “imoderado”.1 Por fim, ainda uma contribuição de valor foi oferecida por alunos que me acompanharam no estudo e na leitura crítica de uma versão preliminar dessa tradução: Davi Akintolá, Gustavo Capetinni, Hugo Barros e Sara Paz. Mais tardiamente, juntaram-se a essas as notas críticas de Marcus Gama. A todos aqui mencionados, expresso minha gratidão.
Introdução. Natureza da filosofia positiva
[15] Auguste Comte e a Filosofia Positiva2 Do Privatdozent Dr. Franz Brentano em Würzburg Primeiro artigo.
É possível que, entre os leitores da Chilianeum, estejam muitos que leem aqui pela primeira vez o nome do homem para cuja filosofia eu gostaria de chamar vossa atenção. E, entre eles, os que já o conhecem hão de se surpreender ainda mais ao se depararem com uma apresentação de sua doutrina neste periódico. Isso porque o nome “filosofia positiva” quer dizer aqui algo bem diferente do que muitos podem presumir, dados os muitos sentidos do termo. Comte não quis oferecer uma filosofia cristã. [16] Afastado da fé já em sua juventude e não convencido nem mesmo da existência de um Deus - por mais que não a tenha querido efetivamente negar -, ele excluiu fundamentalmente do domínio da pesquisa científica justo aquelas perguntas que têm de constituir o cerne de toda assim chamada filosofia cristã.
Talvez não haja, no entanto, nenhum outro filósofo dos tempos mais recentes que mereça em tão ampla medida a nossa atenção quanto o próprio Comte. Decerto, os empreendimentos de um espírito poderoso já são como uma participação do mesmo em um espetáculo excitante. E Comte foi inquestionavelmente um dos mais excelentes pensadores dos quais nosso século pode se orgulhar. Espero que o breve esboço de suas contribuições, ao qual teremos de nos limitar aqui, prove suficientemente essa afirmação. Pois, se apenas a relevância do homem não bastasse, sem dúvida bastaria a relevância do movimento que tomou o seu impulso no domínio da pesquisa filosófica não apenas na França, mas também na Inglaterra quase que com maior intensidade. Nós, na Alemanha, experimentamos menos a sua influência até agora e o seu impacto direto não é muito perceptível. Já desde há muito acostumados a nos considerarmos a nação exclusivamente filosófica, demos apenas uma atenção reduzida ao estrangeiro. E, quando o fracasso de nossos mais laureados pensadores se tornou, enfim, inegavelmente claro e nossos olhares ávidos pelo aprendizado voltaram-se para fora, não encontramos naquilo que a França reverenciava nada que satisfizesse nossa necessidade de uma ciência legítima. A grande obra de Comte, apesar de publicada desde o fim dos anos vinte, era desconhecida para os seus próprios compatriotas. As de Royer-Collard, Cousin, Jonffroy permaneciam sozinhas em destaque. Mas o que poderia nos trazer um ecletismo que, de sua maior parte, apenas repetia em frases sonorosas pensamentos que só passavam por nós às pressas? Agora a situação na França se tornou outra. O positivismo de Comte, que durante sua vida era conhecido apenas no pequeno círculo de seus alunos imediatos, faz agora com que todo mundo fale nele. E, enquanto conquista um como adepto, obriga o outro, pelo menos como opositor, a considerá-lo em detalhes e, por meio do fervor da resistência, a reconhecer a sua relevância. Mas não temos olhos agora na Alemanha para o que é feito na França em termos de filosofia. E, ainda assim, parece cada vez mais ser já a hora de nos informarmos sobre Comte e o caráter de sua filosofia, já que experimentamos de modo mediato, a partir da Inglaterra, diversas influências dela sem conhecer a sua verdadeira origem. Eu encontrei repetidas vezes os mais claros vestígios disso e em autores que menos tinham noção do fato.
Acredito, assim, que o apelo que faço [17] nestas páginas para considerarmos Comte está suficientemente justificado. E será tão mais fundamentado quando virmos - e disto não duvido - que muito se pode aprender com ele, tanto onde ele se encontra junto à verdade, quanto onde está no erro. Comte ofereceu visões claras sobre as deficiências de nossa Filosofia e dos males de nosso tempo em geral. Frequentemente ele reconheceu suas tolices e carências melhor do que muitos outros. E, é preciso admitir, ele teve o ímpeto de ajudar, ainda que, infelizmente, um ímpeto não efetivamente esclarecido no essencial. É por isso que acontece aí algo que parece em um primeiro olhar impossível: um pesquisador que nada quer saber acerca de um Deus em Filosofia tem da Igreja Católica uma visão maravilhosamente elevada e busca refúgio repetidas vezes em suas dependências, sem buscar, contudo, a Igreja ela mesma. Decerto, ele não consegue encontrar esse refúgio e tem de acabar em construções tolas da fantasia.3 Os erros de Comte são grandes, mas testamentários de grandes verdades. O fracasso de seu empreendimento é completo, mas é, ao seu modo, a prova mais exitosa em favor da divindade da Igreja.4
Comte se pôs uma dupla tarefa de vida: a fundação de uma Filosofia Positiva e a fundação de uma Sociologia Positiva - dois empreendimentos grandes e, pelo menos como ele próprio acreditava, inseparavelmente unidos um ao outro. A restauração de condições sociais ordenadas era aquilo a que se dirigiam, em primeira linha, sua reflexão e seu pensamento por inteiro, e sobre a qual já o rapaz, que floresceu nas tempestades do Primeiro Império, pensava com a seriedade de um homem.5 Seus primeiros escritos de juventude o atestam.6 Mas neles, como em muitas de suas ideias tardias, expressa-se também, nomeadamente, a convicção de que uma renovação da sociedade só é possível a partir dos amplos e firmes fundamentos de uma ciência geral. Assim germinou nele o pensamento para a grande obra que ele realizou no Curso de Filosofia Positiva.
Voltemo-nos em um primeiro momento a esse notável livro, cujo [18] plano já estava firmemente estabelecido para o jovem homem de vinte e oito anos em abril do ano de 1826, ainda que sua execução tenha sido pausada por doença, muitas vezes atrasada por obstáculos externos e levada adiante apenas entre os anos de 1829 e 1842. Após isso, consideraremos também, do mesmo modo, os trabalhos tardios de Comte, que apresentam um caráter bem diferente em alguns aspectos.
Antes de tudo: o que Comte entende por Filosofia Positiva? Já se observou que “positivo” não significa “cristão”. Mas através disso não se tornou claro o que a palavra efetivamente quer dizer. Sim, Comte também tem de nos explicar o que ele chama Filosofia - afinal, cada filósofo apreende o conceito reconhecidamente de maneira distinta. Assim, mais uma vez: o que quer dizer isso - a Filosofia Positiva?
Já no Prefácio ao primeiro volume de sua grande obra, encontramos uma breve resposta à nossa pergunta. A palavra Filosofia, diz Comte, eu a emprego no sentido que ela teve entre os Antigos, mais especificamente em Aristóteles - ela designa para mim o sistema geral dos pensamentos humanos. No que acrescento, no entanto, a palavra “ positiva”, quero aludir ao fato de que me dedico àquele modo de filosofar que considera ser o objetivo da pesquisa, seja no domínio de conhecimento que for, nada além da concatenação (Verknüpfung) dos fatos observados.7
Sem dúvida, a peculiaridade da Filosofia de Comte é indicada com precisão e expressa com clareza nessas palavras, tanto quanto a sua brevidade permite. No entanto, apenas aquele que tiver percorrido toda a extensão de sua obra poderá entendê-la corretamente. O próprio Comte está longe de se enganar quanto a isso e nós o vemos em sua primeira lição se esforçando por trazer mais à luz o caráter de sua Filosofia.
Para clarificar adequadamente a verdadeira natureza e o modo peculiar da Filosofia Positiva, ele diz, é necessário lançar um olhar sobre todo o curso de desenvolvimento do saber humano. Aqui, acredito ter descoberto uma grande e fundamental lei, à qual a humanidade está subordinada em inalterável necessidade. E ela consiste em que esta atravessa, em todos os principais domínios do pensamento, de acordo com a sequência, três fases: primeiro a fase teológica ou ficcional; após, a metafísica ou abstrata; então, a científica ou positiva. Em outras palavras, é natural ao espírito humano empregar em todo domínio de pesquisa três métodos, um após o outro, cujos caracteres são essencialmente distintos, ou, a rigor, simplesmente opostos: em primeiro lugar, o método teológico; após, o metafísico; e, por fim, o positivo. Há, assim, três tipos de filosofias ou de sistemas gerais que abarcam [19] a totalidade dos fenômenos e que se excluem mutuamente uns aos outros. O primeiro é o ponto de partida necessário para o entendimento humano; o último é o seu estado firme e duradouro, no qual ele termina; o segundo é definido meramente por servir de passagem entre ambos.
Na fase teológica, o espírito humano é direcionado em suas pesquisas principalmente para a natureza interior das coisas, para suas causas eficientes e finais, em suma, para conhecimentos absolutos. Ele examina cada processo com que se depara como se fosse o efeito da atividade imediata e contínua de um maior ou menor número de seres (Wesen) livres e racionais, cuja interferência voluntária explicaria todas as aparentes anomalias do universo.8 A fase metafísica, em fundamento, é apenas uma modificação contínua da primeira. Nela surgem, no lugar daqueles seres pessoais, forças abstratas, i.e., abstrações, que são tornadas entidades (Entitäten) reais e peculiares e que, habitando nas diferentes coisas no mundo, devem produzir através de si mesmas todos os aparecimentos observados.9 Na indicação da entidade correspondente a cada um dos fenômenos consiste a sua explicação. Na fase positiva, por fim, o espírito humano reconhece a impossibilidade de se chegar a conhecimentos absolutos. Ele desiste da pesquisa sobre a origem e a finalidade do mundo, bem como do conhecimento das causas internas dos aparecimentos, para se ocupar através dos meios conjuntos da razão e da observação exclusivamente com a descoberta das leis fixas dos aparecimentos, i.e., de suas relações inalteráveis de sucessão e similaridade. A explicação dos fatos, reconduzida à sua significação real, é a partir daí nada mais do que a produção da conexão (Verbindung) entre os diferentes fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência se empenha sempre em reduzir mais.10
As três fases do desenvolvimento que Comte distingue aqui, bem como a ordem de sua sucessão, constituem um dos pensamentos que, conduzido por todos os lados com aquela energia consequente própria ao pensador, permeiam a totalidade de sua doutrina. Em especial, repousa também completamente sobre esse fundamento a sua dinâmica social, sobre a qual tornaremos a ouvir mais adiante e que, de acordo com o juízo de muitos, é a mais notável de suas contribuições. Não poderíamos prosseguir, portanto, sem deter nosso olhar nessas teses para vermos por meio de que Comte as crê fundamentadas.
De acordo com ele, tanto a observação quanto a reflexão imediatas sobre a natureza humana oferecem as mais impactantes provas para sua lei fundamental do desenvolvimento [20]. Antes de qualquer coisa, para todo aquele que tem um conhecimento aprofundado da história geral das ciências encontra-se nesta mesma uma confirmação plena. Pois não se pode citar sequer uma entre todas as ciências que agora se encontram no estágio positivo que, vista em seu passado, não tenha sido essencialmente constituída por abstrações metafísicas e, se regredida ainda além, inteiramente dominada por ideias teológicas. Infelizmente, diz Comte, teremos diversas vezes a ocasião de ver nas diferentes partes de nosso curso, como as ciências mais desenvolvidas trazem em si, ainda hoje, vestígios bem perceptíveis daqueles estados primitivos.
A consideração da história da ciência não é, contudo, o único modo pela qual nossa lei é assegurada por observação imediata. Antes disso, consiste em uma não menos clara confirmação da mesma lei aquilo que constatamos diariamente acerca do desenvolvimento do entendimento humano. Isso porque, se o ponto de partida para a formação do indivíduo e para a educação do gênero humano é necessariamente o mesmo, então as épocas fundamentais da primeira têm de ser determinadas de acordo com as diferentes fases principais da segunda. Agora, então, olhemos cada um para a nossa própria história! Em relação aos nossos principais conceitos, fomos teólogos na infância, metafísicos na juventude e pensadores positivos apenas na idade de homens maduros. Todo aquele que se encontra no nível de seu século vê isso facilmente corroborado.11
Mas o que pode ser assim observado, de modo imediato, dá-se com igual clareza também à reflexão como uma exigência da natureza humana. O homem possui uma tendência originária a transpor sua própria constituição interior para todo o mundo exterior. A criança não toma apenas o relógio ressonante como algo animado, ela se inflama também acerca da mesa “má” na qual ela esbarrou. Para todo efeito ela pressupõe, como princípio eficiente, uma analogia de sua vontade. Assim, todo o gênero humano pensou também o mundo exterior em analogia com o interior. Se os homens encontraram em si a vontade como o princípio que, uma vez atuante, movia os membros do corpo, então eles acreditaram, sem mais, ter de reconduzir a uma origem similar toda transformação independente deles. Um fetichismo geral, o hilozoísmo, foi, assim, necessariamente o primeiro modo da explicação natural - por conseguinte, o começo da Filosofia foi um tipo de teologia.12
A consideração a seguir pode tornar isso ainda mais claro. Em toda época da pesquisa uma teoria é necessária para se conectar (verbinden) os fatos. E já no mais remoto começo ela foi imprescindível. Havia nessa época a óbvia impossibilidade de se construir teorias a partir [21] da observação, sobre a qual repousa efetivamente todo conhecimento verdadeiro. Mas esse tempo primeiro não podia e não devia pensar assim, pois, do mesmo modo que a observação é necessária para uma teoria positiva, é necessário uma teoria para que nos dediquemos à observação. Sem uma vinculação (Anknüpfung) imediata dos fenômenos a certas intuições fundamentais, seria impossível para nós conectarmos (verbinden) muitas observações isoladas e, consequentemente, extrair delas o seu contributo. Nem mesmo na memória poderíamos preservá-las e, na maior parte dos casos, os fatos nos escapariam por completo. Para que isso não aconteça é necessário que um pensamento condutor dê uma direção determinada ao nosso olhar e aguce nossa atenção. Então, no início de seu desenvolvimento espiritual, o homem se viu preso a um tipo de circulus vitiosus e não havia escapatória dele a não ser, felizmente, pela via das ideias teológicas, dada através da natureza. Estas se tornaram o condão de suas observações e deram aos seus esforços direção e força.13
No entanto, a filosofia teológica também concordava ao mesmo tempo com a natureza peculiar das investigações capazes de atrair por elas mesmas, originariamente, o espírito humano. As perguntas de então se direcionavam às verdades mais remotas, à natureza interna das coisas, à origem e à finalidade de tudo o que nos aparece. Os problemas verdadeiramente solucionáveis foram quase todos considerados indignos de uma ponderação séria. Esse contraste entre a grandeza da coragem e a pequenez da força pode ser notado em um primeiro olhar. Mas, ainda assim, ele foi natural e só a experiência pôde ensinar a medida das forças. Pode-se até mesmo designar como feliz a ilusão a que se dedicaram os primeiros homens nesse aspecto. Pois, sem uma tal representação exagerada que permitisse ao impossível aparecer como possível, eles nunca teriam chegado ao desenvolvimento de que eram efetivamente capazes. Mas como teria sido possível admitir aí a filosofia positiva, que, como a mais elevada, empenha-se pela descoberta das leis dos fenômenos e cuja primeira peculiaridade é ver como não investigáveis todos esses segredos sublimes? Ela não poderia, naquilo que preconizava, medir-se de modo algum com a sua rival. Ela não oferecia nada, ao passo que a filosofia teológica oferecia tudo. E o que ela prometia ainda de maneira pobre, ela não poderia entrever para o presente, mas apenas para um futuro distante. Trabalhar para o futuro! Essa teria sido sua solução. Trabalhar e deixar os demais colherem os frutos.14
Isso nos conduz do ponto de vista teorético para o prático, do qual irá mostrar-se com a mesma clareza que nenhuma outra intuição além de uma teológica teria podido ser apropriada ao homem das origens. O homem, por exemplo, nunca teria superado sua indisposição natural [22] perante o peso de um trabalho ao qual não estivesse habituado - sim, ele nunca teria saído de sua abstenção inicial - se não houvesse sido atraído pela esperança de um domínio sem limites sobre o mundo e encorajado pela possibilidade contínua de uma assistência irrestrita. Observando o mundo à luz de suas intuições teológicas, ele pôde erguer a esperança de que o todo da natureza se subordinasse aos seus desejos - decerto não controlado por sua própria força, mas dominado por aquelas autoridades ideais às quais ele atribuía um poder irrestrito. Era apenas o caso de ganhar o amor dessa autoridade e se assegurar, assim, do auxílio proporcionado por sua intervenção voluntária. Agora nos encontramos certamente distantes desse ponto de vista e alguns podem, por isso, duvidar do poder e da necessidade dessas considerações naqueles tempos primeiros. Mas que se pense onde estaria a nossa ciência sem as quimeras da astrologia e os sonhos da alquimia - uma observação que já fizera há muito o grande Kepler para a astronomia e, em tempos mais recentes, Berthollet para a química.
Vê-se assim que, tanto como método quanto como uma doutrina provisória, a filosofia teológica foi necessária nas origens. Apenas ela poderia definir o começo, uma vez que foi a única que se desenvolveu de modo espontâneo e, ao mesmo tempo, foi capaz de fazer fluir naquele tempo primeiro interesse suficiente.15
Mas do mesmo modo que a perspectiva teológica se mostra necessária enquanto ponto de partida, as teorias metafísicas mostram-se necessárias enquanto passagem. Nosso entendimento progride apenas passo a passo. Seria impossível para ele substituir subitamente e sem mediação o ponto de vista teológico pelo positivo. Teologia e positivismo são tão incompatíveis que ideias intermediárias foram necessárias, teorias de um caráter bastardo e, justo por isso, apropriadas para possibilitar a passagem. Essa é a determinação natural das ideias metafísicas - elas não têm, além disso, qualquer valor ou utilidade reais. A metafísica substituiu, na investigação dos fenômenos, a atividade condutora de um ser supranatural por uma entidade correspondente e inseparável, em princípio considerada apenas uma afluência daquele ser, mas depois como algo independente. Com isso, o homem se habituou aos poucos a ver apenas os próprios fatos, no que os conceitos desses agentes metafísicos se tornaram mais e mais refinados e voláteis - até que, enfim, eles não fossem aos olhos de todos os homens de juízo sadio nada mais do que nomes abstratos dos fenômenos. “- O que é isso, por meio de que um corpo atrai o outro?” “- Sua força de atração!” “- E o que faz com que o ópio adormeça?” “- Sua força de adormecimento!” - tal como Molière, pelo menos em caricatura, deixa seu médico falar. Mesmo o olhar mais obtuso teria de reconhecer que aí não foram indicadas quaisquer causas, [23] mas apenas que, em uma repetição ingênua, o fenômeno a ser explicado foi indicado como explicação para si mesmo. Ainda que se quisesse inventar, diz Comte, não seria possível sequer imaginar um outro tipo de passagem das considerações literalmente supranaturais para as puramente naturais, do domínio da teologia para aquele do espírito positivo.16
Após esse breve olhar à lei do desenvolvimento da pesquisa humana é agora fácil determinar a natureza peculiar da ciência positiva. Vemos a partir do que foi dito que o seu caráter fundamental consiste em considerar todos os fenômenos como subordinados a leis naturais inalteráveis. A identificação precisa das mesmas e a sua recondução a um número tão baixo quanto possível são para o pensador positivo a finalidade de todos os seus esforços. Em contraposição, parece-lhe ser inteiramente infrutífera e sem sentido a investigação daquilo que chamam causas, sejam elas eficientes ou finais.17
Todo aquele, diz Comte, que tenha dedicado às ciências pelo menos um estudo algo fundamentado entende sem dificuldades o que foi dito aqui e não hesitará em concordar. Pois todos sabem, de fato, que em nossas explicações positivas, mesmo que elas fossem as mais completas, nós nunca erguemos a pretensão de explicitar as causas produtoras dos fenômenos. Em vez disso, apenas nos dedicamos a analisar com precisão as circunstâncias de seu surgimento e a concatenar (verknüpfen) um ao outro através de relações regulares de sucessão e similaridade. Mas nós queremos tornar este pensamento, em favor de sua riqueza, claro a partir de um exemplo. Como tal, deve nos servir aqui um caso de explicação natural, ao lado do qual a ciência não pode colocar nenhum outro de igual completude. Referimo-nos à explicação dos fenômenos gerais do universo através da lei de gravitação estabelecida por Newton. Essa lei nos mostra, por um lado, uma imensurável pluralidade de fatos astronômicos como um único, considerado a partir de diferentes pontos de vista - a saber, como o fato de que os corpos são atraídos uns pelos outros em proporção direta de suas massas e em proporção inversa do quadrado de suas distâncias. Por outro lado, esse fato geral se apresenta como a simples expansão de um fenômeno que nos é mais familiar do que qualquer outro, a saber, o peso dos corpos na superfície da terra. Mas será que ele determina, talvez, sequer o mínimo acerca do que seriam essa atração e esse peso neles mesmos? Ele nos mostra a causa por meio da qual os corpos atraem uns aos outros? - De modo algum! Antes disso, todo físico considera tais questões insolúveis e não mais pertencentes ao âmbito da pesquisa positiva. Ele as deixa [24], com razão, para a imaginação dos teólogos ou para a sutileza dos metafísicos.18
Isso é, então, a ciência. E de acordo com isso e desse modo ela pesquisa, quando o faz como tem de fazer.
Antes que Comte nos conduza adiante para mostrar no interior dessa ciência positiva o lugar da filosofia positiva, façamos uma pausa e lancemos um olhar examinador sobre as explicações dadas até agora, tanto àquilo que nos foi sugerido como a forma correta do pensamento científico quanto à sequência histórica das três fases.
Alguém que tenha ouvido aqui pela primeira vez a determinação de Comte sobre a essência e o espírito da perspectiva positiva pode bem ter se surpreendido e falado a si mesmo: - Como? Que doutrina é essa em que tudo é erro, equívoco? Temos aqui algo diferente do velho, absurdo e já há muito refutado ceticismo de Hume, que foi demasiado influente também para Kant? - De fato, a acusação não parece injusta. A repetida expressão “fenômeno” já é só por si apropriada para ocasionar essa suspeita. No que Comte explica que “a fase positiva desiste do conhecimento das causas internas dos fenômenos”,19 acreditamos ouvir um discípulo de Kant. E mesmo quando ele, então, observa de fato em uma ocasião que não se ocupou nem do estudo de Kant, nem daquele dos pensadores alemães posteriores,20 isso não prova nada contra uma conexão pelo menos indireta entre ambos os filósofos. Se fosse o caso de não haver nenhuma conexão histórica entre eles, a compatibilidade de suas doutrinas seria, então, talvez mais impactante, mas ainda assim não menos certa. Pois apenas a verdade fenomenal e não a real parece ser, de acordo com as claras palavras de Comte, a única coisa que nos é alcançável.
Além disso, não nos lembramos claramente de Hume quando ouvimos afirmarem que nenhum conhecimento de causas nos seja possível? O que perceberíamos, diz este esclarecido cético - e essa foi a notável alavanca com a qual ele revolucionou a ciência - seriam apenas relações de sucessão temporal que nós, sem direito, transformaríamos em relações de causalidade. Comte pareceu falar de modo bastante similar. E aqui o contexto não tem aquela dificuldade, pois Comte não só não se nega a citar Hume, como também o louva mais do que a maior parte dos demais filósofos.
[25] Ainda assim, nós interpretaríamos Comte de uma forma terrível em ambos os casos, se tomássemos suas palavras em um sentido propriamente cético.
Antes de tudo, no que se refere à expressão fenômeno, ela não deve ser entendida em nosso filósofo como em Kant. Nós nos enganaríamos se quiséssemos pensar no “phénoméne” de Comte como se fosse um φαινόµɛνον kantiano - um aparecimento por trás do qual estivesse oculta, em um esconderijo insondável, o νούµɛνον, a coisa-em-si.
Já isso poderia servir aqui de sinal de que Comte toma “ fenômeno” com frequência exatamente como sinônimo da expressão “fato”, como, e.g., quando ele disse “a explicação dos fatos (faits) é, para o pensador positivo, nada além da produção da conexão entre os diferentes fenômenos (phénoménes) particulares e alguns fatos (faits) gerais.”21 Comte não partilha em absoluto da opinião de Kant segundo a qual não poderíamos chegar de modo algum a conhecimentos reais. A existência de coisas e, mais precisamente, de uma pluralidade de coisas - pois Kant também sustenta, a despeito das consequências, que exista algo fora dos fenômenos - é para ele indubitável. Também que às coisas pertençam tamanho e forma, lugar, tempo e movimento e, a algumas delas, pensamento e sensação, ele está bem longe de contestar. É certo, no entanto, que ele nos negue, em específico, um conhecimento absoluto da diversidade dessas determinações. Mas aqui não se encontra nenhum erro cético, e sim, do contrário, uma verdade fácil de se constatar. Pois, de fato, quem não saberia que todo tempo, quando presente, mostra-se a nós da mesma maneira? E que o mesmo, em caso análogo, vale para toda determinação local? E quem quereria negar que não estamos em condição de reconhecer o repouso ou o movimento absolutos de um corpo após a astronomia nos ter abalado a própria Terra, até aquilo que ela tem de mais íntimo? - Não, não! Comte não merece aqui censura alguma. Neste ponto temos todos de permanecer junto aos céticos. E o que ainda resta que nos possa distinguir deles se não a afirmação da cognoscibilidade das relações verdadeiras das coisas? - O tamanho absoluto de um corpo não é determinável; o relativo, podemos medir e calcular com precisão. O tempo absoluto de um acontecimento nos é desconhecido; o “mais cedo” ou “mais tarde”, podemos, talvez, indicar até em horas e minutos. É isso, portanto, o que nos separa dos céticos - e nos coloca bem distantes deles, a milhas de distância. Pois não é preciso acreditar que, naquelas relações das coisas, apenas algo menor possa ser reconhecido por nós, uma vez que são, antes, justo o que predominantemente importa. [26] Pode nos ser indiferente se toda a história se desdobra centenas, milhares ou milhões de anos mais cedo ou mais tarde; se todo o sistema do mundo repousa em seu centro de gravidade ou está em um movimento progressivo, retilíneo e uniforme; ou se a totalidade dos corpos e cada um deles individualmente têm, em qualquer direção, o dobro ou a metade de sua extensão, ou se eles se encontram mais acima ou mais abaixo, mais adiante à esquerda ou à direita no espaço - isso e muitas outras coisas similares não têm para nós nenhum significado. De uma relevância bem distinta para nós, no entanto, são as determinações relativas locais e temporais, as distinções entre “estar junto a” ou “estar apartado de”, do “ concomitante”, do “mais cedo” e do “mais tarde”, o repouso ou o movimento relativos, as relações dos tamanhos e das dimensões. Sobre seu conhecimento, apenas, repousam a mecânica e a arte, a teoria e a vida prática. Comte não fez aqui, portanto, nenhuma concessão demasiado grande ao ceticismo; ele não sacrificou o interesse da ciência. Ele não é mais cético que nós mesmos, não é mais cético do que qualquer filósofo genuíno tem de ser.
Como fica, no entanto, aquela outra afirmação - quero dizer, aquilo que Comte ensinou acerca da causa e sua incognoscibilidade? Ele não segue aqui as pegadas de Hume e recai no ceticismo?
Em um exame mais próximo, temos de negar também isso.
Antes de tudo, Comte não negou a existência de causas como Hume. Ao contrário: toda a maneira como ele falou até agora e como falará mais adiante mostra com clareza que ele não duvida de sua existência. Nós apenas não somos capazes de conhecê-las; essa foi a sua afirmação.
Mas também isso é ambíguo e não é defendido por Comte em todos os sentidos.
Antes de tudo, acabamos de notar que Comte não nega as causas. Ele adere não menos do que outros à tese de que nada que aconteça pode prescindir da causa eficiente. Em algo, em alguma coisa reside também, de acordo com ele, a cada vez, o princípio eficiente. Com isso já se admite claramente um conhecimento da causa eficiente, ainda que seja apenas um conhecimento bem geral. Ainda que a constituição peculiar da causa possa nos ser oculta, de acordo com o conceito mais geral nós apreendemos com certeza o que ela é - ela pertence às coisas.
Mas aparentemente quando rejeita a investigação da causa como algo sem sucesso, Comte também não quer nos negar a possibilidade do conhecimento de que nessa ou naquela coisa resida a causa de um acontecimento. De outro modo, seria impossível que ele apelasse, com a segurança com que o faz, ao testemunho de toda a ciência natural e de cada um de seus segmentos. Seria impossível que ele dissesse que tudo o que se pode expressar como geral [27] em todo o campo da pesquisa exata tenha de valer para todo particular de seu domínio. De fato, se fosse exigida, deste modo, de nossos cientistas naturais alguma explicação sobre isso, eles concordariam em uníssono - não para dar conjuntamente assentimento a seu ceticismo, mas sim para conjuntamente se contraporem a ele.
Sua perspectiva verdadeira se torna ainda mais clara quando ele introduz, como um elucidativo exemplo, a gravitação dos corpos, para a qual Newton, durante a postulação da lei, dera a explicação científico-natural mais completa - mas para a qual nem esse grande pesquisador, nem outro após ele imaginou conhecer a causa eficiente. O que seria essa atração, em que ela teria o seu fundamento? Estas, diz Comte, seriam perguntas para as quais uma resposta é simplesmente impossível. Pois não consiste, a rigor, em não se responder a nada quando alguém diz que a atração seria o peso geral, mas, quando perguntado sobre o que seria o peso, determina-o no sentido oposto, como a atração da Terra?22 - Claramente, Comte não quer sustentar aqui que não podemos reconhecer que, nos corpos que se atraem mutuamente e em suas posições atuais e relativas, um perante o outro, esteja a razão de sua convergência recíproca. Tampouco quer ele negar - quando um corpo em movimento se choca contra outro em repouso e este vem a se mover por conta disso, ao passo que o outro experimenta uma redução de sua velocidade, de acordo com a lei da igualdade de ação e reação, ou ainda, sob certas condições, experimenta um desvio de trajetória ou é trazido ao repouso - que esses aparecimentos tenham verdadeiramente a sua causa nos respectivos corpos e em seus estados anteriores. O que ele quer dizer é, antes, algo bem diferente e de modo algum reprovável. Qual é, então, o seu pensamento? Em que consiste o limite que ele acredita, aqui, ser intransponível para o nosso conhecimento? Comte nega que sejamos capazes de atingir um conhecimento tão completo dos corpos e suas propriedades, nos quais temos de procurar pelas causas daqueles movimentos; que vejamos por que eles se mostram e têm de se mostrar atuantes deste modo - assim como, digamos, podemos reconhecer a partir dos conceitos de dois números, e.g., o 4 e o 2, por que um é e tem de ser o dobro do outro. Aqui, não resta nenhum “como” ou “por que” a se perguntar. A razão dessa proporção já nos é dada claramente nos conceitos. Não nos surpreendemos porque a lei se preserva homogeneamente em todos os casos. Não temos necessidade da experiência e de uma longa série de induções para nos convencermos de sua validade geral. Isto nos é dado, antes, com clareza, a priori a partir dos conceitos. É diferente no caso da atração. Se podemos perceber que a causa de certos [28] aparecimentos reside em certos corpos, é porque pudemos atingir esse conhecimento apenas a posteriori. Nós não penetramos no íntimo e apreendemos aquilo que a causa é em sua essência, de modo que, independentemente da experiência, tivéssemos podido predizer a partir dos próprios conceitos o aparecimento da atração como consequência. Mesmo agora, depois de, apoiados sobre uma indução diligente, estarmos em condições de fazer isso, o modo intrínseco do princípio causal nos permanece ainda oculto. Quando dizemos “a Terra é atraída pelo Sol por ser pesada” e “o Sol atrai a Terra por meio da força do peso desta”, não fazemos aqui nenhum desvelamento de uma propriedade oculta que explicaria a atração como um princípio eficiente. O modo da causação e, em geral, o processo inteiro, permanecem tão obscuros quanto antes. Em vez disso, encontra-se lá apenas a recondução do caso especial a uma lei geral, a produção da conexão (Verbindung) de um fenômeno particular com um fato geral. O Sol atrai a Terra porque ele atrai todos os corpos, bem como qualquer outro corpo também o faz acerca de qualquer outro corpo. Vemos aqui, portanto, em que sentido nós conhecemos a causa e em que sentido ela nos permanece oculta - reconhecemos que uma coisa qualquer está agindo como causa e reconhecemos também que a causa reside nessa ou naquela coisa, mas sem propriamente entender ou acessar o “ como” e o “porquê” .
Esse é, portanto, o sentido em que Comte nega, em geral, que o conhecimento das causas nos seja acessível. É nesse sentido que ele evoca, e com razão, toda ciência exata como testemunha - e tanto nós, quanto todo aquele que não compreende mal seja ao próprio Comte, seja a si mesmo, vai concordar com ele sem reservas.
Se de uma tal maneira aclamamos aqui o seu pensamento, o modo como ele se expressa, por outro lado, pouco merece o mesmo louvor. Seu modo de falar é ambíguo e inabitual. Se ele está de acordo com muitos no pensamento, ele entra em oposição a estes na palavra. Decerto, tal desvio pode parecer pouco significativo - pois, de fato, a palavra não é a ciência ou uma parte da ciência. Nessas inovações, contudo, reside sempre o risco de que a ambiguidade e, principalmente, o hábito de se entender essas palavras de outro modo enganem ou enredem em parte outros, em parte nós mesmos, em falsas conclusões.
Também em Comte isso deve se mostrar do modo mais triste.
Ouvimos sobre como ele afastou a pesquisa das causas primeiras como algo estranho ao espírito positivo. Temos de perguntar: em que sentido? Se ele quer apenas nos dizer que seria impossível compreender aquilo [29] que a causa primeira, em sua causalidade, seria e conquistar uma visão de sua essência que nos permitisse reconhecer a priori todos os seus efeitos, então sem dúvidas temos de concordar com ele. Sua rejeição é inteiramente justificada, uma vez que ela não é nada além de uma consequência necessária dos princípios por ele postulados e por nós reconhecidos sem restrição. Mas, sem que se note, o conceito se desvia em suas próprias mãos. Comte quer claramente dizer muito mais. Pois, do contrário, teria sido impossível que ele colocasse já de início - como efetivamente o fez - a pesquisa positiva em inconciliável oposição a toda especulação que visse em um entendimento divino a origem do mundo.
Quem diz que um ser racional seja o princípio do mundo e de sua ordem não afirmou com isso de modo algum que atingiu acerca do surgimento do mundo aquele tipo de visão que é vetada ao nosso entendimento até mesmo quando consideramos os efeitos mais imediatos. Quem pode se arrogar a condição de dizer que entende, em um sentido próprio, a natureza de Deus e o livre ato da criação, quando é muito mais claro que nosso conhecimento aqui não vai além de redescrições negativas e analogias? Mas, que haja um Deus e que este tenha trazido livremente o mundo à tona, essas são, não obstante, verdades que talvez possam ser provadas com toda força. Trata-se aí, no entanto, de questões inteiramente diferentes uma da outra.
Para que a coisa se torne verdadeiramente clara, examinemos a nós mesmos e a influência que exercemos sobre o nosso próprio corpo através de nosso querer racional. Que a minha vontade seja a causa do movimento da mão com a qual eu conduzo a pena agora, ninguém que seja racional coloca em dúvida. No entanto, como ela o faz, isso não sei nem eu próprio, nem qualquer outro. Eu também experimento a posteriori que o movimento correspondente segue o meu querer e isso com uma regularidade que deixa reconhecer a conexão causal. Não consigo entrever o modo sumamente elevado da causação - ele é para mim um enigma impossível de se investigar e permaneceria como tal mesmo se encontrássemos por vias fisiológicas o órgão central da vida sensitiva que experimenta, de imediato, a influência. Vemos, portanto, que o fato de reconhecermos aqui que um princípio racional seja a causa de um certo efeito não muda nada no fato de que o modo da causalidade nos permanece inapreensível. O véu geral que se estende, para nós, sobre toda causação não é erguido aqui também. De acordo com isso, algo similar vai valer no caso em que um ser racional seja provado como um primeiro princípio eficiente - como a primeira, exclusiva e plena causa, i.e., como a causa criadora para o originar-se do mundo.
[30] Por essa razão, pelo menos, a filosofia positiva não pode se declarar, desde o início, contra todo tipo de pesquisa teológica, ainda que eu receie que Comte, enganado pela ambiguidade de sua própria terminologia, tenha se deixado, sobretudo, determinar por ela. Mas isso não se contrapõe, talvez, à exatidão do estágio positivo? E não é compatível apenas com a perspectiva infantil, primitiva de nosso pensamento, de que aqui algo externo a nós seja explicado, de certo modo, em analogia com nós mesmos e com nosso interior? De modo algum! Pois nem toda analogia é censurável, sobretudo para um pesquisador que dá à indução tanto relevo, como Comte o faz. E por que deveria ser, aí, apenas a analogia aos nossos próprios atos interiores jamais e em lugar algum justificada? Com efeito, chegaríamos, então, necessariamente àquela dúvida tola que, para a surpresa do mundo, alguns filósofos isolados formularam acerca das sensações, dos afetos e dos movimentos voluntários dos animais. Se um cão gane ao ser pisado em sua cauda, isso parece a esses excêntricos em nada diferente de uma locomotiva que apita ao se pressionar uma válvula. Descartes cometeu esse erro. Mas Comte, longe de louvá-lo graças à sua investigação exata e sua apreensão positiva das coisas, refere-se a isso em algum lugar como “a memorável aberração de Descartes”. Sequer preciso acrescentar aqui que ele, por consequência, deveria também duvidar do pensar e do querer dos demais homens que o circundam.
Se, então, esse fato não autoriza a filosofia positiva, já de início, a condenar toda tentativa de uma prova da existência de Deus, não é mais possível enxergar que outro motivo poderia autorizá-la a tanto. A não ser, talvez, o de que a admissão de um ser divino seria incompatível com a investigação da natureza, que a filosofia positiva, por meio de suas observações, empenha-se em estabelecer. Esse seria o caso, como opositores do teísmo já afirmaram, se a consequência necessária da existência de um ser divino fossem intervenções contínuas, arbitrárias e que suspendessem toda ordem e regularidade.
Mas isso não é de modo algum correto. Não obstante, esses erros foram cometidos, pelo menos em tempos antigos. Mas qual, eu pergunto, qual entre os grandes pensadores teístas - seja um Aristóteles na Antiguidade, seja um Descartes, um Locke, um Leibniz na Modernidade - tomou isso por necessário? Eles criam, de fato, ser preciso pensar na divindade não meramente como livre e poderosa, mas também como sábia.
Também o cristianismo, ainda que afirme a possibilidade e a realidade de alguns milagres, está bem distante de considerar possível e compatível com [31] a sabedoria divina que ele suspenda toda a ordem natural das coisas e a torne irreconhecível por meio de intervenções contínuas, arbitrárias e desregradas. Ele vê tanto na ordem natural, quanto no milagre, um revelar-se de Deus, e nem uma coisa, nem outra poderiam ser assim caracterizadas: a ordem natural não, pois ela estaria destruída; o milagre também não, pois faltaria a medida a partir da qual ele pudesse ser avaliado e estabelecido como desvio.
O próprio Comte também não é tão tolo a ponto de ver, a partir de uma tal razão, a admissão de um poder divino como incompatível com a ciência. Em uma obra posterior, seu Sistema de Política Positiva, isso se mostra com clareza. Que um Deus seja, vale para ele também aqui, decerto, como algo que não podemos conhecer. Mas, bem longe de negá-lo, ele não hesita em defender que sua existência seja o mais provável, uma vez que a ordem do mundo se torna para nós, assim, mais compreensível do que no caso da admissão de um mecanismo sem planos e cego. Sim, ele ousa tornar Deus algo impassível de ser provado cientificamente, mas, ainda assim, base de sua moral e de sua política. Não obstante, ele argumenta levando Deus em consideração quando menciona os primeiros princípios do agir, no que diz o quanto age do modo mais racional aquele que, sob a admissão da providência divina, segue o fio condutor do agir por ela oferecido, podendo, assim, estar certo do bem-estar do próximo. Mas voltaremos a isso mais adiante. Basta que tenhamos visto que a crença em um Deus não é incompatível com a investigação das leis da natureza, e como, portanto, Comte não nega a existência de Deus, mas apenas a sua cognoscibilidade.
Resta, assim, apenas um único modo pelo qual o teísmo poderia se tornar um inimigo da investigação positiva da natureza. Também aí ele significaria, nomeadamente, o fim e a morte de toda investigação científica se alguém, com a descoberta de que tudo provém de Deus, acreditasse estar desligado de toda investigação das causas secundárias e suas leis no que pudesse reconduzir sempre, com um salto, todos os princípios eficientes secundários imediatamente a Deus como o primeiro e pleno fundamento explicativo. - Por que os planetas seguem essa trajetória? - Resposta: Porque Deus assim o quer! - Porque o Sol, a Lua e as estrelas se movem para cima e para baixo diariamente? - Porque Deus assim o quer! - Essas respostas, não obstante, são no sentido mais rigoroso corretas. Mas, ainda assim, é claro que se restringir a elas seria uma suspensão de toda a astronomia - e algo similar seria a consequência de um procedimento similar no que se refere a outras ciências.
Também aqui é o caso de que esses erros foram e ainda são cometidos por teístas. Para que alguém se convença disso, é preciso [32] apenas pensar na política teológica habitual com o seu obscuro e imoderado dito “pela Graça de Deus”. Às vezes nos servimos de modo excessivamente imediato da coroa sobre a mesa do Senhor.23 Mas também em outros campos do conhecimento nós encontramos esses erros. Ou foi, talvez, um erro distinto quando, em livros da ciência natural de um tempo menos avançado, tentou-se dar à pergunta “por que a relva cresce tão bem em lugares úmidos” a resposta “para proteger as margens dos rios de danos por inundação”? Mesmo que se admita que nada tenha de se opor a essa teleologia, ainda é um salto muito grande por sobre toda uma sequência de causas mecânicas intermediárias em direção ao entendimento divino motivado e à ordenação orgânica de todas as coisas na totalidade do mundo. Mas o teísmo não envolve necessariamente essas inconsistências. Se sabemos que nossa vontade move a nossa mão, torna-se, por isso, inútil a investigação fisiológica que se empenha por descobrir os elementos que fazem a mediação desse movimento? Do mesmo modo, também não se torna inútil a pergunta acerca das causas criadoras dos fenômenos mais gerais. O maior teísta da Antiguidade, Aristóteles, de acordo com o qual Terra e Céu são movidos pela força de um único entendimento divino,24 introduz, não obstante, a regra de que, uma vez que sejamos perguntados pelas causas de um fenômeno, tenhamos de indicar os seus princípios mais próximos - a matéria mais próxima, o princípio eficiente mais próximo, e do mesmo modo em relação aos demais princípios.25
Resumamos brevemente o que foi dito! Nós vemos que a perspectiva e o modo de pesquisa positivos não têm o direito de se fechar, já de início, ao teísmo: nem porque ele tomaria o conhecimento das causas, em geral, por impossível - pois isso ele não faz em todos os sentidos, mas apenas na medida em que não espera atingir qualquer visão da essência da causa, de modo que, a partir daí, o próprio efeito pudesse tornar-se compreensível -; nem porque a admissão de um entendimento divino teria de se apoiar na analogia com o próprio agir; nem, ainda, porque a intuição teísta tornaria a descoberta das leis da natureza impossível, seja por suspender a própria ordem da natureza, seja por rejeitar sua investigação como inútil, no que teria encontrado em Deus o fundamento explicativo de tudo.
Mas como se pode, então, falar de uma especulação teológica que esteja em oposição à positiva? Apenas quando entendemos aquela como um procedimento que transpõe para os processos da natureza externa, de modo demasiado rápido e sem fundamentação exata, como se fossem princípios, os análogos de nossas atividades anímicas - de nosso [33] pensar, sentir e querer. Ou, ainda, um procedimento que, com negligência das causas mais próximas, acredita já ter feito tudo com uma referência à vontade e ao poder de uma divindade. De fato, é claro que a primeira alternativa, nomeadamente, em essência nada é além do que o próprio Comte, no começo, chamou de um modo de consideração teológico. Por isso ele não o chamava apenas de um modo de explicação teológico, mas também fictício - um nome que em muitos aspectos é mais apropriado e que, para se tornar inteiramente claro, deveria ser mais proximamente determinado como o modo “ficcionador de pessoas” (Personen fingierende).26 Nós permanecemos mais fiéis a Comte do que ele mesmo quando nos atemos a um conceito assim estabelecido.
Assim como “teológico” , também o nome “ metafísico ” é utilizado em um outro sentido que não o habitual. Isso mal exige uma observação particular, pois ele fica suficientemente claro através das determinações do próprio Comte. Se ele entendesse aqui, em particular, a filosofia primeira de Aristóteles, a ciência do ente em geral, então, admitindo-se que ela fosse incompatível com o modo de investigação positivo, ele não a teria colocado em oposição à teologia, uma vez que em Aristóteles ambas são designadas indistintamente por aquele nome. O próprio Comte, no entanto, está bem longe de querer condenar essa metafísica. O erro que faz com que toda especulação teológica, já de início, apareça-lhe como repreensível tem de gerar grandes danos à metafísica - a pesquisa dos primeiros fundamentos das coisas lhe é vetada. Mas permanecem abertas outras perguntas que se direcionam do mesmo modo àquilo que é comum a todas as coisas. Deste modo, até mesmo o próprio Comte postulou, em uma obra tardia já mencionada acima, o Sistema de Política Positiva, uma filosofia primeira que deve abarcar as leis mais gerais, válidas homogeneamente em todos os âmbitos dos aparecimentos, bem como deve preceder no estudo todas as demais ciências particulares.27 Essa não é, portanto, a metafísica no sentido de Comte. Do mesmo modo que nós [34] quisemos trocar a sua expressão “teológico” por “ficcionador de pessoas”, preferimos aqui a designação modo de explicação “ficcionador de entidades” (entitätenfingierende) àquela por ele escolhida. Se prestamos atenção, por um lado, ao modo como Comte caracteriza a especulação metafísica e pensamos, por outro, no papel que as Entitates, Realitates ou Formalitates, que habitavam as coisas concretas, desempenhavam sobretudo na escolástica degenerada - então, não negaremos que essa expressão, ainda que não nos seja agradável de acordo com sua forma, é completamente apropriada de acordo com as coisas. Por isso, uma vez que a partir das explicações dadas todo risco de má compreensão está afastado, vamos nos servir das expressões “teológico” e “metafísico”, escolhidas pelo próprio Comte, no sentido por ele definido.
Mas se tornamos claros para nós, como já o fizemos, o conceito que Comte associa à metafísica e aquele que ele, pelo menos originalmente, liga à teologia, e de forma que o modo habitual de se usar esses nomes não mais perturbe e confunda, então não podemos mais negar que as três fases que ele distingue, bem como a sua sequência, contêm muito de verdadeiro. Mas são necessárias aqui algumas restrições, no particular, que nós não fazemos contra Comte, mas sim com ele e de acordo com suas ideias.
Comte não afirmou que toda pergunta científica particular tenha sido respondida, de acordo com a ordem, em sentido teológico, metafísico e positivo; que cada fenômeno particular tenha encontrado uma tal explicação tripla. Apenas acerca da totalidade de nosso conhecimento em cada uma de suas principais ramificações afirma ele que o seu desenvolvimento atravessa as três fases. Assim, e.g., foi a física, de acordo com ele, por muito tempo metafísica e, em um período ainda anterior, tratada como teológica, mas não em relação a todos os fenômenos que a ela pertencem. Os fatos físicos mais simples e comuns foram sempre vistos como subordinados a leis naturais, ao invés de serem atribuídos ao arbítrio de agentes supranaturais. Adam Smith, diz Comte, observa, e.g., com razão que, jamais, em tempo ou lugar algum, encontrou-se um deus para o peso. O mesmo vale para todas as demais ciências, até para as mais complicadas, acerca de todos os fenômenos que eram suficientemente elementares e habituais, de modo que a plena imutabilidade de suas relações reais pudesse ser reconhecida até pelos observadores menos preparados, eles próprios. Isso é claro, e.g., nos âmbitos moral e [35] social. O começo espontaneamente encontrado para as leis da natureza que são próprias aos atos individuais ou sociais, transposto a todos os fenômenos externos, já determinou o verdadeiro princípio fundamental da especulação teológica.28 Vemos aqui, portanto, Comte distante de qualquer extrapolação tola de sua lei.
Mas pelo menos por um lado parece se erguer uma objeção - e não uma de menor relevância - contra a assim compreendida generalidade dos três estágios. Todo o amplo campo de conhecimentos da matemática parece nunca ter apresentado nem um caráter metafísico, nem um teológico, seja em relação a números e figuras e suas peculiaridades, seja por princípio, em seu todo. Pois decerto nunca um matemático acreditou, como Mill observa aqui e com razão, que a vontade de um Deus impedisse que linhas paralelas se encontrassem ou fizesse com que a soma de dois e dois fosse quatro. E, com certeza, nunca alguém se curvou perante um Deus em oração por ele fazer com que o quadrado da hipotenusa seja equivalente aos quadrados de ambos os catetos. E assim, em geral, para proposições mais intrincadas. E é também esclarecedor por que a matemática constitui uma tal exceção. Nela nunca houve ocasião para a admissão de uma causa eficiente, pois ela não trata de nada além de relações de grandeza, que obviamente são dadas com as grandezas elas próprias. Deste modo é notável, no que se refere nomeadamente ao matemático - pois Comte ensinou por muito tempo essa disciplina na Escola Politécnica de Paris -, que ele pareça ter sido deixado sem atenção durante a história de toda essa ciência.
Mas o enigma se soluciona de modo simples e fácil. Comte estava bem longe de perder de vista algo que salta tanto aos olhos. Se ele, não obstante, afirmou para todas as ciências, sem exceção, i.e., também para a matemática, um estágio teológico, então ele só o pôde fazer na medida em que contou o domínio da mecânica racional como parte da ciência matemática, tal como acontece com frequência ainda entre outros. Se ele o fez com razão ou não, não queremos decidir aqui. É, no entanto, fácil de se ver que a história da matemática não constituiria mais aquela exceção que ela antes constituía no que a razão por nós citada para tanto é perdida. Antes da descoberta das três leis fundamentais da mecânica - as leis da inércia, da igualdade de ação e reação e a assim chamada lei da resultante das forças -, sem dúvida, uma quantidade dos fenômenos a elas correspondentes, aos quais pertencem também os movimentos das estrelas que se preservam em força durável, encontraram por muito tempo uma explicação teológica.
[36] A mecânica racional também atravessou um estágio metafísico, e Comte sabe ainda encontrar alguns vestígios disso mesmo na maneira como ela é praticada nos dias atuais - até mesmo nos dois outros ramos da matemática, na aritmética e na geometria ele pretende tê-lo notado de certa maneira. Elas se mostram na admissão de todo tipo de entidades imaginárias que não são, decerto, pensadas como causas eficientes - pois, como dissemos, não se pode tratar aqui de um agir -, mas, ainda assim como algo real, que constituiria internamente as grandezas. A isso pertence, para que mencionemos aqui apenas um exemplo, o infinitesimal, que, não obstante ser uma mera ficção, ou, até mesmo, uma absurdidade, é admitido no cálculo diferencial como algo que habita, em número infinito, as grandezas finitas.
Assim, deste modo e com essa especificação, a lei de Comte tem validade para toda a ciência.
Mas, se quisermos considerar a história de uma ciência a partir do ponto de vista das três fases, temos de ter ainda outra coisa em linha de conta. Comte levou em consideração apenas a linha ascendente de desenvolvimento, mas não a decadência que interrompe temporariamente o progresso de algumas ciências. Ele olha por sobre essa decadência, no que ele continua a perseguir a ciência apenas a partir do ponto em que ela retoma o fio condutor perdido. Quem presta atenção nisso logo perde as preocupações que, em outras circunstâncias, necessariamente estimulariam de modo especial a história da filosofia em sentido habitual.29 Seu começo, entre os gregos, é um começo teológico infantil. Tales explica que o ímã é animado porque ele atrai o ferro. Ele é um hilozoísta. Todo o mundo, para ele, está cheio de deuses. Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito têm a mesma doutrina, mesmo que, em vez da água, como em Tales, respectivamente o ilimitado, o ar e o fogo sejam designados como a essência viva das coisas. Empédocles passa do hilozoísmo para um tipo de politeísmo da “ amizade ” e do “ conflito”, que os deixa guerrearem um contra o outro como um Deus bom e outro mau e, em sua guerra, explicarem todos os fenômenos do mundo. Anaxágoras, que inicialmente poderia ser chamado de monoteísta, recorre - de um modo teológico, em sentido comteano, em que lhe falta um fundamento explicativo mecânico - ao seu nous de maneira imediata [37] como um deus ex machina. E assim segue até Aristóteles, que, apesar de teísta, não é um pensador teológico em sentido desviado. Ainda assim - e mesmo o seu maior admirador não pode negar isso -, em muitas de suas teorias, como aquelas da potência e do ato, da substância e do acidente etc., ele não está livre de todas as interpretações metafísicas. Em seu caráter fundamental, no entanto, ele é já um investigador positivo. Deste modo, até ele há uma ordem, de modo similar àquilo que Comte determina em geral. Deve-se esperar, então, uma purificação e um mais pleno desenvolvimento do espírito positivo. Mas a filosofia grega é, em geral, atraída pela decadência da vida grega, e assim vemos a Stoa, a mais filosoficamente significativa escola de seu tempo, voltar ao hilozoísmo de Heráclito, e, após, o neoplatonismo postular o mais fantástico sistema teosófico, como se apenas agora devesse começar a primeira fase do desenvolvimento. Os Escolásticos dos séculos XI e XIII constroem novamente a partir do ponto alto do passado. Mas novas perturbações conduzem da investigação positiva de volta a sutilezas metafísicas e ao misticismo. A Modernidade toma através de Bacon, Descartes, Locke e Leibniz um novo impulso, mas, pela terceira vez, uma completa decadência aliena a filosofia de tal forma do espírito positivo que sua degeneração no panteísmo de Schelling e Hegel, segundo nossa avaliação, excede tudo o que os estágios análogos da filosofia precedente produziram na Antiguidade e na Idade Média. Permanece reservado ao nosso tempo voltar-se a um tratamento positivo da Filosofia. O chamado para isso se ergueu sonoroso e, em parte construindo a partir dos pontos altos do passado, em parte sob a utilização dos progressos da ciência natural, já tem aqui e ali um belo começo.
Talvez o presente estudo não tivesse o pleno assentimento de Comte, que, nós teremos ainda ocasião de nos convencermos disso, não deixa as pesquisas psicológicas e metafísicas, em sentido habitual, formarem-se em seu pleno direito e também não atenta suficientemente a elas na história. Mas talvez seja esse ramo do conhecimento tão mais apropriado para mostrar como sua doutrina das três fases do desenvolvimento encontra-se em todos os lugares corroborada, desde que se a empregue da maneira correta na história de uma ciência.30
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Notas
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