Resenha
Nietzsche’s values, de John Richardson
Nietzsche’s values, de John Richardson
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 390-397, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 01 Março 2022
Aprovação: 23 Abril 2022
O novo livro de John Richardson, Nietzsche’s values (2020), dá continuidade e expande em novas direções as contribuições à Pesquisa-Nietzsche feitas nas duas obras anteriores do autor, Nietzsche’s System (1996) e Nietzsche’s New Darwinism (2004). Tal como nessas obras, o livro é lastreado pela consideração de que a filosofia nietzscheana forma um todo coerente e que, portanto, pode ser encarada como um “sistema”, mesmo que não no sentido usual do termo, ou no sentido crítico em que o próprio Nietzsche frequentemente o emprega. Mas enquanto Nietzsche’s System centrava-se na noção de vontade de poder - vista por Richardson como o centro pulsante do sistema filosófico nietzscheano - e Nietzsche’s New Darwinism esmiuçava a relação fecunda do filósofo com o pensamento de Charles Darwin, Nietzsche’s Values procura enfrentar, por sua vez, aquela que Nietzsche considerava, segundo Richardson, a principal meta e tarefa de sua filosofia, “a mais séria exigência” jamais colocada à humanidade (EH, Prológo, 1), isto é, a de incorporar a verdade sobre os valores. Tratando “valores” como o principal e mais importante tópico de Nietzsche, o novo livro de Richardson nos traz então uma abordagem detalhada, enriquecedora e bastante original da filosofia nietzscheana.
O objetivo explícito de Richardson, em Nietzsche’s Values, é construir uma imagem abrangente (an overall picture) ou mapa do pensamento de Nietzsche - o que significa construir uma imagem da imagem de mundo do próprio Nietzsche (p. ix) -, especificando e analisando com especial atenção o caráter eminentemente valorativo que esta imagem possui. Para tanto, é preciso levar em conta não somente o que Nietzsche diz sobre certos valores - tais como valores morais, ou valores europeus dominantes - mas também, e sobretudo, os valores que Nietzsche, ele mesmo, professa e busca inspirar em seus leitores. É preciso, em outras palavras, diferenciar entre duas atitudes assumidas por Nietzsche diante do tópico “valores”: a atitude descritiva, que o filósofo adota ao estudar valores, e a atitude valorativa, que Nietzsche adota, ele mesmo, ao valorar. Ambas seriam necessárias para uma adequada compreensão do projeto nietzscheano da transvaloração.
Mais ainda, Richardson vê a atitude valorativa de Nietzsche como uma conquista que se dá a partir de seu esforço descritivo. Isto porque Nietzsche nos fornece uma série de “razões” para acatar sua imagem de mundo (e as valorações que dela fazem parte), mas estas razões, assim como esta imagem, devem se mostrar compatíveis com as “verdades” sobre valores que ele espera ter revelado em seus estudos descritivos, verdades que afinal somos desafiados a incorporar. Dentre elas, central é a verdade de que não existem valores “em si mesmos”, pois “nada tem valor antes e independentemente de ser valorado por uma valoração”1; “valores (values) são simplesmente valorados (valueds)” (p. xiv). Assim, os valores de Nietzsche, sejam eles quais forem, precisam se adequar a esta constatação. E de fato, Richardson busca mostrar que os “novos valores” de Nietzsche são precisamente isso: “valores que podemos valorizar honestamente (values we can honestly value)” (p. xiii), isto é, valores que não fogem da verdade sobre os valores.
O livro é dividido em três partes, precedidas de um capítulo introdutório, intitulado “Valor: Introduzindo os Problemas” (cap. 1), no qual Richardson enuncia suas principais teses acerca da “ontologia” de valores de Nietzsche, a serem desenvolvidas e justificadas em maiores detalhes nos capítulos subsequentes. A mais importante destas teses refere-se à “verdade” que acabamos de explicitar: ao contrário do que uma teoria dos valores externalista sustentaria, “valores (values)” nada mais são do que “valorados (valueds)”. Contudo, o autor logo nos adverte contra a classificação de Nietzsche como um completo internalista, já que isso resultaria em um relativismo acachapante, estranho ao projeto nietzscheano de criar novos (e melhores) valores. O perspectivismo de Nietzsche seria antes um internalismo moderado, que Richardson procura melhor esclarecer formulando, de modo um tanto jocoso, doze princípios nietzscheanos da valoração. Estes princípios iluminam aspectos fundamentais do pensamento de Nietzsche - tais como, por exemplo, que “valorar é uma função da vida enquanto vontade (de poder)” e, portanto, algo não limitado aos seres humanos, ou necessariamente dependente da consciência.
Richardson separa estes princípios em dois grupos: seis gerais, que se aplicam à toda valoração, sendo, por conseguinte, “essenciais e indispensáveis”; e seis que se referem especificamente à valoração humana, e que podem ou não ser passíveis de mudança. Essa divisão reflete, em parte, a divisão do próprio livro: a parte I, intitulada “Valores do corpo” (Body values), trata do valorar em seu sentido mais abrangente, biológico, compartilhado por todos os seres vivos, e contém três capítulos. No primeiro, “Vida” (cap. 2), Richardson apresenta sua interpretação da noção de vontade de poder, mostrando de que modo o “conceito chave de vida”, frequentemente usado por Nietzsche como critério para medir o valor dos valores, é inseparável da noção de poder2. O segundo e terceiro capítulos dessa parte (caps. 3 e 4) abordam, respectivamente, os impulsos (drives), considerados por Richardson como os “principais explicadores” (principal explainers) da psicologia nietzschiana, e os afetos, tomados como uma segunda instância do valorar corporal. Uma vez que Richardson considera a diferença entre “impulsos” e “afetos” como temporal3, o capítulo 4 inclui ainda uma importante discussão do problema do passado e da temática do sofrimento e do pessimismo (bem como da relação de Nietzsche com Schopenhauer), servindo assim como um capítulo de transição para a segunda parte do livro, intitulada “Valores Humanos”. Cabe ressaltar que, para Richardson, essa dimensão corporal da valoração, em Nietzsche, deve ser enfaticamente sublinhada. Bem compreendido, é o corpo que permite identificar o que é “poder” (p. 78), pois, como Richardson sintetiza, poder é “a meta estrutural de todos os nossos impulsos e afetos” (p. 294).
A parte II de Nietzsche’s Values aborda, então, as formas notadamente humanas de valorar, e é composta de quatro capítulos. Nos dois primeiros (respectivamente, os capítulos 5 e 6), Richardson analisa o diagnóstico fortemente crítico de Nietzsche a respeito da “agência” (agency) e da linguagem humanas, mostrando de que modo a consciência e a comunidade, ou sociabilidade, também conformam as valorações dos homens. Os dois capítulos seguintes - “Niilismo” e “Liberdade” - são instrumentais para a consecução da terceira e última parte da obra, que carrega o mesmo título do livro e contém a interpretação de Richardson sobre quais são, afinal, os Valores de Nietzsche, isto é, quais valores novos são criados por ele e em que sentido Nietzsche pode afirmar que tais valores são “bons” ou “melhores”, permanecendo ainda assim fiel a seu perspectivismo ou internalismo moderado. O problema do niilismo, especialmente, merece atenção na medida em que ele reflete o momento histórico que vivemos, momento no qual, em virtude de um gradual reconhecimento da verdade sobre os valores morais, nossa própria capacidade de valorar periga ir a pique.
Richardson distingue (no capítulo 7) entre duas concepções de niilismo presentes em Nietzsche, quais sejam: o niilismo do “não à vida” (no-to-life nihilism) e o niilismo da ausência de valores (no-values nihilism). O primeiro denota um niilismo afetivo, fisiológico ou “vivido”, em que uma atitude hostil à vida - isto é, um julgamento negativo do valor da vida - toma corpo; este seria o niilismo vitalmente cansado (life-weary) expresso nos ideais ascéticos. Já o último tipo refere-se à posição, sobretudo teórica, de que não existem quaisquer valores reais, verdadeiros ou mais elevados; o niilismo da ausência de valores seria aquele que coincide, assim, com uma “rejeição radical de valor, sentido e desejabilidades” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, outono de 1885, 2 [127])4.
Segundo o autor, Nietzsche vê o niilismo da ausência de valores como o fenômeno explícito de seu tempo, oferecendo-nos o niilismo do não à vida como seu diagnostico desse fenômeno. Em outras palavras, a posição teórica que nega a existência de qualquer valor seria a culminação de uma atitude hostil à vida embutida na moralidade desde seus primórdios. Contudo, a identificação do niilismo no-to-life como estando na raiz do niilismo da ausência de valores não diminui, para Richardson, a relevância deste segundo. Pelo contrário: o no-values-nihilism, que em muitos aspectos se assemelha a uma posição internalista, contém uma “verdade” à qual “precisamos nos ater apesar da postura antivida que ela expressa” (p. 245). Assim, esse tipo de niilismo é o que devemos “crucialmente atravessar, para fazer um grande avanço”, ele é “nosso caminho adiante” (p. 245). Isso porque “a negação dos valores externos precisa ser sentida como destruindo todos os valores, para que possamos aprender a ter valores de um modo novo” (p.254).
O tratamento que Richardson faz do niilismo, bem como sua compreensão de que Nietzsche objetiva enfim superá-lo, ilumina um dos argumentos centrais do autor de Nietzsche’s Values. Sua asseveração de que Nietzsche não pretende simplesmente negar ou rebaixar a vontade de verdade - este “agente crucial” do niilismo -, mas sim “curá-la”. A vontade de verdade seria “o único impulso e paixão que pode nos levar adiante, para fora do niilismo e para novos valores” (p. 299). De fato, Richardson eleva as noções de “verdade” e “poder” à categoria de “meta-valores”, ou valores de segunda ordem, a partir dos quais, para Nietzsche, o valor de todos os demais valores poderia ser julgado. Nesse sentido, é através do recurso a estes meta-valores que ele pretende dissolver as tensões do internalismo nietzscheano: novos valores são possíveis e podem ser valorados como “bons” ou “melhores” pelo crivo destes “deep aims at power and truth” que estão “embutidos em nós, segundo Nietzsche, nos níveis biológico e cultural, respectivamente” (p. 253). O grande desafio que se apresenta à humanidade (e a Nietzsche), qual seja, o de incorporar a verdade sobre os valores para, então, criar novos e melhores valores, é também o desafio de “conciliar e sintetizar estas metas (aims) principais”, estes dois meta-valores, poder e verdade, que todos nós já valorizamos.
Na terceira e última parte do livro Richardson se dedica, por fim, a perfazer um mapa dos novos valores do próprio Nietzsche, mostrando como ele é capaz de mudar seus próprios valores - após ter se dedicado a realizar uma crítica do humano, em especial, da moral - e como ele propõe que nós mudemos os nossos. Os novos valores criados por Nietzsche responderiam, pois, a este critério fundamental: “o de serem estratégias para a vida e a verdade”, de modo que seja possível ter acesso a ambos nesse momento da história humana (p. 353). Para Richardson, a peça-chave dos novos valores de Nietzsche se encontra em sua defesa do “Sim”, mas que não diz respeito a uma aceitação “não realista e cor-de-rosa (rosy picture)” de tudo que existe (p. 354). Esse “Sim” é expresso pelas ideias que aparecem sobretudo na última fase do pensamento de Nietzsche (1883 - 1888), como as ideias do eterno retorno e de amor fati, que encontram expressão no que Richardson chama “monismo de valor” (value monism) de Nietzsche; isto é, a afirmação de “que toda vida é boa, e que o mal é somente uma forma do bem” (p. 355).
Mas Richardson chama a atenção para o aspecto religioso - contudo, “não-teísta” - desses valores de Nietzsche, afirmando que o filósofo não renuncia simplesmente aos deuses, ainda que já tenhamos constatado serem estes somente ficções, produtos da invenção humana. Em contrapartida, é a partir de um pathos muito particular, o da embriaguez (em alemão, Rausch), que Nietzsche espera ser possível “estetizar a religião e ao mesmo tempo preservar o seu aspecto religioso” (p. 477). Ao estetizar um pathos e, simultaneamente, associá-lo a um deus - a saber, Dionísio - que vai na contramão dos afetos propagados pelos séculos de cristianismo, Nietzsche “des-moraliza” a religião. A embriaguez (Rausch) dionisíaca revelaria, de modo ao mesmo tempo estético e divino, o mundo como ele é, e, com isso, aproximar-se-ia daqueles afetos que são os que Nietzsche, no entender de Richardson, mais valora e valoriza: a vida, entendida como vontade de poder, e a verdade.
É nesse aspecto que talvez resida o que há de mais instigante em Nietzsche’s Values para a Pesquisa-Nietzsche atual, pois, na interpretação de Richardson, o eterno retorno teria como principal papel a função de “ajudar a despertar e focalizar em nós os afetos estético-religiosos especiais que Nietzsche mais preza” (p. 478). Se, portanto, Nietzsche ainda pensa ou fala em deus, ou deuses, estes não são para ele “componentes efetivos do mundo”, mas “pontos de vista de sobre o mundo”. A ideia do eterno retorno, portanto, seria a maneira como essa nova religião não teísta ensinaria àqueles que “a seguem a retratar (to picture) uma estrutura geral da vida e a se verem dentro desse todo” (p. 508)5.
O livro de Richardson pertence, como o próprio autor afirma em seu prefácio, ao gênero “analítico” de textos sobre Nietzsche, e na medida em que atribui à sua filosofia uma “forte aliança com verdade” (p. xiii), decididamente se afasta da maioria dos estudos “continentais” sobre o filósofo alemão. Contudo, Richardson parte tanto da “análise” quanto da “síntese”, e, ao enfatizar o caráter histórico do pensamento nietzscheano - como fazem de praxe os continentais -, situa seu livro em uma posição que pode igualmente ir contra a maioria das mais recentes recepções analíticas da filosofia de Nietzsche. Para aqueles e aquelas que, no Brasil, dedicam-se à Pesquisa-Nietzsche, Nietzsche’s Values possui um “valor” - se nos autorizarmos, desde nossa singular perspectiva, a estabelecer um valor, dentre muitos outros que podem existir - um tanto especial, pois, ao dialogar tanto com determinadas interpretações continentais quanto com a tradição analítica da filosofia de Nietzsche, o livro descerra um lugar entre continentes, um lugar de qualidades e temperaturas híbridas, misturadas, em que talvez nós, pesquisadoras e pesquisadores de Nietzsche no Brasil, possamos ao mesmo tempo nos sentir em casa e falar a nossa própria língua.
Referências
NIETZSCHE. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB). In: D’IORIO, Paolo (coord.). Elaborada segundo a Edição Colli e Montinari das Obras Completas de Nietzsche, 2011. Disponível em: www.nietzschesource.org. Acesso em: 26 jul. 2022.
NIETZSCHE. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos 1885-1887: Volume VI. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
RICHARDSON, J. Nietzsche’s New Darwinism. New York: Oxford University Press, 2004.
RICHARDSON, J. Nietzsche’s System. New York: Oxford University Press, 1996.
RICHARDSON, J. Nietzsche’s Values. New York: Oxford University Press, 2020.
Notas
Autor notes