Resenha
The Affirmation of Life: Nietzsche on Overcoming Nihilism, de Bernard Reginstera
The Affirmation of Life: Nietzsche on Overcoming Nihilism, de Bernard Reginstera
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 34, núm. 62, pp. 405-422, 2022
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 17 Março 2022
Aprovação: 23 Maio 2022
I
No cerne do pensamento de Nietzsche está uma tese histórica de largo alcance, uma tese-diagnóstico com presumíveis implicações filosóficas. A tese é a de que a tradição moral racionalista de matriz grega e judaico-cristã, “o Ocidente”, está a braços com uma crise de “niilismo”. Essa crise é frequentemente retratada por Nietzsche, na sua prosa caracteristicamente telegráfica: “Nada é verdade; tudo é permitido”; “tudo o que acontece é destituído de sentido (sinnlos)”; “a existência (Dasein) não tem sentido (Sinn)”; “Niilismo: o propósito está em falta; o 'porquê?' não encontra resposta”; e “os valores mais elevados perdem valor”. É evidente que, para Nietzsche, viver uma vida não é comparável a ocupar um lugar numa embarcação; é preciso dirigi-la; as vidas têm de ser conduzidas, sustentadas. Isso exige um compromisso com valores. Esses valores são partilhados e herdados através de uma tradição, e algo falhou nos meios sociais e psicológicos, pois estes foram usados para o fim de legitimar e, assim, sustentar tais valores, ou, como Nietzsche muitas vezes proclama, algo “morreu”. Pela primeira vez na história ocidental, a possibilidade de sustentar tais compromissos falhou, sem que o fizesse à luz de um novo compromisso que viesse tomar o seu lugar. Todo o processo se desmoronou catastroficamente, em todos os níveis: social, político, religioso e psicológico. Paradoxalmente (e porventura duvidosamente), o indício mais seguro de tal crise é o facto de esta passar, o mais das vezes, despercebida, o facto de as vidas serem conduzidas dentro de uma profunda autoilusão, continuando tudo como se nada tivesse acontecido.
Embora sempre tenha sido claro que Nietzsche acreditava que uma tal crise existia, sendo igualmente claro que acreditava ser capaz de nos oferecer uma forma de a superar e, assim, nos seus próprios termos, de nos oferecer uma forma de “afirmar a vida”, não há consenso sobre estas duas questões, ou seja, quanto à natureza da crise e quanto ao que significaria, ao certo, ultrapassá-la. Bernard Reginster escreveu uma análise cuidadosa, clara e detalhada de como Nietzsche entende esta crise e o que significaria superá-la ou “afirmar a vida”, interrogando-se ainda sobre se as asserções atribuídas a Nietzsche lhe fazem jus.
Reginster classifica a sua abordagem como “sistemática”, o que não significa, segundo ele, tentar ancorar todas as dimensões dos escritos de Nietzsche a uma ideia filosófica central, ou a uma constelação de ideias (como o “perspectivismo”, ou a metafísica da “vontade de poder”, ou o “naturalismo”), mas sim demonstrar que o pensamento de Nietzsche pode ser configurado como resposta a este problema ou crise. No centro do Nietzsche de Reginster está uma proposta para uma “ética substantiva rica” (uma formulação que importa registar; a ela voltaremos), assente numa “ética da vontade de poder”, ética essa investida numa nova e muito invulgar avaliação “positiva” do sofrimento, em particular do sofrimento que resulta da resistência com que nos deparamos na tentativa de realizarmos os nossos ideais mais elevados. Em grande medida, o que Reginster faz, nesta obra, é aquilo que veio a ser apelidado de “reconstrução racional” de um texto histórico, o que significa que quer encontrar em Nietzsche o que, segundo os padrões contemporâneos, poderia ser classificado como “um projecto filosófico coerente e convincente, dentro do qual a todos os temas distintivos deste pensamento é atribuído um lugar, bem como um significado que estaria em sintonia com a apreciação que deles faz” (p. 7). Isto significa igualmente que Reginster se sente no direito de recorrer aos apontamentos não publicados de Nietzsche, os do Nachlass, sempre que estes o ajudam a sustentar uma interpretação, e que se concentra conscientemente no que ele chama o “conteúdo” das obras de Nietzsche e não na sua forma, tantas vezes esotérica.
Tudo isto é extremamente controverso, tanto mais que alguns intérpretes influentes (como Bernard Williams) acreditam que um dos principais objetivos da escrita de Nietzsche era o de descobrir uma forma de se esquivar a resumos e análises filosóficas convencionais das suas “posições”, que o propósito dos seus livros era diferente, e muito mais complexo, do que o da prosa argumentativa linear, indo no sentido de um abandono do caminho filosófico e não de sua continuação1. Ademais, é difícil crer, prima facie, que Nietzsche pensasse que o que faria falta, naquele momento, fosse algo como uma alegação filosófica, um argumento que pudesse demonstrar que a vida valia a pena ser vivida, ou que o sofrimento podia ser afirmado, que teríamos razões para afirmar a existência (voltarei a este ponto mais adiante). E, como acontece com qualquer texto histórico, será sempre controverso tratar a obra não publicada a par e do mesmo modo que a publicada, e citar passagens, segundo critérios estritamente temáticos, de diferentes períodos e diferentes livros e diferentes fases do pensamento de Nietzsche como se todos tivessem sido escritos ao mesmo tempo e no mesmo contexto.
Porém, é também evidente, mesmo para o leitor mais hermeneuticamente escrupuloso, que em certo sentido Nietzsche se opõe, feroz e desdenhosamente, a algo (nomeadamente aos valores negadores-da-vida da tradição humanista cristã), e que é “a favor” de algo, de uma alternativa “afirmadora da vida” - ou, na sua expressão, de uma alternativa “que diz sim” -, uma sabedoria por vezes apelidada de “trágica”, e que Reginster designa como “dionisíaca”. Incluo-me entre aqueles a quem a forma, e mesmo o propósito, da obra publicada por Nietzsche causa maior perplexidade do que a de Reginster, bem como entre aqueles consideravelmente mais hesitantes em se apoiar no Nachlass. Contudo, a picuinhice em torno desta questão por vezes nos deixa num vai-não-vai sem fim à entrada do edifício de Nietzsche, e não há dúvida de que a sua obra frequentemente toma a forma de asserções substantivas sobre como se deve viver sob a sombra do niilismo, bem como sobre a natureza dos valores. Nietzsche, aliás, despende um esforço considerável na defesa de tais asserções. Há na sua obra amplo material para que alguém com interesses afins aos de Reginster o possa trabalhar, desde que também tenha em conta a extraordinária complexidade retórica das obras de Nietzsche, assim como a natureza inevitavelmente provisória de qualquer interpretação, em particular uma interpretação que se tome por “sistemática”.
II
Será que a vida, enquanto tal, precisa de ser “afirmada”? Não dependerá a sua afirmabilidade do tipo de vida que nos coube como destino? Para mais, caso pudesse ser demonstrado que a vida, enquanto tal, teria de ser afirmada para que pudesse ser conduzida, será que aquilo de que se precisa para o fazer toma uma razão ou uma justificação para o fazer? A resposta de Nietzsche a uma tal pergunta dependerá, em grande medida, dos contornos precisos da sua tese-diagnóstico, uma vez que esta se prende com a ideia de que quaisquer recursos que tenham existido, quer para tomar a afirmabilidade da vida como certa, quer para de fato a afirmar, desmoronam-se. É por isso apropriado que Reginster destrinche cuidadosamente aquilo que Nietzsche quis dizer ao falar da crise do niilismo. Ele observa, inicialmente, que o problema em causa é o problema do valor, especialmente o valor particular e distinto de “ter-sentido”. Este valor ganha a sua tração em virtude dos objetivos que estabelecemos, em função dos valores particulares e determinados que subscrevemos e de acreditarmos que existem de fato valores, e que estes são realizáveis. O niilismo pode decorrer do fato de estes valores (na realidade, todos os valores, ou o valor enquanto tal) perderem, de algum modo, a sua tração, de deixarem de ser tidos como valores, ou de nos convencermos de que os valores mais importantes, aqueles que orientam a vida, não são de todo realizáveis no mundo em que vivemos. No primeiro caso, a consciência de que não existem valores objetivos ou fatos morais, a par, claro, do pressuposto de que os valores não são sustentáveis se não forem objetivos, gera aquilo a que Reginster chama o niilismo da “desorientação”. Damos por nós “perdidos”, sem qualquer confiança de que seja possível “estimar” (schätzen) - termo que, em Nietzsche, remete à própria vida2. No segundo caso, uma tal visão da irrealizabilidade dos valores produz aquilo a que Reginster chama “desespero”. Ou seja, subsiste um compromisso com um “valor mais elevado”, mas a consciência da sua permanente irrealizabilidade no mundo produz não o ceticismo, ou a resignação, ou o pessimismo3, mas sim o “desespero”, o que traduz mais uma visão do mundo do que dos nossos valores. Segundo esta ótica, nada de significativo pode ser alcançado, pelo que não se pode afirmar que viver “vale mais” do que não viver.
A discussão destas questões por Reginster resulta numa quantidade extraordinária de classificações e rótulos (somos forçados a abrir caminho por entre o “objetivismo normativo”, o “ceticismo”, o “antirrealismo”, o “niilismo da desorientação”, o “niilismo do desespero”; as etiquetas multiplicam-se, ao longo de todo o livro)4, e Reginster admite de bom grado que a noção de niilismo que ele entende como a mais importante para Nietzsche (o “desespero”) é analisada como tal apenas nos escritos não publicados, e que as obras publicadas parecem favorecer a outra forma que o niilismo toma (a “desorientação”). Porém, é suficientemente clara a razão pela qual ele quer dispor as coisas desta forma, e pelo menos as implicações do esquema daí resultante parecem corresponder às preocupações essenciais de Nietzsche5. Ou seja, é evidente que para Nietzsche as conclusões niilistas que resultam da constatação de que o estatuto de todos os valores deve ser entendido antirrealisticamente assentam no pressuposto equivocado de que, sem objetivismo, a avaliação e o compromisso com o valor seriam impossíveis. Nietzsche não partilha este pressuposto, pelo que a desvalorização dos valores neste sentido não implica acabarmos desorientados, incapazes de dar valor6. Contudo, mesmo que possamos nos manter fiéis a um qualquer novo “valor mais elevado” que já não seja objetivo, temos ainda assim de reconhecer o caráter hostil e contingente do mundo em que os valores têm de se realizar. Mais concretamente, para o Nietzsche de Reginster, a tentativa de realizar valores acarreta um sofrimento inevitável e profundo e, ainda mais importante, não oferece qualquer satisfação derradeira, mas tão somente uma frustração e um sofrimento sem fim. Que disto se infira que o “desespero” é a interpretação que o Nietzsche de Reginster está mais empenhado em combater.
Quando enunciada de forma sumária, a inferência elementar é desde logo grosseira e implausível. Eis como Reginster a resume: “o niilista infere da proposição de que os seus valores mais elevados são irrealizáveis a proposição de que ‘o mundo é algo que racionalmente não deveria existir’” (37). Isto parece algo precipitado e dificilmente mereceria atenção séria quando enunciado nestes termos. Parece se encaixar no esquema francamente infantil de: “Se não posso ter tudo, a perfeição, o sucesso pleno, então não quero nada”. Em todo o caso, não fica claro que o pensamento de Nietzsche sobre uma resposta apropriada a um tal niilismo seja um argumento capaz de demostrar que esta inferência não é, na verdade, racional. Como veremos em breve, Nietzsche está de fato muito mais interessado na questão da justificação e nas razões práticas para a ação do que poderá transparecer de muitas interpretações, pelo que Reginster faz bem em sublinhar esta dimensão. Mas Nietzsche está disposto a admitir muita coisa como possível justificação, como a “justificação estética” para os discursos elípticos de Zaratustra a forças como o “destino” e o “amor ao destino”, pelo que aquilo que é admissível como justificação subsiste, naquilo que diz, como questão complicada e em aberto. Encontrar uma forma de fazer o “niilista desesperado” notar que a irrealizabilidade tem um “lado positivo” que ele pode ter negligenciado e que a resistência e o sofrimento provocados pelas nossas tentativas de realizar valores potencializam, de várias formas, o valor da tentativa não o convencerá de que a “afirmação da vida” é razoável, a menos que ele partilhe conosco de um grande número de pressupostos quanto ao que é uma justificação adequada, o que dificilmente podemos presumir.
Além disso, como o próprio Reginster muitas vezes sublinha (sem o assinalar explicitamente), o problema central do niilismo é se existem agora “objetivos” possíveis que possam “inspirar” a nossa fidelidade ou compromisso (cf. p. 25)7. A resposta “filosófica” sugerida por Reginster só importaria a um niilista para quem as inferências racionais e a clareza lógica já fossem importantes e já inspirassem fidelidade. É verdade que Nietzsche fala do niilismo como consequência “lógica” ou “necessária” dos nossos ideais cristãos, mas o alcance dessa afirmação é mais amplo do que o problema da consistência lógica numa inferência, e não convida a uma resposta primordialmente filosófica. O Cristianismo, por exemplo, apregoa uma espécie de lógica “imperativa”, exigindo que uma pessoa seja escrupulosamente honesta quanto às suas verdadeiras motivações ao apreciar o valor de uma ação, e Nietzsche afirma com frequência que o Cristianismo, por essa mesma razão, acabou por “minar a si mesmo”, trazendo à luz do dia as origens rasteiras, ou baixas, do que se supunha ser elevado8. E o problema dos “objetivos dignos de inspiração”, tal como ele surge na obra de Nietzsche, parece demasiado vasto para ser resumido num argumento (Sócrates e o socratismo - uma fé na função consoladora da razão - são tanto um alvo quanto o cristianismo). O niilismo parece ser antes um profundo fracasso do desejo (do “importar”, ou seja, do “importar-se com algo”, “dar valor a algo” como na invocação de Reginster do “desespero”), e não a consequência de uma inferência falha ou de um argumento em falta.
Além disso, a própria inferência é opaca. Poder-se-ia simplesmente dizer que há dignidade e nobreza na tentativa de realização dos valores mais elevados; que nos preocuparmos com saber antecipadamente a extensão do sucesso realmente possível obedece à lógica de merceeiro que Nietzsche tanto despreza9. Esta indiferença perante o sucesso está mais próxima, pelo menos, do timbre de Nietzsche. E uma qualquer realização parcial, ainda que mínima, poderá ser um consolo suficiente.
III
No segundo parágrafo d’A Gaia Ciência, Nietzsche aceita - ao contrário do que nos dizem muitas interpretações românticas e materialistas que dele se fazem - que qualquer pessoa séria na nossa era carrega o fardo de uma severa “consciência intelectual”, e é nítido que Nietzsche lamenta o facto de que
...a grande maioria das pessoas não acha desprezível acreditar nisto ou naquilo, e viver em conformidade com tal crença, sem antes se haver tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra ela, e sem mesmo se importarem o que seja com tais razões (GC 2).10
Assim, como já foi referido acima, Nietzsche preocupa-se com a questão de haver ou não “razões para agir” que sejam justificáveis, e esta questão tem de ser equacionada como uma das dimensões menos sondadas do projecto de Nietzsche. Uma das grandes virtudes da interpretação de Reginster é o facto de este abordar esta questão exaustivamente, no que conta com a ajuda proveitosa, uma vez mais, de Schopenhauer. Com efeito, o que Reginster nos mostra é que Nietzsche trata as acções e a agência como categorias importantes e distintas (distintas de meros acontecimentos), e que para ele as próprias acções são, num determinado sentido, intencionais, ou existem sempre à luz de uma avaliação determinada, que reflecte uma perspectiva irremediavelmente parcial. A meu ver, este facto, aliado ao posicionamento de Nietzsche sobre a consciência intelectual, acima referido, e aliado ainda à instabilidade psicológica (senão mesmo ao absurdo) inerente à possibilidade de se postularem, autoconscientemente, certos valores como fictícios ou de “faz de conta”, torna totalmente implausível a interpretação “ficcionalista” que Reginster dedica um tempo considerável a refutar, o que faz de modo convincente (isto é, a tese de que criamos valores e de alguma forma fingimos perante nós mesmos que eles têm uma fonte de autoridade que nos é exterior). A discussão acaba por levar Reginster, felizmente, para lá deste tópico, até às interrogações que constituem o cerne do problema - “O que significa avaliar? E que tipo de coisas são os valores?” (p. 98). Também aqui, Reginster segue uma via schopenaueriana para se aproximar dos pontos de vista de Nietzsche, via essa que o conduz à sua asserção mais importante - a de que os comentários de Nietzsche sobre a “vontade de poder” são o lugar onde devemos procurar respostas a estas questões fundamentais11.
O cerne da interpretação de Reginster é um argumento original, imaginativo e ousado (ainda que extremamente implausível): o de que, para Nietzsche, a vontade de poder é o esforço para superar uma resistência, ou melhor, que “a vontade de poder é a vontade de superar a resistência” (p. 126, ênfase minha). Reginster aceita, e ele próprio sublinha, a implicação paradoxal deste argumento: que perseguimos activamente a insatisfação e a dificuldade (é esta a base para a reavaliação do sofrimento), e releva algo que, segundo ele, o próprio Nietzsche sublinha, mas que a outros comentadores - com quem, noutros pontos, se mostra congenial (como Clark) - passou despercebido: que este esforço é ilimitado e perpétuo (p. 128). Reginster afirma também que outras interpretações que ele acolhe como congeniais à sua (como a de Richardson), aquelas que sublinham que a vontade de poder se refere, em última análise, ao “desenvolvimento” de fins específicos, desenvolvimento esse que “consiste essencialmente no seu domínio sobre outras pulsões” (p. 130) - sendo que domínio, aqui, não significa dominação e exclusão, antes integração - são, na verdade, demasiado irénicas, e que Nietzsche entende a vontade de poder como a procura activa de uma resistência a superar. Mais uma vez, Reginster reconhece que isso constitui um paradoxo, que a vontade de poder se expresse quando, na busca da satisfação de um desejo de primeira ordem, seja activado um desejo de segunda ordem, o desejo não só de superar qualquer resistência à satisfação do desejo de primeira ordem, mas também de não alcançar essa satisfação sem que haja uma resistência - de preferência uma resistência dura e dolorosa - a superar.
Para mais, em muitas das passagens em que Nietzsche discute atitudes afirmativas e negativas perante a “vida”, o seu interesse não parece incidir na questão de saber se é possível construir um argumento que estabeleça o valor do sofrimento. Ele está interessado em algo que merece pouca atenção na história contada por Reginster - o estado psicológico, que presumivelmente constitui uma espécie de proeza, no qual tanto a dor do sofrimento como a inevitabilidade do fracasso podem ser suportadas a par de uma afirmação. Isto, sugere Nietzsche por diversas vezes, é extremamente difícil, muito mais difícil do que está sugerido na ideia de sermos convencidos do valor positivo do sofrimento por via de um argumento. Encontramos uma formulação típica deste ponto de vista na descrição, em Ecce Homo, de Assim falou Zaratustra.
O problema psicológico no tipo de Zaratustra consiste em como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser o oposto de um espírito que diz Não. […] como aquele que tem a mais dura e mais terrível percepção da realidade, aquele que pensou a “o mais abismal pensamento”, ainda assim não encontra nisso objecção alguma à existência, sequer ao seu eterno retorno - antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas (EH Za 6)12.
Duas formas mais moderadas de colocar o problema da resistência seriam, em primeiro lugar, a de que se deve simplesmente admitir que a persecução de qualquer objectivo realmente digno, perseguido em prol de um desejo de ordem superior, enfrentará inevitavelmente obstáculos enormes e difíceis, e que, por conseguinte, não há razões para lamentos. São os ossos do ofício13. Em segundo lugar, poderíamos dar início a essa persecução sem termos a certeza do grau do nosso empenhamento nela, sem termos, por mais que a declarássemos, a certeza, mesmo perante nós mesmos, da sua importância na economia da nossa alma, de forma que o fazer face a uma grande resistência e ao sofrimento que daí decorre viriam ser acolhidos como uma espécie de “teste”. Quando as coisas correm de forma demasiado simples, uma pessoa fica insegura de si própria, sem que tenha sido testada quanto ao grau ou mesmo à natureza do seu empenho. Para Reginster, contudo, a expressão da vontade de poder só pode ser uma procura activa da resistência, e ele articula muito claramente o paradoxo inerente a tal argumento. Sendo de segunda ordem, a vontade de poder depende da existência de um desejo de primeira ordem, apontado a um objectivo ou fim; só se tal desejo existir é que a resistência ou um obstáculo à sua realização contará como resistência, como algo de desagradável. “Porém, ao ter vontade de poder, terá igualmente de desejar a resistência à sua realização [i.e., dos fins]” (p. 134). Qual seria, porém, a lógica prática de acordo com a qual se poderia dizer que desejo um fim ao mesmo tempo que desejo não conseguir alcançá-lo com demasiada facilidade?
As fontes textuais que sustentam uma tal interpretação são escassas, e estão longe de ser inequívocas. Reginster cita Assim falou Zaratustra II: Da superação de si mesmo:
Que eu tenha de ser luta e devir e finalidade e contradição de finalidades. […] O que quer que eu crie e como quer que o ame - logo terei de lhe ser adversário, bem como do meu amor: assim quer a minha vontade. 14
Aqui, a oposição a “tornar-se uma finalidade” poderá simplesmente exprimir uma reserva face à complacência, uma resistência à ilusão de que nos tornamos tudo o que poderíamos ser. A virtude mais importante defendida em Assim falou Zaratustra é, poder-se-á argumentar, a virtude da “superação de si mesmo” (é esse o tema da passagem acima citada), o que pode ser lido como uma espécie de projecto perfeccionista que nunca teria fim15. E Nietzsche não diz que sempre que amo algo como um fim ou uma meta, me oponho, ao mesmo tempo, a isso (e, desse modo, a mim próprio). Ele diz, sim, que “cedo” (ou seja, pouco depois) sou forçado a opor-me a isso, presumivelmente em nome de um outro momento de “superação de si mesmo” ainda por vir, o que é consistente com uma visão perfeccionista, anticomplacente, de incessante superação de si mesmo.
Reginster cita também uma passagem do Nachlass (NL 1887 11[75]) e outra d’A Gaia Ciência (GC 56), mas esta última (GC 56) escarnece, embora sem muito acinte, dos jovens que estão tão entediados que chegam a ansiar pelo sofrimento como alívio do tédio; tal seria um indício de que algo, para eles, estaria em causa16. E Nietzsche escarnece do seu desejo de criar monstros apenas para que tenham monstros para combater (o que parece próximo da posição que Reginster atribui a Nietzsche). Em contrapartida, Nietzsche recomenda uma criação “interna” da nossa própria aflição, o que uma vez mais soa como uma exortação a uma constante autoinsatisfação, ao serviço de uma constante “superação de si mesmo” (o próprio Reginster sugere, a dado momento, esta leitura da superação de si mesmo: p. 137; p. 138). A referência à necessidade de adversários e de resistência na passagem do Nachlass (NL 1887 11[75]) e em outros textos bem como a analogia com o jogo evocada por Reginster (queremos ganhar o jogo, mas queremos ganhá-lo contra adversários difíceis e dignos) prestam-se mais prontamente a serem interpretados como testes, bem-vindos, à nossa determinação e à nossa capacidade, e menos como injunções para fazer face a tanta resistência e sofrimento quanto possível, como se tal procura fosse um projecto empreendido a par da tentativa de realizar desejos de primeira ordem.
Estas leituras alternativas evitariam um paradoxo tão extremo que chega ao ridículo. Algumas das formulações de Reginster, de quando em vez, fazem lembrar Gordon Liddy, lançado para a ribalta durante o caso Watergate, a colocar a mão sobre as chamas simplesmente para provar que o conseguia fazer, que estava “disposto” a esse sofrimento (e porque sabe tão bem quando este chega ao fim). A versão que Reginster nos oferece do asceticismo não anda assim tão longe disto (p. 145-6)17. E alargar esta interpretação de modo a recobrir casos de crueldade (e o suposto aval de Nietzsche à crueldade) parece-me bizarro. Na leitura de Reginster, o homem de poder é cruel para com os outros porque quanto maior é o sofrimento que se causa aos outros, maior será a probabilidade de estes oferecerem resistência e, por conseguinte, maior será o sentimento de poder no agente cruel ao superar tal resistência. (p. 143)
IV
Mas que razão há, afinal, para que valorizemos a vontade de poder neste sentido? Reginster propõe o que eu descreveria (coisa que ele próprio não faz) como um argumento neo-hegelianiano ou historicamente “internalista”. Ou seja, ele julga-se capaz de demostrar que, feitas as contas, o valor superior da vontade de poder (entendida como a vontade de activamente procurar e enfrentar o máximo possível de resistência à realização dos seus fins) é, de facto, aquilo que nós valorizamos (que temos valorizado) na afirmação do sistema de valores humanistas-cristãos, ou, pelo menos, que não poderíamos ter cultivado tais valores sem também cultivar as disposições e os sentimentos aos quais Nietzsche procura apelar. A vontade de poder, neste sentido, é algo como o resultado lógico, fenomenológico e histórico da tentativa de realizar os valores da piedade, da igualdade, da fraternidade universal, do evitar do sofrimento e outros afins. Ou seja, Nietzsche propõe-se invocar “a própria concepção do que é bom” dos metafísicos humanistas-cristãos “enquanto fundamento para desafiar a sua concepção do que é mau” (p. 157). Reginster procura então mostrar como isto se aplica a questões como o sofrimento e a felicidade, e a valores como a compaixão (ou a “piedade”, na maioria das traduções).
Na sua análise, porém, Reginster concentra-se menos no nexo “internalista” entre os valores do passado e os valores novos correspondentes, e mais, à excepção de outro extenso contraste com Schopenhauer, na posição do próprio Nietzsche18. A questão em causa, uma vez mais, é a de como interpretar o aparente e controverso elogio de Nietzsche ao conflito, à guerra e ao sofrimento. Também aqui Reginster argumenta que Nietzsche está a tentar mostrar como e por que tais dificuldades poderão ser interpretadas como algo que potencia a prossecução de qualquer almejada meta de primeira ordem. Isto leva-o a interessantes discussões sobre a criatividade (como expressão da vontade de poder), sobre a grandeza de alma e a felicidade, mas, dada a sua tese subjacente sobre o valor do sofrimento, é estranho que não haja lugar para um confronto profundo com as mais comuns e (apesar de Nietzsche) ainda preponderantes intuições morais que temos a respeito destas questões. É perfeitamente possível admitir, a um tempo, a “inevitabilidade do sofrimento em qualquer procura da grandeza” e as versões “teste à determinação” do argumento pró-sofrimento e ainda assim alegar que se deve fazer todo o possível para evitar causar sofrimento aos outros, em congruência tanto com a realização do objectivo como com a sua real importância. A noção de que eu poderia atingir um objectivo com o mínimo de sofrimento para outra pessoa, mas que escolho persegui-lo de forma a maximizar o sofrimento dela, para desse modo potenciar a sua resistência e, por conseguinte, o desafio que eu enfrento, continua a ser para mim, apesar dos argumentos de Reginster, ofensiva. Isto se eu conseguisse sequer imaginar e levar a sério a posição e os motivos de um tal agente. Confesso que não consigo.
Além disso, vai-se tornando progressivamente mais claro que estas considerações não vão para lá de um plano bastante formal. Reginster está certamente ciente de que o “expansionismo nazi” poderá ser arrolado como expressão da vontade de poder na interpretação que Reginster dá a Nietzsche; ou, pelo menos, poderia ser incluído como uma expressão disso em função de algum desejo de primeira ordem (um desejo de expansão e de autoglorificação, por exemplo). Ele observa que qualquer objecção nietzscheana a um tal objectivo teria de ser feita neste plano de primeira ordem, mas “como admiti anteriormente, Nietzsche não faz nada disso” (p. 181). De acordo com Reginster, a preocupação fundamental de Nietzsche tem um enfoque restrito: a revalorização do sofrimento à luz do “valor do poder” (Ibid.). A questão de quais os fins que podem valer o esforço, a luta e o sofrimento que qualquer fim que valha a pena traz consigo é uma questão, diz-nos Reginster, pela qual Nietzsche mostra “pouco interesse”. Mas se assim é, o que aconteceu à “ética rica e substantiva” que nos fora prometida? O que nos resta não nos parece nem rico, nem substantivo (a mesma formalidade e abstracção caracterizam as conclusões da interessante discussão de Reginster sobre o Eterno Retorno do Mesmo, e o “valor do devir” que aí é defendido). E como podem as duas questões (a dos valores à luz da “morte de Deus” e a da objectividade e da realizabilidade) ser tão nitidamente separadas, como o são por Reginster desde o início do seu estudo? Ele admite que o valor do sofrimento tem de estar ligado ao valor do fim para o qual os sacrifícios são feitos. Suportar um grande desconforto com o objectivo de comer mais tartes do que outra pessoa não tem mérito acrescido em virtude do sofrimento suportado. Quando muito, a trivialidade do fim torna o sofrimento ridículo. Mas se assim é, então dificilmente teremos “superado o niilismo” e “afirmado a vida” simplesmente pelo facto de levantarmos a possibilidade de a resistência, o sofrimento e a inatingibilidade poderem não contar, em alguns casos e por si só, como causas de desespero.
V
Reginster argumenta que não é concebível que Nietzsche esteja simplesmente a aconselhar quer a mera resignação à derradeira irrealizabilidade dos nossos valores mais elevados, quer a mera disposição para suportar o sofrimento em nome dessa realização. Na sua interpretação, nenhuma destas atitudes, muito menos qualquer tentativa de esconder ou fugir ao facto de tal sofrimento, poderia contar como uma afirmação genuína, plena e sem reservas, da vida, como um “amor” à vida. Tal atitude seria uma mera concessão a algo que se tem que aguentar, e não, tal como Nietzsche supostamente reclama, o acolhimento, de braços abertos, da existência. Os comentários frequentes e bastante turvos em que Nietzsche apadrinha o “amor fati” são aqui citados para sustentar essa asserção. Porém, tal como não posso consolar-me, face ao fracasso contínuo da realização de qualquer dos meus valores mais elevados, dizendo a mim próprio que pelo menos sei o que é verdadeiramente valioso, por mais utópica que seja essa aspiração, parece igualmente necessário dizer que não posso consolar-me (“superar o niilismo” e amar o meu destino) simplesmente dizendo que pelo menos sofri e lutei e me recusei a render-me a uma realidade recalcitrante. A menos que saibamos o que vale tal sofrimento, para além de sabermos que os nossos objectivos não são relíquias de um passado objectivista nem meras fantasias utópicas, a vida não terá sido afirmada19.
Notas
Autor notes