Artigo Científico
A Solidão como consequência do Caos em Francis Bacon e Nietzsche
The Loneliness as a consequence of Chaos in Francis Bacon and Nietzsche
A Solidão como consequência do Caos em Francis Bacon e Nietzsche
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 35, pp. 1-18, 2023
Pontificia Universidade Catolica Parana
Recepção: 29 Abril 2022
Aprovação: 29 Maio 2022
Resumo: Deleuze, em Francis Bacon - Lógica da sensação, destaca três elementos pictóricos como características fundamentais das pinturas de Bacon: a estrutura material, a figura e o contorno que isola a figura. Esses elementos revelam que o tema do pintor é o sofrimento do homem moderno, sozinho em seu quarto. Sofrimento entendido como o tormento interior de um corpo imerso no caos, em um universo sem sentido. O artista exprime o “corpo vivido” em meio ao desmoronamento da ordem das coisas. A sequela mais evidente desse ambiente insólito é a “extrema solidão da Figura”. Esse mundo retratado por Bacon, está atrelado à filosofia nietzschiana que descreve o mundo como “dionisíaco”, isto é, sem finalidade e sem propósito. Para Nietzsche, a “morte de Deus” evidencia o nada existencial e a supressão do sentido das coisas. O resultado mais imediato da constatação da “morte de Deus” é a solidão. Todavia, tanto para o artista, quanto para o filósofo, a solidão é ambígua: ou pode ser fonte de niilismo, de necessidade de fuga ou fonte de afirmação. Nesse trabalho, pretendemos confrontar as obras de Bacon, descritas por Deleuze, com a filosofia nietzschiana, destacando a significação que ambos atribuem à solidão como consequência da constatação do mundo-caos.
Palavras-chave: Caos, deleuze, francis Bacon, Nietzsche, solidão.
Abstract: Deleuze, in “Francis Bacon - Logic of sensation”, highlights three pictorial elements as fundamental characteristics of Bacon's paintings: the material structure, the figure and the contour that isolates the figure. These elements reveal that the painter's theme is the suffering of modern man, alone in his room. Suffering understood as the inner torment of a body immersed in chaos, in a meaningless universe. The artist expresses the “lived body” amid the collapse of the order of things. Tthe most obvious sequel to this unusual ambience: the “extreme loneliness of the Figure”. This world, portrayed by Bacon, goes hand in hand with Nietzsche's philosophy that describes the world as “Dionysian”, that is, without goal and without purpose. For the philosopher, the “death of God” highlights the existential nothingness and the suppression of the meaning of things. The most immediate result of the revelation of the “death of God” is loneliness. However, for both, the artist and the philosopher, the loneliness is ambiguous: either it can be a source of nihilism or a source of affirmation. In this work, we intend to confront the works of Bacon, described by Deleuze, with nietzschean philosophy, highlighting the meaning that both attribute to loneliness as a consequence of word-chaos recognition.
Keywords: Chaos, deleuze, francis Bacon, Nietzsche, loneliness.
Introdução
Neste trabalho, pretendemos demonstrar que as pinturas de Francis Bacon revelam uma visão de mundo que pode ser comparada à filosofia de Nietzsche, qual seja, o mundo se constitui, em todos os seus aspectos, como caos. Além disso, reconhecemos um movimento interessante, congênere entre o artista e o filósofo: tanto nas obras de Bacon, quanto na filosofia nietzschiana, a experimentação da solidão é a consequência mais imediata do reconhecimento desse caos que é o mundo. Por conseguinte, a solidão é ambígua e as reações a ela são diferentes, isto é, para alguns a solidão é terrível e suscita um desejo de negação, uma necessidade de fuga; mas, para outros, o mesmo sentimento é afirmativo e converte-se em pré-condição para a criação.
Para desenvolver a tese deste movimento comum a Bacon e Nietzsche, primeiramente vamos fazer uma breve reflexão sobre o estilo e os elementos artísticos do pintor, isso a partir da chave interpretativa deixada por Deleuze em Lógica da sensação. Em seguida, vamos abordar o conceito nietzschiano da “morte de Deus”, demonstrando que este tema, do ponto de vista da análise da cultura, diz respeito ao esvaziamento dos valores morais que orientavam as práticas do ocidente, contudo, quando levada às últimas consequências, a “morte de Deus” desencadeia, no ponto de vista ontológico e cosmológico, a ideia de um mundo sem um princípio regulador, portanto, sem ordem e sem finalidade. Ademais, deve-se apontar que em vários textos de Nietzsche, esse mundo sem fundamento metafísico reflete diretamente no caráter caótico do homem em seu aspecto psicofisiológico. Por fim, a grande questão filosófica é o que se fazer desse caos e de sua sucedânea solidão?
A solidão como sucedâneo do caos em Francis Bacon
Em 1981 é publicado Lógica da sensação, ensaio de Gilles Deleuze que analisa a obra de um dos mais excêntricos pintores do século XX - o anglo-irlandês Francis Bacon (1909 - 1992). Ao analisar as pinturas de Bacon, a partir de uma lógica não-racional da sensação, Deleuze destaca três elementos pictóricos os quais o artista distinguia como as características fundamentais de seus quadros: a estrutura material, a figura erguida e o contorno que isola a figura, evidenciando-a (DELEUZE, 2011, p. 3). Esses três elementos permitem ao artista representar o aspecto violento e caótico da realidade.
De fato, a potência artística de Francis Bacon consiste na sua capacidade de retratar a realidade a partir de uma nova perspectiva, de um olhar ímpar, eficaz em retratar artisticamente as forças imperceptíveis da vida, tornando visível o invisível. Todavia, o que o artista torna visível em suas pinturas? Deleuze responde: o sofrimento do “homem moderno” que é percebido com maior visceralidade quando esse se encontra isolado, sozinho em seu quarto.
A maneira como o pintor retrata esse “homem moderno”, em outras palavras, o seu modo de criação, consiste em dar formas através de pinceladas irracionais, acidentais, livres, feitas ao acaso, criando assim, traços não representativos, não ilustrativos e não narrativos, sem nenhum significado prévio. São traços de sensações confusas e de uma multiplicidade de pulsões contraditórias. “É como se a mão tomasse independência e passasse a servir outras forças, traçando marcas que não dependem mais de nossa vontade nem de nossa visão” (DELEUZE, 2011, p. 51). Como resultado temos o surgimento de uma espécie de “outro mundo”, caracterizado pela cegueira, pela catástrofe e pelo caos (Cf. DELEUZE, 2011, p. 51). Esse método de criação acaba por refletir a própria condição do homem: sua inserção em uma realidade caótica, cuja principal marca é a falta de sentido das coisas. A arte de Bacon seria, portanto, o momento estético de revelação desse caos e a explícita expressão do desmoronamento da ordem.
Para Deleuze, o caos é retratado em todos os quadros de Bacon na forma do corpo vivido. A figura destacada nas pinturas é sempre um corpo atravessado por intensidades. Um corpo desvinculado de qualquer uniformidade fixa e predeterminada. Entretanto, é importante dizer que Bacon defende que a figura do corpo retratado em seus quadros não é figurativa, ou seja, não é uma mimese da realidade ou uma cópia de um objeto sensível. Por outro lado, ela é figural, isto quer dizer que não é uma reprodução do campo visual, ou sensorial, mas a representação de uma “semelhança mais profunda”; a figura é figural quando torna visível, através da arte, forças que são invisíveis. Por esse motivo, o corpo é sempre pintado disforme, apesar de lembrar a forma humana é desfigurado, muitas vezes dilacerado como a carne do açougue. Assim sendo, o corpo na obra de Bacon confunde-se com a vianda que deixa de ser sustentada pelos ossos1. Tal é o lugar da carne lacerada nas pinturas de Bacon que Deleuze associa o artista ao açougueiro:
Bacon não pede “piedade aos bichos”, mas sim que todo homem que sofre é a vianda. A vianda é a zona comum do homem e do bicho, sua zona de indicernibilidade, ela é este “fato”, este estado mesmo em que a pintura se identifica aos objetos de seu horror ou de sua compaixão. É certo que o pintor é um açougueiro, mas ele está neste açougue como que dentro de uma igreja, com a vianda por ser crucificada (Pintura de 1946). “(...). É claro, nos somos vianda, nós somos as carcaças em potência. Se vou a um açougue, fico sempre surpreso de não estar lá no lugar do animal...”. (DELEUZE, 2011, p. 12)
O corpo representado enquanto carne talhada é o verdadeiro sofredor, porém a dor que ele exprime não é sensorial. O corpo em questão não está preso e codificado por uma estruturação orgânica sociopsicológica. O termo, emprestado de Artaud, que Deleuze emprega para defini-lo é corpo sem órgãos, isto é, um corpo vivo cheio de multiplicidade que se opera além da lógica do pensamento, cujo sofrimento se relaciona a uma potência mais profunda e quase insuportável. O corpo pintado por Bacon está mergulhado no caos e na noite, onde as diferenças de seus limites e níveis são sempre misturadas com violência2. O corpo, portanto, não tem órgãos, apenas esses limites e níveis (DELEUZE, 2011, p. 24).
Além disso, ao pintar o entroncamento violento das partes do corpo, muitas vezes intrincados com a estrutura material que se ergue junto a eles, Bacon está denunciando artisticamente a condição caótica da própria existência3. A realidade em questão não se assenta em nenhum princípio regulador, pelo contrário, o que está em destaque é a total ausência de fundamento e, por conseguinte, o caos. Em outras palavras, o mundo desenhado por Bacon é sem finalidade, exatamente como o mundo se revela após a “morte de Deus”. Esta expressão se refere, grosso modo, à evidenciação afetiva do nada existencial e da completa nulidade de propósito.
A “morte de Deus” parece ser o tema por trás de todos os quadros de Bacon. Esse cenário, desprovido da entidade reguladora de sentido existencial, faz com que a “personagem” retratada tenha como principal característica o isolamento. Como dissemos acima, um dos três elementos pictóricos fundamentais das pinturas de Bacon é o isolamento da figura. Um redondo delimita o lugar onde está a figura. Esse contorno pode ser redobrado, ou ainda, substituído pelo redondo da cadeira onde o personagem está sentado4, pelo oval onde o corpo encontra-se deitado, ou mesmo no círculo que envolve o corpo. Além desses procedimentos de isolamento, a figura pode estar fechada em um cubo, em um paralelepípedo de vidro ou gelo. Pode estar contida em uma barra ou isolada por om objeto como o guarda-chuva ou o sofá5. Segundo Deleuze, Bacon explicara que esse dispositivo serve para conjurar o caráter figurativo, ilustrativo e narrativo que a figura teria necessariamente se não estive isolada (DELEUZE, 2011, p. 2).
Contudo, em nossa interpretação, esse recurso artístico, além de indicar o caráter figural e não figurativo das pinturas, expressa, com uma potência sensorial, a impreterível condição solitária do “homem moderno”, inserido em um ambiente marcado pela “morte de Deus”, por um mundo sem finalidade, ou seja, o isolamento é retratado como a condição intrínseca e mais imediata do indivíduo que, por um motivo ou outro, percebe-se diante do caos que para ele era até então latente6.
A solidão seria, nessa análise, a conjuntura irrevogável do indivíduo que se depara com uma realidade desordenada e sem propósito. Imagem que parece retratar perfeitamente a crise sanitária global dos anos de 2020 e 2021. A pandemia explicitou uma realidade de mundo, antes para maioria oculta, de absoluta falta de controle sobre os aspectos mais básicos da vida humana moderna. A morte logo ali, o nó na garganta, a imprevisibilidade, a completa derrocada dos planos e projetos são exemplos de manifestação desse caos, o que pode também ser evidenciado de forma tão concreta nas guerras. O resultado mais patente desta crise é a solidão. Não se trata aqui apenas da solidão decorrente do isolamento social que nos foi imposto nestes períodos; é claro que o distanciamento do convívio com a família e com os amigos assim como a exigência de “se trancar” como medida de proteção ressaltaram radicalmente o sentimento de solidão. Todavia, o desmoronamento da ordem e da normalidade, a constatação concreta da finitude e a preocupação quanto ao sustento no futuro próximo engendraram uma espécie de insulação, de “exílio psíquico”, isto é, de uma solidão não de ordem físico-social, mas existencial, cuja materialidade é a melancolia, o tédio, a ansiedade e a lassitude.
Nos quadros de Bacon esse fenômeno, a solidão como sucedâneo da evidenciação do caos, já era manifesto: o contorno que se apresenta como um isolamento - seja ele redondo, oval, barra ou sistema de barras - cerca o personagem em um mundo todo fechado. Há, segundo Deleuze, uma “extrema solidão da figura e extremo fechamento dos corpos” que exclui inclusive todo espectador (DELEUZE, 2011, p. 8). Essa ideia da solidão como afeto ambíguo, suscitado pela constatação da falta de sentido iminente, foi claramente ilustrada pela citação feita por Deleuze do romancista Moritz:
O romancista Moritz, no final do século XVIII, descreve um personagem de “sentimentos bizarros”: uma sensação extrema de isolamento, de insignificância quase igual à negação; horror de um suplício, ao assistir à execução de quatro homens “exterminados e esquartejados”; os pedaços destes homens “jogados na rua” ou sobre a balaustrada; a certeza de que somos singularmente implicados, que somos toda esta vianda atirada, que o espectador já é o espetáculo, “massa de carne ambulante”. (DELEUZE, 2011, p. 12, grifo nosso).
O taciturno personagem que assiste ao terrível espetáculo de execução, no momento mesmo em que presencia o horror, constata a falta de finalidade do mundo. Ao ver os prisioneiros dilacerados como carniça, se reconhece igualmente como vianda e, imediatamente, entende o mundo como desprovido de qualquer sentido, movido exclusivamente pelo caos. O resultado mais imediato foi, então, ser tomado pela solidão, “uma sensação de extremo isolamento”. Sentimento idêntico, talvez, ao nosso quando nos deparamos impotentes diante da imagem de centenas de valas coletivas, e das milhares de vidas-com-nomes findadas, ao acaso, pelo vírus7. Nessa perspectiva, a solidão assume um aspecto ontológico, pois estaria irremediavelmente atrelada à constatação de ausência de significado do mundo, que por sua vez é algo inexorável. Há várias obras de Bacon que nos serviriam de exemplo, dentre elas podemos destacar os quadros dos papas, sobretudo se levarmos em consideração a seguinte descrição feita por Deleuze:
Quando pinta o papa que grita, nada se faz horror, e a cortina diante do papa não é apenas uma maneira de isolar, de subtraí-lo dos olhares, é mais uma maneira na qual ele não vê nada de si mesmo, e grita diante do invisível: neutralizado, o horror é múltiplo, pois ele se conclui do grito, e não o inverso. (DELEUZE, 2011, p. 15-16).
O papa8 não grita diante do horror, mas diante do invisível, da irrupção do nada e, fundamentalmente, grita isolado e em solidão. Conquanto, as figuras de Bacon não são somente o corpo isolado, “mas o corpo deformado que escapa” (DELEUZE, 2011, p. 9). Há em diversas obras, nas quais a personagem encontra-se isolada, em um movimento de fuga, como se a figura desejasse se dissipar a qualquer custo de seu isolamento. O corpo enquanto fonte de movimentação se esforça para escapar. A proposta de Deleuze é “não sou eu que tento escapar de meu corpo, é o corpo que tenta se escapar” (DELEUZE, 2011, p. 8), isso devido à aproximação do horror ou da abjeção.
O fato é que o corpo-figura, disposto em posição atlética, faz sobre si um esforço intenso para escapar por lugares ou objetos pequenos para tal. No quadro Figura no lavabo de 1976, por exemplo, a personagem tenta evadir-se pelo ralo. Essa tentativa de fuga está presente em diversas outras obras9, todas elas evocam uma sensação de que o corpo busca, com muito custo, deixar sua condição de isolamento. Em alguns momentos “escorrendo” por algum buraco, ou em outros, fundindo-se com objetos. O corpo solitário, imerso em uma realidade caótica não aceita a sua condição e se esforça para dela se evadir, como alguém que nega o próprio destino10. Essa tentativa bem pode ocorrer devido à constatação da terrível e dolorosa situação. Para ilustrar essa circunstância, Deleuze cita uma cena semelhante da obra Le nègre du Narcise de Joseph Conrad, onde um o personagem, em uma imagem de abjeção, tenta escapar de sua situação terrífica:
Em uma cabine hermética do navio, em plena tempestade, o negro do narciso estende os outros marinheiros que conseguiram fazer um buraco minúsculo na clausura que os aprisiona. É um quadro de Bacon. “E o negro infame, se lançando pela abertura, fixava seus lábios e gritava por socorro! De uma voz apagada, forçando a cabeça contra a madeira, num esforço demente para sair de um palmo de largura por três de comprimento. Desmantelados como estávamos, esta ação incrível nos paralisou totalmente. Parecia impossível fugir dali”. A fórmula corrente é então: “passar por um buraco de rato”, tornar banal o próprio abominável ou o Destino. Cena histérica. (DELEUZE, 2011, p. 8-9).
Nas obras de Bacon, os corpos pintados têm esse tipo de espasmo: sempre uma tentativa de escapulir por um de seus órgãos. O corpo se alonga, se achata, estica-se como se contraísse para fugir. Não obstante, observa Deleuze, ao escapar, “a Figura não está mais isolada, sozinha, ela está deformada, contraída e aspirada, estirada e dilatada”. Dessa forma, a figura não é apenas um corpo solitário, mas um corpo deformado que tenta a todo custo escapar.
Essa característica pode ser associada a uma postura negadora e, por conseguinte, pode ser considerada como uma forma de niilismo. Em outras palavras, o indivíduo não aceita e não suporta a solidão. Além disso, a ideia de uma realidade sem uma ordenação metafísica, sem uma divindade que atribua sentido às coisas, lhe perturba a ponto de não querer mais ser o que se é. O resultado é a negação, a fuga de si mesmo, a empreita - já fadada ao fracasso - de suprimir-se ao isolamento.
Pensando assim, essa tentativa de se esquivar do isolamento é inútil, porque a solidão é inerente à condição existencial humana. Destarte, o niilismo, entendido aqui como a negação dessa condição, acaba por promover mais sofrimento, pois, paradoxalmente, quanto mais se tenta escapar, mais encontramo-nos imersos e presos. Ora, se essa situação é intrínseca, dela é impossível fuga, portanto toda investida de escape já é falida e me afetará com maior niilismo, como em um círculo vicioso.
Contudo, estas questões de importante gravidade, expostas brevemente até aqui, são apenas ponderações que devem ser mais bem aprofundadas. Sendo assim, por hora, mudaremos nosso foco para a filosofia nietzschiana com a intenção de demonstrar que o mesmo itinerário traçado na interpretação das obras de Francis Bacon é encontrado em Nietzsche, a saber: enquanto nas obras do artista é possível reconhecer que os sentimentos atrelados à solidão são sucedâneos da constatação do mundo caótico e, por sua vez, podem suscitar a negação do que se é, além do esforço para fugir da cena. Para Nietzsche, a solidão é evidenciada pela “morte de Deus”, isto é, de um mundo sem princípio metafísico ordenador. Além disso, a solidão, segundo o filósofo, pode ser fonte de negação e suscitar o niilismo.
A solidão como sucedâneo da “morte de Deus” em Nietzsche
Nietzsche foi o pensador que assumiu a responsabilidade de demonstrar que Deus está morto, e que todos nós somos culpados por tal “crime”. Contudo, para compreender esta afirmação, devemos considerar que o homem da modernidade inaugura um processo, que por sua vez é incontornável, de submeter a história e o mundo sob o signo da razão esclarecida. O esclarecimento que, desde a filosofia kantiana, é entendido como a “superação do estado de menoridade espiritual auto culpável, conclamando a ruptura com toda forma de tutela intelectual e à dissipação das trevas da ignorância e da superstição” (GIACOIA, 2003, p. 10) é necessariamente sem deus. Isso porque a ideia de deus traz consigo uma postura de subordinação. Por esse motivo, para Nietzsche, o pensamento e a ciência moderna são, por sua própria natureza, ateístas.
Por conseguinte, ao “desatar a terra do seu sol”, o homem moderno insere-se em um estado de profunda solidão, como se “vagasse através de um nada infinito, sentindo na pele o sopro do vácuo”. Com isso, emerge um problema radical, uma espécie de antinomia: sem Deus, imerso numa espécie de um solipsismo existencial, o homem deseja emancipar-se totalmente, contudo, ao mesmo tempo, se posicionar sob o abrigo e o refúgio divino. Há, portanto, na modernidade um duplo desejo: de razão esclarecida, porém, com a tutela celestial. O problema é que a possibilidade da falta de um significado metafísico para existência, mesmo em um ambiente já marcado pelo racionalismo esclarecido, parece suprimir todo o sentido para a vida.
À vista disso, uma vez iniciado esse processo de emancipação esclarecida, sem a efetividade do divino, o homem é obrigado a buscar amparo nas sombras de outro absoluto qualquer. Sobre essa permanência da sombra protetora do altíssimo, Nietzsche escreve em A Gaia ciência um aforismo bastante ilustrativo:
Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos - uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. - Quanto a nós - nós teremos que vencer também a sua sombra! (NIETZSCHE, 2001, §108. p. 135).
Nietzsche pondera que o homem tem necessidade de consolo, de refúgio, da busca constante de algum sentido e, em última instância, de redenção e salvação. Assim, mesmo com a ausência cada vez maior do absoluto no pensamento e nas práticas do ocidente, a maioria dos homens ainda estará à margem da compreensão do fato que “Deus está morto”, de modo que a busca pela sua sombra será incessante durante séculos.
No entanto, como dissemos acima, uma vez iniciado este processo que acarreta o desmoronamento da fé em Deus, o movimento de completa emancipação da razão, não poderá mais ser detido. Levando este movimento às últimas consequências surge outro problema: uma alternação da autoridade divina e da Igreja pela autoridade do homem, que se impõe como consciência e razão, ou seja, há agora a substituição dos valores metafísicos e cristãos, pelas verdades científicas, pela crença no progresso histórico ou projetos futuros. Esta substituição, na análise nietzschiana, não é outra coisa senão a necessidade de que algo ainda seja apresentado como referência suprema, frente à ameaçadora solidão no “mar aberto”, sem horizonte, sem Deus. Logo, o cientificismo exacerbado seria uma das mais fortes referências à sombra do deus morto no fundo da caverna.
Já é bastante divulgado que foi no aforismo 125 de A Gaia ciência, intitulado “O homem louco” que o tema da “morte de Deus” aparece pela primeira vez com grande proeminência na obra de Nietzsche11. Neste texto, a morte daquele que garantia a ordem metafísica e moral do mundo é revelada no local, instituído pela civilização ocidental, como principal espaço para o subterfugio da solidão, consequentemente, lugar de práticas gregárias: a praça do mercado. Tal aforismo possui uma linguagem poética exuberante, a solidão aparece de forma marcante nas imagens e nas entrelinhas:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? - E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. (...) - gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-lhes o olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos - vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol? Par onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existe ainda ‘em cima' e ‘embaixo'? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? (...). (NIETZSCHE. 2001, §125. p. 147-148).
A imagem do aforismo 125 de A Gaia ciência é altamente significativa, isto é, a riqueza simbólica presente nos elementos escolhidos para a “radical revelação”, faz da metáfora muito eloquente e explicativa. Nenhuma figura ali selecionada está por acaso; há uma intensidade semântica na totalidade da cena. Podemos exemplificar esta intensidade ao evidenciarmos duas antíteses, sutilmente escondidas nas entrelinhas, porém, extremamente importantes para compreensão dos desdobramentos que a questão da “morte de Deus” dissipa.
Primeira antítese: o alarme de que a maior das crenças, que Ocidente tomou como alicerce de todo o mundo, se trata de um engano só poderia sair da boca de um louco. Nem mesmo os descrentes na praça entendem a dimensão do deicídio, também não compreendem as consequências de tal feito. Os ateus que estão na praça do mercado, ou melhor, os homens modernos acreditam que com uma simples negação de uma ideia está resolvido o problema de seu ateísmo. Estão longe de entender e assumir as consequências da “morte de Deus”. Continuam criando e buscando valores transcendentais. Embora descrentes de um Deus Supremo, a moral cristã na forma de uma necessidade de verdade continua. Há uma inversão, uma substituição da religião pela ciência e pelo racionalismo exacerbado12.
Segunda antítese: a revelação do deicídio é anunciada, como vimos, em um lugar gregário, ou seja, o local instituído como subterfúgio da solidão. Contudo, com a evidência da “morte de Deus” o que predomina? “O sopro do vácuo”, o vazio e o “nada infinito”. Em outras palavras, instaura-se o sentimento de mais profunda solidão.
É precisamente nesse ponto que podemos estabelecer a conexão entre as obras de Francis Bacon e o pensamento de Nietzsche. O filósofo foi muito minucioso ao ilustrar a cena do deicídio em A Gaia Ciência, porque sem Deus, esvai-se todo ser incorpóreo que sustenta e dá cognoscibilidade ao mundo. A própria função gregária do mercado e a então natureza “social” humana são colocadas em xeque. O indivíduo é obrigado a se reconhecer como finito e como um ser que é, por conseguinte, um solitário errante em uma realidade caoticamente infinita. Esta ideia está presente no aforismo No horizonte do infinito que, com uma beleza ímpar, antecede e prepara o radical texto do Louco no mercado em A Gaia ciência:
Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora, tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro, como devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais “terra”. (NIETZSCHE, 2001, §124, p. 147).
A imagem do pequeno barco em meio ao oceano aponta para a derrocada da metafísica enquanto alicerce que justifica toda existência. Entretanto, podemos dizer que tal imagem faz analogia também à condição de deriva na qual se encontra o homem, ao perceber que está sem o conforto e a segurança do divino. Perceber-se à deriva em um oceano infinito é a coisa mais terrível, porque a infinitude desvela ao indivíduo sua condição de ser finito, de ser perecível. Diante desta realidade colapsada e da solidão dela resultante, muitos procuram refúgio na sombra do Deus morto, tal como sugere os aforismos acima citados de A Gaia ciência.
Dito isto, devemos enfatizar que o tema da “morte de Deus” assume no pensamento nietzschiano um caráter cultural e axiológico. Em suma, o que está em jogo para o filósofo é a análise da cultura e o enfraquecimento dos valores supremos que até então nortearam a moralidade ocidental. Entretanto, o diagnóstico da realidade sem um ente metafísico que regule as práticas morais, quando pensado no seu aspecto cosmológico universal, ou seja, tanto no que diz respeito à constituição do mundo, quanto no que diz respeito à condição psicofisiológica humana, é invariavelmente concebida como caos.
Esse mundo caótico é denominado por Nietzsche como dionisíaco. O termo não é mais utilizado no sentido da metafísica do artista, consagrada em sua obra de saída, O Nascimento da tragédia, porém, associado ao conceito de vontade de potência [Wille zur Macht]. O mundo dionisíaco é, portanto, constituído por uma enormidade de forças caóticas, que constantemente lutam entre si por hegemonias periódicas, reconfigurando eternamente o cosmos em um perene devir. Essa ideia de caosmos foi descrita da seguinte forma em uma importante anotação de 1885:
E vocês sabem o que é para mim "o mundo"? Devo lhes mostrar em meu espelho? Este mundo: uma enormidade de força, sem começo e sem fim, uma grandeza como a do ferro, de força que não se torna maior e nem diminui, que não se consome, mas apenas se transforma, como um todo, (...) como um devir, que nunca encontra saciedade, desgosto, não conhece nenhum cansaço -: este meu mundo dionisíaco do eterno-criar-a-si-mesmo, do eternamente-destruir-a-si-mesmo, (...) - vocês querem um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vocês, os mais escondidos, fortes, intrépidos e amigos da meia-noite? - Esse mundo é a vontade de poder - e nada mais! E também vocês são essa vontade de poder - e nada mais! (Cf. NIETZSCHE, 2008b, 1885 38[12], p. 831)13.
Nas redes textuais nietzschianas, essa noção de mundo-caos surge com maior relevância no mesmo momento em que o filosofo pensa a “morte de Deus”, a saber, no período de elaboração de A Gaia ciência e de Assim falou Zaratustra. Nestas obras, Nietzsche censura as interpretações correntes de que o mundo é um ser vivo, orgânico, teleológico e defende sua posição de completa falta de propósito e diz: “o caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos” (NIETZSCHE, 2001, §109 p. 135-136). Nessa análise, um olhar mais profundo em direção à Via Láctea nos revelaria o quanto a nossa “ordem astral” é uma exceção. O mundo não segue, portanto, nenhum juízo estético ou moral, nem mesmo impulso de autoconservação, assim como não conhece leis. Pensar o contrário acarretaria no erro de antropomorfização da natureza e, por consequência, de deificação da natureza14.
Esse devir inocente, sem direção ou meta, está em plena consonância com a “morte de Deus”. Enquanto na tradição ocidental o divino - seja o Deus judaico-cristão, ou seja, o demiurgo platônico em Timeu - é responsável por dar forma e ordem ao caos, de modo que há uma definitiva oposição entre caos e cosmos; em Nietzsche essa oposição já não cabe, deve-se pensar, tal como emprega Deleuze, em um “caosmos”15. Inclusive, deve-se conceber a natureza dessa mesma maneira. Nesse sentido, Deleuze compara Nietzsche a um Spinoza pós-teológico. Para Spinoza, todas as entidades se originam e convergem em uma única substância: Deus. Isso quer dizer que toda natureza expressa o ser de Deus e, por sua vez, o ser de Deus contém toda a natureza. Assim, Spinoza expressa seu panteísmo da seguinte forma: “Deus sive Natura”16. Nietzsche segue a mesma linha naturalista e antidualista de Spinoza, porém, não aceita que a natureza possa ser identificada com nenhum absoluto. Após a ‘morte de Deus’, a natureza não é mais um ponto de convergência, mas uma zona de divergência, não mais um, mas múltiplo. Por isso, faz a reformulação da máxima de Spinoza para “Chaos sive Natura” (NIETZSCHE. 2008a, 1882 12[3], p. 912).
Sabendo disso, devemos ressaltar que essa concepção de caos também diz respeito à condição humana. As propriedades que constituem o mundo, tais como a mudança, o devir, a multiplicidade, a oposição, a contradição e a guerra são igualmente inerentes à natureza humana. Para Nietzsche, o caos opera sem sessar em nossa mente, de modo que os conceitos, imagens, sensações emergem ordenados aleatoriamente (NIETZSCHE. 2008a, 1881 11[157], p. 783). O ser humano é descrito, portanto, como um microcosmo que espelha o movimento caótico das galáxias. Sobre isso há um belo aforismo em A Gaia ciência:
Alegoria. - Os pensadores nos quais todas as estrelas têm órbitas cíclicas não são os mais profundos; quem olha para dentro de si como para um espaço sideral e traz vias lácteas em seu interior, sabe também como são irregulares todas as Vias Lácteas; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência. (NIETZSCHE, 2001, §322 p. 214-215).
Chama-nos a atenção o fato de Nietzsche utilizar, em diversas passagens, a imagem do movimento estelar para evocar a ideia de caos, tanto no sentido cosmológico, quanto psicofisiológico. Em uma anotação de 1882, por exemplo, ele diz: “A razão é a exceção: caos, necessidade e voragem das estrelas - essa é a regra” (NIETZSCHE, 2010b, 1882 4[5], p. 92). Interessante que a alegoria das estrelas não remete ao caos apenas como uma absoluta falta de sentido, todavia, como movimentos irregulares, imprevisíveis e labirínticos. Desse modo, a dança das estrelas remete também às infinitas possibilidades criativas diante da realidade caótica. O caos é, para Nietzsche tal qual é para Bacon, pré-requisito estilístico da criação artística. Segundo o filósofo, a única felicidade está na criação: todos devem participar na criação e desfrutar dessa felicidade em cada ação, mas para isso é necessário manter o caos dentro de si (NIETZSCHE, 2010b, 1882 4[76], p. 107). Essa ideia ecoa em diversos fragmentos que preparam Assim falou Zaratustra, destes podemos destacar o seguinte: “Eu lhe digo: tenha caos e o impacto dos astros dentro de você para poder dar à luz uma dança de estrelas” (NIETZSCHE, 2010b, 1882 4[213], p. 128)17.
Para melhor entendermos o que Nietzsche quer dizer devemos recorrer ao parágrafo 225 de Além do bem e do mal, onde o ser humano é definido, simultaneamente, como parte matéria e parte artesão, profundamente dividido em criatura e criador, caos e ordem pictórica (NIETZSCHE, 2003, §225 p. 149-150). Esse parágrafo é muito ilustrativo e revela-nos o papel do caos para dar luz à estrelas dançarinas, isto é, tornar-se criador e fazer da vida uma obra de arte. Sem as intempéries, sem a dor e a ruína, sem a experimentação visceral da solidão o ser humano não é capaz de se fazer, em uma só pessoa, criador e criatura. Esquivando-se do sofrimento, ou se é exclusivamente criador, então cria valores para consertar o mundo e os demais, como àqueles que se abrigam na sombra do Deus morto, porém continuam incapazes de moldar a si mesmo; ou então se é apenas criatura, moldada por valores exteriores as si e pelos ideais consagrados pela tradição. É necessário ser quebrado, padecer em profundos labirintos, evidenciar o caos para então se tornar, concomitantemente, artista e obra-de-arte.
Essas considerações estão em plena consonância com nossa tese de que uma das principais e mais imediatas consequências da constatação da “morte de Deus” é a solidão. No ambiente marcado pela ausência de uma ordenação divina, cabe ao indivíduo o empreendimento de encontrar sozinho novos sentidos18. Sem uma meta a se direcionar e com a obrigação de perfazer os “caminhos próprios”, o indivíduo em meio ao caos, tem de “lidar sozinho com tudo o que se lhe depara de perigo, de acaso, de maldade e mal tempo. Pois ele tem o seu caminho para si - e, como é justo, seu amargor, seu ocasional dissabor com esse ‘para si’” (NIETZSCHE, 2004, Prólogo §2, p. 10).
Para Nietzsche, “se não fazermos da morte de Deus uma grandiosa renúncia e uma contínua vitória sobre nós mesmos, então temos de suportar a perda” (NIETZSCHE, 2008a, 1881 12[9], p. 838). Isso significa que existem duas formas de se encarar o mundo-caos: como um presente que intensifica as várias maneiras de afirmação de si, isto é, a possibilidade sempre renovada de descortinar novos horizontes, chegar a lugares nunca antes explorados, tornar a vida impetuosa, viver as máximas tensões de um novo mundo com perspectivas infinitas. Fazendo da inerente solidão fonte de criatividade. Ou o contrário disso: entender o caos como uma desgraça, e a solidão decorrente dele como algo indesejado e corrosivo que implica a necessária busca subterfúgios, tal como os esforços empregado pelos corpos em fuga nas pinturas de Bacon.
Sobre isso, ainda podemos destacar outra anotação de 1881: “Mas desde que não cremos mais em Deus e na destinação do homem a um além, torna-se o homem responsável por todo vivente, que nasce sofredor e é predestinado ao desprazer da vida” (NIETZSCHE. 2008a, 1881 15[14], p. 878). Todo sofrimento e desprazer são vinculados ao próprio existir, são parte integrante da vida e, por isso, devem ser afirmados também.
Nestes termos, o caos é para Nietzsche, em última análise, uma potência criadora. Ao dizer isso encontramos outro ponto de aproximação entre Francis Bacon e Nietsche. Ambos entendem a arte como uma maneira de dar forma ao caos, que, por consequência, é pré-requisito para toda criação.
Em seu turno, Francis Bacon notoriamente traduz para o campo artístico esse entendimento estético nietzschiano. A singularidade deste artista não é, portanto, representar objetos, histórias, personagens e tão pouco evocar o pensamento e a reflexão, contudo, ao apresentar uma figura “não figurativa”, desfigurada por forças invisíveis, destaca a potência da sensação. Para Bacon, a atividade artística é uma “tentativa de trazer ordem ao caos da vida” (SYLVESTER, 1999, p. 191). Ele confessa que o caos lhe sugere imagens, no entanto, suas pinturas também descortinam o caos por trás de toda ordem aparente.
Considerações finais
Para ambos os pensadores tratados neste trabalho, o artista e o filósofo, a realidade é caracterizada pelo caos, ou seja, pela falta de um sentido prévio e pela impossibilidade de uma justificação metafísica da existência19. Em nossa análise, a solidão seria uma das consequências mais imediatas da evidenciação desse caos existencial. Entretanto, a solidão, tanto para Bacon quanto para Nietzsche, é ambígua e até mesmo contraditória: trata-se de um afeto intimamente atrelado ao ser humano que, ora é vista como um malefício, como “ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum [selvagem mãe das paixões]” (NIETZSCHE, 2005b, Prólogo §3, p. 4); ora é vista como fonte de revigoramento, de força e de criatividade, tal como Nietzsche a pinta em sua autobiografia: “Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre” (NIETZSCHE, 2005a, I §8, p. 17) 20.
Todavia o caráter ambíguo da solidão pode ser mais bem avaliado na forma como as diversas pessoas reagem a ela. Enquanto alguns tipos fazem da solidão uma fonte de criação, de saúde e de revigoramento, outros não a suportam e a sentem de forma corrosiva e asfixiante. Assim interpretamos a tentativa de fuga dos corpos atléticos pintados por Francis Bacon: a dor e o sofrimento causado pelo isolamento da figura fazem com que ela queira escapar a todo custo, o corpo anseia por deixar de ser. Nessa mesma linha de raciocínio, Nietzsche, assevera que o niilismo é uma das consequências da constatação da “morte de Deus” e, consequentemente, da solidão por ela evocada. O tipo negador é aquele que não suporta a solidão suscitada pelo desmoronamento da ordem do mundo e, devido à sua debilidade, é incapaz de fazer da vida uma obra de arte, criando para si seus próprios valores. É preciso ter pulmões fortes para respirar o ar gélido dos cumes solitários, é o que exorta Nietzsche aos criadores (Cf. NIETZSCHE, 2005, Prólogo §3, p. 10-11).
Francis Bacon, no que lhe concerne, pondera que a solidão permite que se sinta muito mais livre para criar. Sobre isso ele diz: “Acho que se estiver sozinho posso permitir que a tinta me dite”, e em seguida completa: “Essa é a razão pela qual eu gosto de ficar sozinho - deixado com meu próprio desespero de poder fazer qualquer coisa na tela”. (SYLVESTER, 1999, p. 194). Existe, portanto, uma íntima relação entre solidão e caos no seu processo criativo. Ele é o artista do caos-germe, ou seja, enxerga na violenta desordem a possibilidade sempre renovada para criação artística. O caos é a matéria-prima que lhe permite criar imagens:
Sinto-me em casa aqui neste caos, porque o caos sugere imagens a acontecer. E, de qualquer forma, adoro viver no caos. Se eu tivesse que sair e eu entrasse em uma nova sala, dentro de uma semana a coisa estaria em caos. (...) gosto de uma atmosfera caótica. (SYLVESTER, 1999, p. 191).
Referências
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DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação. Trad. Jose Miranda Justo. Lisboa: Orfeu negro, 2011.
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GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Sonhos e pesadelos de uma razão esclarecida”. Revista Olhar, São Carlos, v. 08, 2003.
HUNTER, Sam; GOWING, Lawrence. Francis Bacon. New York: MoMA, 2017.
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NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra: um Livro para Todos e para Ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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NIETZSCHE. Fragmentos póstumos I (1869-1874). Trad. Luis E. de Santiago Guervó. Madrid: Tecnos, 2010a.
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NIETZSCHE. Fragmentos póstumos III (1882-1885). Trad. Diego Sánchez Meca e Jesús Conill. Madrid: Tecnos, 2010b.
NIETZSCHE. Fragmentos póstumos IV (1885-1889). Trad. Juan Luis Vermal e Joan B. Llinares. Madrid: Tecnos, 2008b.
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SYLVESTER, David. Intreviews with Francis Bacon. New York: Thames and Hudson, 1999.
TÜRCKE, Christoph. O Louco: Nietzsche e a mania da razão. São Paulo: Vozes, 1993.
Notas
Autor notes
aMRS é professor, Doutor em Filosofia, e-mail: micaelschopenhauer@yahoo.com.br