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Sobre a ontologia das leis naturais: Algumas afinidades teóricas entre Berkeley e Peirce1
On the Ontology of Natural Laws: Some Theoretical Affinities between Berkeley and Peirce
Revista de Filosofia Aurora, vol. 35, pp. 1-10, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Artigo Científico


Recepção: 17 Fevereiro 2023

Aprovação: 16 Abril 2023

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.35.e202330092

Resumo: Este texto procura apontar, na ontologia das leis naturais de George Berkeley, elementos teóricos afeitos à Semiótica e ao Pragmatismo clássico de Charles S. Peirce, tendo por base a possível identidade de propósitos entre os idealismos subjetivo berkeleyano e o de teor objetivo peirciano, ambos comungando a refutação de um dualismo mente-matéria de extração cartesiana. Por outro lado, reflete-se, também, sobre o papel da experiência nestes autores, em que a percepção em Berkeley, fundamental para sua epistemologia encontraria sua condição homóloga em Peirce, a saber, a necessária cognoscibilidade de todo objeto fenomênico.

Palavras-chave: Berkeley, peirce, signos interpretantes, significado pragmático, cognoscibilidade.

Abstract: This paper seeks to point out in George Berkeley’s ontology of natural laws theoretical elements related to Charles S. Peirce’s Semiotics and classical Pragmatism, based on the possible identity of purposes between Berkeley’s subjective idealism and Peirce’s objective idealism, both sharing the refutation of a mind-matter dualism of Cartesian origin. On the other hand, there is also a reflection on the role of experience in these authors, when perception in Berkeley, fundamental to his epistemology, would find its homologous condition in Peirce, namely, the necessary cognoscibility of every phenomenical object.

Keywords: Berkeley, peirce, interpretative signs, pragmatic meaning, cognoscibility.

Pretende-se, neste texto, apresentar elementos semiótico-pragmáticos presentes no pensamento do filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753) à luz de sua leitura do hábito relacional entre ideias como critério inferencial de experiências futuras numa realidade objetiva, por conseguinte independente de mentes particulares, fomentando, consequentemente, o esclarecimento da compreensão de seu Novo Princípio (esse est percipi) dentro da esfera do cognoscível. Por outro viés, para a identificação de tais elementos semiótico-pragmáticos no pensamento berkeleyano, discorrer-se-á sobre o pensamento de Charles S. Peirce (1839-1914), propositor da Semiótica e do Pragmatismo clássico. Mencione-se, a propósito, a seguinte passagem de sua obra: “[...] a doutrina de que tudo o que sabemos é ou uma experiência direta ou uma possibilidade de experiência, - uma doutrina que Berkeley, mais do que qualquer outra pessoa, introduziu na filosofia e sobre a qual Kant construiu o seu sistema de crítica [...].”1

Como é sabido, Peirce carrega em seu arcabouço filosófico uma concepção ontológica realista de matriz escolástica2 enquanto fulcral elemento de seu pragmatismo. Tal realismo “se torna progressivamente mais radical [e] entrelaça-se com seu trabalho na lógica dos relativos, sua lista final das categorias cenopitagóricas e sua classificação definitiva das ciências”3.

Massivamente presente em sua obra, a oposição peirciana à predominância da postura nominalista4 na história da filosofia5 baseia-se na defesa de que as leis naturais são realidades que operam sob a categoria da Terceiridade em sua face ontológica6, constituindo o objeto mesmo do fazer científico, o qual deve buscar teorias que mantenham aderência7 com tais leis. Este pressuposto realista da filosofia peirciana aparece, exemplarmente, na seguinte passagem:

[...] a proposta geral de que todos os corpos sólidos caem na ausência de quaisquer forças ou pressões ascendentes, esta fórmula, digo eu, é da natureza de uma representação. [...] O fato de eu saber que esta pedra cairá ao chão quando a soltar [...] é a prova de que a fórmula, ou uniformidade, como fornecendo uma base segura para a previsão, é, ou se preferir, corresponde a, uma realidade.8

É evidente que à pesquisa científica cabe admitir a alteridade do objeto de estudo em relação a qualquer representação que dele se possa fazer. Empregando-se o vocabulário da Semiótica, toda pesquisa em ciência tem por objetivo configurar interpretantes lógicos9 no tempo, com base nas consequências experimentais obtidas do objeto, de modo que seu processo de cognição sígnica se encaminhe para a validação de hipóteses que predigam sua conduta futura. A aderência do curso das observações empíricas com suas previsões teóricas virão confirmar a veracidade de uma teoria a seu respeito, considerando-se - e este é um ponto essencial da epistemologia de Peirce - que toda teoria científica deva estar sujeita a correções futuras10.

Deste modo, o processo pragmático sígnico-cognitivo aspirante ao saber científico, cuja natureza mesma é sempre preditiva, caracteriza o que Peirce propriamente afirma ser o significado de toda representação de mundo, a saber, seu esse in futuro11. O estatuto semiótico do objeto, nasce, assim, do modo decorrentemente cognitivo de sua conduta cronológica,12 cuja observação fornece os elementos indutivos que permitem generalização inferencial ao estatuto de lei.

Cabe, pensamos, neste ponto iniciar a exposição da maneira pela qual George Berkeley concebe as bases de sua epistemologia, enraizada na ótica empirista britânica, a par de sua ontologia, comungante de uma espécie de platonismo com aspirações profundamente morais, haja vista seus dois grandes grupos opositores, a saber, céticos e ateístas13, encarnados em sua época, em considerável medida, pelos autointitulados Free Thinkers14.

Berkeley, em seus Princípios, lança mão de seu tripé epistemológico, que totaliza, segundo o autor, os objetos do conhecimento humano, baseando-se nas constatações de que (1) tudo a que temos acesso são ideias15; (2) que podemos perceber, por inspeção interna, que captamos sensivelmente e podemos manejar volitivo-imaginativo-mnemonicamente tal material gnosiológico16; (3) bem como que há conjunções de ideias às quais acoplamos convencionalmente nomes17. Define-se, assim, que em Berkeley o cabedal epistemológico associado à sua ontologia é composto por três elementos, a saber: ideias, espíritos ou mentes e relações entre ideias18.

Considerada brevemente a constituição básica do eixo epistemológico-ontológico berkeleyano, torna-se importante, para os fins deste artigo, trazer luz aos pontos limítrofes da subjetividade humana individual, que definem as fronteiras de identidade entre ego e não ego, apresentando duas possíveis concepções de alteridade à mente finita e particular, a saber, (1) “as coisas percebidas pelos sentidos podem ser denominadas de externas no tocante a sua origem, [...] impressas por um espírito diferente daquele que as percebe”, em última instância, absolutamente independentes do espírito humano, ou (2) “quando existem em alguma outra mente [finita]”19.

Tendo em conta essas considerações, Berkeley propõe uma leitura epistemológica de natureza indutiva da associação dos fenômenos como critério inferencial de experiências futuras, pressupondo, para tanto, enquanto fundamento fixo, real e habitual, embora não necessário20, uma realidade objetiva e independente de mentes particulares.21 Tal realidade reside na terceira camada de seu tripé cognitivo, a saber, nas ordenadas relações entre as ideias, ou melhor dizendo, como veremos, nas leis da Natureza, associadas à esfera genética da objetividade, tomada enquanto primeira acepção de exterioridade.

A partir destes pontos, retomemos brevemente uma passagem do Terceiro Diálogo entre Hylas e Philonous para averiguarmos o aspecto de realidade presente22 na ontologia berkeleyana. Hylas questiona Philonous acerca da possibilidade de engano dos homens ao julgar a realidade à luz de sua percepção imediata, como no caso de se observar, por exemplo, um remo, imerso parcialmente na água, quebrado:

O que você diz a isso? Pois, segundo você, os homens julgam a realidade das coisas por meio de seus sentidos, como pode um homem enganar-se ao pensar que a Lua é uma superfície plana e luminosa de cerca de um pé de diâmetro; ou uma torre quadrada, vista a uma distância, é redonda; ou um remo, com uma de suas extremidades na água, está quebrado?23

Philonous, personificando o posicionamento propriamente berkeleyano, responde-lhe através de um dos pilares da oposição do autor ao ceticismo materialista: o saber imediato, portanto, a percepção de ideias sem a consideração de suas relações, não está suscetível a valor de verdade, pois não há ausência de verossimilhança com a realidade ao se perceber um remo dentro d’água como se estivesse quebrado, pois os dados sensoriais chegam a nós, seja qual for o ato perceptivo, sempre sob circunstâncias fenomenologicamente circunscritas. No caso em tela, tais dados são apreendidos sob refração óptica em ambiente aquático, com os dados sensoriais testificando-se a si mesmos, uma vez que não se encontram na qualidade de acidentes em relação a uma espécie de substratum subjacente, oculto24.

Vê-se, assim, que as aparências, que esgotam a definição dos objetos do mundo25, são necessariamente fidedignas a si mesmas, dada sua inércia e passividade26, residindo, por conseguinte, no discernimento inferencial da amplitude de ocorrências das aparências27 o valor de verdade das proposições, não implicando em ilegitimidade dessas aparências em relação a uma suposta realidade. Compreende-se, deste modo, que as conjunções de ideias com menor amplitude de ocorrência, tal como, no caso, a aparência do remo quebrado, que ocorre em circunstâncias mais específicas, ou seja, em menor incidência comparativamente à “comum” aparência íntegra do remo fora da água, serão objetos de engano apenas em caso de projeção desmesurada de sua possibilidade de ocorrência futura.

Deste modo, o Novo Princípio de Berkeley esse est percipi - ser é ser percebido - não estabelece o ponto limítrofe do real ao imediatamente percebido28, mas, dada sua forma condicional29, situa significado (meaning) na condição de instrução para a ação. Este quesito berkeleyano é partilhado, cumpre destacar, com o conceito de significação pragmática. Observa-se, também, que, à luz do vocabulário da Semiótica, toda forma efetiva de ação é considerada como signo interpretante energético30, cuja incidência notável e recorrente constituirá hábito de conduta. O Princípio berkeleyano, por conseguinte, abrange a legitimidade do ser cognoscível31, dado que ser é também ser percebido em circunstâncias possíveis, inclusive futuras e com menor incidência, não sendo descartada, assim, da inescusável relação berkeleyana entre efetividade da ideia e ato de percepção sensorial. Afinal: “O significado de ‘a terra está em movimento’ é entendido como o que se perceberia se se observasse sob certas condições - em termos de um condicional subjuntivo cujo antecedente e consequente são declarações experienciais”32.

Estabelece-se, portanto, que não há erros dos sentidos,33 uma vez que tal posicionamento inocularia seu fundamento imaterialista sensorialista no combate ao ceticismo34 ao apartar a possibilidade de acesso imediato ao real, de modo a ensejar, segundo Berkeley, um relativismo moral.35 Pelo contrário, dadas as aparências totalizantes das definições das coisas e a limitação ontológica ao âmbito conjuntural ordenado de ideias e às mentes percipientes, a filosofia berkeleyana considera a única falha epistemológica possível nas inferências36, definida tal falha pela prospecção extrapolada de ocorrências com baixa incidência. Esta seria dissonante à conduta comum da Natureza, não sendo produto de indução fundada em cadeias sígnicas prévias recorrentemente observadas. Como esclarece Berkeley: “Uma coisa é chegar às leis gerais da natureza a partir de uma contemplação dos fenômenos, outra é formular uma hipótese, e daí deduzir os fenômenos”37.

Vê-se que a mente científica e a mente de senso comum não se diferem por uma suposta ilusão das aparências38, pois, em si, ou seja, no tocante apenas à percepção, não estaria errada a proposição a respeito da lua enquanto objeto pequeno resplandecente aos observadores da terra, mas se diferem ao imaginar que tais sequências sígnicas seriam “verdadeiras para qualquer circunstância possível de observação”39, tal como o mel que, apenas num paladar febril ou sob específicas condições, não é percebido adocicado.

Berkeley aponta que não é de competência da ciência o saber a respeito da verdade do mundo em sentido qualitativo-causal, pois tanto os cientistas quanto os homens comuns apenas vislumbram a cadeia dos fatos naturais, residindo “a diferença existente entre [ambos] [...] numa maior extensão da compreensão por meio da qual [os primeiros] descobrem analogias, harmonias e concordâncias nas obras da natureza”40, reportando-se a tais redundâncias de maneira teórica a prever signos que sucederão signos.

A ‘marca que nos avisa’ é um sinal que foi interpretado e [é] o material para previsões baseadas em experiências passadas e [em] 'conexões de ideias' observadas. O fogo que vejo é um sinal de que, sob certas condições, sofrerei dores. Portanto, ser avisado de como o fogo visto (em condições especificadas) poderá ser sentido, ajuda a evitar essa possível experiência.

[...] Berkeley estava estabelecendo uma teoria do conhecimento empírico na qual o ato de conhecer encontra expressão de uma forma condicional [...] e na qual o significado de uma ideia (por exemplo, fogo) é a classe de consequências empíricas (‘conexões’) que decorreriam do cumprimento de certas condições antecedentes.41

Assim, estabelecido que (1) “a verdade do berkeleyanismo está na articulação de toda a filosofia [...] sobre o conceito de signo”42 e que, consequentemente, (2) “a verdadeira lógica da física é a primeira conclusão que se tira de seu sistema”43, compete ao momento, para fins de esclarecimento conclusivo da faceta ontológica berkeleyana independente da subjetividade humana, aprofundarmos na didática semiótica ontológica do bispo de Cloyne, que nos conduzirá à sua propositura do estatuto das leis a níveis humano e cósmico.

Embora o termo “semiótica” tenha sido cunhado por John Locke44 e tal área de estudo apareça explicitamente enquanto doutrina na obra de Berkeley apenas em uma ocasião45, fato é que, para este autor, apenas o espírito, inclusive por inspeção interna46, é considerado ativo, ou seja, é princípio de movimento47, bem como que a existência das coisas não sofre interferência de intervalos de tempo em que não se dá a percepção humana48, compreendendo-se, assim, que a corriqueira conexão entre ideias, pressuposta a impossibilidade de causação ideia-ideia, não obedece a uma ordem causal, pode-se dizer, física49, mas, sendo, como visto, uma ideia simplesmente consecutiva a outra ideia, estabelece-se por um inferido encadeamento mental extra humano uma sucessão de fatos naturais, de viabilização da vida prática50, que se apresentam não necessários, dado que não se segue por potência das causas a efetivação necessária de certos efeitos, demonstrando, portanto, natureza didático-semiótica. Deste modo, assume-se que ideias são meros signos da conduta futura do mundo, sendo as relações entre as ideias, as chamadas leis da Natureza51, conexões habituais, dotadas de permanência52 e reais, embora não necessárias, reveladoras de uma subjetividade primeira e onipresente.

O caractere objetivo do real ideal apontado por Berkeley à luz de sua constatação “do encadeamento e sucessão de ideias em nossa mente”, portanto, da regularidade presente na Natureza, não enseja, segundo o autor, apenas “conjecturas incertas, mas predições seguras e bem fundadas.”53 Tal idealidade resulta em proporcionar a aderência de teorias científicas aos fatos, possibilitando, portanto, o papel científico de descrição fiel dos hábitos da Natureza, de um modo que não se opõe ao seu posicionamento epistemológico instrumentalista e nominalista54.

A Natureza, para Berkeley, harmoniza-se com a tese ontológica realista segundo a qual os “processos e mecanismos naturais descritos pelas teorias [...] existem, de fato, independentemente da forma como são percebidos pelas teorias”55, considerando-se que (1) as ideias podem ser percebidas sem que tenhamos conta de suas relações56; que (2) “a uniformidade que há na produção dos efeitos naturais [...] são apreendidas pela observação e estudo da natureza”57; e que, por fim, (3) apenas a face ectípica do real - sem, todavia, implicar numa dupla existência das coisas - concerne ao comércio e à manutenção pela subjetividade humana58, conduzindo-nos ao problema dos arquétipos da Mente Divina, aqui não considerado por extrapolar o escopo deste artigo.

Vê-se, por fim, que a semiose cósmica59 e o produto teórico científico, este tal como “uma gramática para a compreensão da natureza”60, revelam duas acepções de lei, a níveis natural e humano, na filosofia berkeleyana:

(1) No primeiro, significa a sucessão das regularidades de nossa experiência, as leis seriam garantidas pela ação divina; (2) no segundo, elas seriam as teorias que explicariam as leis naturais (no primeiro sentido) e devem ser consideradas, com total anuência de Berkeley, como hipóteses matemáticas.61

Assim, a uniformidade da conduta da natureza - a constituir linguagem semiótica, desprovida de causas eficientes físicas - aponta para a objetividade e independência humana desta, consistindo o progresso do saber na ampliação da compreensão das conexões habituais das ideias observadas no tempo, ou seja, na crescente cognição do diálogo coerente entre as ideias em contextos diversos da experiência, de modo a propiciar previsões de relações semelhantes em ocasiões similares possíveis.

Atribuir alguma característica a um objeto é fazer uma reivindicação sobre o que seria possível, “como poderia levar-nos a agir, não apenas em circunstâncias prováveis, mas sob circunstâncias que eventualmente possam ocorrer, por muito improváveis que sejam” (CP, 5.401, 1877). Berkeley não deixou de apreciar este ponto de vista [...].62

Considerações finais

Malgrado as diferenças de pressupostos entre Berkeley e Peirce, é interessante perceber que à luz do critério de significação trazido pelo pragmatismo, há uma convergência epistemológica efetiva entre ambos que deve se refletir no modo que, afinal, a conduta humana será balizada por teorias sobre a realidade trazidas por processos de semiose fundados em uma conaturalidade, poder-se-ia dizer, eidética, entre signos e seus objetos.

Esta conaturalidade fundamental entre signos e seus objetos desenha-se em Peirce na sua doutrina denominada Idealismo Objetivo, cuja função é, exatamente, refutar a dualidade de natureza entre mente e matéria. Esta refutação, ao fim e ao cabo, aproxima-o de Berkeley com respeito a um eixo ontológico, não obstante a obra peirciana, para além de um século e meio depois, se desenhe sob a historicidade de um saber do final do século dezenove.

Buscando uma síntese do propósito deste artigo de estabelecer nexos conceituais entre os dois autores, poder-se-ia dizer que, não obstante o nominalismo de Berkeley e o realismo de Peirce, ambos comungam um ponto fulcral de suas filosofias, qual seja, o idealismo que permeia suas ontologias e suas consequências epistemológicas, constituído por uma comum refutação de um dualismo de origem cartesiana entre mente e matéria, ao tornarem o objeto de cognição conatural com o pensamento que o representa.63

De outro lado, a máxima berkeleyana ser é ser percebido, de sua vez, tomaria, em Peirce, a forma possível ser é ser perceptível que seria originária de sua explícita máxima: ser é ser cognoscível.64 Esta possibilidade de nexo entre cognição e percepção passa pelo lastro, pode-se dizer, de idealismo que ambos partilham, malgrado ser a genética desta idealidade de teor metafísico-teológico em Berkeley, enquanto ela decorre de uma cosmologia evolucionária em Peirce65.

Mediante tais considerações, estas duas faces teóricas que ambos os autores comungam resultam em licitar, por conseguinte, o reconhecimento, em Berkeley, de elementos de natureza semiótico-pragmática, ou seja, signos que representam elementos experienciais e decorrentemente suas consequências para a conduta humana, tal como no Pragmatismo peirciano eles assumem seu estatuto de significação.

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Notas

1 Este artigo é inteiramente dedicado ao Prof. Antonio Romera Valverde, com especiais amizade e admiração.

Notas

1 CP, 8.111; tradução nossa.
2 Ver CP, 5.93-101.
3 IBRI, 2021b, p.289.
4 Ver-se-á que Berkeley adota um nominalismo instrumentalista com consequências epistemológicas, mas admite ser lido, todavia, à luz da tese ontológica realista segundo a qual “processos e mecanismos naturais descritos pelas teorias [...] existem, de fato, independentemente da forma como são percebidos pelas teorias” (Silva, 2006, p. 105), compreendendo-se tal realismo ontológico em Berkeley, portanto, enquanto independência objetiva supra humana das leis naturais.
5 Ver CP, 1.19.
6 Para iniciação na temática, consultar IBRI, 2015, capítulo 2.
7 Compreende-se por aderência o exposto em IBRI, 2021b, p. 72, a saber, “correspondência harmônica entre previsão teórica e curso dos fatos”.
8 CP, 5.96, grifos do autor; tradução nossa.
9 Sob o vocabulário da Semiótica, interpretantes lógicos são signos que interpretam fenômenos à luz da Lógica.
10 Peirce é um autor indeterminista tanto com respeito à epistemologia como à ontologia. Este indeterminismo radical implica em considerar toda teoria falível, fundando o que ele denomina falibilismo cognitivo. Para aprofundamento deste tópico, consultar IBRI (2015), capítulo 3.
11 Ver CP, 2.86.
12 Para aprofundamento na temática Chronos e Kairós sob a ótica peirciana, consultar IBRI, 2021b, capítulo 3.
13 Ver P, §92.
14 Para um contato bibliográfico direto ao tratamento de Berkeley sobre esta vertente filosófica, consultar o Primeiro Diálogo de sua mais importante obra de filosofia teológica, a saber, Alciphron: or, the Minute Philosopher (1993).
15 Ver P, §1.
16 Ver P, §2.
17 Ver P, §1.
18 Ver P, §89.
19 P, §90, itálicos do autor.
20 Ver P, §65.
21 Fomenta-se ao longo de todo este trabalho tal leitura realista, congruente à brilhante exposição da face realista da filosofia de Berkeley por parte de Mendes (2007) - à luz do qual, no presente artigo, expõe-se uma série de considerações, dada a antecedência do tratamento do comentarista acerca de tal temática -, bem como por Silva (2003).
22 Grayling, 2005, p.178; tradução nossa: “Este é o sentido no qual Berkeley é realista: o mundo existe independentemente do pensamento e da experiência das mentes finitas”.
23 D3, 54 apud Mendes, 2007, p. 125.
24 P, §102: “Um grande motivo para nos declararmos ignorantes a respeito da natureza das coisas é a opinião comum de que todas as coisas contêm dentro de si as causas de suas propriedades, ou que há em cada objeto uma essência interior, que é a fonte de onde suas qualidades discerníveis fluem e de que dependem”.
25 Ver P, §1.
26 Ver P, §8 e §25.
27 Mendes, 2007, p. 112: “O objetivo do cientista não é mais descobrir como os fenômenos são produzidos ou descobrir suas causas, mas sim descrever a ocorrência das ideias em termos de leis, sistematizando a conexão entre as ideias”.
28 Ver Mendes, 2007, p. 114.
29 Friedman, 2003, p. 91; tradução nossa: “O significado é desvelado em termos de uma instrução para a ação, ou como uma expressão das nossas ideias habitualmente ligadas — tal é a forma pragmática de definir conceitos atribuíveis a Berkeley”.
30 Interpretantes energéticos, a saber, signos que interpretam expressos na forma de ações.
31 Thayer, 1968, p. 506; tradução nossa: “Experiência imediata não é conhecimento, mas material para o conhecimento como condição para julgamentos de probabilidade sobre experiências futuras”.
32 Friedman, 2003, p. 89; tradução nossa.
33 Ver Mendes, 2007, p.129.
34 Para aprofundamento na temática, consultar CONTE (2008).
35 Ver P, §92-96.
36 Ver Mendes, 2007, p.131.
37 S, 228; tradução nossa.
38 Ver Mendes, 2007, p. 115.
39 Mendes, 2007, p. 115.
40 P, §105.
41 Thayer, 1968, p. 502; tradução nossa.
42 MS 641; tradução nossa.
43 CP, 8.32.
44 Ver EEH, IV, cap. 21.
45 Alc 7:13; tradução nossa: “Estou inclinado a pensar que a doutrina dos Signos é um ponto de grande importância, e extensão geral, que, se devidamente considerado, lançaria não pequena luz sobre as Coisas, e proporcionaria uma solução justa e genuína de muitas dificuldades”. Como afirma Alexander C. Fraser: “Com Berkeley, de fato, todo o universo sensível é um sistema de signos interpretativos, com as suas relações implícitas” (W, II, p. 343).
46 Ver P, §28.
47 Ver DM, §25.
48 Ver P, §6.
49 Ver DM, §71.
50 Ver P, §31.
51 Ver P, §30.
52 Ver P, §31.
53 P, §59.
54 Em sua obra De Motu faz-se possível a leitura de cunho instrumentalista e, dada sua recusa à concepção abstracionista lockiana (ostensivamente tratada por Berkeley ao longo de toda a Introdução de sua obra Princípios), nominalista (apesar da já exposta independência supra humana das leis naturais) de sua filosofia da ciência. Em suma, o posicionamento de Berkeley mostra-se nominalista (ver DM, §17) à medida que “os termos constituintes das leis não possuem um significado ([ou seja,] não denotam entidades, mas apenas nomeiam ficções matemáticas úteis para as predições e cálculos da teoria)” (SILVA, 2008, p. 1), bem como instrumentalista (ver DM, §67) ao passo que “as leis de uma teoria são consideradas apenas instrumentos para a predição de fenômenos e não podem ser verdadeiras ou falsas” (SILVA, 2008, p. 1), compreendendo-se, como fica claro, tal ausência de valor de verdade não quanto à aderência das teorias (induções baseadas nas redundâncias de relações sígnicas prévias) aos fatos (transcurso ordenado de relações entre ideias), mas a respeito dos termos úteis componentes de determinada teoria não designarem entidades reais inobserváveis, não fornecendo, por conseguinte, conhecimento sobre “causas subjacentes aos fenômenos” (SILVA, 2006, p.104), ou seja, acerca da realidade da natureza das causas, ditas secundárias ou ocasionais (expressão usada por Berkeley no parágrafo 2 de sua carta de 25 de novembro de 1729 a Samuel Johnson) apenas metaforicamente (ver DM, §3). Contudo, não abarcando o escopo da atual exposição um tratamento pormenorizado da filosofia da ciência berkeleyana, limitamo-nos às presentes considerações.
55 SILVA, 2006, p. 105.
56 Ver P, §89.
57 P, §62.
58 Para maior aprofundamento em tal problema, consultar CJ, p. 357-375.
59 No vocabulário peirciano, esta expressão significa um processo temporal de formação de estruturas lógicas que enformam o universo.
60 S, 252; tradução nossa.
61 SILVA, 2006, p. 102.
62 Friedman, 2003, p. 89; tradução nossa.
63 Para aprofundamento na temática, consultar IBRI, 2015, capítulo 4.
64 Consultar a este respeito CP, 5.257.
65 Para aprofundamento na temática, consultar IBRI, 2015, capítulo 5.

Autor notes

a IAI é professor titular de filosofia na PUC-SP, Doutor em Filosofia. São Paulo, SP, Brasil, e-mail: ibri@uol.com.br
b CMM é pesquisador do Centro de Estudos de Pragmatismo, Doutorando em Filosofia. São Paulo, SP, Brasil, e-mail: marramelo@hotmail.com


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