Artigo
A busca por reconhecimento e as demandas da justiça social: uma defesa do liberalismo de Rawls
The quest for recognition and the demands of social justice: a defense of Rawls’ liberalism
A busca por reconhecimento e as demandas da justiça social: uma defesa do liberalismo de Rawls
Revista de Filosofia Aurora, vol. 35, pp. 1-10, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Recepção: 25 Agosto 2020
Aprovação: 19 Novembro 2022
Resumo: A questão que o presente texto visa avaliar é em que medida duas objeções dirigidas contra o liberalismo criam dificuldades para a versão rawlsiana dessa teoria. A primeira objeção diz que as partes responsáveis pela escolha dos princípios de justiça são demasiadamente individualistas e que o raciocínio prático delas é amplamente instrumental. A segunda afirma que o método rawlsiano de justificação da justiça por meio de princípios enfraquece a prioridade de seu formalismo kantiano ao pressupor um compromisso substantivo com uma concepção particular de bem. Estas duas críticas dão suporte à afirmação mais geral de que as teorias liberais não captam adequadamente as demandas da justiça social. No entanto, defendo a tese de que essas objeções falham, ao menos com relação ao liberalismo de Rawls, uma vez que parecem estar baseadas em uma má compreensão de sua proposta. Com relação à primeira objeção, tento mostrar que Honneth e Anderson (2005) parecem se equivocar na reconstrução do ideal de pessoa de Rawls na medida em que desconsideram o desenvolvimento da ideia de personalidade moral em sua teoria. No tocante à segunda, busco argumentar que a objeção de Honneth (1991) até pode ser um problema para o liberalismo, mas não para aquele defendido por Rawls.
Palavras-chave: Honneth, autonomia, justiça Social, liberalismo, rawls.
Abstract: The question that this text aims to evaluate is the extent to which two objections addressed against liberalism create difficulties for the Rawlsian version of this theory. The first objection says that the parties responsible for choosing the principles of justice are too individualistic and that their practical reasoning is largely instrumental. The second asserts that the Rawlsian method of justifying justice through principles undermines the priority of his Kantian formalism by assuming a substantive commitment to a particular conception of the good. These two criticisms support the more general claim that liberal theories do not adequately capture the demands of social justice. Nonetheless, I defend the thesis that these objections fail at least in relation to Rawls' liberalism since they seem to be based on a misunderstanding of his proposal. With regard to the first objection, I try to show that Honneth and Anderson (2005) seem to be mistaken in the reconstruction of Rawls' ideal of person insofar as they disregard the development of the idea of moral personality in his theory. With regard to the second, I seek to argue that Honneth’s (1991) objection may be a problem for liberalism but not for that defended by Rawls.
Keywords: Honneth, autonomy, social Justice, liberalism, rawls.
1. Introdução
De um ponto de vista bastante geral, parece ser possível afirmar que a ideia de reconhecimento possui uma dimensão normativa e outra psicológica. Quando dizemos, por exemplo, que reconhecemos as outras pessoas como seres autônomos, não estamos meramente admitindo que possuam uma determinada característica, mas estamos, principalmente, tomando uma atitude positiva com relação ao fato delas possuírem essa característica alegada. Essa forma de reconhecimento implica assumirmos certos tipos de obrigação para com as outras pessoas, tal como reconhecê-las como seres livres e iguais. Essa forma de reconhecimento é, em grande medida, normativa. Mas não só, pois também é psicológica na medida em que o desenvolvimento da identidade pessoal de cada indivíduo depende da atribuição de valor que lhe é conferida pelos demais sujeitos e, de modo mais geral, pela sociedade como um todo (KORSGAARD, 2009). Muitos daqueles que não são reconhecidos apropriadamente se deparam com uma grande dificuldade para assumir seus projetos de vida como sendo dignos de respeito e consideração. Por essa razão, parece razoável assumir que os atuais debates em filosofia política precisam considerar a contundente afirmação de Charles Taylor (1992, p. 26) de que o reconhecimento é uma “necessidade humana vital”.
Tendo esse panorama como pano de fundo da discussão, a questão que o presente texto visa avaliar é em que medida duas objeções dirigidas contra o liberalismo criam dificuldades para a teoria de John Rawls. A primeira objeção diz que as partes responsáveis pela escolha dos princípios de justiça são demasiadamente individualistas e que o raciocínio prático delas é amplamente instrumental. A segunda afirma que o método rawlsiano de justificação da justiça por meio de princípios enfraquece a prioridade de seu formalismo kantiano ao pressupor um compromisso substantivo com uma concepção particular de bem. Essas duas críticas dão sustentação à afirmação mais geral de que as teorias liberais não captam adequadamente as demandas da justiça social na medida em que compreendem a autonomia1 dos indivíduos em um sentido puramente negativo (i.e., a autonomia aumenta na mesma proporção que as restrições à liberdade dos agentes diminuem).2 No entanto, defendo a tese de que essas objeções falham, ao menos com relação ao liberalismo de Rawls, uma vez que parecem estar baseadas em uma má compreensão de sua proposta. Minha alegação é de que, apesar de Axel Honneth e Joel Anderson (2005) sustentarem haver uma distância considerável entre uma abordagem liberal sobre a justiça e uma abordagem baseada no reconhecimento, acredito que tal distância não é tão grande quanto eles imaginam que ela o seja.
A fim de alcançar o objetivo aqui traçado, busco, abaixo, delimitar o contexto mais geral em que a teoria do reconhecimento honnethiana se enquadra no debate contemporâneo sobre justiça e apresento as duas objeções contra o liberalismo acima mencionadas (seção 2). Depois disso, pretendo mostrar de que modo essas críticas não representam um problema para a versão rawlsiana dessa teoria (seção 3). Por fim, tento extrair apenas três conclusões que me parecem se seguir da argumentação realizada no decorrer do texto (seção 4).
2. Duas objeções contra o liberalismo de Rawls
Desde a publicação de Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, em 1992, Axel Honneth tem buscado mostrar de que forma sua teoria lida com o problema da justiça social. De modo geral, é possível dizer que ele defende uma teoria pluralista da justiça que pretende ser uma alternativa tanto às teorias da justiça de caráter kantiano e liberal, quanto às teorias da justiça de caráter hegeliano e republicana. De uma parte, o primeiro grupo de teorias (e.g., RAWLS, 1971; HABERMAS, 1995) defende normas igualitárias que se justificam independentemente dos valores específicos aos quais os agentes sociais estão vinculados. De outra parte, o segundo grupo (e.g., TAYLOR, 1977; SANDEL, 1982) de teorias defende a promoção de certas ações que favoreçam o florescimento de valores específicos no interior das comunidades humanas. Embora essa distinção traçada não seja rígida e inatacável, ela nos auxilia a ver que a teoria da justiça honnethiana se encontra no espaço deixado entre essas duas posições. Isso é dito pelo próprio autor quando este afirma que
[a] abordagem da teoria do reconhecimento, na medida em que desenvolvemos até agora na qualidade de uma concepção normativa, encontra-se no ponto mediano entre uma teoria moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse pelas normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha com estas a orientação pelo fim da autorrealização humana (HONNETH, 2003, p. 271).
Feito esse pequeno esclarecimento, o que me interessa, agora, é apresentar o criticismo honnethiano contra o liberalismo no que concerne à questão da justiça social. De um ponto de vista metodológico, tal criticismo assume a forma de duas objeções. A primeira delas ataca o caráter procedimental das teorias liberais. Em “Autonomy, Vulnerability, Recognition, and Justice”, Honneth e Anderson (2005) sustentam que a liberdade real e efetiva (i.e., liberdade positiva) depende da existência de outros tipos de relações entre os indivíduos, as quais dão suporte ao desenvolvimento da identidade pessoal de cada um deles. Uma concepção de justiça social que está seriamente comprometida em garantir a autonomia dos indivíduos deveria incluir a proteção das várias ameaças contra a realização da liberdade individual, e não apenas distribuir as vantagens da cooperação social. Ela deveria considerar algumas condições para o desenvolvimento da autonomia, tais como autoconfiança, respeito próprio e autoestima, visto que essas relações de cada sujeito para consigo mesmo estão interligadas a uma rede mais ampla de reconhecimento social.3
Especificamente com relação ao liberalismo de Rawls, a objeção em questão se dirige contra o ideal de pessoa que está pressuposto em seu modelo procedimental. Em linhas gerais, a estratégia rawlsiana, ao adotar os procedimentos da posição original e do véu de ignorância para a escolha dos princípios de justiça, parece ser a de evitar que sua teoria precise assumir teses controversas a respeito do caráter moral dos agentes humanos. Entretanto, o problema em fazer isso está em que as partes que se encontram nessa situação hipotética acabam sendo retratadas como seres demasiadamente individualistas e que fazem uso meramente das capacidades instrumentais da racionalidade prática. Segundo Honneth e Anderson (2005), tal visão faz com que a subjetividade humana desapareça mais do que necessário, o que, por sua vez, cria uma imagem pouco factível de ser humano. As partes que se encontram nessa posição contrafactual deveriam ter ciência de algumas de suas vulnerabilidades intersubjetivas, pois
[s]e a justiça visa proteger os indivíduos em áreas nas quais eles estariam vulneráveis, - especialmente daquelas que ameaçam sua autonomia - então pareceria ser de vital importância que as partes na posição original tivessem uma clara compreensão das necessidades por reconhecimento que devem ser supridas se a autonomia dos indivíduos deve ser adequadamente protegida. A menos que as partes compartilhem dessa compreensão, é difícil ver como os princípios que eles desenvolvem poderiam fazer justiça a essas vulnerabilidades e necessidades (HONNETH; ANDERSON, 2005, p. 141).4
A segunda objeção pretende pôr em xeque o método de justificação empregado por Rawls em sua teoria. Grosso modo, a tese rawlsiana diz que os princípios de justiça são o reflexo do ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade na medida em que são justificados em virtude de sua forma, isto é, em virtude de serem o resultado do que as partes, caracterizadas como agentes racionais e autônomos de construção, deliberam na posição original sob o véu de ignorância.5 Honneth, em contrapartida, acredita que essa ideia de neutralidade não pode ser coerentemente defendida, pois implicitamente requer aceitar uma concepção particular de bem, o que Rawls (1997) reiteradamente nega ser necessário fazer.
Em “The Limits of Liberalism: On the Political-Ethical Discussion on Communitarianism”, e seguindo de perto os passos de Taylor (1985) e MacIntyre (1984), Honneth (1991, p. 28) defende que a proposta rawlsiana não é capaz de dar conta da realização individual da liberdade porque seu modelo explanatório prescinde de alguns valores socialmente partilhados (e.g., solidariedade social) que são pré-requisitos para a efetivação da própria liberdade. Em suas palavras, “toda forma de autorrealização pessoal pressupõe necessariamente referência a valores compartilhados socialmente, pois deve ser possível transformá-la em uma narrativa, assim como toda vida narrada implicitamente contém referência a uma comunidade social.”6 A dificuldade das visões liberais está exatamente em buscar excluir esses valores a fim de preservar a neutralidade ética da teoria. Por isso, se a análise de Honneth está correta, então parece que Rawls se depara com o seguinte dilema: ou pressupõe um ideal de florescimento humano individual com vistas a garantir a liberdade de cada uma das partes e, assim, abre mão do ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade, ou mantém esse ideal a expensas de não ser capaz de explicar adequadamente de que forma o exercício da liberdade individual seria possível.
3. Uma tentativa de resposta às duas objeções
Tendo em mente essas duas objeções, buscarei, na sequência, mostrar porque acredito que elas não representam um problema para o liberalismo rawlsiano. Com relação à primeira objeção, de imediato, creio ser importante notar que Honneth e Anderson parecem se equivocar na reconstrução do ideal de pessoa de Rawls na medida em que desconsideram o desenvolvimento da ideia de personalidade moral em sua teoria. Em “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Rawls (1999) afirma que sua versão de construtivismo deve ser entendida como tendo uma tarefa primeiramente prática e não epistêmica. Seu papel na teoria é definir os primeiros princípios para a solução de problemas sociais e oferecer uma base pública através da qual os cidadãos possam justificar suas instituições uns para os outros.
O método construtivista toma o ponto de vista das pessoas como agentes de construção a fim de estabelecer um quadro para deliberação que depende do próprio poder de julgar dos agentes. Este poder não é dado de uma vez, como um intuicionista defenderia (e.g., SIDGWICK, 2010; MOORE, 1998), mas é desenvolvido e moldado por uma cultura pública compartilhada, de modo que os princípios de justiça deveriam coincidir com aqueles juízos morais ponderados7 que fazem parte da cultura pública de uma sociedade democrática. Por esse motivo, Rawls (1999, p. 306) é bastante incisivo em dizer que “o objetivo da filosofia política [...] deveria ser o de articular e tornar explícitas aquelas noções e princípios [de justiça] partilhados que já estão latentes no senso comum.”8
Mas a despeito desse possível equívoco, ainda resta a alegação de que as partes que se encontram na posição original são demasiadamente individualistas e que o raciocínio prático delas é amplamente instrumental. A primeira parte desta afirmação está baseada em uma interpretação de que as partes que estão sob o véu de ignorância não dispõem de informações suficientes para escolherem princípios que atendam adequadamente às necessidades das pessoas reais. Nos termos de Honneth e Anderson (2005, p. 142), “o modelo de Rawls precisa ser revisado para acomodar uma abordagem da autonomia [que considere as relações intersubjetivas por reconhecimento].”9
No entanto, parece-me falso dizer que as partes que se encontram na posição original são demasiadamente individualistas, pois aqueles que estão nessa situação hipotética não possuem limitações no tocante a informações gerais. Em primeiro lugar, as partes conhecem as circunstâncias objetivas sobre o objeto da cooperação social, tais como que muitos indivíduos coexistem conjuntamente, que o território geográfico no qual vivem é finito, que há uma escassez moderada de recursos, etc. Em segundo, conhecem algumas circunstâncias subjetivas sobre os sujeitos da cooperação social, tais como que possuem sua própria concepção de bem, que consideram seus projetos de vida como sendo dignos de reconhecimento, que as pessoas têm necessidades e interesses similares como determinado pelas ciências, etc. Além disso, as partes também conhecem fatos sobre assuntos políticos, os princípios gerais da teoria econômica, as bases para a organização social, as leis da psicologia humana e as descobertas empíricas das ciências sociais e humanas (RAWLS, 1997).
Assim, é preciso perceber que o dispositivo do véu de ignorância não impede às partes na posição original de ter acesso aos fatos em geral, mas apenas àqueles particulares sobre o contexto no qual vivem e sobre seus próprios interesses. Seja como for, o ponto que considero decisivo aqui é que Rawls explicitamente reconhece que uma concepção ideal de pessoa humana deve ser rejeitada se ela requerer características físicas e psicológicas que violarem as condições mínimas afirmadas por uma teoria da natureza humana. “Como qualquer outro ideal, deve ser possível para as pessoas honrá-lo suficientemente bem, de modo que o ideal factível de pessoa é limitado pelas capacidades da natureza humana e pelos requerimentos da vida social.”10 Dessa forma, quando Honneth (2004) faz uso da ideia de reconhecimento com vistas a pontuar as condições mínimas de saúde física e mental para uma interação social, tendo a supor que Rawls estaria plenamente de acordo com a ideia de que as partes na posição original deveriam conhecer tais condições. Minha suposição encontra amparo no § 67 de Uma Teoria da Justiça, onde Rawls (1997, p. 487) alega que
[a] concepção do bem como racionalidade nos permite caracterizar de forma mais completa as circunstâncias que sustentam o primeiro aspecto da autoestima, o senso de nosso próprio valor. Trata-se essencialmente de duas: (1) ter um plano racional de vida, e, em particular, um plano que satisfaça o princípio aristotélico; e (2) ver que a nossa pessoa e nossos feitos são apreciados por outros que são, da mesma forma, estimados, e cuja companhia nos é agradável. [...] [S]e nossos esforços não são apreciados por nossos consórcios, nos é impossível manter a convicção de que vale a pena realizá-los.
Dando um passo adiante, creio que a alegação de que o raciocínio prático das partes na posição original é amplamente instrumental também é falsa. Seguindo a argumentação proposta por Miriam Bankovsky (2011), entendo que Honneth e Anderson confundem as ideias de parte (i.e., representante artificial do cidadão) e de pessoa moral. A motivação das partes não deveria ser confundida com aquela da pessoa moral, pois as faculdades morais do racional e do razoável são interpretadas por dois procedimentos distintos. De uma parte, a posição original corporifica procedimentalmente a faculdade do racional ao descrever as partes como agentes que buscam realizar seus próprios interesses racionais e garantir os bens primários.11 De outra, o véu de ignorância corporifica procedimentalmente a faculdade do razoável (i.e., senso de justiça) ao impor limitações à deliberação dos agentes com a finalidade de situá-los simetricamente no contexto de escolha. Muito embora o primeiro procedimento pareça moldar os interesses dos agentes apenas instrumentalmente, o segundo representa a obrigação deles de cooperar no decorrer de suas vidas em vista do bem mútuo (BANKOVSKY, 2011).
Rawls (1999, p. 316) parece deixar claro essa distinção ao afirmar que
o véu de ignorância implica que as pessoas sejam representadas somente como pessoas morais e não como pessoas favorecidas ou desfavorecidas pelas contingências de suas posições sociais, pela distribuição das habilidades naturais ou pela sorte ou acaso histórico no decorrer do curso de suas vidas.12
Outro ponto que evidencia o equívoco da acusação feita por Honneth e Anderson está na distinção que Rawls faz entre autonomia racional e autonomia plena. A primeira forma de autonomia é aquela das partes enquanto agentes de construção. Ela é bastante limitada e corresponde ao que Kant (2009) chamou de imperativos hipotéticos. Na literatura filosófica, a autonomia racional expressa a ideia segundo a qual os indivíduos devem tomar todos os meios necessários para realizar seus fins desejados. Já na teoria de Rawls (1999, p. 316), ela é interpretada como o desejo que as partes têm na posição original de “realizar e exercer seus poderes morais e garantir o progresso de suas concepções de bem.”13 A segunda forma de autonomia, por seu turno, corporifica o senso de justiça das partes ao estabelecer os termos equitativos da cooperação, isto é, os termos que cada indivíduo poderia razoavelmente esperar que fossem aceitos. Embora Rawls (1999, p. 315) reconheça que a autonomia plena é aquela dos cidadãos que ordinariamente agem de acordo com os princípios de justiça que foram acordados, ele é enfático em dizer que “as características essenciais dela devem, no entanto, estar representadas de uma forma adequada na posição original.”14
No tocante à segunda objeção, acredito que ela até pode representar um problema para o liberalismo em geral, mas não para aquele defendido por Rawls. Honneth (1991) alega que Rawls não pode coerentemente fundar sua teoria no ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade, pois ela pressupõe um compromisso com uma concepção particular de bem, a saber: um ideal de liberdade social ou autorrealização mútua. Sem esse compromisso, os indivíduos não teriam qualquer razão para exigir a proteção formal de sua autonomia. Daí porque Rawls parece se defrontar com o dilema de ou ter de abandonar o ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade, pressupondo, assim, um ideal de florescimento humano com vistas a garantir a liberdade de cada uma das partes, ou ter de sustentar esse ideal às custas de não ser capaz de explicar adequadamente de que modo o exercício da liberdade seria possível. Contudo, como bem mostrado por Bankovsky (2011), o erro da crítica está exatamente na assunção de que Rawls discordaria a respeito desse aspecto, já que ele reconhece explicitamente que “a justiça traça o limite e o bem mostra o ponto. Assim, o justo e o bem são complementares, e a prioridade do justo não nega isso.”15 (RAWLS, 1999, p. 449-50).
A questão que entendo ser decisiva aqui reside em saber se o ideal de autorrealização mútua pressupõe ou não a aceitação de uma doutrina particular abrangente (religiosa, filosófica ou moral). Acredito que a resposta deveria ser negativa, pois esse ideal cumpre plenamente os requisitos que uma concepção política de justiça deveria cumprir. Rawls (1999) diz que as características que distinguem uma concepção política de justiça são: (i) que ela é uma concepção moral elaborada para um fim específico; (ii) que apresenta a si mesma como uma concepção razoável para a estrutura básica de uma sociedade democrática; e (iii) que não é formulada em termos de nenhuma doutrina abrangente, mas sim em termos de certas ideias intuitivas fundamentais que são latentes na cultura pública de uma sociedade democrática. Visto a partir dessa perspectiva, o ideal de autorrealização mútua deve ser compreendido como uma virtude política que está intimamente ligada aos ideais políticos de pessoa e de sociedade bem-ordenada. Defender uma forma de neutralidade procedimental não implica em negar a superioridade de certas formas de caráter moral. Rawls (1999, p. 460) é incisivo em dizer que
a justiça como equidade inclui uma abordagem de certas virtudes políticas - as virtudes da cooperação social equitativa, tais como civilidade e tolerância, razoabilidade e senso de justiça. O ponto crucial aqui é que admitir essas virtudes em uma concepção política não leva[m] a um estado perfeccionista de uma doutrina abrangente.16
Por isso, sustento que Rawls não se depara com nenhum dilema, uma vez que é plenamente possível compatibilizar o ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade com a defesa de uma concepção de bem. Rawls poderia, inclusive, contraobjetar dizendo que a defesa que Honneth oferece em suporte da anterioridade do compromisso com o ideal de autorrealização mútua supõe o ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade.
Ademais, Honneth parece claramente se deparar com o mesmo problema que imputa a Rawls. Em seu artigo há pouco citado, ele afirma que sua defesa do ideal de autorrealização mútua não é de natureza estritamente comunitarista, pois é também um compromisso com a autorrealização de todos os membros da sociedade em diferentes comunidades (HONNETH, 1991). O ideal de autorrealização de todos os membros da sociedade já inclui em si mesmo o ideal kantiano de imparcialidade e neutralidade. Quando Honneth explicita a natureza formal de uma concepção de vida ética, ele está defendendo um padrão normativo que é tanto formal quanto substantivamente concreto. A proposta é universal no sentido kantiano porque busca estabelecer os limites normativos para qualquer sociedade; e, ao mesmo tempo, é substantiva no sentido comunitarista porque busca considerar aqueles valores particulares de uma determinada sociedade que são fundamentais para a realização do bem mútuo. Portanto, a teoria de Rawls não é tão distinta da de Honneth, visto que ela dá sustentação a uma concepção de justiça que é tanto formal quanto substantiva.
Ao menos do modo como vejo esse ponto, parece haver uma considerável semelhança entre ambas as teorias com relação à ideia de bem mútuo. Tal semelhança pode ser percebida a partir da afirmação de Rawls (2011, p. 192) de que
na sociedade bem-ordenada da justiça como equidade, os cidadãos compartilham um objetivo comum, e um objetivo que tem grande prioridade, qual seja, o de assegurar que as instituições políticas e sociais sejam justas e de garantir justiça às pessoas em geral, em relação ao que os cidadãos querem para si e querem uns para os outros.
Nesse sentido, creio que, assim como Honneth, Rawls (2001, p. 5) também atribui à filosofia política o que ele considera ser uma tarefa explicitamente hegeliana, a saber: a de formular construtivamente um sistema equitativo de cooperação que “se perpetua de uma geração para outra, em que aqueles que cooperam são vistos como cidadãos livres e iguais, e membros normais e cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida.”
4. Considerações finais
À guisa de conclusão, entendo que se a argumentação que desenvolvi na seção anterior é cogente, então seria possível extrair as seguintes conclusões do que foi discutido: (i) que as duas objeções contra o liberalismo não representam um problema para a versão rawlsiana dessa teoria; (ii) que tanto a teoria da justiça como reconhecimento de Honneth, quanto a teoria liberal da justiça de Rawls partilham o objetivo básico de garantir para todos os cidadãos as condições materiais e institucionais para o exercício real de seus direitos e liberdades; e (iii) que a distância entre os modelos de Honneth, de uma parte, e de Rawls, de outra, não é tão grande quanto o primeiro imagina que ela o seja. Por fim, é preciso reconhecer que muitos debates filosóficos são difíceis de representar porque eles são alvos em movimento. Vários autores acabam alterando parcialmente suas posições a fim de acomodar algumas objeções de seus oponentes. Em parte, esse é o caso de Rawls, mas não em relação ao tipo de criticismo realizado por Honneth e Anderson. Por isso, meu objetivo neste artigo não é pôr um fim ao debate em tela, mas apenas argumentar em prol da tese de que duas importantes objeções dirigidas contra o liberalismo não oferecem qualquer ameaça à teoria de Rawls.
Referências
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Notas
Autor notes
a Doutor em Filosofia, e-mail: lmdalsotto@ucs.br