Artigo científico
Língua e política em Hjelmslev e Deleuze & Guattari: prolegômenos ao conceito de agenciamento
Langue and politics in Hjelmslev and Deleuze & Guattari: prolegomena to the concept of assemblage
Lengua y política en Hjelmslev y Deleuze & Guattari: prolegómenos al concepto de agenciamento
Língua e política em Hjelmslev e Deleuze & Guattari: prolegômenos ao conceito de agenciamento
Revista de Filosofía Aurora, vol. 36, e202430393, 2024
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Recepción: 22 Mayo 2023
Aprobación: 11 Junio 2024
Resumo: O objetivo principal deste artigo é explicitar a dimensão política da língua e seu papel na montagem do conceito deleuzo-guattariano de agenciamento. Para tanto, é indispensável demonstrar como a criação do conceito de agenciamento depende de componentes forjados com o pensamento de Hjelmslev, o que será feito em dois movimentos: o rastreamento de algumas noções da linguística de Hjelmslev, em seus pontos de consenso e dissenso com Saussure; e a elucidação da operação de incorporação da linguística hjelmsleviana pela filosofia de Deleuze e Guattari, em especial no conceito de agenciamento.
Palavras-chave: Língua, Política, Agenciamento, Hjelmslev, Deleuze & Guattari.
Abstract: This article aims to explain the political dimension of Saussure's "Langue" (language) and its role in setting up the Deleuzo-Guattarian concept of assemblage. Thus, it is essential to demonstrate how the creation of the concept of assemblage depends on components forged with Hjelmslev’s thought, which will be done in two movements: 1) tracing some notions of Hjelmslev’s linguistics, in their points of consensus and disagreement with Saussure; and 2) elucidating the incorporation of Hjelmslev’s linguistics in Deleuze and Guattari's philosophy, especially for the concept of assemblage.
Keywords: Language, Politics, Assemblage, Hjelmslev, Deleuze & Guattari.
Resumen: El objetivo principal de este artículo es explicar la dimension política de la lengua y su papel en la configuración del concepto deleuze-guattariano de agenciamento. Por tanto, es fundamental demonstrar cómo la creación del concepto de agenciamiento depende de componentes forjados con el pensamiento de Hjelmslev, lo que se hará en dos movimientos: el rastreo de algunas nociones de la lingüística de Hjelmslev, en sus pontos de consenso y desacuerdo con Saussure; y la elucidación de la operación de incorporación de la lingüística hjelmsleviana por la filosofía de Deleuze y Guattari, especialmente en el concepto de agenciamiento.
Palabras clave: Lengua, Política, Agenciamiento, Hjelmslev, Deleuze & Guattari.
Introdução
Gilles Deleuze e Félix Guattari sublinham a dimensão inerentemente política a qualquer prática ou saber linguísticos e sustentam que há uma política da língua ainda mais fundamental que uma ciência da língua1. Frequentemente a coincidência entre língua e política é enfatizada pelos autores para denunciar um uso da língua que funciona como perpetuação de relações de poder. Mas também para apontar uma saída: a experimentação com a língua pode abrir caminho para novas relações de forças, como no caso concreto da literatura de Franz Kafka. Não por acaso, Deleuze e Guattari criaram o conceito de agenciamento em Kafka: por uma literatura menor, quando já aparece uma segunda grande fonte de inspiração para os autores: o linguista Louis Hjelmslev, ao qual atribuem uma teoria imanente da língua e do qual tomam de empréstimo duas das quatro valências do agenciamento, o conteúdo e a expressão2.
O objetivo principal deste artigo é explicitar a dimensão política da língua e seu papel na montagem do conceito deleuzo-guattariano de agenciamento. Para tanto, é indispensável demonstrar como a criação do conceito de agenciamento depende de componentes forjados com o pensamento de Hjelmslev, o que será feito em dois movimentos: o rastreamento de algumas noções da linguística de Hjelmslev, em seus pontos de consenso e dissenso com Saussure; e a elucidação da operação de incorporação da linguística hjelmsleviana pela filosofia de Deleuze e Guattari, em especial no conceito de agenciamento.
De Saussure a Hjelmslev: uma teoria imanente da língua
Hjelmslev concebe a linguagem como “um todo que se basta, uma estrutura sui generis”, em ruptura com um estudo da linguagem em que esta é tida como “o meio de um conhecimento transcendental”, única via para se conhecer diversos objetos extralinguísticos: a linguagem seria chave para o sistema conceitual e para a natureza psíquica do ser humano, instituição social supraindividual que caracterizaria a nação, modo de decifração do estilo da personalidade e das longínquas vicissitudes das gerações desaparecidas a partir de suas próprias flutuações e de sua própria evolução, etc. No estudo da linguagem predominante até então, a linguagem não passa de um “conglomerado de fatos não linguísticos (físicos, fisiológicos, psicológicos, lógicos, sociológicos)”. Apenas uma teoria racional da linguagem, em que a linguagem é apreendida como fim de um conhecimento imanente, como o objeto de uma teoria capaz de formular premissas, indicar métodos, abrir caminhos, sem aludir ao que lhe é exterior, pode estabelecer “uma base homogênea de comparação das línguas, ao fazer desaparecer o particularismo na criação dos conceitos”.3
Para Hjelmslev, um ponto de vista sistemático no estudo científico da língua se apoia sobre a hipótese da distinção entre processo e sistema, em que o processo realizado no texto poderia ser descrito por meio de um princípio homogêneo de análise e de um número restrito de premissas pertencentes ao sistema: “através do processo, tal como é realizado no texto, procura-se um sistema fonológico, um sistema semântico, um sistema gramatical”. Considera-se a composição do processo por “um número limitado de elementos que reaparecem constantemente em novas combinações” e, na análise sistemática do processo, agrupam-se os elementos em classes, define-se a classe pela homogeneidade de suas possibilidades combinatórias e, realizada essa classificação, chega-se a um “cálculo geral exaustivo das combinações possíveis”. A linguagem é justamente um domínio privilegiado para a verificação desta hipótese. “O objetivo da teoria da linguagem é verificar a tese da existência de um sistema subjacente ao processo, e aquela de uma constância que subtende as flutuações, e aplicar o sistema a um objeto que parece se prestar particularmente bem a isso.” Hjelmslev reconhece como seu único precursor Ferdinand de Saussure4, pois este defende uma forma racional do estudo linguístico, que, neste caso, se orienta por uma dupla bifurcação: a primeira, a bifurcação da linguagem em língua, parte social e essencial, e fala, parte individual e acessória; a segunda, a bifurcação da língua em sincrônica, como eixo das simultaneidades ou do sistema estabelecido, e diacrônica, como eixo das sucessividades ou da evolução5.
Em Saussure, língua e fala são partes da linguagem. Enquanto a linguagem é multiforme e heteróclita, apoiando-se em diversos domínios - físico, fisiológico, psíquico -, a língua é um sistema homogêneo de signos, sendo o signo a união de duas partes, ambas de natureza psíquica: o conceito e a imagem acústica, ou ainda, o significado e o significante. A língua é uma parte determinada, essencial, que ocupa o primeiro lugar entre os fatos da linguagem. Apenas ela tem definição autônoma e funciona como um todo em si, por isso se presta a fornecer à linguagem um ponto de apoio e um princípio de classificação, devendo ser tomada como “norma de todas as outras manifestações da linguagem”. Ademais, a língua é, ao mesmo tempo, “um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício desta faculdade nos indivíduos”. Portanto, não é uma função do sujeito falante nem exige premeditação, sendo passivamente registrada pelo indivíduo. Em compensação, a fala, a outra parte da linguagem, é “um ato individual de vontade e de inteligência”. Língua e fala são interdependentes, uma vez que a língua torna a fala inteligível e possibilita que ela produza efeitos, e a fala é necessária ao estabelecimento da língua por antecedê-la historicamente. A língua é instrumento e produto da fala. Na linguística saussuriana, no entanto, não se pretende buscar um ponto de vista comum entre língua e fala, pois o todo global da linguagem, por não ser homogêneo, não pode ser conhecido. A distinção entre língua e fala e a subordinação do estudo da fala àquele da língua indicam claramente o caminho a ser seguido: a linguística propriamente dita deve se ocupar da língua, e não da fala, esta podendo ser objeto de uma linguística secundária6.
O estudo da linguagem comporta portanto duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; a outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, ou seja, a fala, aí compreendida a fonação: o estudo é psicofísico. 7
Quanto à segunda bifurcação saussuriana, a sincronia é o aspecto estático da ciência linguística, designa a relação entre elementos simultâneos, sendo os fatos sincrônicos regulares, mas não imperativos; ao passo que a diacronia refere-se às evoluções, indica uma fase de evolução, um acontecimento, a substituição de um elemento por outro no tempo, sendo os fatos diacrônicos impositivos, mas não gerais. Tudo que é diacrônico na língua vem da fala. Uma inovação da língua obedece a dois momentos: primeiramente surge na fala de alguns indivíduos; então se torna um fato da língua depois de ter sido adotada pela coletividade. Saussure estima que a bifurcação da linguística em sincrônica e diacrônica exige a consequente adoção de métodos próprios a cada uma delas.8
A linguística sincrônica ocupar-se-á das relações lógicas e psicológicas que ligam termos coexistentes e formam um sistema, tais quais são apercebidas pela mesma consciência coletiva.
A linguística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que ligam termos sucessivos não apercebidas por uma mesma consciência coletiva, e que se substituem sem formar um sistema entre si. 9
O alerta de Saussure para que a linguística observe alternadamente esses aspectos e evite qualquer confusão de método parece perigoso a Hjelmslev, que diagnostica a transformação da antinomia diacronia-sincronia numa cisão que as opõe enquanto pontos de vista particular e geral respectivamente: “de um lado, os fenômenos diacrônicos, as mudanças linguísticas determinadas em larga medida pela região e dependendo de fatores sociais e de tendências da população falante [portanto, de particularidades]; do outro lado, a sincronia geral”10. Hjelmslev reconhece a análise de um estado da língua como condição prévia, mas ressalta: “o problema principal da linguística não é a descrição de um estado linguístico particular, mas o estabelecimento da relação entre os estados sucessivos de uma mesma língua e entre línguas diferentes, suas semelhanças e diferenças recíprocas”11. Por isso define sua contribuição ao campo da linguística como sendo a de promover uma síntese entre essas abordagens.
[...] só será possível combinar e equilibrar os fatores regionais e gerais se uma ligação puder ser estabelecida entre sincronia e diacronia. Caso se possa mostrar que as mudanças linguísticas não são devidas simplesmente a tendências limitadas a uma população dada, mas também a uma predisposição à mudança no próprio sistema da linguagem, de tal modo que um estado linguístico de um tipo dado deva necessariamente mudar de uma maneira dada, assim que estejam presentes as condições necessárias, então a linguística comparada terá tido sucesso em estabelecer uma linguística geral, segundo a qual as mudanças linguísticas são devidas aos estados linguísticos, e em que o particular é devido ao geral. [...] Se [...] eu tiver a felicidade de participar desta renovação da ciência [...], será nesta tentativa de realizar uma síntese que buscarei minha justificativa.12
Em mais um desacordo com seu precursor, Hjelmslev questiona nada mais, nada menos que a definição saussuriana da língua como um sistema de signos13, visto que esta só daria conta “das funções externas da linguagem, das relações da língua com seus fatores extralinguísticos, e não de suas funções internas”. Para Hjelmslev, a formação dos signos é a finalidade da língua, mas, em sua estrutura interna, a língua é um sistema de figuras que podem servir para formar signos. As figuras são não signos, grandezas que não têm nenhuma significação ou conteúdo e existem em número extremamente reduzido, o que facilita seu manejo, seu aprendizado e seu emprego. Já os signos funcionam, designam, significam e existem em número ilimitado. Uma maneira de perceber o limiar entre um signo e uma figura é analisar a expressão do signo até chegar a uma grandeza desprovida de qualquer significação ou conteúdo, como algumas sílabas ou fonemas. E mesmo uma sílaba ou um fonema podem ser ora expressão de um signo, ora figura: por exemplo, “s” pode dispor de uma significação e ser a expressão de um signo, como em “gatos”, em que significa o plural, mas pode não corresponder a nenhum conteúdo e ser apenas uma figura, ou parte da expressão de um signo, como em “sino”. Hjelmslev conclui que é necessário analisar conteúdo e expressão separadamente, pois as grandezas de extensão mínima e número limitado que obtemos nem sempre se conjugam entre si, ou seja, nada impõe a combinação de uma figura extraída da análise da expressão de um signo com uma figura extraída da análise do conteúdo de um signo. A conjugação entre expressão e conteúdo, que caracteriza o signo, não se observa necessariamente nas figuras.14
Outra discordância com Saussure diz respeito à ausência de qualquer alusão à função semiótica inerente ao signo15. Em Saussure, o signo é uma instância psíquica de duas faces intimamente unidas: a face do significante (ou imagem acústica) e a face do significado (ou conceito). Por exemplo, a palavra falada, inscrita psiquicamente, “árvore”, seria a imagem acústica, ou o significante, ao passo que o conceito de árvore, também inscrito psiquicamente, seria o significado. Já o signo é a totalidade, a união ou a combinação arbitrária, convencional, do conceito e da imagem acústica, do significado e do significante.16 Hjelmslev relê o significante como expressão e o significado como conteúdo, mas acrescenta que o que caracteriza o signo em primeiro lugar é a função semiótica que os articula. A expressão e o conteúdo, ou, mais precisamente, a forma de expressão e a forma de conteúdo são os dois functivos que contraem a função semiótica: elas estão em pressuposição recíproca e se definem em sua relação. A função semiótica é uma relação interna ao signo, contraída pela forma de expressão e pela forma de conteúdo (e não por suas substâncias).
A distinção entre a expressão e o conteúdo, e sua interação na função semiótica, são fundamentais na estrutura da língua. Todo signo, todo sistema de signos, todo sistema de figuras a serviço dos signos, toda língua enfim encerra em si uma forma da expressão e uma forma do conteúdo.17
O método descritivo é o que explica a centralidade da função semiótica na investigação sobre o signo. Acerca das funções em geral, Hjelmslev esclarece que só se chega a entender a língua por meio de uma descrição, e que descrever é dar conta das relações em que a língua entra e que nela entram, isto é, das relações entre as línguas (relações externas) e das relações entre a língua e seus componentes (relações internas). E conclui: “Nomearemos funções tais relações ou dependências registradas por uma descrição científica.”18 Apesar de não abordar a função semiótica, Saussure reconhece a prioridade das dependências ou relações sobre os termos: o signo não é simplesmente a união de uma imagem acústica com um conceito, não é nada isolado dos outros signos, do sistema; justamente “é do todo solidário que é preciso partir para obter, por análise, os elementos que ele encerra”19. Hjelmslev vincula, em Saussure, a preponderância das relações sobre os termos àquela do aspecto formal sobre o substancial:
O reconhecimento de fato de que uma totalidade não se compõe de objetos, mas de dependências, e de que não é sua substância, mas as relações internas e externas que têm uma existência científica, certamente não é novo. [...] Tudo parece indicar que Saussure reconhece a prioridade das dependências da língua. Ele procura relações por todo lado e afirma que a língua é forma, e não substância.20
Acerca da distinção entre forma e substância, Saussure defendia que, caso abstraíssemos sua expressão por palavras, o pensamento, psicologicamente considerado, não passaria de uma “massa amorfa e indistinta”, de um “reino flutuante”, de uma “nebulosa” desprovida de qualquer delimitação. “Não há ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes da aparição da língua”. Em contrapartida, a substância fônica não é tampouco fixa ou rígida, mas “uma matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas para fornecer os significantes de que o pensamento precisa.” A língua se poria justamente como intermediária entre as duas massas amorfas do pensamento e do som, fazendo derivar, do acoplamento do pensamento com a matéria fônica, delimitações recíprocas de unidades21.
Podemos portanto representar o fato linguístico em seu conjunto, ou seja, a língua, como uma série de subdivisões contíguas desenhadas ao mesmo tempo sobre o plano indefinido das ideias confusas e sobre aquele não menos indeterminado dos sons. [...] a língua elabora suas unidades ao se constituir entre duas massas amorfas. [...] Poder-se-ia chamar a língua de domínio das articulações [...]: cada termo linguístico é um pequeno membro, um articulus, em que uma ideia se fixa em um som ou um som se torna o signo de uma ideia. [...] A linguística trabalha então no terreno limítrofe em que os elementos das duas ordens se combinam; esta combinação produz uma forma, não uma substância.22
Este trecho fornece para a teoria de Hjelmslev o plano de conteúdo e o plano de expressão: tais planos são construídos analogamente (Deleuze e Guattari diriam “isomorficamente”), com categorias definidas de maneira idêntica, o que reitera que expressão e conteúdo são grandezas de mesma ordem, iguais sob todos os aspectos, solidárias e definidas na relação entre elas23.
Os próprios termos plano de expressão e plano de conteúdo e, de maneira mais geral, expressão e conteúdo foram escolhidos de acordo com o uso corrente e são inteiramente arbitrários. A partir de sua definição funcional, é impossível sustentar que seja legítimo chamar uma dessas grandezas expressão e a outra conteúdo, e não o inverso. Elas só são definidas como solidárias uma à outra e nem uma nem a outra podem ser definidas mais precisamente. Tomadas separadamente, só se pode defini-las por oposição e de maneira relativa, como functivos de uma mesma função que se opõem um ao outro.24
A distinção dos planos de expressão e de conteúdo em Hjelmslev, a partir de Saussure, lança luz sobre mais uma consequência de se tomar as figuras, e não os signos, como as unidades mínimas da língua. Como já enfatizado, as figuras são obtidas pela análise separada da expressão e do conteúdo, e as noções hjelmslevianas de expressão e conteúdo são inspiradas pelas noções saussurianas de significante e significado. Saussure, ao considerar isoladamente a relação dos significantes entre eles e a relação dos significados entre eles, afirma: “na língua, só há diferenças. [...] uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua só há diferenças sem termos positivos”. Ocorre que essa relação entre diferenças puras só se verifica atentando-se ao sistema dos significantes ou ao sistema dos significados. Quando significante e significado se unem em um signo, este surge como um termo ou fato positivo da língua: “assim que consideramos o signo em sua totalidade, nos encontramos em presença de uma coisa positiva em sua ordem. [...] Embora o significado e o significante sejam, cada um tomado à parte, puramente diferenciais e negativos, sua combinação é um fato positivo”. O sistema dos signos, em contraste com o sistema dos significantes ou com o sistema dos significados, põe em relação termos positivos, distintos e opostos: “dois signos comportando cada um significado e um significante não são diferentes, mas somente distintos. Entre eles só há uma oposição.”25 Portanto as unidades mínimas da língua segundo Saussure, a saber, os signos, são fatos positivos, que se distinguem e se opõem entre si, preservando uma identidade, natureza ou qualidade mínima, o que não ocorre com as figuras, ou não-signos, unidades mínimas da língua segundo Hjelmslev, que não dispõem de qualquer identidade, natureza ou qualidade específicas.26
O fragmento de Saussure que alude aos planos dos significantes e dos significados lhe rende uma nova crítica de Hjelmslev, agora a respeito das supostas precedência e independência da substância em relação à forma, pois, para o linguista dinamarquês, a substância é sempre substância de uma forma:
[N]ada autoriza a fazer com que a língua seja precedida pela ‘substância do conteúdo’ (pensamento) ou pela ‘substância da expressão’ (cadeia fônica) ou o inverso, seja em uma ordem temporal ou em uma ordem hierárquica. Se conservamos a terminologia de Saussure, nos é necessário então dar conta - e precisamente de acordo com seus dados - de que a substância depende exclusivamente da forma e que não se pode, em nenhum sentido, lhe atribuir uma existência independente.27
Hjelmslev lança mão da função semiótica tanto em sua recuperação dos dois planos da língua apontados por Saussure, quanto nos avanços que propõe para a distinção saussuriana entre forma e substância, que o levam a atribuir uma forma e uma substância ao conteúdo e uma forma e uma substância à expressão. Lembrando que apenas a forma do conteúdo e a forma da expressão contraem a função semiótica, num todo que recebe o nome de signo.
[...] as duas grandezas que contraem a função semiótica: a expressão e o conteúdo, se comportam de maneira homogênea com relação a ela: é em virtude da função semiótica, e somente em virtude dela, que existem seus dois functivos, que podemos agora designar com precisão como a forma do conteúdo e a forma da expressão. Da mesma maneira, é em virtude da forma do conteúdo e da forma da expressão, e somente em virtude delas, que existem a substância do conteúdo e a substância da expressão, que aparecem quando projetamos a forma sobre o sentido”.28
O princípio de estrutura e o sentido são os fatores comuns às diferentes línguas identificados por Hjelmslev. O princípio de estrutura existe em todas as línguas, embora executado de maneiras diferentes, e comporta a função semiótica e todas as funções deduzidas dela. O sentido é “uma grandeza que só se define pela função que a liga ao princípio de estrutura da língua e a todos os fatores que fazem com que as línguas sejam diferentes umas das outras”, pois ele é “ordenado, articulado, formado de maneira diferente segundo as diferentes línguas”. Na acepção original que lhe dá Hjelmslev, o sentido é não-formado, definido justamente como um “contínuo amorfo e não analisado”, “massa amorfa do pensamento” no que tange ao conteúdo e massa amorfa fônica no que diz respeito à expressão. O sentido é uma zona cujas fronteiras são estabelecidas de maneira distinta por cada língua, visto que, em cada uma delas, as formas do conteúdo e da expressão contraem diferentemente a função semiótica e formam diferentemente suas substâncias de conteúdo e de expressão. No que se refere ao conteúdo, por exemplo, cada língua recorta uma zona de sentido para a designação das cores (entre os esquimós, há diversos graus de branco, ou diversas zonas de sentido, onde os lusófonos só recortam uma única zona); no que se refere à expressão, a delimitação dos contínuos vocálicos ou consonantais também varia de uma língua para outra (em francês, há um som vocálico [y] entre o [i] e o [u], que é uma zona de sentido inexistente entre os lusófonos). “Apenas as funções da língua, a função semiótica e as que decorrem dela, determinam a sua forma. O sentido se torna, a cada vez, substância de uma forma nova, e sua única existência possível é aquela da substância de uma forma qualquer.”29
Retomando a definição tradicional, realista e imprecisa segundo a qual o signo é signo de alguma coisa, esta “alguma coisa” passa a ser a substância do conteúdo e a substância da expressão, às quais a forma do conteúdo e a forma da expressão da função semiótica estão respectivamente relacionadas. Ou seja, o signo como signo de alguma coisa “significa que a forma do conteúdo de um signo pode compreender esta alguma coisa como substância de conteúdo” e que a forma da expressão pode compreender esta alguma coisa como substância de expressão: “o signo é portanto ao mesmo tempo signo de uma substância do conteúdo e de uma substância da expressão”.30
É ao se voltar para o sentido, que Hjelmslev observa a relação entre língua e política: o político se apresenta quando a forma específica do conteúdo projetada na zona de sentido coincide em mais de uma comunidade linguística. Geralmente, cada língua dá uma forma do conteúdo à substância do conteúdo. Só que, às vezes, há uma comunicação cultural que faz com que as línguas, tendo ou não origem comum, possam se influenciar, de modo a formarem associações linguísticas. Quando é assim, ao invés de recortarem o contínuo amorfo do sentido cada uma à sua maneira, na constituição distinta de suas funções semióticas, elas passam a dar a mesma forma do conteúdo a uma certa zona do sentido. Esta tendência pode ser explorada por dirigentes, capazes de fazer uso desta linguística aplicada para manipular as massas. Donde a urgência assinalada por ele de que a linguística se ocupe de sua vertente aplicada, a fim de quitar a sua dívida perante o homem e a sociedade31.
[O] sistema de signos, a linguagem e a forma do conteúdo se tornaram uma força cuja utilização nenhum dirigente pode ou quer negligenciar. Hitler dizia que queria pôr as massas em movimento modelando sua vontade, e nem ele nem ninguém animado pelas mesmas intenções poderia negligenciar a importância dos signos e dos símbolos para realizar tal objetivo.32
Por causa da constituição dos signos a partir da combinatória das figuras, da contração da função semiótica pelas formas de expressão e de conteúdo em pressuposição recíproca, da formalização das substâncias, a linguagem está sempre mudando, mas também por esta razão pode ser usada para fins políticos.
De Hjelmslev a Deleuze & Guattari: o conceito de agenciamento
O conceito deleuzo-guattariano de agenciamento é diretamente inspirado pelas noções hjelmslevianas de conteúdo, expressão, forma, substância, matéria e estrato. Aparece na obra conjunta de Deleuze e Guattari, em sua plena consistência conceitual, em 1975, em Kafka: por uma literatura menor33. Já no primeiro capítulo, os autores entram na obra kafkiana recorrendo às noções de forma de conteúdo e forma de expressão. “A entrada que escolhemos não está apenas [...] em conexão com outras coisas por vir. Ela própria é constituída pelo estabelecimento de uma conexão entre duas formas relativamente independentes, a forma de conteúdo [...], a forma de expressão.” Um exemplo é extraído de O castelo: já no início do romance, K se depara com um retrato de um porteiro de cabeça baixa na sala do albergue. Para Deleuze e Guattari, os retratos ou fotos funcionam em Kafka como formas de expressão que se articulam com cabeças baixas como formas de conteúdo. Em contraponto com a reunião dessas duas formas, eles notam, em contos como “Um relatório para uma Academia”, o aparecimento de um som puro, intenso, desorganizado, desarticulado (a tosse do macaco na primeira versão do texto), como expressão liberada de sua forma, pura matéria expressiva desterritorializada, que arrasta cabeças erguidas ou cabeças que passam primeiro, como forma de conteúdo na iminência de se desfazer, em deformação, em metamorfose (o esforço do macaco em escapar das grades, passando primeiro a sua cabeça)34.
Insinua-se a “tetravalência do agenciamento”, assim formulada em Mil Platôs, embora já indicada em Kafka, quando os autores anunciam que, além de suas duas faces, agenciamento maquínico de conteúdo e agenciamento coletivo de enunciação, o agenciamento dispõe ainda de um polo segmentário, de poderes e territórios, e de pontas de desterritorialização, de uma linha de fuga35. Em Mil Platôs, o agenciamento é composto por dois eixos: um horizontal, cujos polos são conteúdo e expressão; e um vertical, que aponta, em um dos seus polos, para territórios e, no outro, para desterritorializações.36
O tema do desejo, desenvolvido em O anti-Édipo, figura no conceito de agenciamento como uma de suas valências, a do conteúdo. No caso Kafka, Deleuze e Guattari mapeiam duas posições ou estados do desejo (que relacionam com dois usos da expressão): por um lado, “desejo bloqueado, submetido ou que submete, neutralizado, com conexão mínima, [...], territorialidade ou reterritorialização”; por outro, “desejo que se reergue, ou se desembaraça, e se abre a novas conexões, [...], desterritorialização”. O desejo bloqueado se reterritorializa em uma forma de conteúdo, ao passo que o desejo que se desterritorializa escapa à forma de conteúdo, é puro processo. A reunião das duas formas, de conteúdo e de expressão, opera um bloqueio funcional, uma neutralização, uma reterritorialização do desejo, selecionando “o desejo que impõe a submissão, a propaga, o desejo que julga e condena”. Já o surgimento de uma “matéria não formada de expressão”37, de um som intenso e desarticulado que escapa à forma de expressão, impõe uma metamorfose à forma de conteúdo, encontrando uma saída para o desejo, que desliza pela linha de fuga, se desterritorializa, e se põe como processo. É esse tipo de uso da expressão, caracterizado como experimentação, que dá o tom político ao estilo de Kafka, e faz de seus escritos uma verdadeira máquina literária revolucionária.
Como Hjelmslev, Deleuze e Guattari avaliam ser necessário partir da disjunção entre expressão e conteúdo, ilustrada em literatura pela fórmula “Falar, e sobretudo escrever, é jejuar”. A expressão é então a primeira a se desterritorializar, e o faz ao desarticular o som, imprimir acentos, inflexões nas palavras. A desarticulação da expressão libera uma matéria viva expressiva, que neutraliza ativamente o sentido, compreendido como significado, substância formada do conteúdo. O conteúdo, arrastado pela expressão desterritorializada, perde igualmente sua forma, e do significado “subsiste apenas algo que dirija as linhas de fuga”. Os denominados sentidos próprio e figurado são substituídos por um devir, uma sequência de estados intensivos, um circuito de intensidades puras. A metáfora é substituída pela metamorfose. (O macaco se torna homem conquistando novas posturas, posições, arranjos e proporções corporais: é uma metamorfose, não uma metáfora.) O tratamento em separado da expressão permite este procedimento literário: “enquanto a expressão, sua forma e sua deformação não forem consideradas por elas próprias, não se pode encontrar uma verdadeira saída, mesmo no nível dos conteúdos. Somente a expressão nos dá o procedimento”. A expressão é a primeira engrenagem a ser desmontada, é o manual de instruções que informa as regras de desmontagem dos agenciamentos. E o agenciamento “só funciona por e na sua própria desmontagem, [...] nasce dessa desmontagem”.38
Em O anti-Édipo, ao darem o nome de “fluxos desterritorializados”, isto é, sem qualidade ou natureza definidas, puras quantidades intensivas, ao que Hjelmslev chamava de “sentido”, Deleuze e Guattari explicam como a pressuposição recíproca é estabelecida a partir de uma conjunção desses fluxos, que são então capturados em uma axiomática. Tal conjunção define relativamente os fluxos (Hjelmslev diria “planos”) como de conteúdo e de expressão, forma as substâncias e constitui as figuras enquanto unidades mínimas, tanto no plano de expressão quanto no plano de conteúdo.39 Em Hjelmslev, é a função semiótica que estabelece a pressuposição recíproca entre seus functivos, a forma de conteúdo e a forma de expressão, que se definem em sua relação, conduzindo à formação de suas substâncias respectivas e, assim, à consolidação de todos os “estratos”: a forma de conteúdo, a forma de expressão, a substância de conteúdo e a substância de expressão40. Por isso Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, equiparam a função semiótica a uma função de estratificação, e a estratificação à axiomática. Detalham igualmente o estatuto da pressuposição recíproca como distinção real e isomorfia, ou seja, inserem na estratificação da língua hjelmsleviana as categorias medievais de distinção real e formal, e aquelas de igualdade e isomorfia, todas já utilizadas por Deleuze em sua leitura de Spinoza, donde o divertido epíteto dado a Hjelmslev de “geólogo dinamarquês spinozista”. 41
Deleuze estima que, uma vez que a substância em Spinoza é única, não dividida por seus atributos, a distinção entre os infinitos atributos não pode ser numérica, mas tão-somente formal. Os atributos são as formas atribuídas à substância única, ou pontos de vista internos à substância, percebida ora como substância extensa, ora como substância pensante etc. Embora não numérica, tal distinção formal é real, pois a distinção das formas existe na própria substância, e não apenas no entendimento que a percebe.42 Além disso, não há qualquer hierarquia ou conformidade entre essas formas, que são iguais, e tampouco relação causal ou determinação unidirecional, mas um mesmo princípio - isomorfismo -, que faz com que os elementos envolvidos em cada uma delas se relacionem, ou encadeiem, da mesma maneira. Eis o resumo da operação deleuzo-guattariana de aliança entre Hjelmslev e Spinoza: “Devemos combinar aqui todos os recursos da distinção real, da pressuposição recíproca e do relativismo generalizado”.43
A relação de pressuposição recíproca entre as formas de conteúdo e expressão justifica a recusa de Deleuze e Guattari quanto à redução, sugerida por Hjelmslev, do conteúdo ao significado e da expressão ao significante. A relação significante-significado assume diversas versões: arbitrária, necessária como a frente e o verso de uma folha, ora numa correspondência termo a termo, ora globalmente, ora de modo tão ambivalente que não seja mais possível distinguir significante e significado etc.44. Em nenhum caso se verifica a mesma modalidade de relação que entre formas de conteúdo e expressão. Por isso Deleuze e Guattari consideram que Hjelmslev rompe com o significante e o significado saussurianos e adotam as categorias do linguista para a sua própria lógica do agenciamento e dos estratos45.
[O]s estratos respondem à grade de Hjelmslev: articulação de conteúdo e articulação de expressão, o conteúdo e a expressão tendo, cada um por sua conta, forma e substância. Entre os dois, entre o conteúdo e a expressão, não há correspondência, nem relação causa-efeito, nem relação significado-significante: há distinção real, pressuposição recíproca e somente isomorfia.46
A grade hjelmsleviana é usada não apenas para a valência da expressão, mas também para a valência do conteúdo, conforme o princípio de isomorfia. Ademais, não se deve reduzir a valência da expressão à linguagem, pois há semióticas, ou regimes de signos, assignificantes, inclusive mais propícias à busca de uma saída; nem tampouco reduzir as expressões aos signos, pois há expressões assemióticas. Neste contexto, os signos recebem uma nova definição: “não são signos de algo, são signos de desterritorialização e de reterritorialização, marcam um certo limiar ultrapassado nesses movimentos”47. Pertence à natureza dos regimes de signos expressar as organizações de poder ou os agenciamentos, e à natureza das organizações de poder, operar as formalizações de conteúdo e de expressão48. O que torna urgente a questão de como escapar da estratificação.
É novamente a pressuposição recíproca que nos fornece uma pista. Desta vez, mobilizam-se conceitos do estoicismo para redefini-la, de modo a que ela inclua a passagem incessante de uma forma a outra, o revezamento dos segmentos, pontos de intervenção, de inserção, das expressões instantâneas nos conteúdos contínuos49. Em Lógica do sentido, Deleuze havia pensado a linguagem a partir da dupla causalidade do estoicismo: uma série causal dos corpos e uma série dos efeitos incorporais. Estes corpos, suas ações e paixões, suas misturas, seriam causas uns em relação aos outros, e os efeitos, acontecimentos incorporais que se expressam na linguagem e se atribuem aos corpos. Por exemplo, se um corpo corta outro, a ação do que corta é corpo, a paixão do que é cortado é corpo, a qualidade “cortado” também, mas o cortar como verbo no infinitivo é puro acontecimento incorporal, efeito expresso na linguagem e atribuído aos corpos, incidindo sobre eles. Os acontecimentos são esses efeitos incorporais, sentidos que têm uma face voltada para a linguagem e outra para os corpos, ao mesmo tempo, expressos das proposições e atributos dos corpos. (Note-se que o sentido aqui nada tem a ver com a definição que lhe é dada por Hjelmslev.) Tal concepção impede o fechamento da língua em um sistema próprio, já que o sentido põe em relação a língua e os corpos50. Conforme um exemplo de Mil Platôs, quando o sequestro de um avião é anunciado, os passageiros se tornam reféns, o avião, uma prisão, sem que nada se altere na série causal dos corpos51.
O legado estoico faz corresponder os corpos aos conteúdos, e os incorporais (acontecimentos, sentidos) às expressões. Já em Lógica do sentido, a expressão não era a própria linguagem, mas o elemento intensivo, não formado, genético e interno, a partir do qual se engendrava a linguagem52. Quando Deleuze e Guattari incluem corpos e incorporais, conteúdo e expressão, em um mesmo conceito de agenciamento, dão consistência à língua pensada como um sistema aberto, que varia e faz variar os corpos, por meio da pressuposição recíproca, que opera a conjugação de seus graus de desterritorialização.
Considerações finais
Os procedimentos com a expressão conduzidos por Kafka mostram como foge o sistema da língua, tão caro a Hjelmslev, quando variações se inserem em sua estratificação. Deleuze e Guattari estão interessados precisamente na diferença interna à língua (e ao agenciamento), em seu processo de desterritorialização. Não se satisfazem com as mudanças decorrentes da criação de signos a partir de figuras e segundo regras de construção previamente estabelecidas, da exploração dessa “reserva inesgotável”, substituindo a combinatória de possibilidades por uma criação de possíveis. A experimentação literária explora as condições genéticas de uma nova língua, uma língua estrangeira no cerne da língua materna, que impulsione a diferença interna da língua: não apenas rumo ao bilinguismo e ao multilinguismo, mas mesmo à música, ou ao silêncio, limites aos quais tende a língua em seu uso menor, intensivo. Com Kafka, Deleuze e Guattari trocam a estrutura da língua de Hjelmslev por um agenciamento coletivo de enunciação, por uma máquina expressiva:
Não nos encontramos, pois, diante de uma correspondência estrutural entre duas espécies de formas, formas de conteúdo e formas de expressão, mas diante de uma máquina de expressão capaz de desorganizar suas próprias formas, e de desorganizar as formas de conteúdo, para liberar puros conteúdos que se confundirão com as expressões numa mesma matéria intensa53.
Buscar uma saída aos poderes estabelecidos é acessar uma matéria intensa, não formada, dissolvendo as formas de conteúdo e de expressão em um mesmo plano de consistência. “Ao mesmo tempo a linguagem é empurrada por esse movimento que a faz tender aos seus próprios limites e os corpos, tomados no movimento da metamorfose de seu conteúdo, ou na exaustão que lhes faz atingir ou ultrapassar os limites de suas figuras”54. A dissolução das formas, contudo, não garante a liberdade: “não se trata de liberdade por oposição à submissão, mas somente de uma linha de fuga, ou antes de uma simples saída”, vocalizam simiescamente Deleuze e Guattari55. Escapar das formas traz o duplo risco de ser recapturado por formas ainda mais rígidas, ou mesmo de se tornar presa de “potências diabólicas que batem à porta”56. Por isso a experimentação precisa ser relançada e, a cada lance, conquistar uma consistência criadora. Dissolver as formas é uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir a coincidência entre desejo e criação, entre desejo e devir-revolucionário.
Referências
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KAFKA, F. Relatório para uma Academia. (RA) In: Um médico rural. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SAUSSURE, F. (1916) Cours de linguistique générale. (CLG) Paris: Payot, 2005.
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