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O potencial formativo da era axial: repensando a filosofia da educação à luz da tese de Karl Jaspers
Daiane Eccel
Daiane Eccel
O potencial formativo da era axial: repensando a filosofia da educação à luz da tese de Karl Jaspers
The formative potential of the axial age: rethinking the philosophy of education in the light of Karl Jaspers' thesis
Revista de Filosofia Aurora, vol. 37, e202531229, 2025
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia
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Resumo: A publicação da obra de Karl Jaspers, Origem e Meta da História, em 1949, inserido na discussão a respeito das filosofias da história comum ao seu tempo, consagra de forma sistemática a tese da era axial ou era do eixo. Seu potencial heurístico encontra-se indubitavelmente no fato de Jaspers ter voltado suas atenções para outras civilizações para além do mundo ocidental, entre o período do século VIII e II a.C. Ao fazê-lo, o autor reconhece que o nascimento de Cristo é o evento fundante do Ocidente, mas é apenas uma das narrativas possíveis e não a única. O esforço de Jaspers em investigar os ensinamentos dos grandes mestres da humanidade compõe seu interesse no tema e, por isso, estuda e analisa os pensamentos de Sócrates, Buda, Confúcio e Jesus. Este presente artigo se ocupa com as análises dos primeiros três grandes mestres realizadas por Jaspers, investigando o potencial delas para a filosofia da educação.

Palavras-chave: Filosofia da Educação, Karl Jaspers, Cosmopolitismo, Era axial.

Abstract: The publication of the book by Karl Jaspers, Origin and Goal of History, in 1949, as part of the discussion on the philosophies of history common to his time, systematically enshrined the thesis of the axial age. Its heuristic potential undoubtedly lies in the fact that Jaspers turned his attention to civilizations other than the Western world between the 8th and 2nd centuries BC. In doing so, the author recognizes that the birth of Christ is the founding event of the West, but it is only one of the possible narratives and not the only one. Jaspers' efforts to investigate the teachings of the great masters of humanity are part of his interest in the subject, which is why he studies and analyzes the thoughts of Socrates, Buddha, Confucius and Jesus. This article deals with analysis by Jaspers of the first three great masters, investigating their potential for the philosophy of education.

Keywords: Philosophy of Education, Karl Jaspers, Cosmopolitism, Axial age.

Carátula del artículo

Artigo científico

O potencial formativo da era axial: repensando a filosofia da educação à luz da tese de Karl Jaspers

The formative potential of the axial age: rethinking the philosophy of education in the light of Karl Jaspers' thesis

Daiane Eccel
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Revista de Filosofia Aurora, vol. 37, e202531229, 2025
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Received: 30 January 2024

Accepted: 08 December 2024

Published: 09 January 2025

Introdução

No texto Karl Jaspers: cidadão do mundo, publicado em Homens em tempos sombrios, Hannah Arendt (1906-1975) aponta para o caráter cosmopolita da filosofia de seu antigo orientador, Karl Jaspers (1883-1979). Ela o faz certamente considerando o fato de Jaspers ter ampliado seu olhar para além das fronteiras europeias ao elaborar seu escrito Origem e meta da história, publicado em 1949. O livro inserido na discussão a respeito das filosofias da história, comum ao seu tempo, consagra de forma sistemática a tese da era axial ou era do eixo. Karl Jaspers entende que:

Neste tempo se concentram fatos extraordinários. Na China vivem Confúcio e Lao-tsé, surgiram todas as direções da filosofia chinesa, meditam Mo-ti, Chuang-tsé, Lie-tsé e incontáveis outros. Na Índia surgiram os Upanishads, viveu Buda, se desenvolveram, como na China, todas as possibilidades filosóficas desde o ceticismo até o materialismo, desde a sofística até o niilismo. No Irã, Zaratustra ensinou a exigente visão de mundo da luta entre o bem e o mal. Na Palestina surgem os profetas, desde Elias, seguido por Isaías e Jeremias até o Deutero Isaías. A Grécia vê Homero, os filósofos - Parmênides, Heráclito, Platão - os trágicos Tucídides e Arquimedes. Tudo o que estes nomes apenas indicam cresceu durante estes poucos séculos quase simultaneamente na China, na Índia, no Ocidente, sem que soubessem uns dos outros (KJG, I/10, 2017, p. 17)1.

Tal tese recebe atenção por parte de pensadores contemporâneos, como é o caso do egiptólogo Jan Assmann, bem como do sociológico Shmuel Einsenstadt e dos filósofos Hans Jonas e Jürgen Habermas. É de particular interesse destes autores a ideia jasperiana de que as grandes civilizações mundiais encontram seu fundamento neste tempo específico, na era do eixo. Para Jan Assmann (2018) por exemplo, a tese da era axial se configura como um potente mito de fundação da modernidade científica ocidental, uma espécie de metanarrativa a la Jean-François Lyotard, colocada ao lado da interpretação freudiana do Édipo-rei, bem como da tese do desencantamento do mundo de Max Weber2. Seu potencial heurístico encontra-se indubitavelmente no fato de Jaspers ter voltado suas atenções para outras civilizações para além do mundo helênico e, portanto, para além do mundo ocidental, entre o período do século VIII e II a.C. Ao fazê-lo, Jaspers reconhece que o nascimento de Cristo é um evento fundante do Ocidente, mas é apenas uma das narrativas possíveis e não a única. Segundo Jeane Hersch:

foi sobretudo nos anos do ‘exílio em seu posto’, sob o nacional-socialismo, que se definiram, no espírito de Jaspers, as linhas de força de uma nova tarefa. Agora já não bastava ser europeu. Assim como a história dos homens de todo o planeta estava a ponto de se tornar uma mesma e única História universal, assim também a Filosofia, que se havia desenvolvido separadamente a partir de três grandes origens: Europa, China, Índia - não teria doravante mais que uma mesma e única história (Hersch, 1978, p. 48).

Karl Jaspers certamente não é o primeiro a se esforçar para olhar para além dos muros europeus. O século XIX já havia feito, mas à maneira de Hegel, centralizando um eixo normativo em torno do Ocidente. Mais tarde, Max Weber cumpre a mesma tarefa ainda que não com o intuito de olhar para o Oriente enquanto tal, mas como ferramenta para entender os processos do desenvolvimento da modernidade ocidental. Karl Jaspers olha para o além-mar e percebe que há um eixo que perpassa todas as demais grandes civilizações do período e que molda o tipo de homem “com o qual convivemos até hoje” (KJGI/15, p. 17). A origem do homem ocidental moderno, portanto, estaria na Grécia dos grandes filósofos que é contemporânea da China onde estavam Lao-Tsé e Confúcio, da Índia de Buda e de Israel onde se encontravam os grandes profetas. Zaratustra, um pouco anterior, na Pérsia, teria precisamente inaugurado o eixo comum guardado nestas civilizações. Este paralelismo temporal ganha contornos na medida em que Jaspers reitera a ideia de que não houve interferência significativa entre tais civilizações ou contato efetivo entre estes grandes pensadores. Todos, no entanto, são responsáveis pela modelagem da alma dos homens do seu tempo. Jaspers legitima todas as narrativas, coloca tais grandes civilizações lado a lado, cada uma com suas especificidades sem, no entanto, que uma se sobreponha a outra em termos normativos ou qualitativos.

Sem demorar-se na investigação histórica do período e sem realizar uma história comparada mais apurada, Jaspers põe na conta do mistério e de um tipo de “comunicação ilimitada” o paralelismo identificado3. No entanto, sua obra também se ocupa em apontar alguns elementos de cunho sociológico-político compartilhado por elas. Um deles é o fato de todas serem tomadas por crises ou declínio de forma que os filósofos, profetas, mestres que se desenvolveram no período tiveram que lidar com um mundo fora de ordem. Da miríade dos grandes pensadores da era axial, Jaspers escolheu quatro para tratar em Os grandes mestres da humanidade: Sócrates, Buda, Confúcio e Jesus, de 1957. Os três primeiros são contemporâneos e constituintes da era axial, ao posso que Jesus foi inserido, como nota Borges, “por causa da sua continuidade com os grandes profetas de Israel, mais ou menos contemporâneos de Confúcio na China, Buda na Índia, Zaratustra no Irã, os pré-socráticos, Sócrates, Platão e os trágicos na Grécia clássica” (Borges, 2018, p. 9).

Se ao considerar a era axial ou período do eixo como um marco para a fundamentação de grandes civilizações, Jaspers expande o olhar para fora dos limites europeus - ainda que o faça sempre como um europeu - o autor também olha para diferentes modelos antropológicos alimentados por diferentes concepções formativas. Tais concepções são pensadas e efetivadas pelas doutrinas e ações dos mestres teorizados por Jaspers. Ao considerar o seu próprio tempo, o contexto nacionalista na Alemanha das décadas de 30 e 40 do século XX e refutando tal situação política-espiritual, Jaspers olha para o passado e reconhece na tradição de pensamento dos grandes mestres as linhas formativas fundamentais das grandes civilizações. Pensando o presente, o autor recorre ao passado, mas certamente não com espírito saudosista, já que sempre se furtou de todo dogmatismo, seja de caráter confessional, político ou histórico. Reconhecia autoridade no passado, desde que tal autoridade não degenerasse em forças inautênticas, fundamentalistas e dogmáticas. O que denota o esforço jasperiano de olhar para os mestres do passado é o intuito de comunicar-se com eles, rompendo as barreiras do tempo e “intensificando a comunicação” (Hersch, 1978, p. 48).

Levando em conta o aspecto formativo das intervenções de tais mestres na Antiguidade, este artigo tem a intenção de ler seus ensinamentos pelos olhos de Jaspers. Obedecendo o critério temporal da Antiguidade, trataremos das investigações jasperianas sobre Sócrates, Buda e Confúcio, três dos quatro mestres abordados por Jaspers na edição portuguesa sobre os grandes mestres da humanidade, ressaltando seus aspectos de maestria em um contexto formativo4.

Em um momento no qual a filosofia da educação tem cada vez primado por um tipo de reflexão equânime, voltadas para a interculturalidade, na qual diferentes epistemologias ganham espaço e visibilidade, a tese de Jaspers pode oferecer ferramentas para ampliar as concepções de formação humana legitimando-as, sem precisar passar pelo crivo ocidental, ao mesmo tempo em que dialoga também com esta tradição. A tese de Jaspers não levanta bandeiras pós-coloniais ou decoloniais, tem suas próprias limitações na medida em que não inclui todas as civilizações na era do eixo, mas é uma clara reação ao contexto nacionalista enfrentado pelo autor na primeira metade do século XX e sugere a ampliação do nosso escopo filosófico-formativo.

Os grandes mestres e a metodologia jasperiana: a interlocução com a história da filosofia praticada por um não-historiador.

Na Antiguidade, o desenvolvimento filosófico é atrelado à figura dos grandes mestres. Jaspers percebeu precisamente este ponto ao se voltar para os grandes nomes do passado reconhecendo sua autoridade e o caminho que percorreram no processo de modelagem de almas. Para o campo da filosofia da educação, a abertura proporcionada por Jaspers permite que se olhe para o âmbito da maestria ela mesma, ou seja, para a própria atividade daquele que assume o papel de guia. Segundo Jaspers, havia algo por parte desses mestres, “que atuou sobre a atitude interior das pessoas ao longo de milênios [...] e estes homens mantém e visibilidade porque permanecem atuantes” (Jaspers, 2018, p. 209). Como, no entanto, Jaspers olha para os mestres do passado? Qual é o tipo de interlocução que ele estabelece com o passado? Em que medida é possível afirmar que ele não faz história da filosofia? A elucidação do procedimento metodológico se mostra importante pela própria justificativa da escolha do autor. Ao voltar as atenções para o cânone dessas três civilizações (helênica, indiana e chinesa) e apreciar os ensinamentos de Sócrates, Buda e Confúcio, poder-se-ia optar por historiadores da filosofia já consolidados pelos manuais de história das ideias pedagógicas que talvez ofereçam informações mais precisas sobre os métodos pedagógicos. Não se trata, no entanto, de elaborar um resumo histórico sobre cada um dos mestres do passado, como pode parecer ao leitor não familiarizado com a obra de Jaspers.

A partir da década de quarenta, o autor passa a fazer um grande esforço pela busca de uma filosofia mundial, o que compreende reconhecer e legitimar outras autoridades e tradições. Quando analisa Buda e Confúcio além de Sócrates, seu exercício está atrelado ao contexto de sua pesquisa sobre a era axial, através da qual se mostra surpreso pelo paralelismo encontrado e pela série de elementos em comum cultivada nas diferentes civilizações. A apreciação de Jaspers nunca será, portanto, uma volta ao passado a fim de encontrar apenas dados históricos. A respeito de sua obra sobre os grandes mestres da filosofia, escreve Schüssler: “Não se trata para Jaspers de uma enciclopédia, que apenas destaca a tradição, mas ao invés disso, uma história da filosofia que cresce com o filosofar” (Schüssler, 1995, p. 142) e ainda “uma história da filosofia como essa, trata essencialmente da unidade do pensamento e do ser, pois a verdade da filosofia é para Jaspers, um existencial” (Schüssler, 1995, p, 142). É por este motivo, que ao analisar os diferentes pensadores, o faz levando em consideração aspectos semelhantes entre eles, mas sem degenerar em uma mera comparação.

De Sócrates, aquele compõe a parte relativa à tradição de pensamento ocidental, Jaspers explora, sobretudo, o método5. Mais do que o conteúdo propriamente dito, a forma de diálogo praticada por Sócrates, importa a Jaspers. Seu potencial formativo corresponde também a um conceito fundamental na filosofia da Existenz do autor: a comunicação. Seu método estava em consonância com seu propósito: o de se dirigir a indivíduos e conduzir suas almas individualmente - já que estava vedada a possibilidade de cuidar da alma coletivamente. Isso liberta a maestria de Sócrates das amarras do status social, dos postos de poder e da aparência. Dialogava com todo aquele que tinha o direito de pisar em praça pública ou ginásio, mesmo que o diálogo fosse interrompido pela irritação provocada pela confutação praticada por Sócrates, ou seja, sua recorrente refutação aos argumentos contraditórios do interlocutor. Daí que Sócrates tinha muitos interlocutores, mas certamente menos discípulos. Em parte, a leitura de Jaspers sobre Sócrates é a leitura clássica traçada pela tradição ocidental: sua chave de compreensão para o pensamento socrático se encontra na figura do Sócrates educador, aquele que por meio do diálogo percorre um caminho junto com o discípulo fazendo com que ele chegue à verdade e à autonomia (Jaspers, 1981, p. 45). Segundo o autor:

O processo desenrolava-se do seguinte modo: descobria as dificuldades naquilo que era aparentemente óbvio, levava à confusão, obrigava a pensar, ensinava a busca, perguntava incessantemente e não se desviava da resposta, apoiado no saber fundamental que a verdade é aquilo que liga os homens (Jaspers, 2018, p. 26).

No entanto, na tarefa socrática de educação e modelagem das almas, Jaspers não encontrava em Socrátes um filósofo - “se filosofia for teoria, então Sócrates não é um filósofo” (Jaspers, 2018, p. 27). Sua existência tem substância, mas seu pensamento não tem conteúdo. Não pode tê-lo porque é ignorante. A guiança do mestre nem sempre é atrelada ao ensino de algo, como pressupôs, séculos depois, o movimento escolástico. Para Sócrates, nada havia a ser ensinado, assim também como para Buda. Não se tratava de conteúdos específicos, mas antes, de formas de vida, da escolha de maneiras de se viver. Jaspers entende a ignorância socrática como uma tonalidade fundamental na composição da substância de sua existência. É a ignorância que mobiliza o elemento da confiança na descoberta do discípulo. Tivesse Sócrates o saber acabado, pouco lhe restaria enquanto percurso pedagógico. Não o tendo, a confiança no fato de que o discípulo encontrará sua verdade por meio da descoberta e com ajuda de Deus, é o mote fundamental da prática socrática. Jaspers recorre a uma série de exemplos nos diálogos platônicos que a tradição frequentemente mobiliza para ilustrar o caráter educador de Sócrates, como passagens do Mênon e o célebre trecho sobre a maiêutica no Teeteto.

Se não havia por parte de Sócrates nenhum ensinamento positivo, já que predominava o não-saber, então que se confiasse nas prerrogativas da tradição instituída e consolidada pela polis. Neste sentido, a interpretação jasperiana não destaca o Sócrates que desafia o status quo, mas ao contrário, nota o que chama de inocência socrática. A atitude inocente que confia naquilo que está arraigado e imbuído no espírito da polis. A própria alma socrática está plena do espírito dela: “Onde o Juízo Próprio não produz qualquer decisão, é conveniente seguir a fé no deus dos antepassados as leis do Estado” (Jaspers, 2018, p. 31). Sócrates não era um cidadão do mundo, era filho da polis. Jaspers o coloca em oposição a Alcebíades que fazia do “Estado um instrumento da Sua vontade pessoal de poder” (Jaspers, 2018, p. 31). Junto com a tradição da polis que lhe dava determinados direcionamentos e proposições por meio das leis e do culto aos deuses, Sócrates confiava na sua missão divina e ouvia o daimon que desde muito cedo lhe acompanhava intervindo, sobretudo no seu não agir, não oferecendo-lhe nada além do que uma voz que lhe advertia com um “não” em situações concretas.

Tal posição de Jaspers sobre a relação de Sócrates com a polis e com o daimon, corrobora sua interpretação do julgamento e morte de Sócrates. Sócrates morreu obedecendo as leis da cidade e evitando uma defesa adequada, ainda que se tratasse de um assassinato jurídico regido pelas leis do governo. Jaspers reitera a interpretação de Sócrates como mártir ao invés de vítima, assim como critica a leitura hegeliana da história que enfatiza a ideia de uma visão trágica por trás da condenação socrática. Não se trata da colisão da afirmação de duas substâncias diferentes, a da polis de um lado e a Sócrates por outro que tragicamente se confrontam. Essa seria uma forma equivocada de tentar uma reconciliação com relação à condenação socrática, que segundo Jaspers só pode acontecer “através dele próprio” (Jaspers, 2018, p. 39). Sócrates “não transpôs nenhuma das pontes que lhe foram construídas” (Jaspers, 2018, p. 38), ou seja, não aceitou propostas de fuga, não se rebelou, não se defendeu. Pelo contrário, não se ressentiu porque segundo seu entendimento do processo, não fazia sentido fazê-lo. Uma reconciliação com sua condenação só faz sentido a partir de uma perspectiva histórica a posteriori. Mas não faz para o próprio Sócrates que esteve em consonância consigo mesmo durante toda sua existência, incluindo sua morte. O daimon que lhe acompanhava mais de forma impeditiva do que necessariamente propositiva, que em outros momentos o impediu de se aproximar de alguns discípulos e em outros de participar ativamente da polis, não o impediu de aceitar ataraxicamente sua condenação. A forma como sua condenação se deu é fator decisivo para a permanência da figura socrática como mártir ao longo da história - ainda que isso claramente aponte para a leitura da tradição cristã. Mais do que a presença imorredoura de um Sócrates histórico, importa a Jaspers observar o aspecto permanente do legado socrático sob o ponto de vista do pensamento. Seu aspecto mais fundamental parece ser o fato de que o pensamento tornou-se pensável depois de Sócrates, ainda que sem definição. Sócrates não permite que seja conservada a ingenuidade de aceitar o pensamento enquanto técnica e permanecer refugiado neste tipo de segurança. O filósofo leva ao desenvolvimento de técnicas de pensamento como é o próprio caso da lógica, mas não o reduz a isso. Antes, segundo Jaspers, Sócrates elabora uma espécie de concatenação entre o Ser disposto nas teorias pré-socráticas e o saber reflexivo da sofística de forma que ele não se torne nem saber ingênuo sobre a natureza e nem mera técnica sofística. Ele “liberta” o pensamento refletindo sobre ele, mas negando-se a defini-lo. Ao fazê-lo, furta-se de qualquer doutrina escrita e a questão permanece aberta, mas reiteradamente presente. É por isso, então, que Jaspers afirma que “nenhum filosofar é hoje possível sem Sócrates, ainda que ele apenas seja perceptível como um pálido clarão de um passado remoto! O modo como cada um vivencia Sócrates atua como um traço fundamental do seu pensamento” (Jaspers, 2018, p. 54).

Além das considerações sobre Sócrates, Jaspers considera a Índia e se ocupa com o pensamento de Buda. Ao descrever a vida do mestre por meio das narrativas criadas pela tradição budista, o autor entende que ela está inseparada da forma como viveu Buda - ao menos considerando o momento da conversão de Gautama e seu percurso até a iluminação e transformação em Buda como fundante de uma tradição. Por meio da pesquisa do cânone budista e de obras de autores alemães, Jaspers segue com seu projeto de uma filosofia além-mar e percorre os caminhos da doutrina em pauta. Descreve em poucas palavras a percepção de Buda no ato da iluminação depois de ter se deparado com o que Jaspers chama de fatos essenciais da existência: a doença a velhice e a morte. Sobre a iluminação, afirma:

Esta irrupção permitiu-lhe ver claramente sua concatenação do mundo: o que existe, por que existe, como os seres são tragados na cega sede da vida pelos caminhos errados da alma, nos incessantes renascimentos da infinita peregrinação das almas - o que é o sofrimento, de onde provém, como pode ser superado. (Jaspers, 2028, p. 64).

Passado o período do isolamento e solidão, do cultivo da autossuficiência, Buda inicia seus ensinamentos por meio de uma “linguagem mais acessível através de conferências pedagógicas narrativas, alegorias, aforismos - ouvimos falar de diálogos de muitas cenas e situações de conversões” (Jaspers, 2018, p. 66), formou séquitos e institucionalizou ordens monásticas. Jaspers assinala para as diferentes formas de filosofia contemporâneas a Buda e como ele circulava entre elas influenciado pelas técnicas de meditação já presentes na tradição hinduísta, assim como a ruptura com alguns elementos clássicos. Tal aspecto é importante porque Buda não desenvolve sua espiritualidade baseada nas formas clássicas ocidentais de filosofia cujo entendimento se dá pelo domínio da lógica. Antes, o faz levando em conta as transformações do domínio da consciência por meio da meditação. O pensamento racional não é descartado e nem desnecessário, mas é superado nos exercícios meditativos que rumam ao encontro do suprassensível através do desenvolvimento de camadas superiores da consciência. Quando a consciência atinge tais níveis superando o âmbito racional, ela passa, no entanto, a precisar novamente dele porque a experiência necessita ser comunicada. Segundo Jaspers: “A relação dos conteúdos dos níveis de meditação com os pensamentos inteligíveis na consciência normal, ou a relação das experiências de operações num estado de consciência com as experiências de operações no pensado, não é equívoca” (Jaspers, 2018, p. 72). Embora a meditação seja um exercício fundamental, a forma de vida budista não se resume a ela. O caminho prevê a purificação interior e a salvação através do desenvolvimento de um ethos, de uma perfeição moral no mundo. O conhecimento da verdade é fundamental porque ele - talvez aqui com uma certa semelhança com Sócrates - liberta. Jaspers comenta, então, a doutrina enunciada de Buda e suas relações com o entendimento racional. Segundo ele, a doutrina se revela com um “perceptível prazer pelos conceitos pelas abstrações, pelas enumerações, pelas combinações, que se inscreve inteiramente na tradição filosófica indiana e dela se alimenta” (Jaspers, 2018, p. 75). A partir de tal doutrina, Jaspers se esforça por esclarecer os elementos fundamentais do budismo por meio das ideias do sofrimento, da fórmula causal, da negação do eu, do fluxo do devir, do conhecimento, do Nirvana e da salvação.

O sofrimento está atrelado à ignorância. Na medida em que se toma consciência a respeito do sofrimento universal e, portanto, se conhece a cadeia causal6 que desencadeia toda a sequência, a ignorância é superada pelo conhecimento que liberta. Segundo o autor:

O conhecimento da sequência das causas e da causa última consegue exorcizar todo este terrível espectro. Se a ignorância for superada, seguir-se à, então, a superação da sequência causal constituída a partir da ignorância, na sequência serial das articulações (Jaspers, 2018, p. 78).

A pergunta que se segue aqui é: quem é o eu que deve conhecer? Há um ser que existe e ele corresponde à ideia do eu? Ainda que haja um “eu”, não é acessível em sua autenticidade. Ao invés da descrição de um eu, há um composto formado pela corporalidade, sensação e percepção, pelas forças criadoras inconscientes e a própria consciência. Os elementos são frutos de uma sequência, mas se desfazem depois da morte, restando apenas o ciclo quase ininterrupto do karma. É possível que as especulações sobre o eu, denotem a transitoriedade dele. O eu-próprio pode ser ilusório no budismo, segundo Jaspers, porque tudo está reduzido ao eterno devir. O constante devir aponta para relação ser e não ser. Essa relação que é dicotômica, deve ser superada pela iluminação trazida pelo conhecimento advindo de um elevado nível de meditação. Por ela se atinge um grau de consciência de ser e consciência de si, que conduz, por sua vez, à visão do todo, ao entendimento do samsara, de todos os ciclos de reencarnação. Tal superação da dicotomia entre ser e não ser se dá pelo Nirvana, já que ali predomina o nada ao invés de qualquer relação: não há ser ou não ser, nem discurso, nem questionamento. O ciclo do samsara se encerra e o sofrimento já não é.

Ainda inserido na tradição oriental, no que diz respeito a Confúcio, Jaspers opera da mesma forma como havia feito com Buda: esforça-se por tentar entender o pensamento de Confúcio por ele mesmo, ainda que haja vários elementos em comum com a filosofia grega. Coleta bibliografia das fontes primárias, sobretudo dos Analectos de Confúcio (Lun-Yü), além de consultar referências secundárias. Em Confúcio, Jaspers encontra um pensador que se ancora na tradição do passado, que enxerga naqueles que vieram antes dele uma autoridade com repertório suficiente para modelagem interior das almas. Confúcio compartilha com os demais grandes mestres da humanidade a preocupação com a formação moral, importando-lhe, sobretudo o cultivo de uma alma cujo ideal formativo é o da figura do nobre. A postura moral do nobre é aquela que se fortalece e se cria a partir de um processo de autoeducação. Por ele, se chega ao cultivo da dignidade interior. Auto educar-se aqui, significa percorrer o caminho do Céu em busca do Uno, isto é, buscar as verdades que não necessariamente se dão no sentido metafísico7. Jaspers cita o cultivo dos hábitos (Li) e o estudo da música como elementos fundamentais do cultivo de si. Sobre o nobre na concepção de Confúcio, explica Jaspers: “as ideias de um homem superior fundem-se com a pessoa daquele que se encontra no topo da hierarquia social, o nobre de nascimento une-se ao nobre de essência, o comportamento do gentleman une-se à condição de sábio” (Jaspers, 2018, p. 124). O nobre se encontra em uma espécie de tipologia dos caracteres exposta por Jaspers em sua interpretação confuciana. O santo, o nobre, aquele que persiste diante das dificuldades e o menos resiliente são os tipos. O nobre expressa o sentido de realização do Yen, a humanidade propriamente dita, que precisa se cultivar. Em parte, o Yen é o universal porque é a essência do ser-humano expressa no desenvolvimento de sua moralidade e na sua comunicação com os demais. E em parte ele se manifesta nos particulares “na piedade, na sabedoria e na aprendizagem e na justiça” (Jaspers, 2018, p. 128). Pela autoformação, encontra sua plena realização na mediania, o “intermédio entre os extremos” (Jaspers, 2018, p. 129).

O caráter de maestria confuciano é destacado por Jaspers precisamente ao tratar da formação moral: como a alma é modelada por hábitos e pela música, a escola e o processo de ensino-aprendizagem que se dá com o mestre e se realiza pela praxis é absolutamente fundamental. Daí decorre o fato de Jaspers destacar diálogos entre Confúcio e seus discípulos conforme descritos nos Analectos.

Enquanto conselheiro da realeza, Confúcio é um homem de Estado e educa seus discípulos também para o serem. Isso se torna claro quando, ao apelar para a ideia de natureza, apela também à ideia de ordem, fundamental para a manutenção do Estado. A ordem se baseia em três princípios basilares expostos por Jaspers: o primeiro se assemelha à regra de ouro, desaconselhando que se faça ao outro aquilo que não se deseja para si mesmo. O segundo reitera a nobreza de espírito daqueles que ocupam os altos postos de poder e reforça o princípio de que a autoridade é fundamental para que se mantenha a ordem. O último afirma a sabedoria quanto a uma condução inicial das questões feitas pelo homem de Estado: é preciso estar atento para agir naquilo que se encontra em estágio de germinação ao invés de intervir no meio do percurso.

Para além do esforço na compreensão da fonte primária de Confúcio, Jaspers, da mesma forma que havia procedido com Sócrates e Buda, analisa também a recepção e o desdobramento da filosofia confuciana ao longo da tradição chinesa e explora, ainda que brevemente, suas relações com Lao-Tsé. Nesta empreitada, reconhece a limitação das fontes históricas, bem como refuta críticas posteriormente recebidas por Confúcio a respeito de seu suposto conservadorismo, pois apesar de ancorar-se nos pensadores anteriores, “Confúcio queria agir no sentido da renovação” (Jaspers, 2018, p. 111).

Considerações gerais de Jaspers a respeito dos mestres da humanidade: a justificativa da grandeza e perenidade

No trabalho de 1949, Origem e meta da história, há um esforço para tentar compreender o paralelismo histórico para além da tese do acaso, analisando também elementos de cunho histórico-sociológico. Ainda assim, Jaspers atribui o paralelismo a alguns elementos que não são completamente demonstráveis quando, por exemplo, trata da ideia de comunicação ilimitada entre as civilizações axiais. A investigação sobre as doutrinas e permanência dos grandes mestres está em consonância com o próprio entendimento do autor sobre a era axial, bem como da pretensão jasperiana a respeito e uma filosofia mundial. Jaspers enfatiza a necessidade de voltar-se à origem e investigar o cerne do desenvolvimento de suas atuações, mantendo-se atento aos potenciais desvios ou interpretações equivocadas pelos seus sucessores, críticos e historiadores. Depois de tratar das questões metodológicas e justificar a escolha dos grandes mestres utilizando o critério da permanência deles no tempo, o autor investiga elementos comuns em todos e os analisa em perspectiva. As peças soltas do texto tomam uma forma mais definida quando, a partir da análise do método de interpretação, Jaspers investiga a grandeza dos quatro (que inclui Jesus na análise).

Ao fazê-lo, assume que apesar de considerar a análise crítica das doutrinas de cada um deles legadas pela tradição, é preciso enxergar um pouco além: “como em todas as épocas, também é tarefa nossa ver os mestres da humanidade como retratos reais, mas sob condições novas e diferentes” (Jaspers, 2018, p. 207). Quando se pergunta a respeito de elementos originários relacionados à grandeza dos nomes em questão, Jaspers descarta a tese do acaso e coloca no lugar dela as habilidades de cada um dos quatro, além das circunstâncias sociológicas. O autor analisa alguns aspectos neste sentido, ainda que de forma concisa. Explora elementos vinculados à classe social: Buda pertencia à aristocracia, enquanto os demais pertenciam ao povo, mas todos se encontravam profundamente inseridos em uma comunidade. Objetivamente, Jaspers também conclui acerca do gênero: todos homens ligados aos seus discípulos.

Os quatro também partilhavam de um caráter ligado a uma vocação ou a um chamado divino, já que se sentiam convidados a cumprir uma espécie de missão - ainda que não fossem profetas. Nenhum deles, no entanto, escreve manuais ou é adepto a grandes sistematizações, mas incitam formas de transformação de vida sendo cada um os próprios iniciadores e protagonistas de tais transformações e modos próprios de vida. Segundo Jaspers, tal transformação, “é em Sócrates a progressão através do pensamento, em Buda a meditação e o correspondente modo de vida, em Confúcio, a educação, que é mais do que a mera aprendizagem” (Jaspers, 2018, p. 214).

A isto se relaciona diretamente mensagem transmitida por meio do ensino, que novamente é uma característica em comum: trata-se de “um agir reflexivo interior [de como] o mais íntimo do espírito do outro poderá ser atingido” (Jaspers, 2018, p. 220). Não se trata de um conteúdo específico e nem de um saber erudito. Foge também de especulações metafísicas esvaziadas, enraizando-se antes, na própria experiência do pensar e de uma atitude interior que se manifesta no mundo.

Por meio disso, Jaspers analisa a relação que eles estabelecem com o mundo, bem como com a morte e o com o sofrimento compartilhada com todos, mas vivenciadas de maneira distinta. Todos compartilham uma concepção da existência de um suprassensível ou ao menos de uma substância para o além do físico - sem necessariamente abdicar deste mundo8. Sócrates é aterrado ao mundo e seu caminho se faz nele, superando-o em parte, por meio da renúncia ao tudo saber, mas não o negando. Buda, por sua vez, entende que apenas pela meditação e profundo isolamento não é possível chegar à iluminação e que o mundo e suas relações adquirem um caráter necessário ainda que o sofrimento deveria ser superado no Nirvana. Confúcio, segundo Jaspers, prevê um processo de transformação no interior do próprio mundo ao considerar o processo educativo como aquele atuante na formação de uma alma que deveria se tornar nobre. O autor resume a relação dos grandes mestres afirmando que

Sócrates atua no mundo numa comunicação livre não planejada, sem escola ou instituição. Buda funda as comunidades de monges para, sob a condição prévia da concretização de um ethos absoluto, abrir o caminho de cada um para o nirvana, mas através de monges que atingiram o objetivo, de modo a aproveitar a existência fáctica, que prossegue ainda durante algum tempo, para o ensino do saber libertador a todos os suscetíveis de por ele serem atingidos. Confúcio funda uma escola para, através da educação de homem de Estado, com uma matriz moral, reconduzir o mundo até à sua ordem autêntica (Jaspers, 2018, p. 220).

Com sua escolha e análise dos mestres da humanidade, Jaspers chama à tradição retomando a categoria da maestria, do guia, do condutor de almas. Esta é conservada pela tradição pedagógica, que considera o professor também responsável pela formação das virtudes, mas apagada cotidianamente quando se reduz o ensino da escola à ensinabilidade de apenas conteúdos formais ou técnicos. A própria tradição ocidental reconhece tal dimensão empobrecedora do ensino por meio das críticas traçadas desde Montaigne, se estendendo a Rousseau, Nietzsche e adentrando no século XX com Paulo Freire. Jaspers retoma a dimensão humanística pelo sentido da maestria assinalado na obra em questão. Em parte, é possível afirmar que Jaspers se insere em um tipo de tradição que entende o papel da formação humana vinculado ao desenvolvimento de uma forma de vida com vistas ao melhoramento moral, que neste caso é conduzida por todos estes mestres. Em última instância, todos compartilham a preocupação com uma formação ligado a um ideal de vida boa segundo um tipo de ética. Biograficamente a filosofia é, para Jaspers, um tipo de vida, uma escolha e experiência. Ao tratar dos mestres da era axial, assim como Jesus, Jaspers se coloca no papel de aprendiz - aquele que filosofa como forma de vida e que, portanto, nunca está pronto mas está em constante diálogo com a tradição por meio do filosofar. Da mesma forma, coloca-se também como professor que didaticamente frequenta os grandes mestres e se dispõe à escrita de um livro que alcance todos.

Considerações finais: alcance e limitações da filosofia jasperiana a respeito de uma filosofia do mundo.

Em seu livro Achenzeit: eine Archeologie der Moderne, de 2018, Jan Assmann defende a tese que afirma a força da era axial como um mito fundador da modernidade ocidental. Seu valor de veracidade fica comprometido na mesma medida em que se fortalece como uma das narrativas ocidentais da origem das grandes civilizações. Diferentes de outras narrativas que apontam uma espécie de milagre grego como fundamento de uma filosofia com caráter de alcance universal, Jaspers olha para outras fontes e as valida no seu próprio interior. Na Alemanha nacionalista do seu tempo se inclina rumo a um ideal cosmopolita como forma de resistência e como uma espécie de crítica ao modo de filosofia da história instalado desde Hegel. Suas considerações sobre o que ele mesmo chama de grandes mestres da humanidade não podem ser lidas de forma separada de sua tese sobre a era axial. No primeiro volume, o único grande mestre que permanece fora do período em questão é Jesus, mas todos os outros três são marcos temporais e geográficos da era do eixo.

Quando Jaspers se esforça por apreciar os preceitos individuais de Sócrates, Buda e Confúcio evitando comparações apressadas entre eles e alertando para parcialidade da crítica científica a posteriori, cumpre a tarefa que se propõe de olhar para a era axial e seu potencial formador por ela mesma. O autor também evita comparações tomando como base autores da filosofia ocidental como às vezes é comum no exercício da literatura comparada. A apreciação jasperiana de Buda e Confúcio não está atrelada a um padrão normativo ocidental, mas diferente disso, os preceitos de ambos são apreciados por eles mesmos. A abertura proporcionada por Jaspers aponta para a reabertura de um caminho que considera uma perspectiva formativa humanística. Para além dos quatro grandes mestres presentes neste volume, Jaspers expande o cânone tanto quando trata do conceito de era axial considerando também Zaratustra, Lao Tsé e os grandes profetas, como quando, na obra Aus der Ursprung denkender Metaphisiker, trata de Nagarjuna, ícone da filosofia budista indiana.

A apreciação de Jaspers encontra, porém, limitações que devem ser apontadas tanto do ponto de vista mais amplo da era axial como da análise que faz dos mestres da humanidade.

No que diz respeito à era axial, Jan Assmann assinala que parte das grandes civilizações permanece excluída da classificação de Jaspers, como é o caso do próprio Egito, por exemplo. Estendendo a crítica de Assmann, talvez o mesmo pudesse ser dito sobre outras civilizações, como é o caso das ameríndias. Em todas essas situações seria preciso observar os critérios elencados por Jaspers para as civilizações axiais. Ainda neste sentido vale também perguntar se as civilizações do eixo obedecem a um caráter universal, ou seja, se os elementos desenvolvidos por elas caberiam também naquelas não inclusas e se tais não inclusas não poderiam lhe acrescentar algo. O que se põe em xeque com tal questionamento é o real caráter de universalismo da tese, ainda que, como afirma Assmann, se trata muito mais de uma construção retrospectiva do que uma verdadeira época histórica.

Ainda, no entanto, que o estudo de Jaspers apresente limitações sob o ponto de vista de uma filosofia cosmopolita ou de uma filosofia do mundo e não tenha se completado, seu potencial e seu papel em termos de uma educação humanística são, de fato, relevantes e podem servir como elemento bibliográfico consistente na tarefa fundamental de expansão dos currículos que lidam com a formação humana no âmbito filosófico.

Supplementary material
Referências
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
ASSMANN, Jan. Achsenzeit: eine Archäologie der Moderne. C.H. Beck, 2018.
HERSCH, Jeanne. Karl Jaspers. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978.
JASPERS, Karl. Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. Berlim: Schwabe, [KJG I/10], 2017.
JASPERS, Karl. Os mestres da humanidade: Sócrates, Buda, Confúcio, Jesus. Lisboa: Edições 70, 2018.
SCHÜSSLER, Werner. Jaspers zur Einführung. Hamburg: Junius Verlag, 1995.
Notes
Notes
1 A referência indicada como KJG, I/10 (Origem e meta da história) refere-se ao volume 10 da parte I da Karl Jaspers Gesamtausgabe - a obra completa de Karl Jaspers que vem sendo paulatinamente publicada pela Schwabe Verlag. Para as citações de Origem e meta da história, utilizo essa versão alemã KJGI/10 (Vom Ursprung und Ziel der Geschichte) organizada por Kurt Salamun. Para as referências de Os mestres da humanidade, utilizo a tradução portuguesa publicada pela Edições 70 com a tradução de Jorge Telles de Menezes. Para conferência, o correspondente dela no original alemão é a KJGI/15.1 (Die grossen Philosophen), organizada por Dirk Fonfara. A parte correspondente aos grandes mestres da humanidade encontra-se na primeira parte de KJGI/15.1 sob o título Die Massgebenden Menschen. Esse tipo de referência é sugestão da própria Karl Jaspers Gesamtausgabe.
2 Há apreciações críticas acerca das questões da era axial de Karl Jaspers, que não serão discutidas neste artigo em função da limitação de espaço. Aleida Assmann e Jan Assmann compõem nomes importantes na discussão. Aleida publica o artigo Jaspers’ Achsenzeit, oder: Vom Glück und Elend der Zentralperspektive in der Geschichte, em 1989 e crítica as prentensões humanísticas de Jaspers, afirmando que ele não consegue superar o eurocentrismo já presente na filosofia da história do próprio autor. Em 2018, Jan Assmann publica o livro Achsenzeit: eine Archäologie der Moderne, seguindo com a discussão e reiterando os posicionamentos de sua esposa.
3 A respeito do conceito “comunicabilidade universal” de Jaspers, Arendt escreve: “Abre-se à força a couraça da autoridade tradicional, e os grandes conteúdos do passado são livre e ‘jocosamente’ postos em comunicação entre si, na experiência de se comunicarem com o filosofar vivo presente. Nessa comunicação universal, que se mantém reunida pela experiência existencial do filósofo presente, todos os conteúdos metafísicos dogmáticos se dissolvem em processos e correntes de pensamento que, devido à sua relevância para o meu existir e filosofar presentes, deixam seu lugar histórico definido na cadeia cronológica e entram num âmbito do espírito onde todos são contemporâneos” (Arendt, 2003, p. 78).
4 Jesus Cristo permanecerá fora do nosso escopo pelo critério temporal. A publicação em português contempla o volume 1 da grande obra de Jaspers sobre os grandes filósofos. Nota-se que na tipologia jasperiana dos grandes mestres, também não se encontram considerações sobre Zoroastra e os profetas de Israel - todos incluídos no era axial ou no período do eixo. No entanto, tais nomes aparecem na obra Aus der Ursprung denkender Metaphisiker.
5 Isso também aparece no texto referente a Sócrates, bastante resumido, presente no livro Was ist Erziehung? Ein Lesebuch (o que é a Educação?), publicado em 1977.
6 A cadeia é causal é descrita da seguinte forma: “Da ignorância surgem as configurações; das configurações surge a consciência; da consciência surgem os nomes e a corporalidade; dos nomes e da corporalidade surgem as seis áreas dos sentidos; das seis áreas dos sentidos surge o contato; do contato surge a sensação; da sensação surge a sede; da sede surge o agarrar; do agarrar surge o devir; do devir surge o nascimento; do nascimento surge a velhice e a morte, a dor e o queixume, a aflição e o desespero (Jaspers, 2018, p. 77)”
7 A respeito da relação entre Confúcio e os saberes metafísicos, Jaspers explica: “as coisas últimas nunca se tornam um tema principal para Confúcio. Este tem pudor em falar nos limites. [...] O decisivo é [...] a impossibilidade de falar objetivamente daquilo que nunca será objeto de um modo apropriado. Daí a defesa de Confúcio contra as palavras e frases, e contra toda a imediatez, quando se trata de questões metafísicas. [...] Devemos reconhecer: em Confúcio é quase imperceptível o impulso para o ilimitado, para o incógnito, o ardente questionar dos grandes metafísicos, sentindo-se antes a presença das coisas últimas no piedoso exercício das tradições e das réplicas que indicam algo em situações aflitivas, sem expressamente dizerem muito” (Jaspers, 2018. p. 137).
8 Jaspers nota que essa é uma característica própria de Jesus.
Como citar: ECCEL, Daiane. O potencial formativo da era axial: repensando a filosofia da educação à luz da tese de Karl Jaspers. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202531229, 2025. DOI: https://doi.org/10.1590/2965-1557.037.e202531229
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