Artigo científico
Paul Ricœur, Personalismo e o Pacto Educativo Global1
Paul Ricœur, Personalism and the Global Compact on Education
Paul Ricœur, Personalismo e o Pacto Educativo Global1
Revista de Filosofia Aurora, vol. 37, e202531804, 2025
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Editora PUCPRESS - Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Received: 30 June 2024
Accepted: 03 November 2024
Published: 07 January 2025
Resumo: Lançado em setembro de 2019, o Pacto Educativo Global indica como o primeiro de seus sete compromissos a ‘centralidade da pessoa’. Em outras palavras, o pacto assume o Personalismo como fundamentação filosófico-antropológica da teorização de uma formação integral do homem, isto é, de uma paideia. Dito isso, o artigo se propõe, em primeiro lugar, a apresentar a filosofia personalista partindo da leitura de Paul Ricœur presente na obra Histoire et verité (1955) para, finalmente, se voltar à aplicabilidade do personalismo no contexto socioeducativo.
Palavras-chave: Ricœur, Mounier, Personalismo, Existencialismo, Educação.
Abstract: Launched september 2019, the Global Compact on Education indicates as the first of its seven commitments the ‘centrality of the person’. In other words, the pact assumes Personalism as its philosophical anthropology when it comes to the theorization of men’s cultural formation, that is, its paideia. With that first the paper presents personalism through Ricœur’s reading in Histoire et verité (1955) then it deals with personalism’s applicability in a socio educational context.
Keywords: Ricœur, Mounier, Personalism, Existentialism, Education.
Introdução
Em 2019 o Papa Francisco lança as bases para o Pacto Educativo Global2 a fim de promover os fundamentos de uma visão pedagógica pautada na antropologia filosófica personalista. Ao elencar os sete compromissos do PEG, é notório e salutar que o primeiro deles seja o imperativo de Colocar a Pessoa no Centro (Vademecum, 2020, p. 9).3 Ao dar ênfase ao conceito de pessoa, o PEG se alinha a uma vertente filosófica que tomou forma, especialmente, na França da primeira metade do século XX. De modo mais preciso, o personalismo é um tipo de existencialismo cristão que ganhou contornos mais definidos com a obra de Emmanuel Mounier.4 Antes de Mounier, é claro, Gabriel Marcel já havia se estabelecido na cena intelectual e, como veremos adiante, o próprio Mounier se vê apenas como continuador de algo presente não apenas em Marcel como igualmente em Blaise Pascal, Karl Jaspers, Max Scheler e Søren Kierkegaard. De todo modo, é inegável a importância de Mounier como teórico definidor do personalismo5, especialmente quando se leva em conta sua constante associação a nomes como Peter Maurin, Jacques Maritain, Dorothy Day6 e Karol Wojtyla.7 Porém, é de fato viável a aplicação do personalismo em projetos pedagógicos como o PEG? O que significa, no contexto de uma filosofia da educação, assumir a centralidade da pessoa? Além disso, nos interessa aqui igualmente o seguinte questionamento: o personalismo é uma filosofia sui generis ou ele deve ser mais bem compreendido, como dissemos, enquanto um tipo de existencialismo cristão?
Além de colocar a pessoa como centro deste projeto de renovação da educação, o PEG possui mais seis compromissos. Enumeremos, pois, os sete:
1. colocar a pessoa no centro;
2. ouvir as gerações mais novas;
3. promover a mulher;
4. responsabilizar a família;
5. se abrir à acolhida;
6. renovar a economia e a política;
7. cuidar da casa comum.
Apesar de cada compromisso indicar sua respectiva especificidade, é possível-a partir da leitura do Vademecum e das encíclicas de Bergoglio-compreender que o norte do PEG é a construção de uma ecologia integral. Por ecologia integral entende-se o esforço de, partindo da pessoa como centro, assumir a interconectividade que perpassa a pessoa, a família, a comunidade internacional de países e, enfim, a relação da espécie humana com o planeta, isto é, com nossa ‘casa comum’. Em outras palavras, o PEG parte da pessoa enquanto unidade para poder escutar as gerações vindouras; trazer à tona o papel ainda subalterno da mulher; reforçar que a família é a unidade essencial de toda e qualquer sociedade; defender o valor da igualdade ao acolher o marginalizado; compreender que o estado atual da economia e da política é insuficiente para resguardar a dignidade da pessoa humana; e, finalmente, assumir o compromisso de adotar um novo tipo de relação com o meio ambiente. Em suma, a centralidade da pessoa nos leva à ecologia integral e, como disse o papa Francisco na ocasião de lançamento do PEG, “Num percurso de ecologia integral, coloca-se no centro o valor próprio de cada criatura, em relação com as pessoas e com a realidade que a rodeia, e propõe-se um estilo de vida que rejeite a cultura do descarte” (Vademecum, 2020, p. 5). De modo mais preciso, o Papa fala na Laudato si’ sobre uma “cidadania ecológica” e que “A doação de si mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas” (Laudato si’, n. 211).8
Este ‘estilo de vida’ ou ‘cidadania ecológica’ que Franciscus propõe com o PEG é uma forma de tentar concretizar as ideias reunidas nas três encíclicas (especialmente as duas últimas) apresentadas durante seu pontificado, a saber, Lumen Fidei, Laudato Si’ e Fratelli Tutti. Reunidas, as três encíclicas apontam para uma ecologia integral que, com o PEG, visa encontrar uma aplicabilidade socioeducativa. Entretanto, no próprio documento norteador do PEG, o Vademecum, há uma confissão acerca de um possível problema programático no pacto.
O Santo Padre propõe através desta Mensagem um compromisso por um Pacto Educativo Global. Não propõe uma ação educativa, tampouco convida a elaborar um programa, mas concentra-se num pacto […] A partir dessa base, o Papa convida a procurar companheiros de viagem no caminho da educação, mais que propor programas a seguir (Vademecum, 2020, p. 27).
Pode-se argumentar que, ao contrário de uma fraqueza, a ausência de programas ou ações específicas é precisamente o ponto no qual reside a efetividade do PEG, ou seja, ao se concentrar em estabelecer apenas diretrizes gerais e uma fundamentação filosófico-antropológica (além de moral), o PEG é amplo o suficiente para conseguir agregar e permitir os inputs dos mais variados lugares e culturas. O caráter genérico do PEG, portanto, definitivamente é criticável, porém, seu formato é igualmente um modo de possibilitar o combate à “globalização da indiferença” (Vademecum, 2020, p. 29) ao se pautar no universalismo e, como percebeu Bergoglio, “é preciso assinar um pacto para dar uma alma aos processos educativos formais e informais” (Vademecum, 2020, p. 5). Porém, não obstante a admissão de seu caráter generalista, há de fato ao menos uma sugestão prático-pedagógica defendida, isto é, a “didática do Service Learning” (Vademecum, 2020, p. 34).
O Service Learning-que possui raízes em autores como John Dewey, Jean Piaget e Kurt Lewin-é uma estratégia didática fundada na ideia de que a aprendizagem em geral deve possuir como finalidade a integração escola-sociedade por meio de atividades que envolvam o serviço comunitário. Como diz Paul Ricœur no seu ensaio sobre Mounier em Histoire et verité, o personalismo parte da noção de que “A generosidade da pessoa tem por paradigma a virtude teologal da caridade” (Ricœur, 1968, p. 144), ou seja, a virtude da caridade é o que sustenta o projeto personalista de Mounier e, como se pode notar, igualmente o projeto pedagógico do PEG, pois, o Vademecum é unívoco ao asseverar que
Até a pesquisa educativa reconhece sempre com maior clareza a dimensão central do serviço ao próximo e à comunidade como instrumento e como finalidade da própria educação, pensamos, por exemplo, o grande desenvolvimento da didática do Service Learning. Esse gênero de pesquisa está mostrando como o serviço [comunitário] pode ser não apenas uma atividade de formação entre as outras (a importância do voluntariado na formação dos jovens é bem reconhecida), porém mais radicalmente como esse possa se tornar o método fundamental mediante o qual todos os conhecimentos e habilidades podem ser transmitidos e adquiridos. (Vademecum, 2020, p. 34, grifo nosso).
Dito isso, nosso artigo está dividido em duas seções: em um primeiro momento, trataremos de demonstrar que, apesar de certo distanciamento e peculiaridade, Ricœur e o próprio Mounier acabam por indicar que a melhor maneira de compreender o personalismo é alocá-lo no conjunto de visões existencialistas que brotam de Kierkegaard. Mais precisamente, o personalismo deve ser compreendido como mais uma expressão do existencialismo cristão que tomou forma na segunda metade do séc. XX, isto é, Mounier está na linha que une Étienne Gilson, Jacques Maritain, Gabriel Marcel, Dorothy Day e Karol Wojtyla; em um segundo momento, tendo estabelecido as diretrizes fundamentais do personalismo e sua filiação ao existencialismo, o artigo examina a aplicabilidade da antropologia personalista que anima o PEG. Em poucas palavras, Ricœur nos servirá aqui como interlocutor para apresentarmos o personalismo de Mounier e sua relação filosófica com o PEG, já que Ricœur deve ser compreendido não como um autor personalista, mas alguém que, inicialmente, recebeu forte influência de Mounier e, posteriormente, trihou seu próprio caminho no âmbito da tradição fenomenológico-hremenêutica. Desse modo, Ricœur nos auxiliará na compreensão do pensamento personalista de modo a facilitar a leitura de Mounier para percebermos que o personalismo de Mounier continua influente e pode ser notado nas linhas gerais do PEG e do pensamento católico em geral.
O Personalismo é um Existencialismo
De acordo com Franciscus, os processos educacionais “não podem ignorar o fato de que tudo, no mundo, está intimamente conexo e é necessário encontrar - segundo uma sã antropologia - outros modos de compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso” (Vademecum, 2020, p. 5). A ecologia integral do PEG se pauta em uma antropologia de cunho personalista. Será essa antropologia ontologicamente harmonizável com a metafísica judaico-cristã? Será a filosofia personalista mais uma das variações do existencialismo? Se afirmativo, isso significa que o PEG é um projeto formativo educacional baseado em uma visão existencialista de homem? Lembremos que examinar tal pressuposto é de suma importância pois Bergoglio é taxativo ao postular a “necessidade de basear todas as ações educativas num sólido fundamento antropológico, numa visão saudável e precisa da pessoa.” (Vademecum, 2020, p. 10, grifo nosso). E, tendo em vista que o último dos compromissos implica na construção de uma ecologia integral, é mister o exame da base filosófico-antropológica do PEG pois, como Franciscus diz na Laudato si’, “Não há ecologia sem uma adequada antropologia” (Vademecum, 2020, p. 31 ou laudato n. 118).
Ao descrever com acidez a ‘moda do existencialismo’, Mounier afirma que em tal filosofia encontramos “A angústia do mundo limitada às paredes de uma cafeteria onde se conversa e seus corações se dão por satisfeitos. Esta é a primeira má consequência do existencialismo”. (Mounier, 1973, p. 11, tradução nossa).9 Entretanto, é o mesmo Mounier que observa que “rigorosamente falando, poderíamos dizer que não há filosofia que não seja existencialista. […] nos perguntamos o que poderia fazer uma filosofia que não explore a existência e os existentes” (Mounier, 1973, p. 12).10 Vejamos em mais detalhes a trajetória do personalista francês com a ajuda de um de seus mais importantes colaboradores: o seu amigo Paul Ricœur.
A obra de Mounier possui dois grandes momentos: a defesa, especialmente durante a década de 1930, da visão personalista de um comunitarismo cristão; e, após o fim da guerra e até seus anos finais de vida, o aprofundamento conceitual da noção de pessoa, fato que permite Ricœur indicar que se deve compreender “o personalismo como uma das filosofias da existência“ (Ricœur, 1968, p. 138, grifo do autor). De modo ainda mais preciso, pode-se afirmar que Mounier adotou uma trajetória que vai “de um projeto de civilização ‘personalista’ a uma interpretação ‘personalista’ das filosofias da existência” (Ibid., p. 139).
Se, de início, Mounier está preocupado em fazer do personalismo uma ferramenta político-filosófica a ser utilizada na história em prol do processo civilizacional ocidental (refazer a renascença11), suas reflexões posteriores, sem dúvida, colocam mais peso na crítica ao existencialismo ateu e na busca por uma conceitulização mais robusta da noção de pessoa. A “revolução personalista” (Ricœur, 1968, p. 140), entretanto, nunca sai do horizonte de Mounier, ou seja, apesar de suas últimas obras fornecerem um tipo de escrita mais acadêmica, o papel de agente político nunca foi abandonado por Mounier. Seu desejo de influir na história ao promover a força civilizatória do cristianismo nunca deixou de permear seus escritos. Desse modo, perguntemo-nos: como o próprio Mounier compreende o personalismo dentro do quadro das filosofias existencialistas?
A maior razão da qual se pode extrair a explicação do porquê Mounier tentar se afastar muitas vezes do rótulo de ‘existencialista’ é entender qual existencialismo dominava o cenário intelectual da França de sua época, a saber, o existencialismo ateu de Sartre. É com isso em mente que se pode compreender o objetivo de Mounier em Introduction aux existentialismes, isto é, recuperar o existencialismo original ao dar ênfase em seu caráter cristão.
É hora de dar a cada um o que lhe é devido e, deixando de lado o rebuliço da moda, colocar no seu devido lugar esta mistura de existencialismo e inexistencialismo que constitui o sartrismo: como o último fruto de uma das tradições existencialistas, tradição que, proveniente de Heidegger, constitui-se em oposição radical aos fundadores da moderna filosofia da existência. Nossa tentativa será restabelecer nestas páginas esta tradição, esquecida em todo seu alcance (Mounier, 1973, p. 12).12
Como se pode notar, Mounier reconhece Sartre e Heidegger como existencialistas, porém, devido ao compromisso com o ateísmo, estes dois autores são repudiados por Mounier que os vê como desvirtuadores do que o existencialismo possui de melhor, isto é, aquilo apresentado por Pascal e Kierkegaard. Entretanto, diz Mounier, apesar da inegável importância do dinamarquês, é possível encontrar indícios de filosofias existencialistas desde a antiguidade, pois, segundo o pensador personalista, o existencialismo sempre representa-independente da época-reações contra filosofias demasiadamente fixadas em ‘ideias e coisas’, ocasionando um esquecimento do homem. O pensamento existencial, portanto, é aquele que parte do homem, ou seja, o existencialismo é a filosofia que insiste em ressaltar que o filosofar deve partir da existência humana e, na história da civilização ocidental, diz Mounier, temos diversos exemplos.
Em termos gerais, poderíamos caracterizar este pensamento como uma reçaão da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia das coisas. Para ela, não é tanto a existência em sua totalidade, mas a existência do homem que é o principal problema da filosofia. […] Nesse sentido, o existencialismo encontra respaldo por uma longa série de antepassados. […] a história do pensamento está marcada por uma série de reações existencialistas […] É o apelo de Sócrates opondo aos sonhos cosmogônicos dos físicos da Jônia o imperativo interior do ‘Conhece-te a ti mesmo’. É a mensagem dos estoicos convocando ao domínio de si mesmo, ao enfrentamento do destino. […] É também São Bernardo quando partiu em Cruzada, em nome de um cristianismo da conversão e de salvação, contra a sistematização da fé por Abelardo (Mounier, 1973, p. 13).13
No entanto, diz Mounier, apesar do histórico apresentado acima, é apenas no séc. XVII que de fato o existencialismo toma sua forma moderna: “com Pascal, entramos no existencialismo moderno. Ele trouxe todos os caminhos e tocou em quase todos os temas” (Mounier, 1973, pp. 13-14).14 Mesmo que Kierkegaard seja reconhecido como “pai titular da escola” (Mounier, 1973, p. 14)15 pelo fato de ter “se levantado contra o sistema de Hegel, o Sistema absoluto” (Mounier, 1973, p. 14)16, Mounier reserva a Pascal posição especial na ‘árvore existencialista’ (Figura 1).
Como se pode notar, após as reações existencialistas ocorridas na antiguidade e no medievo, Mounier estabelece Pascal, Maine de Biran e Kierkegaard como os pensadores que moldam a noção moderna de existencialismo. E após admitir que “O existencialismo realizou suas melhores colheitas na escola fenomenológica alemã” (Mounier, 1973, p. 15)17, Mounier separa o existencialismo pós-Kierkegaard entre os ramos ateu e teísta-cristão. Nietzsche, o arauto da era secular, é quem divide a responsabilidade junto a Kierkegaard de ser a fonte da outra vertente existencialista. Daí a preocupação de Mounier em contestar a visão dominante de sua época que insistia em focar no ramo ateu: “Esta é a linhagem do existencialismo ateu que vai de Heidegger a Sartre, e que hoje se toma equivocadamente pelo conjunto do existencialismo” (Mounier, 1973, p. 16).18 Não obstante o constante protesto de Mounier contra o existencialismo ateu, o fundador da Esprit admite que, apesar das diferenças inconciliáveis, as duas vertentes existencialistas continuam próximas por ainda assim manterem a tradição das ‘reações existenciais’ contra as ‘filosofias das ideias e das coisas’ que, inevitavelmente, desembocam em edifícios formais sitematizantes que deixam pouco ou nenhum espaço para a compreensão da existência fática do Dasein, como diria Heidegger.
Um simples olhar nos confirma que a primeira tradição existencialista [exitencialismo cristão] é tão importanto quanto a segunda [existencialismo ateu], tanto em amplitude como em influência. Não se pode, no entanto, esquecer sua origem comum, por mais débil que seja seu vínculo de união. Uma certa forma de colocar os problemas, uma certa ressonância de diversos temas comuns, pelo menos em sua origem, tornam o diálogo sempre muito mais fácil entre os ramos mais opostos do existencialismo do que com aqueles que professam ideas alheias aos seus pressupostos comuns. (Mounier, 1973, pp. 18-19).19
E quanto ao personalismo? Mounier não deixa espaço para ambiguidades e assevera o seguinte acerca de sua origem: “Gabriel Marcel se destaca como representante do existencialismo cristão francês, com alguns dos primeiros ensaios do pensamento personalista” (Mounier, 1973, p. 16, grifo nosso), ou seja, ao associar Marcel ao surgimento do personalismo e classificá-lo como representante da vertente cristã do existencialismo, Mounier deixa claro o que estamos a afirmar aqui: o personalismo é um existencialismo. Mais precisamente, o personalismo é um existencialismo cristão. De que modo, então, o existencialismo cristão de Mounier se aproxima do existencialismo ateu predominante de seu tempo?
Assim como no trabalho de diversos existencialistas e fenomenólogos, percebe-se nas obras ulteriores-especialmente no Traité du caractère-a preocupação em oferecer uma “crítica da redução das estruturas [da pessoa] a tipos, a realidades puramente estatísticas ” (Ricœuer, 1968, p. 155). Assim como se vê em Heidegger20, Sartre21 e Merleau-Ponty22, há em Mounir “inumeráveis leituras de psicofisiologia, de psicopatologia, de psicanálise, de caracterologia, de psicologia social etc” (Ricœuer, 1968, p. 155). Apesar da divergência teológica central quanto à questão da fundamentação dos valores, o existencialismo cristão de Mounier está em harmonia com o existencialismo ateu ao compreender que esquemas gerais de desenvolvimento demasiadamente engessados como aqueles oferecidos pelo behaviorismo, pela psicanálise ou a mera catalogação de estatísticas sobre padrões comportamentais tocam apenas a superfície do que é ser pessoa, isto é, a rigor, tais generalizações funcionam apenas na medida em que não se está falando de pessoas plenamente desenvolvidas. Dito de outro modo,
recusa-se Mounier a deixar que o caráter [da pessoa] se encerre em meros dados. Deseja mostrar como o eu afirmante retoma seu próprio caráter, ora pela adição de seu ritmo e inclinação, ora pela compensação de suas fraquezas, mas sempre coroando seu sentido por uma operação de valorização. (Ricœuer, 1968, p. 156, grifo nosso).
Ora, este ‘eu afirmante’ em Mounier é o equivalente à negatividade do para-si (Sartre), à intencionalidade operante ou arco intencional (Merleau-Ponty) ou, simplesmente, ao caráter aberto do ser-aí (Heidegger). Com o afastamento que Mounier opera de suas primeiras formulações do personalismo, observa-se um “esforço ‘filosófico’ (em sentido estrito) para situar o personalismo em relação às ciências do homem, de um lado, e em relação às filosofias da existência, do outro” (Ricœur, 1968, p. 148). Esta última guinada de seu pensamento está especialmente ilustrada nas obras Traité du caractère e Introduction aux existentialismes. Em tal momento, “o acento se desloca dos problemas de civilização e revolução para os problemas sobretudo teóricos de estrutura e estatuto existencial da pessoa” (Ricœur, 1968, p. 149). A leitura que Ricœur opera, portanto, permite-nos afirmar que o período tardio de Mounier busca frisar a centralidade da pessoa no comunitarismo das obras iniciais: “É nesse sentido que Mounier insistia na partícula copulativa da expressão Revolução personalista e comunitária ” (Ricœur, 1968, p. 142, grifo do autor).
Por seu compromisso com o cristianismo de vertente católica, é difícil estabelecer uma classificação contundente acerca da filosofia política de Mounier, no entanto, tomado em conjunto seus textos, posições e afiliações estabelecidas durante sua vida, é seguro afirmar que o fundador da Eprit se enquadra na tradição política que hoje se denomina progressismo de esquerda.23 Porém, quando se fala de ‘revolução personalista e comunitária’ é necessário apontar que Mounier não pregou a utilização de meios violentos para concretizar seu ideal civilizatório, daí sua crítica ao marxismo que veremos mais adiante. Primeiro, deve-se notar que, para Mounier, a revolução personalista está pautada, evidentemente, na ética judaico-cristã. Tais valores, por sua vez, segundo a leitura de Mounier, devem impelir o cristão à crítica de dois tipos de indivíduos (em contraposição à pessoa): o burguês e o fascista.
No personalismo de Mounier, “a pessoa se opõe ao indivíduo ” (Ricœur, 1968, p. 141). O indivíduo burguês e o indivíduo fascista, portanto, se afasta da essência da pessoa humana por abdicar da dimensão fraternal que deve ser compreendida como uma das dimensões antropológicas que formam a essência humana.24 Como diz Ricœur, no personalismo todas as pessoas devem ser descritas como “centros pessoais de responsabilidade ” (Ricœur, 1968, p. 144). A preocupação com o outro, a disposição fraternal da pessoa, portanto, é diminuída e, por vezes, eliminada no contexto ideológico burguês e/ou fascista. Sobre a individualidade proveniente da ideologia burguesa, Ricœur afirma que, para Mounier, “O burguês é um estilo de descenção: do heroi ao burguês; dos valores de conquista e criação aos valores de conforto. Essa intuição do negativo no burguês conduz a todas as reflexões sobre a oposição entre indivíduo e pessoa” (Ricœur, 1968, p. 141, grifo do autor). Como dito, Mounier compreende a pessoa humana enquanto criação da pessoa divina, isto é, Deus. Desse modo, Ágape é o tipo de relação que prospera à medida em que cada um se encontra cada vez mais em harmonia com sua essência, em contrapartida ao indivíduo (burguês ou fascista): “Mais que tudo, ela [a pessoa] despreza a avareza do indivíduo. O indivíduo é exigente e se apodera; a pessoa dá e dá-se. Pessoa é generosidade. […] A pessoa é a figura-limite da comunidade verdadeira, como o indivíduo o é da não-civilização burguesa e o faccioso, da pseudocivilização fascista ” (Ricœur, 1968, p. 142).
A crítica ao ‘indivíduo’ só é possível dada a posição antropológica de Mounier. Como Ricœur bem nota, “Mounier, antecipando-se já antes de 1939 ao seu futuro debate com o existencialismo, evoca a existência de uma ‘natureza humana’, de uma ‘verdade fundamental’ ” (Ricœur, 1968, p. 145). É fato que Mounier tenha “insistido na continuidade entre sua fé cristã e sua indagação personalista ” (Ricœur, 1968, p. 146), daí sua antropologia sempre ir ao encontro do cristianismo. O que não poderia deixar de ser, já que, mesmo se não fosse cristão, Mounier teria que admitir o papel do cristianismo enquanto acontecimento histórico-cultural que proporcionou, segundo sua leitura, a plena visão da pessoa. Ricœur nos lembra que “Um pequeno ensaio, escrito durante o inverno de 1939 e intitulado Personnallisme et Christianisme, vincula de modo expresso à pregação cristã, que rompia com as maneiras do pensamento impessoal e naturalista dos gregos, o acesso ao mundo da pessoa ” (Ricœur, 1968, p. 144). Com o tempo, o caráter cristão de seu existencialismo adquiriu cada vez mais prevalecência. Mounier construi uma robusta autocrítica que colocou o personalismo “em guarda contra suas próprias tentações puristas, idealizantes, anarquizantes […] Mounier aprofunda e purifica o motivo cristão de seu personalismo” (Ricœur, 1968, p. 148). Entretanto, Ricœur aponta que, apesar de seu caráter inegavelmente cristão, o personalismo de Mounier flertou com pensamentos usualmente anticristãos. Não só o anarquismo, mas igualmente o marxismo foi fonte para Mounier. Ricœur aponta que “Mounier chega bem perto de Marx ” (Ricœuer, 1968, p. 151) no que diz respeito ao aspecto de possibilidade autotransformadora do homem e de sua condição existencial. Entretanto, Mounier nunca deixou de defender uma antropologia que encontra o fundamento da pessoa em uma essência transcendente, isto é, “quanto mais acentuava Mounier seu parentesco com a dialética marxista, tanto mais ele se reequilibrava por um senso abrupto, virulento, da transcendência cristã” (Ricœuer, 1968, p. 153). Curiosamente, essa, digamos, ‘aproximação distanciada’ ou ‘filiação com ressalvas’ do personalismo com o marxismo exige, para Mounier, uma apropriação de outro pensamento anticristão, ou seja, o verdadeiro personalista deve se apropriar de Nietzsche. Passar por Nietzsche, diz Ricœur, é o que possibilita um “cristianismo dos fortes ” (Ricœuer, 1968, p. 153) e um cristianismo que não se deixa encantar pelo marxismo. Assim, um personalismo verdadeiramente cristão absorve e ultrapassa o que há de contundente tanto na crítica nietzscheana como no materialismo marxista: “só o cristão que tem algo a retrucar a Nietzsche é cristão assaz duro para não mais se deixar dissolver na parcela de marxismo que assume” (Ricœur, 1968, p. 153). Mas por que assumir uma parcela de marxismo? Ricœur relembra que Mounier admitia haver limites teóricos na cosmovisão cristã. Segundo Ricœur, Mounier era honesto o suficiente para compreender que “está o cristão muitas vezes bastante atrasado em relação ao não-cristão, por exemplo na linha da compreensão da história, da dinâmica social e política ” (Ricœur, 1968, p. 146). Porém, como dissemos, Mounier nunca ultrapassa a linha que faria de sua filosofia um materialismo revolucionário. Seu propósito é o de confrontar o existencialismo ateu (para defender sua noção de pessoa) e o projeto comunista (a fim de defender o seu projeto civilizatório judaico-cristão). O embate com o existencialismo demandou uma reflexão mais robusta (como se pode ver nas obras finais). A crítica ao marxismo, por outro lado, sempre foi mais óbvia e alcançável sem muitas dificuldades. Bastou recusar a moralidade revolucionária baseada em um tribunal da história que, no futuro, absolveria os crimes cometidos a favor da resolução final dos conflitos de classe, isto é, a instauração do comunismo.
da mesma forma como seu personalismo, interpretado, no pós-guerra sobretudo, como uma das filosofias da existência, se presta a um debate com aquilo que se convencionou denominar existencialismo em sentido estrito, assim também o projeto primitivo de uma civilização se presta a um confronto com o marxismo. […] a verdadeira questão é esta: em que se apoiam afinal os marxistas para realizarem o homem novo ? No efeito futuro das mudanças econômicas, políticas, e não na atração que os valores pessoais exercem desde agora sobre os homens revolucionários. […] O marxismo não é uma educação, mas um amestramento ” (Ricœur, 1968, pp. 146-147, grifo do autor).
Em poucas palavras, o personalismo é um existencialismo, mas um existencialismo intransigentemente cristão. Nada justifica o sacrfício de pessoas para o futuro melhor de outras pessoas. Pensar com essa lógica faz do marxista um indivíduo fascista. Dito isso, resta questionarmo-nos: que tipo exato de existencialismo cristão é o personalismo? Ricœur aponta para a resposta, mas, ao mesmo tempo, busca igualmente se esquivar de tal pergunta: “Outros, que não eu, hão de se pronunciar sobre aquilo que o cristianismo de Emmanuel Mounier possuía de especificamente católico […] de modo geral se acha Mounier na linha de um tomismo essencial, cujo humanismo lhe surge como linha de cumieiras entre o pessimismo luterano e o otimismo do Século das Luzes” (Ricœur, 1968, p. 144, grifo nosso). Em outras palavras, Mounier foi um existencialista católico que se alinhou ao pensamento moderno a partir de uma combinação entre pessimismo luterano e o otimismo pelo progresso do iluminismo. Esta inspiração iluminista, portanto, nos permite passar para o próximo ponto: o personalismo, apesar de sua inspiração eminentemente cristã, permite a possibilidade da existência de um personalista não-cristão? Ricœur diz: “Seria o caso de se dizer que o personalismo é, por excelência, cristão (e católico)? […] Ora, Mounier jamais cessou de afirmar que tal colaboração [entre personalistas e não-cristãos] era, em princípio, possível” (Ricœur, 1968, p. 145). O próprio Mounier deixa isso claro ao tomar Jaspers como exemplo: “Alguém como Jaspers […] não pode ser chamado de filósofo cristão, embora todos os movimentos do seu pensamento, exceto talvez o último, se desenvolvam em pleno solo cristão. Ninguém está mais próximo de Kierkegaard do que ele ” (Mounier, 1973, p. 15).25 Mounier, portanto, é defensor de um direito natural que, por definição, é acessível a qualquer intelecto independente de sua filiação religiosa. Em outras palavras, “O personalismo supõe, portanto, uma ética concreta, relativamente independente da fé cristã ” (Ricœur, 1968, p. 145).
Dito isso, pode-se de fato afirmar que o personalismo é um existencialismo sem ressalva alguma? O próprio Ricœur nos fornece um ângulo distinto do que foi dito até agora. O hermeneuta francês diz que “o personalismo não se integra às filosofias existencialistas senão em prol de um estourar da filosofia tradicional e em particular da filosofia universitária: o fim do privilégio da teoria do conhecimento é o sinal mais visível desse estouro” (Ricœuer, 1968, p. 159). Porém, como diz Ricœur, “O existencialismo é, pois, liminarmente, uma filosofia clássica por sua refelxão sobre os limites do conhecer revelados pela situação do existente humano […] Mais radicalmente, aparenta-se o existencialismo, de novo, à filosofia clássica por sua procura de uma nova ontologia ” (Ricœuer, 1968, p. 160). Tais palavras, portanto, parecem remeter às ‘filosofias das ideias e das coisas’, isto é, a nemesis das constantes ‘reações existenciais’ que surgem durante a história. Com isso em mente, Ricœur afirma: “Parece-me então que o caráter ativo, prospectivo, do personalismo continua a distingui-lo do caráter crítico [no sentido kantiano] do existencialismo; o gosto de promover uma ação [personalismo] sobrepuja finalmente o de elucidar significados [exitencialismo] ” (Ricœuer, 1968, p. 160). Em outras palavras, por ser, em última instância, uma filosofia da ação ou da praxis, o personalismo seria, nesse ponto de vista, distinto do existencialismo que, apesar de ser uma tradição surgida na contemporaneidade, continuaria a tematizar os pontos recorrentes da filosofia pelo menos desde sua forma moderna desde Descartes, isto é, partindo de questões epistemológicas para, enfim, traçar uma ontologia. O personalismo, por outro lado, é uma filosofia eminentemente ético-política. Daí que, logo no início de sua caracterização do pensamento personalista, Ricœur diz que “Bem se poderia denominar ética tal empresa, se justamente não houvesse E. Mounier repelido com horror o espírito do moralista, que sempre lhe pareceu perdido nas generalidades e na eloquência, amesquinhado às dimensões do indivíduo ” (Ricœuer, 1968, p. 139). Tal ângulo acerca da filiação ou não do personalismo no conjunto do pensamento exitencialista, entretanto, não se sustenta. Basta apenas pensarmos na própria explicação que Mounier oferece sobre a pluralidade do existencialismo e o fato de que seu pensamento está mais próximo do existencialismo cristão de alguém como Pascal, Kierkegaard ou Marcel.
Outro ponto que poderia ser passível de minar uma equivalência entre personalismo e existencialismo seria o tema da alteridade. Segundo Ricœur, Mounier insiste que “a originalidade da pessoa se exprime em primeiro lugar na comunhão e não na solidão” (Ricœuer, 1968, p. 162). No entanto, como se sabe, apesar do existencialismo e da fenomenologia como um todo de fato começarem com uma descrição das estruturas cognitivas da intencionalidade, nenhum existencialista pode ser acusado de negligenciar o papel do Outro na formação e sustentação do eu. De todo modo, “a principal linha de ruptura com Sartre” (Ricœuer, 1968, p. 163) se dá apenas em uma discordância sobre a relação entre para-si/pessoa e liberdade. Se, para Sartre, a negatividade do para-si é a própria condição que impossibilita uma essência ou substrato fixo, Mounier defende que a liberdade é precisamente o modo pelo qual a pessoa (enquanto criação de Deus e, portanto, detentora de essência) expressa sua substância ou, do mesmo modo, se afasta dela, se tornando cada vez menos ‘pessoa’. E é aqui que entra a educação enquanto processo civilizatório.
Educação e Processo Civilizatório
O PEG nos diz que “é somente mediante a educação que se pode, realisticamente, esperar uma mudança positiva sobre um projeto de longa duração” (Vademecum, 2020, p. 34). Paul Ricœur, por sua vez, afirma que “Emmanuel Mounier foi o pedagogo, o educador de uma geração […] diria eu que Mounier pregou uma conversão ” (Ricœur, 1968, p. 138, grifo do autor). Como apontado anteriormente, o início da obra de Emmanuel Mounier se caracteriza pela defesa da continuação de um processo civilizatório impulsionado pela noção de pessoa proveniente da cosmovisão cristã. Como diz Ricœur, “Não se poderia abordar os livros mais especialmente ‘filosóficos’-o Traité du caractrè, a Introduction aux exitentialismes, o Personnalisme-sem ter presente ao espírito a intenção civilizadora das primeiras pesquisas ” (Ricœuer, 1968, pp. 154-155). A aplicabilidade do personalismo no contexto socioeducativo, portanto, é algo, diríamos, inevitável. Não há personalismo sem o ideal de ‘refazer a renascença’, isto é, sem o horizonte da manutenção da marcha civilizatória. Mounier nunca deixou, como observa Ricœur, de ter “a ousadia de visar, para além de qualquer escola filosófica, uma nova civilização em sua totalidade” (Ricœur, 1968, p. 137).
A pedagogia de tipo service learning é um modo de concretizar as noções de ecologia integral, algo que claramente evoca o comunitarismo de Mounier. Como diz o papa, o PEG visa “formar pessoas disponíveis para se colocarem ao serviço da comunidade” (Vademecum, 2020, p. 5), tendo em vista que, para Bergoglio, há no homem uma “vocação à fraternidade ” (Vademecum, 2020, p. 25), por isso que uma educação centrada na pessoa e em sua dignidade intrínseca significa uma educação que visa acentuar o florescimento da virtude da fraternidade em direção ao serviço a outrem. O pontificado de Franciscus possui a fraternidade como “dado antropológico fundamental ” (Vademecum, 2020, p. 28). Em 2013, o papa afirmou que a virtude da fraternidade “não diz respeito apenas a nós cristãos, tem uma dimensão que antecede e que é simplesmente humana ” (Vademecum, 2020, p. 28). Além disso, a preocupação fraterna com os outros é ingrediente fundamental para estar em harmonia consigo mesmo, ou seja, não há interioridade existencial saudável sem um o estabelecimento real de relações fraternas com as demais pessoas. Como se lê na Laudato si’, “o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra ” (Vademecum, 2020, p. 31 ou laudato n. 70).
Tudo começa, é claro, com a família. O quarto compromisso do PEG deixa claro que a família “é o primeiro e indispensável sujeito educador. Esta é a célula fundamental da sociedade ” (Vademecum, 2020, p. 13). É com o amparo de uma família bem estruturada que uma pessoa pode vir a expressar plenamente seu potencial. É com uma educação familiar pautada na solidariedade que, posteriormente, as diversas pessoas podem-já no contexto da educação formal-investir as “melhores energias para uma educação a serviço da comunidade ” (Vademecum, 2020, p. 15), isto é, uma educação verdadeiramente civilizatória. Na seção de ‘sugestões’ do sexto compromisso do PEG, podemos ler uma espécie de síntese que consegue, em linhas gerais, contemplar o espírito civilizatório do projeto educativo do sucessor de Pedro.
Incentivar na sua instituição/organização o estudo e investigação sobre economia, política, crescimento e progresso com ideias inovadoras e inclusivas, revisão de currículos e planos de estudo. Propor uma educação integral ao serviço dos valores de participação, de democracia, de política, de justiça, de igualdade, de fraternidade e de paz. Reorientar os projetos de formação da sua instituição/organização em favor da formação de pessoas disponíveis para servir a comunidade. (Vademecum, 2020, p. 15).
Emmanuel Mounier possui posição similar a de Albert Camus no contexto da filosofia francesa contemporânea. Ambos são filósofos que buscaram construir sua obra fora dos muros da academia e dirigiram boa parte do foco de seu trabalho à função de editor-chefe em suas respectivas revistas. Se Camus tinha Combat, Mounier tinha Esprit: “Com a Esprit, tentava Mounier a aventura de uma filosofia não universitária” (Ricœur, 1968, p. 136). Sua filosofia, como bem sintetiza Ricœur, parte do diagnóstico de uma “crise de civilização ” (Ibid., p. 137) e a ideia de que o personalismo existe enquanto ferramenta à serviço de um processo civilizatório, ou seja, “o adjetivo personalista qualifica antes de tudo uma civilização, uma função civilizadora ” (idem).
Há no personalismo uma explícita “vontade civilizadora ” (Ricœuer, 1968, p. 150). Essa vontade, vale ressaltar, perpassa o PEG e possui sugestões progrmáticas e em harmonia com o avanço civilizacional das revoluções liberais. Ao enumerar sugestões para os educadores acerca do primeiro de seus sete compromissos, o vademecum diz, por exemplo, que os educadores devem “Criar as condições para que todos os membros da sua instituição/organização tenham acesso e conheçam a Carta Universal dos Direitos Humanos” (Vademecum, 2020, p. 10). Além disso, na Fratelli Tutti, Franciscus é categórico ao afirmar que a Carta Universal “é um ponto de referência obrigatório para a justiça e um veículo de paz […] esta Organização [Nações Unidas] não deve ser ilegitimada” (Fratelli Tutti, 2020, n. 173 e n. 257).
Quanto ao compromisso de número cinco (‘se abrir à acolhida’), o PEG deixa explícito seu caráter universalista e civilizatório ao não apenas defender que “Uma sociedade é saudável quando é capaz de acolher os mais vulneráveis ” (Vademecum, 2020, p. 14), como também na promoção de “programas de sensibilização numa perspectiva intercultural e inter-religiosa” (Vademecum, 2020, p. 14). Com isso, se abrir à acolhida significa igualmente incorporar a diversidade à unidade e não suprimi-la. O PEG, então, está em harmonia com o lema de Mounier (refazer a renascença) no sentido de que se deve utilizar a educação para fazer brotar um novo humanismo, ou seja, “O primeiro princípio indispensável para a construção de um novo humanismo é, portanto, o da educação para um novo pensamento, capaz de unir diversidade e unidade, igualdade e liberdade, identidade e alteridade” (Vademecum, 2020, p. 31).
Outro ponto de aplicabilidade do personalismo do PEG se encontra no terceiro compromisso, isto é, promover a mulher. Sugere-se que haja “a presença de um número equitativo de mulheres nas funções de gestão, no corpo docente e órgãos colegiais da sua instituição/organização” (Vademecum, 2020, p. 12). Nos primeiros anos formativos sabemos que a presença de mulheres se sobrepõe ao quantitativo de homens, porém, a partir do ensino médio e, principalmente, nas instituições de ensino superior o número de homens ainda é maior e, por vezes, desproporcionalmente maior. O documento não entra em detalhes sobre como essa distribuição equitativa poderia ser feita, no entanto, nos parece que medidas legais (via cotas) seriam, possivelmente, o único caminho viável. Esse tema é polêmico e tal sugestão inaplicável. Sabe-se que determinadas áreas atraem mais homens que mulheres e vice-versa. Desse modo, um número equitativo de docentes poderia se mostrar como uma artificialização forçada e talvez até mesmo prejudicial. De todo modo, definitivamente deve haver um esforço na direção de um incentivo cada vez maior para que mulheres se sintam aptas e merecedoras de ocuparem as diversas posições nas diferentes áreas em todos os níveis da educação.
O último dos compromissos é, no fundo, uma transposição do conteúdo da encíclia Laudato si’ ao contexto socioeducativo. A encíclica se resume a uma forte crítica à degradação ambiental de modo a suscitar novos modos de relação econômica com a natureza não só a fim de manter o planeta em condições habitáveis para nossa espécie como para restabelecer um laço mais estreito do homem com o meio ambiente, algo muitas vezes perdido em ambientes mais urbanos e cosmopolitas. Em outras palavras, o PEG defende o “Investimento em energias renováveis ” (Vademecum, 2020, p. 16) para, enfim, “Desenvolver um cuidado para a casa comum e refinar a capacidade de levar o coração à beleza face às maravilhas da criação” (Vademecum, 2020, p. 16). A questão crucial ressaltada, portanto, é de caráter existencial. O papa diz que “Há uma relação entre nossa vida e a de nossa mãe terra. Entre nossa existência e o dom que Deus nos deu” (Vademecum, 2020, p. 19), ou seja, ao partirmos da centralidade da pessoa como passo inicial de uma formação integral, inevitavelmente chegamos ao cuidado da ‘casa comum’ como o fundamento material do contexto ecológico no qual a espécie humana se encontra integrada. Desse modo, encontrar meios de subsistência econômica que diminuam ao máximo possível o impacto na natureza é o caminho correto não apenas do ponto de vista econômica e sustentável, mas igualmente estético-existencial. Daí a importância de Bergoglio ter defendido durante discurso na cidade de Tokyo em 2019 “a promoção de uma nova episteme capaz de ampliar e questionar qualquer tentativa reducionista do paradigma tecnocrático” (Vademecum, 2020, p. 20).
Franciscus alerta a necessidade de se ter em mente as “periferias ambientais e existenciais ” (Vademecum, 2020, p. 22). A formulação de um pacto de ordem global força-nos a entender que, se hoje estamos a falar sobre preservação do meio ambiente, nem todos os países tiveram a oportunidade de obter a benesse econômica que a extração desenfreada de recursos proporcionou, abastecendo o crescimento de apenas um número diminuto de nações. Desse modo, tendo em vista o compromisso sexto, o ato de ‘repensar a política e a economia’ necessariamente envolve o repasse de recursos para países do sul global, algo que vai contra a atividade econômica meramente voltada ao lucro e nos leva à crítica que o papa faz acerca da concentração das melhores mentes em ações que atendem apenas a interesses privados. Note-se que esta crítica, entretanto, não significa uma condenação da prática de livre mercado. Trata-se apenas de um apelo ao estabelecimento de um pacto educacional que consiga formar e trazer à tona pessoas marcadas pela virtude da fraternidade de modo a usarem seus talentos em prol daquilo que é comum. Quanto a isso, o Vademecum diz:
Quantas realidades, hoje, colocam a serviço dos jovens o melhor que se têm ? Se se pensa na maioria das sociedades de hoje, nota-se claramente como as forças mais criativas e propositivas sejam colocadas a serviço da produção e do mercado. Os melhores jovens graduados e as mentes mais brilhantes costumam ser empregados em grandes empresas com fins lucrativos, mais que na busca do bem comum. Ao mesmo tempo, o consumismo predominante requer a ausência, ou apenas a fraca presença, de pessoas formadas, capazes de espírito crítico e ímpeto relacional. A ideologia consumista, de fato, se alimenta do individualismo e da incompetência na gestão de si, porque é fora da comunidade que somos mais frágeis e é na incapacidade da sobriedade que respondemos docilmente aos estímulos da propaganda. (Vademecum, 2020, p. 34).
Em outras palavras, o PEG não se coloca contra a ordem econômico-política estabelecida pelas grandes revoluções liberais, porém, seu sexto compromisso defende a busca por renovações na economia e na política por meio de uma educação que permita o aprimoramente da virtude da fraternidade.26 Na verdade, o PEG chega mesmo a estabelecer o serviço pelo outro para além de fins lucrativos como a meta central da educação: “nenhum educador alcança plena ação educativa se não se comprometer a formar e a plasmar, naqueles que são confiados a seus cuidados, uma plena e real disponibilidade ao serviço dos outros “ (Vademecum, 2020, p. 34). Em outras palavras, uma formação integral que almeje o estabelecimento de um novo humanismo necessariamente precisa partir do pressuposto de que “O verdadeiro serviço da educação é a educação ao serviço” (Vademecum, 2020, p. 34).
Considerações finais
Bergoglio corretamente afirmou em 2015 que “Não cultiva nada quem não se importa com os outros e quem não se importa com os outros não cultiva nada” (Vademecum, 2020, p. 19). O que mais poderia fundamentar uma educação civilizatória que não a introjeção da centralidade da pessoa como valor primeiro? Em última instância, o PEG é uma ferramenta, como diz Franciscus, rumo a um “novo modelo cultural ” (Vademecum, 2020, p. 23). O pacto, como demonstrado no presente artigo, está em harmonia com a doutrina social que, por sua vez, é “inspirada nos ensinamentos da Revelação e no humanismo cristão ” (Vademecum, 2020, p. 25). Dito isso, o artigo ressalta o caráter personalista do PEG ao conectar a aplicabilidade do projeto de formação integral do pacto à antropologia filosófica do personalismo, baseado no exame do pensamento personalista na figura de Emanuel Mounier. Como demonstrado a partir da leitura de Paul Ricœur, o personalismo é um existencialismo cristão com tonalidades tomistas e luteranas.
Por ser uma filosofia existencialista o personalismo parte da intencionalidade (conceituada como pessoa por Mounier). Se Sartre parte do para-si, Heidegger do ser-aí e Merleau-Ponty do arco intencional do corpo próprio, o personalismo parte da pessoa, isto é, o centro irradiador não apenas do grau zero da cognição, mas igualmente da dignidade e da responsabilidade. De um modo que não foi explorado aqui, poderíamos dizer que o projeto de Mounier se assemelha ao de Emmanuel Lévinas. Ambos partem de posições de cunho ético para daí estabelecer o restante de sua filosofia. Como Ricœur apontou, não fosse o desdém que Mounier tinha pelos moralistas franceses, o líder da Esprit poderia ter sido mais explícito acerca do fundamento ético de seu personalismo. Não obstante, a sua incessante defesa do personalismo como ferramenta auxiliar do processo civilizatório universalista do ocidente judaico-cristão não deixa dúvidas sobre o caráter de sua obra e de sua pessoa.
Referências
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VADEMECUM PACTO EDUCATIVO GLOBAL. Congregatio de Institutione Catholica (De Studiorum Institutis). Disponível em: https://anec.org.br/wp-content/uploads/2020/02/Vademecum-Portuges-para-a-web-1.pdf. Acesso em: 30/06/2024.
Notes