Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar criticamente a contribuição oferecida pela concepção de justiça educacional democrática global defendida por Julian Culp. Tal abordagem se insere no debate contemporâneo sobre justiça educacional oferecendo uma posição intermediária entre duas vertentes teóricas importantes, ou seja, entre posições que enfatizam a distribuição da educação em contraposição às que defendem a educação democraticamente adequada. Para Culp, a busca pela justiça educacional teria que garantir, prioritariamente, a oferta de uma educação democrática onde isso for necessário para garantir uma ordem democrática e deixar a definição relativa à distribuição da educação para procedimentos democráticos de tomada de decisão. Além disso, o autor defende a prioridade da realização da educação democrática global em todos os países para que, depois, se assegure a igualdade de oportunidades educacionais na dimensão doméstica. Este artigo pretende questionar a ordem de prioridades conferida por Culp aos direitos educacionais abrangidos por sua concepção de justiça educacional democrática global em sociedades onde é necessário alcançar uma ordem democrática mais estável. Por meio da discussão de alguns elementos que podem ser encontrados em sociedades com grandes desigualdades sociais e com traços autoritários, sugere-se que tal ordem seja invertida ou que a promoção de educação democraticamente adequada possa ser considerada moralmente equivalente à igualdade de oportunidades.
Palavras-chave: Justiça educacional, Educação democrática, Igualdade de oportunidades educacionais, Justiça educacional democrática global.
Abstract: The aim of this paper is to critically analyze the contribution offered by Julian Culp's conception of global democratic educational justice. This approach takes part in the contemporary debate on educational justice by offering an intermediate position between two important theories, in other words, between positions that emphasize the distribution of education as opposed to those that defend democratically adequate education. For Culp, the search for educational justice would have to guarantee, as a priority, the provision of a democratic education where this is necessary to guarantee a democratic order and leave the definition of the distribution of education to democratic decision-making procedures. In addition, the author defends prioritizing the achievement of global democratic education in all countries so that equal educational opportunities can then be ensured on the domestic level. This article aims to question the order of priorities given by Culp to the educational rights supported by his conception of global democratic educational justice in societies where it is necessary to achieve a more stable democratic order. Through the discussion of some elements that can be found in societies with great social inequalities and authoritarian traits, it is suggested that this order should be reversed or that the promotion of adequate democratic education could be considered morally equivalent to equal opportunity.
Keywords: Educational Justice, Democratic Education, Equal educational opportunity, Global Democratic Educational Justice.
Artigo científico
Repensando a ordem de prioridade dos direitos educacionais na concepção de justiça educacional democrática global de Julian Culp1
Rethinking the priority order of educational rights in Julian Culp's conception of global democratic educational justice
Received: 04 July 2024
Accepted: 15 October 2024
Published: 07 January 2025
Nos últimos anos, frente à ascensão de diferentes formas de autoritarismos em diversos países ocidentais, intensificou-se a preocupação com o fortalecimento das democracias. Tal situação operou uma mudança no campo das teorias políticas-filosóficas contemporâneas. Se é verdade, como mostrou Honneth, que houve, no período após a Segunda Guerra Mundial, uma separação entre as teorias da democracia e a pedagogia em função de uma interpretação bastante restrita do imperativo de neutralidade do estado que desconstruiu a legitimidade da educação pública em promover os valores necessários à formação da vontade democrática (Cf. Honneth, 2013, p. 550), também o é que as reviravoltas experienciadas pelas democracias liberais no século XXI suscitaram um debate urgente sobre modos de se resistir às ameaças autoritárias. A educação, nesse sentido, tornou-se palco de disputa entre forças políticas. Tal situação foi agravada pela emergência de movimentos de extrema direita ou reacionários, os quais rotulam a educação democrática de “doutrinadora” e “ideológica” e defendem uma ideia de neutralidade educacional que se alinha à agenda dos movimentos conservadores e autoritários. No Brasil, esse movimento sustentou a elaboração de projetos como o da Escola sem Partido, mas o fenômeno é global. Como aponta Drerup, “em uma variedade de países (por exemplo, Alemanha, Holanda), partidos políticos de direita apresentaram queixas contra professores por não serem neutros em relação às agendas políticas dos primeiros” (2023, p. 332, tradução nossa).
A emergência de diferentes formas de autoritarismos coloca em questão tanto a sobrevivência das democracias liberais quanto o significado da educação democrática, revelando, de forma mais específica, uma espécie de crise, na contemporaneidade, do próprio modelo de educação liberal. De acordo com Culp et al. (2022), apesar das diferentes interpretações e justificações sobre quais são os princípios e valores centrais para este modelo, haveria um consenso de que “autonomia, liberdade, igualdade e tolerância desempenham um papel central em qualquer forma verdadeiramente liberal de educação democrática” (2022, p. vii, tradução nossa) e que devem ser promovidas considerando o contexto das sociedades democráticas plurais.
Um dos problemas da defesa deste modelo, segundo os autores (Culp et al., 2022, p. viii), está no pressuposto assumido de que a promoção de mais e melhor educação liberal equivaleria à promoção de virtudes, disposições e capacidades que resultariam no fortalecimento da própria democracia. Essa defesa seria questionável, por exemplo, porque a própria educação liberal pode ser acusada de defender ideais elitistas, reproduzindo dinâmicas de poder e dominação. Ou ainda, no contexto das críticas pós-coloniais, ela seria denunciada por seu vínculo com a estruturação de um sistema de dominação baseado na organização de um conhecimento humanista eurocentrado que envolveria a manutenção de outras hierarquias como as de gênero, raça e classe. A defesa da educação liberal necessitaria passar, portanto, por uma reconsideração de seus fundamentos teóricos e metodológicos ou, alternativamente, seria necessário encontrar novos caminhos para o enfrentamento dos desafios contemporâneos.
Se há uma crise em relação aos potenciais de formação democrática, quais seriam as possibilidades teóricas para sua atualização ou superação? Um caminho para responder à pergunta se dá a partir do contexto das teorias de justiça educacional. Como afirmam Reich e Satz, nas democracias liberais, passou-se a considerar que a educação é um direito de todos, portanto, é ponto pacífico que ela deve ser amplamente assegurada às crianças e jovens. Porém, dizem os autores,
se para quem é uma questão resolvida, como a educação deve ser distribuída permanece profundamente contestável. O modelo mais popular para distribuir a educação, pelo menos em sociedades democráticas liberais, é alguma versão da igualdade de oportunidades educacionais. Mas a melhor interpretação desse princípio é disputada (Reich; Satz, 2019, p. 174, tradução nossa).
Questões de distribuição passam a ser importantes no debate: ao enfatizarem a dimensão econômica, as teorias distributivas buscam estabelecer princípios normativos para a educação considerando a igualdade de oportunidades. Um pressuposto assumido por essa vertente, por exemplo, é o de que a educação é um meio para se alcançar uma profissão e obter renda, por isso, justifica-se a importância da igualdade de oportunidades formativas. Porém, há outra vertente no contexto desse debate e que se remete, por sua vez, à dimensão política, visando a oferta de uma educação democraticamente adequada ao exercício da cidadania. Assim, enquanto a primeira perspectiva está centrada na igualdade de oportunidades, a segunda busca a igualdade democrática (Cf. Culp, 2020b).
O presente trabalho tem como objetivo analisar criticamente a contribuição oferecida pela teoria de justiça educacional democrática global, defendida por Julian Culp (2019) e amparada na teoria normativa de justiça global de Rainer Forst (2012). Tal abordagem se insere no debate contemporâneo sobre justiça educacional oferecendo uma posição intermediária entre aquelas duas vertentes, ou seja, entre posições que enfatizam a distribuição da educação em contraposição às que defendem a educação democraticamente adequada. Para Culp, a busca pela justiça educacional teria que garantir, prioritariamente, a oferta de uma educação democrática onde isso for necessário para garantir uma ordem democrática e deixar a definição relativa à distribuição da educação para procedimentos democráticos de tomada de decisão. Além disso, o autor defende a prioridade da realização da educação democrática global em todos os países para que, depois, se assegure a igualdade de oportunidades educacionais na dimensão doméstica (Culp, 2020b). Sua teoria, portanto, ultrapassa a dimensão doméstica, concebendo as questões educacionais em nível global.
A posição de Culp é, na contemporaneidade, uma teoria normativa muito bem estruturada que contempla situações de injustiça social e busca responder a elas pela articulação de uma concepção de educação democrática que enfrente os desafios da globalização. A educação, nesse contexto, é considerada, assim como na tradição democrática legada por John Dewey, uma ferramenta importante para a promoção de uma sociedade justa e democrática, não apenas na dimensão doméstica, mas também global. Buscando analisar criticamente tal teoria, o presente trabalho pretende tencionar seus argumentos, questionando, especialmente, a ordem de prioridades conferida por Culp aos direitos educacionais abrangidos por sua concepção de justiça educacional democrática global. Por meio da discussão de alguns elementos que podem ser encontrados em sociedades com grandes desigualdades sociais e com traços autoritários, sugere-se que tal ordem seja invertida ou que haja, pelo menos, uma equivalência moral entre os direitos.
A concepção de justiça educacional democrática global é formulada por Culp especialmente em seu livro Democratic Education in a Globalized World: A Normative Theory, publicado em 2019. A fundamentação normativa de sua concepção é construída, porém, anteriormente. Já em 2014, no livro Global Justice and Development, Culp defendia a necessidade de desenvolver uma teoria global de justiça que, diferentemente de uma concepção apenas transnacional, avançasse suas pretensões no sentido de pensar, de forma análoga à teoria de Rawls, uma estrutura básica para a sociedade em dimensão global. Tal pretensão é o elemento central que permite a Culp caracterizar sua abordagem como internacionalista (Culp, 2014, p 159). Partindo da base normativa defendida por Forst, a posição de Culp se situa no marco de uma teoria discursiva que assume o pressuposto antropológico de que os seres humanos são “seres racionais [reasoning beings], capazes de fundamentar e justificar suas crenças e ações com referência a razões” (Culp, 2014, p. 117, tradução nossa) de forma relativa a contextos de justificação. Essa característica expressa o compromisso da teoria com o igual respeito moral às pessoas e a sua dignidade na medida que elas possuem um direito moral básico a justificações, tanto de fornecê-las quanto de reivindicá-las. Tais justificações devem respeitar dois critérios, o da generalidade e da reciprocidade, o que significa que elas devem ser apresentadas a todas as pessoas, independente de seus contextos políticos, sociais, culturais ou suas concepções de bem, e que não se restringem a grupos específicos, não devendo ser unilaterais, de forma que nenhuma pessoa deveria contar com maior autoridade justificatória do que outra, mesmo que existam diferenças de poder entre elas (Culp, 2014, p. 123).
Outro elemento assumido por essa teoria de justiça discursiva é o de que “honrar o princípio do igual respeito moral requer o estabelecimento de instituições sociais e políticas de acordo com princípios de justiça que expressem publicamente o reconhecimento mútuo desses princípios” (Culp, 2014, p. 124, tradução nossa). As instituições sociais e políticas, portanto, devem ser justificáveis para seus membros de forma que eles se vejam como autores delas por meio de processos em que todos foram igualmente respeitados em seus status moral e em sua dignidade como seres capazes de fornecer justificações. Por isso, diz Culp, “ordens sociais e políticas justas devem proporcionar a todos os seus membros papéis sociais e políticos apropriados, por meio dos quais eles possam se envolver efetivamente no intercâmbio de razões sobre suas instituições comuns em pé de igualdade” (Culp. 2014, p. 124, tradução nossa), além de poderem contestar falsas justificações. Para isso, é necessário que haja mecanismos institucionais deliberativos democráticos por meio dos quais os indivíduos possam demandar e oferecer justificações e contestar aquelas que não respeitam os critérios da generalidade e reciprocidade (Culp. 2014, p. 125). As exigências mínimas dessa pretensão se dirigem tanto ao nível doméstico, quanto internacional. Representantes de estados justos devem ter poder justificatório em processos de formação de opinião e vontade que afetam a vida de todos e, ainda, devem ser capazes de construir princípios de justiça substantivos válidos internacionalmente a partir dos quais possam emergir ordens políticas e sociais justas (Culp. 2014, p. 125). Tais princípios se associam à ideia de autonomia da pessoa, já que os indivíduos devem poder ser capazes de responder, fornecendo suas próprias razões, sobre por que agiram de uma determinada forma em um certo contexto (Culp, 2014, p. 121). A ideia de autonomia será também importante para a concepção de teoria de justiça educacional defendida por Culp, como será visto adiante.
Além disso, também apoiado na teoria de Forst, Culp endossa a posição de que para a teoria discursiva da justiça as questões de estrutura de justificação precedem as distributivas (Culp, 2014, p. 94). Isso significa que o internacionalismo teórico-discursivo não se compromete com a implementação de uma teoria de justiça distributiva global, já que tais definições devem ser feitas pelas partes por meio dos processos institucionais deliberativos democráticos. Contudo, para que no nível internacional haja legitimidade nos processos deliberativos, é necessário que não existam assimetrias de poder excessivas entre os representantes dos estados e que esses tenham, por sua vez, um poder justificatório assegurado por procedimentos de formação de opinião e de vontade democráticos e justos em nível intranacional (Culp, 2014, p. 126).
Tais ideias são retomadas por Culp em sua obra Democratic Education in a Globalized World: A Normative Theory, assim como em outros textos publicados posteriormente, especialmente Educational Justice (2020) e Global Democratic Educational Justice (2023), a fim de articular sua concepção democrática de justiça global como base normativa para o âmbito da educação, superando os limites de concepções de justiça educacional que se restringem ao âmbito doméstico. Uma educação pensada nesses termos deve permitir condições subjetivas para a participação dos indivíduos nas estruturas de justificação tanto domésticas, quanto em nível transnacional, em consideração à sua autoridade normativa nos processos de formação de opinião e vontade, ou seja, os indivíduos devem ser capazes de avaliar e criticar as justificações empregadas nos procedimentos deliberativos em que atuam seus representantes políticos. Como afirma Culp,
As exigências centrais da justiça educacional global que decorrem dessa concepção são a formação da autonomia moral pessoal e autonomia pública por meio de políticas públicas educacionais de modo que as pessoas não sejam dominadas em seu desenvolvimento pessoal e possam participar efetivamente dos processos de tomada de decisões políticas (2023, p. 248, tradução nossa).
A concepção democrática de justiça educacional pretende promover, portanto, uma educação adequada à democracia tanto intranacional quanto internacional. As políticas públicas educacionais, nesse contexto, devem apresentar como fins a promoção de autonomia moral pessoal e autonomia pública, as quais são condições para a participação nos processos de deliberação sobre os arranjos de ordens sociais e políticas. Na concepção de Culp, tais capacidades se constituem em direitos educacionais, uma vez que possibilitam a participação dos indivíduos em estruturas nacionais ou internacionais de justificação que amparam, por meios discursivos, as deliberações acerca dos princípios de justiça que ordenarão as sociedades.
A autonomia pública é compreendida por Culp em referência às “pessoas como sujeitos públicos que podem participar em processos de tomada de decisão públicas cooperando com outros em raciocinar criticamente sobre os fins públicos de suas respectivas comunidades políticas” (2020b, p. 249, tradução nossa). Isso requer, segundo o autor, que as pessoas reconheçam o fato do pluralismo razoável sobre as diferentes concepções de bem existentes na sociedade, já que ele decorre da situação de se assegurar aos indivíduos suas liberdades cívicas e políticas. Não basta, porém, que as pessoas, no uso de sua autonomia pública, apenas participem daqueles processos, mas que possuam responsabilidade em agir de acordo com as deliberações resultantes: “[...] os indivíduos devem se tornar, portanto, autores conjuntos das ordens sociais e políticas que habitam e devem estar dispostos a manter ‘suas’ ordens normativas seguindo as regras políticas dessas ordens” (Culp, 2023, p. 250).
A outra capacidade a ser desenvolvida por meio da educação é a da autonomia moral pessoal, a qual Culp sustenta a partir da teoria de Forst, e que diz respeito à capacidade de agir segundo normas morais justificadas a partir dos critérios de reciprocidade e generalidade (Cf. Culp, 2023, p. 250). Segundo o primeiro critério, todas as pessoas contam equitativamente como autoridades para poder decidir sobre os fins que perseguem em suas vidas privadas. Já o segundo define que todas as normas práticas são justificáveis a todas as pessoas. No contexto da concepção democrática de justiça educacional, essa capacidade expressa uma qualidade de não dominação conectada ao direito moral de justificação de que ninguém pode decidir por outro indivíduo como ele deve conduzir sua vida.
A partir da defesa desses direitos, Culp estabelece uma diferença entre justiça educacional fundamental e justiça educacional democrática completa:
A justiça educacional democrática fundamental requer apenas a realização do princípio da adequação educacional democrática, ou seja, a ideia da educação democrática para a democracia. Uma vez que esse princípio seja realizado, os processos democráticos de formação de opinião e de vontade deverão determinar como equilibrar adequadamente e, eventualmente, contrabalançar os outros princípios de justiça educacional, como a liberdade educacional dos pais ou a igualdade de oportunidades educacionais. A justiça educacional plena é obtida não apenas quando esses processos ocorrem, mas, além disso, quando os outros princípios de justiça educacional são realizados (Culp, 2019, p. 74, tradução nossa).
Com tal distinção, a concepção de justiça educacional democrática global pretende conferir prioridade à educação democraticamente adequada se isso for necessário ao estabelecimento de uma ordem social democrática e deixar a avaliação sobre como promover a distribuição da educação como parte de um processo democrático de tomada de decisão (Cf. Culp, 2018, p. 78; Culp, 2020b, p. 7). Isso significa que os direitos educacionais fundamentais devem ser garantidos dentro dos estados e também globalmente. De modo secundário, outros direitos podem vir a ser definidos por meio dos procedimentos deliberativos já estabelecidos em sociedades justas. A realização fundamental da justiça educacional nos termos de uma educação democraticamente adequada deveria ocorrer em nível global e, somente depois de instituídas as estruturas de justificação necessárias aos processos democráticos deliberativos, é que os direitos secundários, como aqueles relativos à igualdade de oportunidades educacionais, deveriam ser definidos. Ou seja, a posição de Culp, ao pretender expandir as fronteiras nacionais da formação democrática para uma educação transnacional, afirma que o princípio da oferta de uma educação democraticamente adequada em todos os países teria prioridade sobre a realização interna (nacional) do princípio de igualdade de oportunidades (Cf. Culp, 2019, p. 78).
A posição de Culp, que enfatiza a dimensão política da educação democrática sobre a dimensão econômica ligada à igualdade de oportunidades, levanta algumas perguntas que merecem atenção especialmente quando se considera a realidade de países marcados por grandes desigualdades sociais, econômicas e educacionais. Seria possível, por exemplo, dar prioridade à educação democraticamente adequada mesmo quando a oferta de ensino público é feita em um contexto de grandes disparidades sociais que afetam o acesso à educação? Ou, ainda, como a educação democraticamente adequada enfrenta, por exemplo, os efeitos educacionais de sociedades estruturadas a partir de formas de dominação como o racismo, que se traduzem em “desigualdades duráveis”, conforme a crítica de Anderson (2010). A fim de refletir sobre o alcance da concepção defendida por Culp em contextos como esses, a próxima seção se dedicará ao exame crítico da defesa da prioridade dos direitos educacionais fundamentais, isto é, da educação democraticamente adequada, sobre os direitos secundários relacionados à igual distribuição de oportunidades educacionais, sugerindo que em sociedades com grandes desigualdades sociais, culturais e educacionais, geradas por estruturas históricas de dominação racial, de gênero e de classe, tal ordem possa ser invertida ou desfeita, resultando, assim, na equivalência moral entre os direitos educacionais defendidos por Culp.
Críticas à posição de Culp foram desenvolvidas, por exemplo, por Festl (2020), Beckstein (2020) e Geiss (2020), e respondidas pelo autor no artigo A vindication of transnational democratic education - replies to Michael Festl, Martin Beckstein and Michael Geiss, publicado também em 2020. Uma das objeções colocadas à concepção de Culp é a de que seu caráter puramente normativo, que desconsideraria elementos empíricos e históricos, levaria a atribuir à educação objetivos relacionados aos desafios sociais, ecológicos e democráticos contemporâneos que ela, como instituição com um impacto limitado, seria incapaz de enfrentar (Geiss, 2020, p. 148). Além disso, afirma Geiss,
uma abordagem transnacional ou global da reforma educacional falha em reconhecer os desafios que estamos enfrentando atualmente. As múltiplas condicionalidades da educação significam que uma política democrática deve levar em conta as necessidades locais. Uma teoria normativa que não reflita esse fato pode não ver o problema real. A luta pela educação como um bem público que permite a participação política e econômica de todos os habitantes de um território acontece localmente. No entanto, para os países pobres e as regiões negligenciadas do mundo, a solução não está, em primeiro lugar, em uma educação de conscientização transnacional, mas em políticas econômicas que permitam que esses Estados forneçam à sua população a educação e o treinamento de que necessitam. Em uma primeira etapa, o problema da justiça educacional global não é, portanto, um problema educacional (2020, p. 153, tradução nossa).
Culp responde a essas objeções apontando que ainda que sua concepção tenha um caráter normativo, várias questões relacionadas às realidades históricas e contemporâneas da educação são levadas em consideração (2020a, p. 168). São discutidos, em seus textos, problemas relativos à economização da educação, à adoção da concepção de capital humano, que representa uma visão reduzida das finalidades educacionais, assim como as falhas na realização de uma educação democrática contemporânea (Culp, 2020a, p. 168). O autor se dedica também à reflexão sobre as implicações das críticas pós-coloniais na educação e sobre as dificuldades envolvidas no conceito de autonomia,2 inclusive seus aspectos ideológicos, algo relevante na medida em que tal noção é defendida no contexto de sua concepção de justiça educacional democrática global (Cf. Culp, 2019). Dessa forma, defende o autor,
[…] minha concepção de educação democrática não é um exercício de esboço filosófico. Na verdade, ela nasce de uma insatisfação com as falhas gritantes das práticas passadas e atuais de educação para a cidadania (Culp, 2020a, p. 169, tradução nossa).
De fato, além de Culp se dedicar às questões mencionadas, o autor considera que a sua defesa de uma ordem de prioridades dos direitos educacionais pode ser alterada em função de determinados contextos. Sua concepção prevê que os direitos primários ou fundamentais de proporcionar uma educação democraticamente adequada devem ser buscados em nível doméstico e, uma vez que sejam garantidos, o estado deveria se envolver na promoção desses mesmos direitos em nível internacional, antes de orientar suas políticas para a realização dos direitos educacionais secundários de igualdade de oportunidades. Isso porque sua concepção assume que a criação de estruturas de justificação, as quais permitem o estabelecimento de processos deliberativos, teria prioridade moral, cabendo a decisão sobre a distribuição dos recursos aos sujeitos que participam de tais deliberações. Contudo, sustenta Culp,
Em determinadas circunstâncias, pode não haver políticas públicas educacionais viáveis para promover a educação para a cidadania democrática no exterior. Em tal situação, a melhor escolha poderia consistir em tentar concretizar um entendimento específico da igualdade de oportunidades educacionais domesticamente. No entanto, se houver políticas razoavelmente eficazes disponíveis para promover a consciência democrática nacional ou transnacional no exterior, então a escolha dessas políticas, em vez daquelas que melhorariam a igualdade de oportunidades educacionais no país, seria a melhor escolha política, considerando todos os aspectos. De fato, nessas circunstâncias, seria problemático promover a igualdade de oportunidades educacionais internamente em vez de apoiar a realização da consciência democrática nacional ou transnacional em outros lugares, já que esta última diz respeito a questões de justiça democrática fundamental (Culp, 2019, p. 102, tradução nossa).
Como se pode observar na passagem acima, Culp reconhece que, em não havendo condições para a promoção de uma educação democrática internacionalmente, um país poderia concentrar seus esforços e recursos assegurando os direitos secundários relacionados à igualdade de oportunidades na educação. Uma outra situação, porém, não é contemplada como caso de excepcionalidade para a aplicação da ordem de prioridade. Considere-se, por exemplo, países em que a educação democrática não está consolidada e em que existam grandes desigualdades sociais, culturais e educacionais, as quais são produzidas, em grande medida, por estruturas de dominação racial, de gênero e de classe historicamente constituídas. Tais características podem ser condições limitantes à abordagem de Culp na medida que elas não apenas têm efeitos sobre o acesso à educação, mas também prejudicam a oferta de uma educação democrática em pelo menos um sentido relevante, como se mostrará a seguir.
Assumindo o caso do Brasil como exemplo, poder-se-ia dizer que embora o acesso à educação seja um direito constitucional, a cisão entre o ensino público e o privado na Educação Básica pode ser um fato limitador para a oferta de uma educação democrática se considerarmos o contexto cultural, político e econômico dos últimos anos, no qual o país experienciou a emergência de forças autoritárias, conservadoras e reacionárias. Vale, aqui, recorrer a uma importante reflexão de Honneth sobre as condições para a formação da vontade democrática:
Com a implementação estatal de uma frequência escolar obrigatória para todos, o ensino administrado pelas autoridades públicas se tornou uma alavanca decisiva da formação de comportamentos e capacidades da geração subsequente, de modo que ele exerce, tanto para o bem quanto para o mal, influência sobre as qualidades do futuro cidadão e da futura cidadã. O tipo de educação escolar, seus métodos e conteúdos, pode repercutir de maneira desejável na consistência de uma democracia, promovendo, por exemplo, a capacidade de cooperação e a autoestima individual, ou então contribuir, de maneira negativa, para seu insidioso solapamento quando ela veicular a submissão à autoridade e o conformismo moral (Honneth, 2013, p. 548).
De acordo com Honneth, é a educação pública que possui legitimidade e autoridade para promover o ensino ligado à manutenção da própria democracia, já que os valores que podem ser cultivados nas escolas devem corresponder à necessidade de fortalecimento daquelas condições que possibilitam a renovação social democrática. Contudo, uma crescente visão conservadora tem demandado da educação que ela seja neutra, o que compromete tal possibilidade de renovação. Nessa linha argumentativa, pode-se compreender as razões pelas quais sociedades que experienciam a emergência de autoritarismos enfrentam ataques à educação pública, bem como a defesa, por parte de forças antidemocráticas, de alternativas ao ensino público, como o privado ou o homeschooling, que facilitariam a promoção de valores ligados a agendas conservadoras e reacionárias.
Uma das explicações possíveis para a vinculação entre as disputas morais e políticas em torno da educação na contemporaneidade pode ser encontrada, por exemplo, nas reflexões sobre o neoliberalismo desenvolvidas por Wendy Brown. Em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo, de 2019, a autora procura mostrar, especialmente a partir da análise da doutrina neoliberal de Friedrich Hayek, como o funcionamento atribuído ao mercado e à moralidade, intimamente vinculados a um sentido de tradição, buscam proteger o âmbito privado. Como consequência, é produzida uma cultura antidemocrática de forma interna ao desenvolvimento neoliberal, o que possibilitaria, em parte, explicar a ascensão contemporânea da extrema direita. O ataque ao âmbito do social e à própria ideia de sociedade, resultam, para Brown, no enfraquecimento da igualdade política e da democracia, já que ele “[...] é fundamental para gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima” (Brown, 2019, p. 39).
A análise de Brown se apoia, também, nas reflexões de Melinda Cooper (2017) sobre o modo pelo qual a figura da família é central para o desenvolvimento neoliberal nos Estados Unidos e para as reformas por ele promovidas no estado de bem-estar social e na educação. Ao apelarem para a família tradicional como substitutiva do próprio estado, as forças conservadoras se colocam em oposição à agenda da justiça social. Como afirma Brown,
à medida que a vida cotidiana é mercantilizada de um lado e ‘familiarizada’ de outro pela racionalidade neoliberal, estes processos gêmeos contestam os princípios de igualdade, pluralismo e inclusão, junto com a determinação democrática de um bem comum (Brown, 2019, p. 133).
Além disso, segundo a autora, há a presença do ressentimento que se soma à aliança entre o mercado e moral, fortalecendo o ataque ao social, ao político, à igualdade e à democracia. Tal sentimento emerge a partir de uma espécie de “destronamento” de privilégios sociais históricos, em indivíduos que sentem a dominação que exerceram ser ameaçada, especialmente, a masculinidade e a branquitude (Brown, 2019, p. 214). Um outro aspecto importante que fortalece o ressentimento contemporâneo seria resultado das “[...] profundas desigualdades de acesso e as hierarquias que organizam cada parte do comércio e do que resta da vida pública” (Brown, 2029, p. 215) e que são provocadas pelo neoliberalismo. Assim, nada fica intocado, sejam “[...] parques naturais, educação, emergência, escolas e outros serviços urbanos [...]” (Brown, 2029, p. 216).
Por meio dessas considerações sobre os ataques às questões de justiça social que se fortalecem com o desenvolvimento neoliberal e sua cultura antidemocrática, cabe ponderar se a concepção normativa de justiça educacional democrática global defendida por Culp, que possui abertura à consideração de elementos empíricos, não deveria estabelecer outra relação entre os direitos fundamentais e secundários para o caso de países com as características que foram mencionadas anteriormente. Ou seja, poderíamos colocar em questão a defesa de que a prioridade da educação democraticamente adequada sobre a igualdade de oportunidades educacionais poderia promover mais democracia em sociedades com traços autoritários e com grandes desigualdades sociais. Nestas, em primeiro lugar, seria necessário defender de forma enfática o ensino público como possibilidade de renovação da própria democracia, já que, a serviço do estado, ele possui a prerrogativa de cultivar valores que a fundam e a sustentam. Em segundo lugar, considerando o desenvolvimento neoliberal, o aprofundamento das desigualdades que ele causa, assim como o ressentimento que emerge face ao destronamento de privilégios que eram sustentados historicamente, é importante questionar se alguma forma de igualdade de oportunidades não deveria ser, senão priorizada, mas, pelo menos, considerada moralmente equivalente ao direito à educação democraticamente adequada.
Uma hipótese que poderia justificar tais questionamentos é a de que as formas de dominação historicamente existentes no Brasil, em seu caráter interseccional, impossibilitam que apenas uma educação democraticamente adequada possa promover o desenvolvimento da autonomia moral pessoal e da autonomia pública, já que as barreiras para o reconhecimento de grupos marginalizados e desfavorecidos estão presentes em diversas instituições e exigiram um esforço maior para serem superadas. Desse modo, a educação democrática, que tem como finalidade possibilitar a participação dos indivíduos em estruturas de justificação, teria que considerar, nesse caso, que as grandes assimetrias de poder existentes em nível doméstico necessitam de políticas diferenciadas na dimensão distributiva para serem, de alguma forma, contrabalançadas, já que a autoridade justificatória das pessoas pode ser comprometida. Enquanto uma ordem justa não é estabelecida, enquanto a educação democraticamente adequada não é assegurada, não se poderia considerar que definições relativas à distribuição da educação pudessem ser feitas de forma justa por meio de procedimentos de tomada de decisão.
Outro aspecto que pode ser considerado para a sugestão de tal hipótese é a de que a educação pública concorre, muitas vezes, com a oferta de ensino em escolas privadas, as quais, além de poderem proporcionar uma formação melhor, dada a estrutura de tais instituições, já contariam com um público que é, de alguma forma, privilegiado socialmente. Nesse caso, há um reforço da condição de desigualdade social, o que pode levar tal grupo a se constituir como uma elite com participação política maior ou mais significativa na esfera pública, sem que tenha havido, necessariamente, uma educação democrática capaz de orientá-lo na direção da busca por justiça social. Uma concepção de justiça educacional democrática, nesse sentido, deveria sustentar uma defesa mais enfática do ensino público como ferramenta para a promoção da democracia.
A partir de tais considerações, podemos observar que há elementos presentes nas sociedades com grandes desigualdades e em que a cultura abriga dentro de si forças antidemocráticas que tornam questionável a ideia defendida por Culp de que uma educação democraticamente adequada possa ser prioritária, no contexto de promoção da justiça educacional, em relação a questões de igualdade de oportunidades. Sem entrar no debate específico sobre esta última vertente teórica, o que se sugere, aqui, é que a ordem de prioridades necessitaria de uma reconsideração, seja para invertê-la ou para assumir uma equivalência moral dos direitos educacionais até então definidos como primários ou secundários.
O caráter global da concepção defendida por Culp é fundamental para promover a educação democrática, já que, considerando o próprio contexto neoliberal, as decisões que são tomadas internacionalmente podem acarretar consequências importantes para os contextos nacionais. A preocupação com o estabelecimento de estruturas de justificação que tornem possível a criação de processos deliberativos democráticos internacionalmente também é crucial para que ordens sociais avancem no sentido da definição e realização de princípios de justiça. As qualidades da concepção de Culp a tornam interessante para a reflexão sobre a educação contemporânea, especialmente, para o debate sobre justiça educacional. Os pontos levantados acima e que foram objeto de questionamentos podem incitar a reflexão sobre como melhor considerar as pretensões normativas da concepção de justiça educacional global democrática em sociedades cuja realidade social encontra-se muito distante dos pressupostos assumidos pela teoria.
A concepção de justiça educacional democrática global visa uma formação voltada para valores de autonomia moral pessoal, autonomia pública e não dominação, respeitando também a pluralidade existente na sociedade em relação às diferentes concepções de bem. A base normativa da teoria permite dar prioridade à dimensão política da educação em detrimento do caráter distributivo, uma vez que parte do pressuposto de que os seres humanos possuem um direito à justificação, o qual os capacita a oferecerem e demandarem justificações, bem como a elaborarem princípios e procedimentos para a realização da justiça. A educação, nesse contexto, permitiria a formação de capacidades intimamente relacionadas a esse exercício do direito de justificação (Culp, 2023), na medida em que o papel dos indivíduos, considerado no contexto da concepção democrática de justiça global, deve ser exercido de tal forma que eles se vejam como autores de suas instituições, as quais serão resultados de processos públicos de tomada de decisão. A capacidade para participar de tais processos, como defende Culp, não deve ser limitada à esfera doméstica, mas ampliada em termos globais, respeitando, além disso, uma prioridade no cumprimento da educação democraticamente adequada em todos os estados, portanto, em nível global, para, depois, buscar a realização da igualdade de oportunidades educacionais em termos domésticos (Culp, p. 251).
O presente trabalho procurou colocar em questão a ordem de prioridades dos direitos educacionais defendidos por Culp em sociedades nas quais é necessário alcançar uma ordem democrática mais estável. Considerando que há realidades marcadas por grandes desigualdades que são causadas por formas de dominação historicamente constituídas, que no contexto do desenvolvimento neoliberal uma cultura antidemocrática vem sendo produzida, com reflexos na educação, disputada também por forças conservadoras, é possível refletir se uma educação democrática seria suficiente para alcançar as finalidades almejadas pela concepção de justiça educacional democrática global. Sugeriu-se, então, que dada essa realidade, a ordem de prioridade afirmada por Culp em relação aos direitos educacionais devesse ser invertida ou, pelo menos, que a promoção de educação democraticamente adequada pudesse ser considerada moralmente equivalente à igualdade de oportunidades.