Persecução penal: investigação, juízo oral e etapa recursal
Recepção: 24 Maio 2021
Aprovação: 08 Junho 2021
DOI: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i3.634
Resumo: Neste artigo são analisadas as transformações no processo penal posteriores ao maxi-processo, especificamente a formação de um processo penal especial destinado à persecução da criminalidade organizada, o «grande processo», «difuso», no qual os singulares e concretos procedimentos penais confluem, com o sério risco de perder a sua individualidade.
Palavras Chave: organizações criminosas, máfia, procedimento especial, técnicas especiais de investigação.
Abstract: In this article, the transformations in the criminal procedure after the maxi-processo are analyzed, specifically the formation of a special criminal procedure destined to the pursuit of organized crime, the «big process», «diffuse», in which the singular and concrete criminal proceedings come together, with the serious risk of losing his individuality.
Keywords: criminal organizations, mafia, special proceeding, special investigation techniques.
1. Consideração introdutória
Esta intervenção não poderá mais do que exaurir em medida muito reduzida os argumentos evocados no título. A amplitude do tema atribuído a mim impunha uma drástica seleção das questões merecedoras de ser ilustradas. Então, considerei oportuno iniciar por aquelas mais gerais, também porque – ao que me consta – em relação a essas não houve ainda uma reflexão adequada por parte da doutrina. O que farei aqui é, portanto, um discurso geral, preliminar e uma pontual individuação e interpretação das normas processuais singulares que se referem a fatos de criminalidade organizada. É, em outras palavras, um olhar de cima e de longe, tendente a capturar as grandes linhas da recente legislação de emergência.
Com o escopo de evitar a confusão que poderia ser determinada pela sobreposição de opiniões e pontos de vista em uma matéria que pretende antes de tudo ser ordenadamente analisada, tentarei – no que for possível – abster-me de exprimir comentários e apreciações críticas: o esforço será voltado mais a compreender a razão de ser das soluções normativas que serão examinadas.
Quero começar antecipando imediatamente – por meio de teses – aquela que, na realidade, constitui a conclusão de um raciocínio e que pode ser expressa nos seguintes termos: no momento atual, os fatos subsumíveis sob a noção de criminalidade organizada são objeto de um processo judiciário que, com boa razão, se pode qualificar como especial.
Uma afirmação similar pode fundamentalmente ser sustentada a partir, em particular, da entrada em vigor do Decreto-legge n. 306, de 8 de junho de 1992 1. Quando falo de «processo judiciário especial» não aludo apenas ao tão discutido sistema do «duplo binário». Eu não sei, na verdade, o que exatamente designa essa expressão; mas é certo que vem sendo usada em uma acepção muito mais restrita do que aquela por mim proposta, se a referência é apenas as exceções ( deroghe) 2 relacionadas à formação contraditória ( dibattimentale3) da prova 4. Quando se fala aqui de «especialidade» do procedimento penal se pretende referir ao processo penal inteiro, a partir dos momentos iniciais – aqueles relativos à busca da notícia-crime – até a sentença que conclui o julgamento.
Se trata de ver em que consiste essa especialidade. E, a esse propósito, convém antecipar uma advertência para alertar a respeito de certas sugestões que a metáfora do duplo binário pode evocar: vale dizer, a ideia de um primeiro binário, sobre o qual continuaria a marchar o sistema (mais ou menos) acusatório, elaborado com a reforma de 1988. Eu creio que o procedimento especial do qual se fala não representa apenas um desvio (mais ou menos marcado) de um modelo acusatório, mas contém – veremos em quais termos – fortes elementos de diferenciação até mesmo em relação ao modelo processual assim chamado misto, pertencente a uma tradição mais remota.
Sempre a nível de antecipação se pode dizer que o procedimento especial nos enfrentamentos ao crime organizado é o resultado (recente) de uma escolha consciente de oportunidade por parte do legislador. Faz tempo que existiu, no nosso ordenamento processual, a possibilidade de utilizar instrumentos particulares para o acertamento de certos crimes: basta pensar nas interceptações telefônicas preventivas 5, na predisposição de sinergia entre atividade repressiva e preventiva 6 e, ainda, nas investigações sobre patrimônios dos parentes próximos ( prossimi congiunti) 7 previstos na normativa especial antimáfia 8: se tratava, porém, de momentos episódicos, nos quais se podia pelo menos vislumbrar o embrião daquela organização bem mais geral e coordenada do «procedimento especial» que foi gradualmente afirmando-se no tempo, e que alcançou uma fisionomia reconhecível com os importantes eventos normativos de 1991 e de 1992 9.
Para compreender em toda a sua potencialidade ( portata) o «caminho» feito pelo legislador italiano, pode ser útil um paralelo com a contemporânea novela legislativa da Alemanha federal 10, a qual se limita a regular técnicas especiais de investigação em relação a fatos de criminalidade organizada, sem tocar a estrutura do julgamento 11. É verdade que, no modelo processual alemão, no qual o material da investigação preliminar é destinado, em boa parte, a entrar entre as fontes cognoscitivas do órgão judicante 12, potencializar o aparato investigativo público equivale, em definitivo, a influir no procedimento de formação da sentença de mérito. Mas – é preciso admitir – no ordenamento alemão as exceções ao princípio da oralidade (no entanto, maciçamente presente também no nosso sistema) valem indistintamente para todos os processos, enquanto a peculiaridade sobre a qual se quer aqui chamar atenção, é representada pela adoção, na lei italiana, de um julgamento processual especial ( special procedura dibattimentale) para determinados crimes.
Se confirma, assim, a tese há pouco enunciada (e destinada a ser ulteriormente argumentada) segundo a qual, os fatos de criminalidade organizada são objeto não apenas de uma «investigação» especial ( special « indagine»), mas também de um «juízo» especial ( special « giudizio»): em outras palavras, de um procedimento especial geral. Mas, antes de ver quais aspectos caracterizam este tratamento especial, é necessário estabelecer quais casos devem ser submetidos: ou seja, é necessário ver o que significa aqui «criminalidade organizada».
2. A noção processual de criminalidade organizada
«Criminalidade organizada» é expressão indeterminada que mal se presta a individuar o pressuposto de fato para a aplicação de certas normas processuais. Apesar da necessidade de «determinação» valer sobretudo no direito penal substancial 13, é preciso admitir que também no direito processual essa é aplicável, principalmente quando estão em jogo princípios ou direitos fundamentais, cuja limitação, entre outras coisas, deve quase sempre se dar por ato motivado 14 da autoridade judiciária.
É, portanto, compreensível que a expressão seja usada com parcimônia nas normas concernentes à atividade processual em sentido estrito 15. Os exemplos são raros: particularmente, o art. 274, letra C, do CPP em matéria de requisitos cautelares 16; o art. 240 bis das Disposizioni di attuazione del Codice di Procedura Penale ( Decreto-legge n. 271, de 28 de julho de 1989), em matéria de suspensão dos prazos processuais no período de trabalho 17; o art. 13 comma 1 do Decreto-legge n. 152, de 13 de maio de 1991, em tema de interceptações telefônicas 18. A locução «criminalidade organizada» aparece, por outro lado, com maior frequência em algumas leis que regulam a atividade de polícia, a qual, enquanto for usada em operações informais, não precisa ser ancorada a tipos legais ( fattispecie19) bem determinados 20.
Nesta matéria, o princípio de determinação não é implementado com muito rigor. Apenas alguns fatos de criminalidade organizada são individuados através de referências (taxativas) a determinar hipóteses criminosas; para o resto, a lei processual se refere a uma série indeterminada de crimes, individuados através de nexos teleológicos ou causais com alguns dos tipos legais ( fattispecie) taxativamente indicados. O discurso, então, se complica ulteriormente se se pensa que a lei processual não fornece, a respeito disso, uma única catalogação de crimes. Encontramos no nosso ordenamento uma multiplicidade de listas, com extensões diversas.
Uma primeira lista a tomar em conta – a mais ampla – é aquela que abrange os delitos em flagrante dos quais resulta obrigatória a prisão (art. 380 do CPP). Essa faz incidir o art. 118 do CPP que, permitindo o envio de atos e informações da autoridade judiciária ao Ministro do Interior, cria a premissa para colaboração mútua entre atividade repressiva e atividade preventiva. A mesma incidência se encontra no art. 270 do CPP, como limite à possibilidade de utilizar os êxitos da interceptação telefônica efetuada em outros procedimentos; e no art. 9 do Decreto-legge n. 8, de 15 de janeiro de 1991, como um dos pressupostos para a adoção de medidas idôneas a assegurar a incolumidade dos colaboradores da justiça.
Outra lista de crimes relevante para os nossos objetivos é aquela contida no art. 275 comma 3 do CPP, que fixa uma espécie de presunção iuris tantum quanto à subsistência de requisitos cautelares aptos a justificar a custódia no cárcere. E a mesma norma se referem, por exemplo, a disposição que atribui ao procurador nacional antimáfia o poder de dispor sobre a permanência cautelar ( soggiorno cautelare21) (art. 25 quarter do Decreto-legge n. 306 de 1992), e as disposições sobre a matéria em termos de duração da investigação preliminar: notadamente o art. 407 comma 2, letra A, do CPP, por sua vez complementado pelo art. 405, comma 2, do CPP.
Enfim, deve ser mencionada a lista contida no art. 51, comma 3 bis, do CPP, elaborada para fixar os limites de atribuição da procuradoria distrital antimáfia. A mesma norma é também expressamente complementar de numerosas outras disposições, entre as quais merecem ser particularmente recordados o art. 190 bis do CPP em matéria de direito à prova oral; o art. 371 bis do CPP em matéria de atividade do procurador nacional antimáfia; o art. 406, comma 5 bis, do CPP concernente às modalidades de concessão de prorrogação na investigação preliminar.
A lista de crimes do art. 51, comma 3 bis, do CPP acaba sendo a mais reduzida, e é formulada em modo tal para ser abrangida por inteiro nas duas listas precedentes. Se pode, portanto, dizer que nos procedimentos relativos aos crimes elencados na norma em questão valem seja as regras especiais que se vinculam expressamente a tal norma, seja aquelas previstas para os procedimentos relativos às outras, como no mencionado rol de crimes (art. 118, 275, 406 e 407 do CPP). É sobretudo com relação aos crimes indicados no art. 51, comma 3 bis, do CPP que se verifica o maior número de desvios da disciplina processual ordinária. São também estes os crimes que compõem a noção processual de criminalidade organizada 22, e é mesmo em relação a esses que se delineia a existência de um «procedimento especial», no sentido há pouco mencionado.
3. Delitos de criminalidade organizada e conotações relevantes para a legislação processual especial
Não há dúvida que as disposições especiais aplicáveis aos delitos indicados no art. 51, comma 3 bis, do CPP são o resultado de escolhas de oportunidade. Todavia, embora aqui a discricionariedade legislativa desempenhe um papel decisivo, é difícil escapar da impressão que algumas daquelas escolhas foram impostas por uma espécie de prepotente «natureza das coisas», quase como se a eficaz perseguição do crime organizado impusesse fatalmente uma adequação da normativa processual 23. É lícito, então, supor que o conceito de «criminalidade organizada», embora vago e indefinido, forneceu a justificação lógica para uma série de desvios «razoáveis» da normativa ordinária 24. Daquele conceito assume relevância, em particular, algumas conotações fundamentais, que convém brevemente analisar, a fim de compreender a razão de ser e o escopo inovador das escolhas mencionadas acima.
A. Omertà25
O caráter silencioso dos fenômenos criminais torna necessária a predisposição de atividade investigativa inspirada em rigorosos critérios de segredo (também interno) e estruturados de modo a assegurar o efeito surpresa da operação. Os exemplos são numerosos e se relacionam a uma variada tipologia de instrumentos investigativos: as interceptações de conversas são admitidas com maior facilidade quando se trata de crimes de criminalidade organizada 26; as buscas podem ser excepcionalmente conduzidas em edifícios ou blocos de edifícios inteiros 27; às vezes as inspeções e buscas podem ser utilizadas até mesmo antes da notícia-crime, tornando-se, assim, instrumentos de investigação da notícia mesma 28; podem também ser lembradas as atividades de investigação secreta que consistem em seguir e observar informalmente à distância, possíveis nos casos que a lei admite que seja retardada a execução da medida cautelar (pessoal ou real) 29; o uso de agentes provocadores 30 e, sobretudo, o recurso maciço aos «colaboradores da justiça», tornado possível por uma legislação complexa de natureza marcadamente recompensadora 31. Parece significativa também a regra especial em tema de prorrogação dos prazos de investigação preliminar (art. 406, comma 5 bis, do CPP), segundo a qual a pessoa indiciada por um dos crimes elencados no art. 51, comma 3 bis, do CPP, pode não ser comunicada sobre eventuais prorrogações 32.
B. Periculosidade
O conceito de criminalidade organizada caracteriza-se, então, pela ideia de «perigo grave» que evoca. Prescindimos de qualquer evidência em torno do uso político-ideológico ao qual esta conotação, sem dúvida, se presta. Interessa aqui, em vez disso, evidenciar a consequência jurídico-processual do conceito. Sob esse ponto de vista, a conotação de periculosidade intrínseca aos fenômenos de criminalidade organizada justifica (no plano da razoabilidade) uma limitação particularmente marcada dos direitos fundamentais da pessoa. Também aqui os exemplos abundam na nossa legislação: basta pensar, no que concerne à liberdade pessoal, na norma que fixa um tipo de presunção iuris tantum em matéria de subsistência dos requisitos cautelares para dispor da custódia no cárcere 33, e aquela que dita, de fato, uma regra particular de suspensão dos prazos da custódia cautelar 34. Com relação a liberdade de domicílio, a experimentabilidade ( esperibilità35) das buscas é admitida com uma certa largura dos pressupostos, como já dito 36; a liberdade e sigilo das comunicações pode ser limitada com maior facilidade do que nos casos ordinários, quando se trata de acertar fatos de criminalidade organizada 37, ou quando se trata de investigar uma pessoa fugitiva em relação a tais fatos 38. No que concerne, enfim, ao direito de defesa, vale a pena mencionar sobretudo a severa restrição ao contraditório prevista no art. 190 bis do CPP. Esta norma – também a julgar pela sua colocação topográfica – parece-nos como limitação ao direito de defesa do imputado e, mais precisamente, àquela particular manifestação da garantia defensiva representada pelo direito à prova oral. É, portanto, a suposta gravidade do crime – embora seja considerada como a necessidade de evitar a «usura do testemunho» 39 – que justifica o sacrifício ao direito fundamental.
Retornaremos em breve a esta disposição, a propósito da qual, porém, vale a pena fazer imediatamente um esclarecimento. Em realidade, não se pode dar como certo que seja apenas uma exceção ao direito de defender-se provando; ou seja, seria reducionista vermos uma simples erosão das garantias defensivas, visando tornar possível um acertamento da verdade mais rápido e, ao mesmo tempo, mais confiável. Se considerarmos bem, o art. 190 bis do CPP contraria, invertendo os termos, o paradigma de gnoseologia judiciária subjacente ao precedente art. 190 do CPP; aquele, precisamente, que reconhece na oralidade e no contraditório, a regra para chegar à decisão. Se pode dizer que para o art. 190 bis do CPP é a prova escrita que constitui a regra, enquanto aquela oral deve ser admitida apenas se o juiz a considera «absolutamente necessária». Mais que uma atenuação de garantias defensivas, isso faz, portanto, uma exceção ao princípio da oralidade. Uma exceção sem justificação lógica se se considera que o contraditório vale sobretudo como melhor método para aproximar-se da verdade. De fato, se garantir a defesa nos termos previstos do art. 190 do CPP abrangesse o risco de afastar-se da verdade, seria razoável adotar o método sugerido no art. 190 bis do CPP em relação a qualquer caso a julgar ( regiudicanda40), sem distinção de qualquer tipo. Se, ao contrário, fosse o direito à prova oral – como previsto no art. 190 do CPP – a garantir uma melhor aproximação à verdade, seria ilógico e irrazoável renunciar ao método mais confiável justo quando se trata de acertar fatos graves e severamente punidos, vale dizer, justo quando – sendo tão elevada a aposta em jogo – se recomendaria a maior circunspeção no ato de julgar. Mas a contradição deixa de existir para quem – como já referido – considera que o contraditório é uma simples expressão do direito de defesa, suscetível de ser limitado diante da necessidade de perseguir fatos de notável periculosidade 41. E é apenas com base em uma suposição semelhante que se pode justificar, do ponto de vista da razoabilidade, uma disposição como aquela do art. 190 bis do CPP.
C. Difusão
Ao caráter difuso da criminalidade organizada se unem as novidades mais significativas da normativa processual especial. O termo «difusão» é aqui entendido em, pelo menos, três acepções distintas.
Antes de tudo, em sentido espacial. O fato que a atividade das organizações criminosas se tornou progressivamente a mesma no território nacional inteiro e até mesmo além de suas fronteiras, tornou obsoletas as tradicionais repartições territoriais dos ofícios judiciários. A este fenômeno foram combinadas, em um primeiro momento, as disposições normativas permissivas de trocas de informações para fins de coordenação investigativa entre órgãos de investigação 42. Por sua parte, a reforma processual de 1988 havia reforçado os instrumentos de coordenação entre ofícios do Ministério Público 43, mas de uma maneira que logo pareceu inadequada para atingir os escopos desejados 44. Se previne assim, mesmo entre debates acalorados e polêmicas, a preparação de mecanismos adicionais e mais eficazes de coordenação, que culminaram – como é conhecido – na apresentação de uma série de provimentos normativos destinados, por um lado, a melhor coordenar a atividade de polícia através da instituição de forças conjuntas para serviços especiais e da direção investigativa antimáfia 45 e, por outro lado, a racionalizar a atividade do ofício de acusação através da instituição das procuradorias distritais e da procuradoria nacional antimáfia 46. Mas a difusão territorial da atividade criminosa não produziu efeitos apenas sobre a organização da atividade investigativa e sobre a estrutura do ofício de acusação. Essa terminou por contaminar até a atividade decisória, desde o momento que, também no nosso ordenamento processual, os êxitos da investigação preliminar têm muita probabilidade de transformar-se em provas úteis para o julgamento. Mormente nos processos por fatos de criminalidade organizada, nos quais as linhas de continuidade entre as duas fases se tornaram, de fato, notáveis. Graças ao já referido art. 190 bis do CPP, a cesura entre investigação ( indagine) e julgamento ( dibbattimento) resta atenuada em relação aos procedimentos, por assim dizer, ordinários. Mas é sobretudo a separação entre diversos procedimentos a sair mais relativizada, pois a norma em questão tende a abolir as delimitações entre um acertamento e outro, favorecendo a circulação de material probatório e a sua utilização em uma série indeterminada de julgamentos (principalmente os art. 238, 238 bis e 511 bis do CPP e o art. 78 das Disposizioni di attuazione del Codice di Procedura Penale).
As organizações criminosas se caracterizam, entre outras coisas, pela sua difusão temporal. Os fatos de criminalidade organizada têm a dúplice característica de serem conhecidos (embora genericamente) pelos órgãos de investigação (polícia e Ministério Público) antes mesmo de se tornarem objeto de um procedimento penal, e de continuarem a manifestar-se depois desse momento. Entra, assim, definitivamente em crise a clássica distinção entre atividade preventiva e atividade repressiva. Por um lado, o processo se enriquece de institutos sempre mais claramente voltados a satisfazer finalidades preventivas 47. Por outro lado, e sobretudo, é fácil constatar que a atividade assim chamada preventiva tende progressivamente a fundir-se com aquela repressiva, até que se confunda com esta. Basta pensar em institutos como a interceptação telefônica preventiva 48, ou as inspeções e buscas especiais admitidas sob o pressuposto de uma simples suspeita de que determinadas atividades criminosas estão sendo desenvolvidas 49. Parece, ainda, significativo a esse respeito que as «entrevistas investigativas» ( colloqui investigativi50) com os colaboradores da justiça são simultaneamente postos sob o controle de órgãos do executivo que têm atribuições de prevenção criminal (Ministro do Interior, chefe da polícia) e de um magistrado (procurador nacional antimáfia) 51. A singularidade dos atos e operações preventivas com caráter repressivo reside nisto: que não pressupõem necessariamente a existência de uma notícia-crime, ainda assim servem (ou podem servir, se for o caso) a preparar o terreno para uma futura atividade de investigação penal ( indagine penale). Apesar de a lei não indicar expressamente a finalidade preventiva, estes meios investigativos especiais ante dictum se transformam fatalmente – nas mãos dos órgãos de polícia – em instrumentos para obter elementos úteis ao prosseguimento de investigações já em curso e, o mais importante, para buscar ativamente novas notícias-crime, vale dizer, para obter o pressuposto de fato de um novo procedimento penal.
Temos, por fim, um outro tipo de «difusão» relacionada aos fenômenos de criminalidade organizada e que tem grande importância nesse contexto específico: se alude à atitude própria das condutas criminosas aqui consideradas para condicionar a atividade, por si lícita, da vida de relação social. A articulada ramificação do crime organizado e suas numerosas interferências especiais com a vida econômica e política, tiveram consequências marcantes no terreno processual. Contam-se agora numerosas disposições especiais que legitimam o magistrado a regular situações externas ao processo com provimentos provisórios, ou, de qualquer maneira, ainda suscetíveis de ser modificados. Por exemplo, é suficiente a submissão a procedimento de prevenção criminal ou a procedimento penal, o reenvio a julgamento ou a condenação em apelação (não definitiva), porque automaticamente extingue-se o direito a ser candidato nas eleições locais 52, ou porque determinam-se preclusões no campo das autorizações administrativas 53, ou, ainda, nos organogramas de certas instituições de crédito 54. Ao mesmo tempo, acentua-se o uso em função preventiva, também ante delictum, de tradicionais medidas cautelares ou de segurança: pense-se no sequestro de bens determinado nas normas dos art. 2 bis e 2 ter da Legge n. 575, de 31 de maio de 1965; ao estabelecimento cautelar ( soggiorno cautelare) ex art. 25 quarter do Decreto-legge n. 306, de 8 de junho de 1992; ao confisco de bens (art. 2 ter, comma 3, da Legge n. 575, de 31 de maio de 1965).
Põe-se aqui um problema de porte notável, que não toca apenas à relação entre atividade preventiva e atividade repressiva, mas envolve até a mais geral relação entre juiz e lei. Tradicionalmente, o juiz pode regular situações externas ao processo através da sentença definitiva, ou, em qualquer caso, com a adoção de provimentos também provisórios, mas sujeitos a exame de legitimidade pela Corte de Cassação 55. Em relação a muitos dos provimentos referidos acima constata-se, ao invés disso, que as decisões com julgamento de mérito se refletem imediatamente sobre delicadas situações externas ao processo, sem que a esse correspondam controles específicos em sede de impugnação. E também quando esses controles são previstos (como acontece, por exemplo, para as medidas cautelares citadas), a sua eficácia é, em qualquer caso, escassa, considerada a vagueza dos pressupostos de fato com base nos quais o relativo provimento pode ser adotado (pense-se na «notável desigualdade entre o padrão de vida e a quantidade de renda», ou no fundado motivo que o sujeito está prestes a cometer um determinado delito), e a consequente dificuldade para revisar eventual error in iudicando.
4. Conclusão
É hora de puxar os fios das considerações, embora rápidas, desenvolvidas até aqui. O quadro que emerge é aquele de uma legislação processual, que tende fatalmente a adequar as próprias regras ao caráter «difuso» e «perigoso» do crime organizado, trazendo, assim, à existência um modelo «especial» de procedimento.
Especial é o modo em que são obtidas as notícias-crime: não passivamente recebidas pelas forças de polícia, mas buscadas de maneira ativa e constante graças à predisposição de um aparato de autoabastecimento que tem os seus pontos fortes na coordenação centralizada das iniciativas investigativas (direção investigativa antimáfia), no uso de instrumentos de investigação ante delictum (como as interceptações, inspeções e buscas preventivas, assim como as entrevistas investigativas com colaboradores da justiça).
Especial é, ainda, a organização do ofício de acusação, articulado nas vinte e seis direções distritais antimáfia, bem como controlado e coordenado a nível central pela correspondente direção nacional.
Especiais são, então, as atribuições cautelares do juiz neste tipo de procedimento, no qual necessidades repressivas e preventivas se apresentam assim estreitamente entrelaçadas.
Especiais, enfim, são as regras a seguir para a formação do julgamento como atestam, em particular, as exceções ao princípio da oralidade e do contraditório: vale dizer, as disposições dos art. 190 bis, 468, comma 4, 495, comma 1, do CPP, bem como aquelas dos art. 238, 238 bis e 511 bis que – apesar de relacionadas à generalidade dos casos a julgar ( regiudicande) – são, de fato, destinadas a encontrar aplicação em um número limitado de casos.
O que se impõe evidentemente é a totalidade desta especialidade processual: o alegado caráter unitário da criminalidade organizada induziu o legislador a organizar unitariamente não apenas a investigação ( indagine) da polícia e a função de acusação, mas até mesmo a atividade probatória e, portanto, o juízo.
É mesmo nesta qualidade, por assim dizer, transitiva dos meios de prova, que se captura o aspecto talvez saliente do processo especial. Parece superado o assunto – pacífico, ao invés disso, por quem pensa com base nos paradigmas do sistema acusatório 56 – segundo o qual cada processo constitui uma história autônoma, de modo tal a dizer respeito apenas aos imputados diretamente envolvidos, e não a outros imputados nem, em todo caso, ao acertamento de outros casos a julgar ( regiudicande). Ao contrário: no modelo aqui considerado, o processo singular ( singolo processo57) não é voltado principalmente a afirmar a justiça do caso nesse discutido, sendo, em vez disso, concebido como meio para atingir um fim que transcende a solução daquele mesmo caso: um fim (político) genericamente identificável na luta contra o crime organizado 58. Em outras palavras, o processo singular termina com a perda da sua unidade, confrontando-se como fragmento de uma totalidade articulada e complexa: parte de uma espécie de grande processo virtual, definível como a soma de uma série indeterminada de assuntos legais ( vicende giudiziarie59) concretos, entre si ligados pelo fato de se referirem a uma realidade criminosa que, no fundo, presume-se ser sempre a mesma.
No lugar do assim chamado « maxi-processo» 60, elevado a emblema da luta contra o crime organizado na anterior codificação 61, temos hoje aquele que pode ser definido como o « grande processo»: um processo «difuso», no qual os singulares e concretos procedimentos penais confluem, com o sério risco de perder a sua individualidade. Disso, de resto, encontramos uma sugestiva confirmação na regra segundo a qual a sentença penal pode ser utilizada como prova no julgamento do fato (art. 238 bis do CPP). Esta norma singular – vendo bem – encontra sua justificação lógica justo na ideia de um « grande processo», a respeito do qual as sentenças dos julgamentos de mérito valem essencialmente pela contribuição informativa que são capazes de fornecer para o conhecimento daquela realidade criminosa «única».
Referências
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Notas
[N.T.] Indagine preliminare é o nome da investigação criminal estabelecida nos arts. 326 e ss. do CPP italiano (Decreto del Presidente della Repubblica n. 447, de 22 de setembro de 1988), doravante chamada de investigação preliminar. Rasterfahndung é um método computacional de procura de foragidos por meio da categorização dos suspeitos, também chamado de dragnet investigation. Strafprozeßordnung é a lei processual penal alemã.
Autor notes
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