Resumo: Identifica-se no processo penal a possibilidade de dissimulação ou ocultação da origem de uma informação inutilizável no processo como fonte de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem, especialmente em acordos de colaboração premiada. Este fenômeno é denominado pelos autores “lavagem de provas”, tratando-se de situação processual ainda pouco discutida academicamente. Para análise deste fenômeno, este trabalho inicia pelo exame da natureza jurídica da colaboração premiada, bem como pelas etapas de seu procedimento. Busca-se, pela análise da lavagem de provas a partir da necessidade de preservação da cadeia de custódia de provas, identificar as consequências jurídicas deste fenômeno. A partir da experiência do programa de leniência do CADE, são propostas possíveis medidas para o controle do abuso processual pela acusação. Conclui-se que a instituição de uma central única para colaborações premiadas, com o fim de melhor gerir a prova advinda de acordos desta natureza, aliada à difusão de boas práticas na negociação de acordos, pode trazer maior segurança jurídica aos pretensos colaboradores, de modo a evitar a lavagem de provas.
Palavras-Chave: Lavagem de provas, colaboração premiada, Abuso processual.
Abstract: This article identifies a possibility of dissimulation or concealment of the origin of unusable information in criminal proceedings as a source of evidence, in order to give an appearance of legitimacy to its origin, especially in awarded collaboration agreements. This phenomenon is dubbed “evidence laundering” by the authors and is of yet a procedural situation that is still insufficiently discussed in legal scholarship. To analyze this phenomenon, this article begins by examining the legal nature of awarded collaboration agreements, as well as the steps of their procedure. By analyzing evidence laundering from a perspective of preserving the chain of custody of evidence, the aim is to identify the legal consequences of this phenomenon. Based on the experience of CADE’s leniency program, possible measures to control this malfeasance by the prosecution are proposed. In conclusion, the article raises the possibility of establishing a single awarded collaboration center, combined with the dissemination of good practices in negotiating deals, as means to improve the evidence arising from these agreements, bringing greater legal certainty to would-be collaborators and avoiding evidence laundering.
Keywords: Evidence laundering, Collaboration agreement, Wrongful process.
Teoria da Prova Penal
Perspectivas quanto à lavagem de provas na colaboração premiada: proposta para controle de abuso processual
Perspectives on evidence laundering in awarded collaboration agreements: a proposal on controlling prosecutorial malfeasance
Recepção: 24 Março 2021
Aprovação: 01 Outubro 2021
Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações iniciais sobre a colaboração premiada: 2.1. A natureza jurídica da colaboração premiada como negócio jurídico processual, meio de obtenção de provas e mecanismo defensivo; 2.2. Etapas do procedimento da colaboração premiada; 3. Lavagem de provas no acordo de colaboração premiada; 4. Quebra da cadeia de custódia da prova: consequência necessária da lavagem de provas? 5. Possíveis soluções para a lavagem de provas: o uso de lições trazidas pelo programa de leniência do CADE; 6. Conclusões; Referências.
O procedimento da colaboração premiada ainda é caminho pouco trilhado pelos profissionais do sistema de justiça criminal. Apesar dos recentes desenvolvimentos teóricos e legislativos sobre a matéria, que vem ocupando espaço cada vez mais proeminente no sistema de justiça criminal brasileiro, suas peculiaridades e desafios práticos ainda são misteriosos para parcela considerável, não apenas da advocacia, como também do Ministério Público, da magistratura, das defensorias públicas e das polícias. Em razão de seu caráter negocial, a colaboração premiada não raro impõe dilemas e impasses entre as partes em negociação: acusação e defesa.
Para sua formação, o acordo de colaboração premiada inicia-se a partir de uma etapa preliminar, em que o investigado ou acusado proponente apresenta ao Ministério Público uma síntese das informações e indica os elementos de corroboração que pretende apresentar para obter como benefício uma sanção premial. Como muitas vezes esta etapa preliminar não é formalizada em um caderno procedimental, muitas destas tratativas iniciais não permanecem disponíveis para controle posterior de legalidade, possibilitando um fenômeno aqui identificado como lavagem de provas.
Propõe-se definir lavagem de provas, portanto, como a dissimulação ou a ocultação da origem de uma informação inutilizável no processo como fonte de meios de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem.
Ainda que este fenômeno possa ter lugar em outros momentos processuais, este artigo busca analisá-lo justamente sob sua potencial incidência na formação dos acordos de colaboração premiada. Justamente por isto, o artigo analisa inicialmente a compreensão técnica da colaboração premiada, examinando não apenas sua natureza jurídica, seu procedimento e a posição das partes que o celebram, como também suas estratégias e métodos, além de seus resultados endoprocessuais, como forma de compreender como a colaboração premiada é momento processual propício para a lavagem de provas.
Uma vez verificada a possibilidade de sua ocorrência no âmbito da colaboração premiada, busca-se compreender o fenômeno da lavagem de provas, a partir do conceito proposto. Serão analisados os contornos legais do fenômeno e a (i)licitude das provas dele derivadas sob a ótica de um caso hipotético, inspirado pelo decidido no MS/SP n.º 35.693 pela 2.ª Turma do STF.
Prosseguindo, a lavagem de provas também será examinada à luz da cadeia de custódia das provas, de modo a verificar se a obtenção — premeditada ou não — de informações fornecidas pelo aspirante a colaborador, sem a concessão de um benefício premial em troca, viola alguma regra processual penal. Por fim, apresentamos possíveis conclusões extraídas a partir da experiência do programa de leniência do CADE, observada a partir da vivência de um dos autores no Programa de Intercâmbio do CADE – Pincade.
Por tratar-se de discussão ainda incipiente na práxis dos acordos de colaboração premiada, de relativa complexidade teórica e prática, o tema da lavagem de provas merece discussão qualificada na doutrina processual penal. Desta maneira, enfatiza-se que, mais do que trazer as consequências jurídicas e as eventuais soluções definitivas, o trabalho busca explorar uma possível saída, assim como um modo de controlar a lavagem de provas na colaboração premiada, convidando a comunidade jurídica ao diálogo quanto às potenciais soluções apresentadas.
Sob a perspectiva das autoridades públicas, o objetivo da colaboração premiada é permitir o acesso a informações privilegiadas quanto à ocorrência de um fato criminoso e do modo operandi de uma organização criminosa, a partir da perspectiva de um dos autores do próprio fato, de modo a auxiliar a identificação de provas e o desbaratamento da própria organização. A utilização do (co)autor do crime como testemunha — ou, melhor dizendo, a sua utilização para fornecimento de meios de prova — foi identificada por Stephen S. Trott, para quem a colaboração de um dos autores é uma das mais úteis, importantes e, de certo, indispensáveis armas para a repressão a infratores 3. O autor faz um alerta em seu trabalho — com as devidas ressalvas sobre o método comparado, dadas as diferenças entre o comum procedimento de trial4 no ordenamento americano e o processo penal brasileiro — quanto às inúmeras preocupações que há na “utilização de um criminoso como testemunha”, em razão de eventuais traições, prática de perjúrios 5 em série, obstrução de justiça e produção de provas falsas 6. Em que pese existam preocupações com o uso de infratores como fonte de obtenção de provas, com muitos já tendo quebrado acordos de colaboração 7, os benefícios desta nova técnica de investigação são inegáveis, inclusive porque seguem um padrão transnacional no sentido de buscar uma justiça premial.
A colaboração premiada tem por premissa o fato de a criminalidade organizada naturalmente adotar uma postura reservada na prática de seus crimes. Isso muitas vezes decorre da própria natureza dos delitos praticados: cartel, lavagem de dinheiro, determinadas práticas de corrupção, evasão de divisas, fraudes a licitações e gestão fraudulenta de empresas. Todos estes delitos pressupõem um acordo conjunto de silêncio 8 acerca dos atos praticados, sendo isto o que se visa quebrar para acessar as camadas mais internas e protegidas de uma organização criminosa e possibilitar o seu desbaratamento.
Colocando em números a efetividade da nova técnica de investigação, recentemente o Ministério Público Federal apontou mais de 253 condenações, registrando a devolução de mais de R$ 4 bilhões por meio de 185 acordos de colaboração, possibilitando à Receita Federal o lançamento tributário na ordem de R$ 22,465 bilhões, com o aumento no volume de trabalho na ordem de 1.200% desde 2014 9.
A origem do instituto da colaboração premiada no Direito brasileiro remonta à década de 1990, ainda sob a denominação de “delação premiada” 10. No entanto, foi a partir da Lei n.º 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), com maior disciplina legislativa, que o instituto passou a ser aplicado em larga escala, o que se deveu à maior segurança jurídica em sua aplicação 11.
Com o advento da Lei n.º 13.964/2019 (Lei Anticrime), a redação da Seção I foi alterada, tendo o art. 3º-A disposto que o acordo de colaboração é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse público.
A alteração legislativa confirmou o que fora decidido pelo Supremo Tribunal Federal no HC n.º 127.483, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, em que se afirmou a natureza de meio de obtenção de prova e negócio jurídico processual:
Uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração 12.
Assim, dois pontos relevantes são estabelecidos. O primeiro, é que se trata de um negócio jurídico processual. Ao contrário do usual na legislação, tratando a colaboração como um exclusivo “favor da pena” 13, sua classificação como negócio jurídico reflete na constituição de partes (de um lado, o colaborador; de outro, o membro do Ministério Público ou a autoridade policial), cujo elemento nuclear de seu suporte é a exteriorização da vontade das partes, com a possibilidade, dentro dos parâmetros legais, de deliberação sobre efeitos 14.
Segundo, constitui um meio de obtenção de prova, e não um meio de prova propriamente dito. Em outras palavras, implica que a colaboração é um meio pelo qual é destinado “à aquisição de elementos dotados de capacidade probatória” 15. Assim, faz-se necessário diferenciar o que são meios de prova, e o que são meios de obtenção de prova. Segundo classificação adotada por Magalhães Gomes Filho, meios de prova são atividades ou os instrumentos por intermédio dos quais os dados probatórios (elementos de prova) são introduzidos e fixados no processo (produção da prova). Já os meios de obtenção da prova dizem respeito a certos procedimentos regulados pela lei, com o objetivo de conseguir provas materiais 16.
Acerca do tema, Gustavo Badaró entende que, enquanto os meios de prova são aptos a servir diretamente ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática, os meios de obtenção de prova são instrumento para a coleta de meios de prova 17.
Desta maneira, o acordo de colaboração não se confunde com os elementos que são obtidos a partir da colaboração, como a entrega do material, declarações e anexos. E, neste sentido, assentou o STF que o acordo não se confunde com os depoimentos prestados pelo agente colaborador. Enquanto o acordo de colaboração é meio de obtenção de prova, os depoimentos propriamente ditos do colaborador constituem meio de prova. Porém, em razão da fragilidade da prova decorrente da palavra do colaborador, os depoimentos somente se mostrarão hábeis à formação do convencimento judicial se vierem a ser corroborados por outros meios idôneos de prova 18.
Em suma, ensina Vinicius Vasconcellos que o mecanismo de justiça negocial da colaboração premiada é um fenômeno complexo, visto que envolve diversos atos e situações processuais, o que ressalta a necessidade de especificação do elemento de que se está a tratar quando da análise de sua natureza 19, isto é, de qual ato ou elemento dentro do todo “colaboração premiada” a ser observado.
Sem esgotar a questão, pode-se evidenciar um terceiro ponto implícito: de que se trata de um instrumento de defesa 20, constituindo uma alternativa legal e legítima à disposição do réu, consectário lógico da autodefesa 21. Trata-se, portanto, de um elemento importante a ser considerado dentro do jogo processual, em específico acerca da estratégia e táticas 22 daquele que pretende iniciar tratativas com o Estado.
Uma vez compreendida a natureza complexa da colaboração premiada, passa-se ao estudo do seu procedimento, com o fim de vislumbrar os momentos em que se verifica potencial para a possível prática da lavagem de provas.
Destaca-se que o último dos três aspectos tratados no tópico acima está diretamente relacionado ao procedimento de colaboração, visto que existe uma vinculação prática entre as estratégias de defesa e a utilização do instituto da colaboração premiada. Neste sentido é que o trabalho visa demonstrar um fenômeno existente — lavagem de provas —, mas pouco comentado acerca do modelo negocial inaugurado no processo penal (institucionalizado) a partir da Lei n.º 12.850/2013.
Assim, a estruturação do procedimento da colaboração premiada é, segundo Vinicius Vasconcellos, “condição indispensável para sua limitação no processo penal” 23.
Destaca-se que o procedimento de colaboração premiada foi inicialmente desenvolvido a partir do Manual de Colaboração Premiada da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro) 24. Seguiu igualmente a Orientação Conjunta nº 1/2018 25 do Ministério Público Federal, que visou traçar normas gerais e assegurar uniformidade na tratativa dentro do órgão. Por fim, culminou com a Lei Anticrime, dispondo em lei práticas e costumes que já vinham sendo observados e utilizados com base tanto no manual, quanto na orientação conjunta.
Para analisar o procedimento da maneira mais completa possível, bem como delimitar o objeto de estudo, partir-se-á do chamado “procedimento padrão”, que tem sido a regra aplicada no contexto da Operação “Lava Jato”, e que se mostra o mais eficaz, tanto para a acusação como para a defesa 26. Neste quadro ideal, o acordo é negociado e realizado na fase pré-processual 27, isto é, antes do início do processo.
Destaca-se a relevante classificação de Vinicius Vasconcellos, que subdivide o procedimento em quatro fases: (i) negociações; (ii) formalização/homologação; (iii) colaboração efetiva e produção da prova; e (iv) sentenciamento e concretização do benefício 28.
A despeito de a terminologia “proponente” se referir ao ator público acusatório 29, a colaboração, em regra, deve iniciar com o movimento da defesa. Isso tem o condão de evitar o discurso de que o resultado da colaboração advém de pressão das autoridades envolvidas 30. Tem-se nesse momento o início das negociações.
No geral, observa-se que são os atores privados que costumam procurar a autoridade para as primeiras negociações 31. A partir deste primeiro contato — classificado como “tratativas prévias” 32 —, é praxe a formalização de um pré-acordo 33, ou acordo de confidencialidade 34. Este momento foi positivado no art. 3º-B pela Lei Anticrime, adotando o que já vinha sendo praticado, de modo a exigir a assinatura de um termo de confidencialidade para dar continuidade às tratativas. Isto é, trata-se de uma garantia para o colaborador, pois isso implica a impossibilidade de que a autoridade venha a desistir do acordo sem justa causa.
Neste momento, as primeiras provas são entregues à autoridade de forma a demonstrar presentes os pressupostos e os requisitos do acordo 35. Em paralelo, estas devem instigar o Parquet a dar continuidade à negociação, de modo a não haver, de pronto, o indeferimento sumário nos termos do §1º do art. 3º-B da Lei n.º 12.850/2013.
Segundo o art. 3º-C da Lei n.º 12.850/2013 e seguindo a Orientação Conjunta nº 1/2018, a defesa é encarregada da instrução da proposta de acordo, pois deve buscar convencer a autoridade policial ou ministerial da importância das informações e elementos de prova, a fim de subsidiá-lo 36.
De todo modo, este também não é o momento de lançar todas as cartas à mesa, e sim o de despertar interesse da autoridade. O termo inicial, metaforicamente, assemelha-se muito ao trailer de um filme: o pretenso colaborador deve mostrar uma parte do conteúdo que propõe apresentar — isto é, algumas das informações pertinentes —, ao mesmo tempo em que reserva importantes e relevantes questões para o momento propício da negociação.
Uma vez despertado o interesse da autoridade, passa-se ao segundo momento, a fase de negociação. Só então é que serão entregues minutas mais elaboradas, em complemento às informações antes retratadas. Ensina Andrey Borges de Mendonça que cabe ao Ministério Público o papel de “advogado do Diabo”, procurando lacunas e falhas na versão apresentada e sempre tentando contrastar todas as declarações do potencial colaborador, com o intuito de afastar colaborações mendazes. Para tanto, podendo o membro do Parquet realizar diligências investigatórias até mesmo antes da celebração do acordo, visando confirmar e atestar as palavras do colaborador 37. Após a efetiva contraprestação, com todas as informações lançadas, as partes passam à discussão acerca do prêmio a ser concedido ao colaborador. O benefício será considerado, levando em consideração os critérios inicialmente desenvolvidos pela Corte de Cassação Italiana 38, avaliando-se o acordo com a robustez das informações apresentadas, com a apresentação de detalhes dos crimes praticados, de documentos fidedignos e elementos de provas relevantes 39.
Após, passa-se à fase de formalização e homologação, com a elaboração do termo de colaboração premiada, nos termos dos §§ 6º e 7º do art. 4º da Lei do Crime Organizado, momento em que o judiciário passará a atuar, fazendo o controle de regularidade, voluntariedade e legalidade 40.
E, por fim, há a última fase, a de sentenciamento e concretização do benefício, momento em que o juiz passará, de fato, a impor a sanção premial 41 acordada pelas partes de modo a conceder o benefício ao colaborador.
Conforme se expôs na seção anterior, o acordo de colaboração premiada regido pela Lei n.º 12.850/2013 apresenta algumas importantes características: (i) pode ser realizado em qualquer fase do processo; (ii) a autoridade não está limitada a uma única negociação que verse sobre os mesmos fatos; e (iii) a autoridade que negocia é a mesma que gere as provas e que processa o colaborador.
Até este ponto, o trabalho se dedicou a apresentar algumas das características da colaboração premiada — necessárias à compreensão do tema proposto —, com ênfase no procedimento de entabulação do acordo, momento propício àquilo que se identifica como lavagem de provas.
Por lavagem de provas, entende-se a dissimulação ou a ocultação da origem da informação inutilizável no processo como fonte de novos meios de prova, a fim de conferir aparência de legitimidade à sua origem. Trata-se, portanto, de um processo 42 em que ocorre a transformação do elemento, da evidência ou da informação inutilizável em um dado útil e aproveitável nos autos.
A fim de facilitar a compreensão do tema, o fenômeno pode ser mais bem observado a partir de um exemplo. Imagine-se que, em uma investigação, identifique-se uma organização criminosa composta por cinco empresários, cujo objetivo era, mediante o pagamento de propina, fraudar licitações de maneira a se manterem hegemônicos no mercado. Imagine-se também que o produto do ilícito tinha a sua origem e titularidade dissimulados pelo uso de empresas offshore.
A partir das primeiras diligências de investigação, terá havido quebra de sigilo telefônico e telemático, o que acaba por subsidiar a deflagração de operação, contando com mandados de busca e apreensão, bem como mandados de prisão temporária dos cinco empresários. Sabendo-se da existência de fortes indícios de atividade delitiva nos materiais apreendidos, dando conta de reiterada prática criminosa, dois dos cinco empresários, por recomendação de seus respectivos advogados, buscam o Ministério Público para a propositura de um acordo de colaboração premiada. O MP, embora já de posse de informações suficientes para a desarticulação desta organização criminosa, percebeu, na busca, que os agentes possuíam outras informações relevantes do modus operandi da organização, bem como outras informações que poderiam levar ao desbaratamento de outras organizações criminosas conexas. Por isso, dá início a tratativas com os dois potenciais colaboradores que, por sua vez, apresentam documentos relevantes que corroboram outros dados já arrecadados, de modo a guiar novas diligências em investigações que já estavam em curso, bem como auxiliam na compreensão da estrutura organizacional e na interpretação dos inúmeros documentos coletados.
Ciente de haver aí um caso hipotético, observa-se que a autoridade ministerial, em razão das tratativas, logra melhor compreender a estrutura da organização criminosa, realizar o filtro das informações apresentadas, bem como tomar conhecimento de outras infrações e do modus operandi da organização criminosa investigada.
Destaca-se que, se encerradas as tratativas neste momento, as provas não poderão ser utilizadas pela autoridade para qualquer outra finalidade 43. No entanto, as informações prestadas no âmbito do pré-acordo e da negociação — isto é, os elementos informativos — acabam por conferir à autoridade maior grau de conhecimento acerca dos fatos, passando ela a compreender a estrutura da organização criminosa, o que facilita a filtragem das demais informações obtidas no curso das investigações.
A partir do término das negociações e da entrega dos elementos e das informações pelos colaboradores, extraem-se três possíveis condutas que podem ser adotadas pela autoridade negociante.
Em uma primeira hipótese, a autoridade pode simplesmente dar continuidade às tratativas, fixar e negociar os benefícios e, ao final, assinar o acordo de colaboração. Esta é a resolução mais simples, usual e lógica do procedimento de acordo de colaboração premiada, com todas as informações e elementos apresentados sendo úteis nos autos, não havendo necessidade de serem “lavados” pela acusação. Isso quer dizer: no procedimento padrão em que o desfecho da negociação é a elaboração do acordo, não se vislumbra o fenômeno da lavagem de provas, ante sua desnecessidade.
Contudo, nem todas as tratativas de colaboração resultam efetivamente na celebração de um acordo. É aqui que reside o perigo ora em exame.
Pensando em uma segunda hipótese para a acusação, em caso de as negociações e documentos apresentados não resultarem em acordo, poderá a autoridade encerrar as tratativas, apresentando justa causa, mas se aproveitar das informações que obteve confidencialmente, ainda que sem acesso aos materiais.
No modelo adotado pelo Brasil, em que a autoridade que negocia é a mesma que investiga e processa criminalmente, quando prestadas as declarações pelo colaborador, é impossível restituir as partes ao status quo ante. Ou seja, o membro do Ministério Público que teve contato com as informações não vai simplesmente esquecer ou deletar as informações e provas com as quais teve contato.
Utilizando o caso hipotético, suponha-se que, durante a análise dos materiais fornecidos pelo potencial colaborador, o Ministério Público tenha obtido acesso a uma planilha que descreve a divisão de valores ilícitos distribuídos entre os integrantes de uma organização criminosa. No entanto, em vez de nominar os beneficiários, a planilha utiliza-se de siglas, o que dificulta a identificação dos favorecidos no esquema fraudulento. Suponha-se que se tenha verificado, ao fim da investigação, que ainda resta um único beneficiário que a autoridade desconhece, posto que, com as informações coletadas até então, não se obteve sucesso em decifrar a sigla.
Supondo-se, igualmente, que em uma das negociações conduzidas pelo Parquet o pretenso colaborador informe o nome do último beneficiário e aponte uma conta bancária no exterior que confirme a transação de valores, a autoridade, mesmo que restitua ao interessado todos os documentos fornecidos no caso de encerramento das tratativas, ainda assim conhecerá a identidade do investigado e saberá como obter os elementos de prova necessários e aptos a comprovar o envolvimento do investigado restante. Assim, nesta segunda hipótese de desfecho das negociações, pode existir o fenômeno de lavagem de provas — ainda que involuntário —, posto que decorre de algo que chegou ao efetivo conhecimento da autoridade negociante.
Pode-se indicar, por fim, uma terceira possibilidade de desfecho. Suponha-se que a autoridade venha a se utilizar dos materiais apresentados ainda durante as negociações dos acordos dos pretensos colaboradores. Isto é, voltando-se ao caso hipotético, imagine-se que um dos empresários colaboradores tenha, para além das condutas já investigadas da organização criminosa, conhecimento e informações sobre práticas dos investigados de corrupção de alguns agentes públicos. E que, embora tais condutas fossem de conhecimento e alvo de investigação do Ministério Público, ainda careciam de uma linha investigativa clara e efetiva.
Durante as tratativas, um dos colaboradores elabora anexos, fornece conversas de aplicativo de mensagens instantâneas e expõe todo seu conhecimento acerca do modus operandi que, de fato, aponta ao Parquet uma nova linha investigativa que se mostra extremamente frutífera para desvendar as práticas investigadas. E, a partir destas informações apresentadas o Ministério Público passa a diligenciar, obtendo elementos equivalentes de forma cruzada ou de maneira independente, que suprem a conversa apresentada, e que podem ser utilizados em posterior ação penal.
Ao término da negociação, quando todas as informações e meios de prova tenham sido obtidos (esgotando-se a fonte útil de inteligência 44), é possível que o membro do Ministério Público opte por declinar o acordo de colaboração. Para tanto, pode justificar que, para a investigação em curso, o acordo não é útil nem necessário, visto que já havia provas suficientes para esclarecimento dos fatos da investigação. Complementa a justificativa, sob o argumento de que não há um dever de disclosure45 por parte da acusação, visto que seu declinar também decorre de informações sigilosas, que não podem ser trazidas ao colaborador, sob pena de frustrar outras investigações em curso.
Resta claro que, nesta terceira hipótese, ainda durante a negociação, houve o fenômeno da lavagem de provas, especialmente quando o membro do Ministério Público obteve “as fontes independentes” de prova, suprindo as informações trazidas pelo colaborador.
Desta maneira, resta também demonstrado que o fenômeno da lavagem de provas é plenamente possível na prática, especialmente durante as negociações de acordos de colaboração premiada. Visando complementar a reflexão acerca do tema, analisa-se o seguinte caso concreto que serviu de inspiração para o trabalho.
No Agravo Regimental em Mandado de Segurança n.º 35.693, impetrado contra ato da Procuradoria Geral da República, a 2ª Turma do STF reafirmou que o acordo de colaboração premiada constitui negócio jurídico processual personalíssimo, cuja conveniência e oportunidade não se submetem ao escrutínio do Estado-juiz. Conclui-se, portanto, não haver direito líquido e certo que possa ser invocado para compelir o Ministério Público à celebração do acordo de colaboração premiada 46.
No caso, o réu alegou ter havido demora do Ministério Público em concluir a fase de negociação do acordo. Logo após, tendo havido recusa da proposta pela autoridade, a defesa impugnou a decisão ministerial visando compelir o Parquet a efetivar as negociações tratadas no âmbito de negociação, culminando com a assinatura do acordo de colaboração premiada. Segundo a defesa, foram realizadas ao todo treze reuniões prévias em Brasília, ao longo de dezessete meses, incluindo três entrevistas com o réu, além de ter sido entregue material contendo descrição de condutas criminosas que resultaram na elaboração e entrega de quarenta anexos 47.
De outro lado, o Ministério Público justificou sua recusa em decorrência de que os elementos de corroboração e de prova apresentados não apresentavam a consistência necessária à elucidação dos fatos: não eram conclusivos para confirmar as irregularidades relatadas 48.
O que se depreende do caso é que, independentemente da recusa ou aceite na formalização do acordo, a quantidade de informações prestadas ao Parquet — pelo período superior a um ano de negociação — proporcionou à acusação inúmeros elementos que muito provavelmente não teriam sido obtidas de outro modo ou, pelo menos não com o mesmo nível de detalhamento. Na mesma esteira, observando-se apenas os dados disponíveis quanto ao caso 49, somadas à decisão do Supremo, verifica-se que estar equivocadamente se firmando a tese de que Ministério Público teria absoluta discricionariedade em propor, deixar de propor, dar seguimento ou desistir de acordos de colaboração 50. Em oposição, considerando-se que a atuação do Ministério Público está pautada pela legalidade 51, estando presentes os pressupostos e requisitos autorizadores da celebração de acordo, não haveria que se falar em juízo de oportunidade e conveniência, permitindo que o membro do MP possa escolher com quem celebrar acordo de colaboração e com quem não o fazer. 52
De todo modo, em se tratando o acordo de colaboração premiada de um negócio jurídico, há de prevalecer a vontade das partes — acusação e defesa —, de modo que sua celebração não possa ser imposta pelo Judiciário. 53 Assim, caso impassível o Ministério Público e havendo interesse da defesa em obter algum benefício por sua colaboração, poderá recorrer à tentativa de reconhecimento da delação unilateral, nos termos do art. 4.º da Lei n.º 12.850/2013, aceita atualmente tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência do STF 54.
O entendimento quanto à inexistência de um direito líquido e certo do imputado à conclusão de um acordo, aliado à jurisprudência permissiva à pretensa discricionariedade do Ministério Público em sua celebração, resulta em um ambiente propício à lavagem de provas. Quando premeditada a lavagem, permite-se que o procedimento de colaboração premiada seja utilizado para obter novas informações e fontes de provas, além de diminuir a capacidade reativa das defesas, tornando o instituto da colaboração — que deveria ser instrumento legítimo de defesa — em algo desfavorável ao colaborador. E, mesmo não havendo premeditação, na hipótese em que, de fato, as tratativas preliminares não permitirem a apuração de elementos suficientes para justificar que um acordo seja firmado, ainda assim terá havido um ganho para a acusação — facilitando a análise dos elementos de prova ou direcionando os esforços de investigação — que não se traduz em um benefício correspondente à defesa.
A partir destas constatações e apontamentos, é necessário investigar as implicações processuais da lavagem de provas, sobretudo se o fenômeno da lavagem de provas configura ilicitude em todos os casos em que esteja presente, nos termos do art. 157 do CPP e § 6º do art. 3-B da Lei n.º 12.850/2013, bem como se isso afeta, ou não, a cadeia de custódia da prova.
Em nome do aprimoramento das técnicas de investigação de crimes imputados a organizações criminosas, tem se admitido a obtenção de provas por métodos ocultos — como é o caso da colaboração premiada —, que aumentam a disparidade na capacidade investigativa das partes. Isto representa (ainda) maior desequilíbrio na paridade de armas entre a atuação defensiva e a acusatória, pois a acusação passa a dispor de mecanismos muito mais amplos e efetivos de investigação 55. Dada a natureza própria inquisitória dos procedimentos investigativos 56, demonstra-se um campo de preocupação baseado na possibilidade da inserção de provas ilícitas ou inutilizáveis no processo.
Devido a este fenômeno, deve haver, segundo Geraldo Prado, um rigoroso sistema de controles epistêmicos no processo. Esses controles têm relevada importância sobretudo no processo penal, uma vez que se verifica o crescente uso de métodos ocultos de investigação, como interceptação das comunicações e quebras de sigilo. De modo geral, a totalidade destes elementos informativos acaba por subsidiar acusações 57 e sentenças condenatórias. Além disso, muitas dessas diligências permanecem obscuras e sem acesso pela defesa.
Recorrentemente, as medidas processuais de obtenção de provas por meios obscuros resultam em diversas diligências simultâneas, muitas das quais não se encontram concluídas quando de eventual pedido de acesso pela defesa. A título de exemplo, o STF na Reclamação n.º 30.742/SP entendeu haver necessidade de conceder à defesa acesso aos autos de acordo de colaboração premiada já homologado judicialmente, nos termos da Súmula Vinculante n.º 14. 58 Contudo, ao mesmo tempo, ressalvou o acesso em caso de haver diligências investigativas em curso que possam ser prejudicadas 59. E esta tende a ser a realidade na maior parte dos casos de colaboração premiada — e de outras medidas de investigação —, o que pode inviabilizar o contraditório pleno 60.
A busca por disponibilidade de informações à defesa como forma de controle epistêmico teve início na década de 1970 nos Estados Unidos da América, a partir da Rule 16 das Federal Rules of Criminal Procedure61. Neste contexto, a legitimação das decisões penais acabou por ser condicionada à estreita observância das regras dirigidas à paridade de armas, evocada como premissa fundamental de um fair trial. Acerca do tema, ensinam Dressler e Thomas III acerca dos direitos da defesa, ainda na fase de pre-trial:
Os defensores [no tribunal federal] têm uma regra de procedimento correta para descobrir os vários elementos de provas. Além disso, [...] os réus têm o devido processo legal para descobrir todos os elementos de prova exculpatórios nas mãos do promotor. A oitiva vigorosa das testemunhas de acusação em audiência preliminar, como vimos, também pode ser uma ferramenta eficaz. [...] Assim, embora a descoberta ocorra nos estágios de pré-julgamento de um processo criminal, seu real valor é para o julgamento e para a barganha que é um substituto para o julgamento – os réus obtêm pechinchas muito melhores se tiverem uma defesa razoavelmente forte 62.
Vale ressaltar que a Rule 16(a)(1)(E) também obriga a acusação a fornecer quaisquer fotos de livros, papéis, documentos, datas, fotografias, objetos tangíveis, construções ou lugares, cópias ou porções de quaisquer itens que estiverem em seu poder 63.
O que se quer evitar com estas determinações são as antigas e comuns provas ditas “ carried in the dark” 64, isto é, ocultadas da parte adversa a partir de um conjunto de manobras visando surpreender a outra parte e obter vantagem estratégica processual. A forma mais comum de evitar conhecimento da prova no processo americano se dava pela introdução de provas desconhecidas pela parte adversa ( unfair surprise) sem que esta pudesse conhecer o meio de sua obtenção. 65
Assim, foi criado o mecanismo de discovery, com o fim de instituir a possibilidade de especificar, examinar e conseguir todos os meios de prova destinados a serem produzidos antes da fase do trial. Esse sistema de descoberta das fontes de prova ( discovery devices) assegura à parte tomar conhecimento das provas que a outra pretende produzir e de como foram obtidas, podendo controlar a legalidade do acesso às fontes de prova 66. Em outras palavras, a discovery é um mecanismo que busca aferir a cadeia de custódia das provas, de modo a permitir o controle — principalmente por parte da defesa, no processo penal — da fiabilidade dos elementos de prova, bem como da legalidade em sua obtenção, a fim de manter a higidez do sistema democrático de persecução penal. Neste mesmo sentido, é precisa a lição de Robert A. Doran:
A cadeia de custódia é um processo usado para manter e documentar a história cronológica das evidências físicas. [...] A modificação dos procedimentos informais de manuseio de evidências das agências policiais pode ser necessária, mas as leis relativas ao manuseio e gerenciamento de evidências devem sempre ser seguidas. Muitas investigações policiais importantes são baseadas principalmente em evidências físicas circunstanciais; portanto, a cadeia de custódia tornou-se um elemento cada vez mais importante na ação penal. Isso garantirá a integridade das evidências e reduzirá as alegações de violação, roubo, plantio e contaminação das evidências. 67.
A maior preocupação, na realidade, não é propriamente com a boa-fé das agências de persecução no manuseio da prova, mas a viabilidade no exercício do direito de defesa e da fiscalização por parte do judiciário na legalidade dos elementos obtidos 68.
Aproximando o instituto ao direito pátrio, destaca-se que a discussão acerca da quebra da cadeia de custódia foi inaugurada no Brasil a partir do Habeas Corpus n.º 160.662-RJ, em que a defesa alegou o desaparecimento do material obtido por meio da interceptação telemática e de parte dos áudios telefônicos interceptados nas dependências da Polícia Federal, sem que defesa, Ministério Público ou Judiciário os conhecessem ou exercessem qualquer controle ou fiscalização. Assim, a 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tese de nulidade pela quebra da cadeia de custódia, declarando a ilicitude da prova e de outras provas dela derivadas 69. Desta forma, evidencia-se uma possível ilegalidade das provas obtidas, o que afetaria também as provas derivadas. Atualmente, esta matéria está disciplinada nos arts. 158-A a 158-F do Código de Processo Penal, introduzidos pela Lei n.º 13.964/2019.
A cadeia de custódia das provas tem um papel importante para se evitar a lavagem de provas. O ordenamento brasileiro veda qualquer uso de provas ilícitas, bem como as suas derivadas (art. 5.º, LVI, CR; art. 157, CPP). E, são consideradas ilícitas as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. No âmbito da colaboração premiada, está disposto expressamente no o § 6.º do art. 3-B da Lei n.º 12.850/2013:
Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial.
[...]
§ 6º Na hipótese de não ser celebrado o acordo por iniciativa do celebrante, esse não poderá se valer de nenhuma das informações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé, para qualquer outra finalidade.
Como se vê, o legislador considera ilícitas as provas obtidas a partir de colaboração premiada não levada a termo. Buscou-se trazer maior segurança jurídica ao indivíduo que busca o órgão de persecução para a propositura do acordo, reforçando a compreensão de que as provas devem ser inutilizadas, para quaisquer fins, nos casos de não celebração. Em outros termos, os casos de lavagem de provas utilizando o procedimento de colaboração premiada, em decorrência da afronta ao dispositivo, bem como em razão da quebra da cadeia de custódia, acabariam por levar à ilicitude de utilização das informações no caso de não celebração do acordo 70.
Nas disposições processuais relativas à ilicitude das provas, contudo, deve-se ressaltar que não será declarada a nulidade da prova — mesmo que obtida ilicitamente —, quando (i) não evidenciado o nexo de causalidade entre a conduta ilegal ou inconstitucional e a prova obtida ou (ii) quando a prova derivada da ilícita puder ser obtida por uma fonte independente da prova ilícita.
Com isso, em que pese a lei tenha se esforçado para diminuir a insegurança jurídica ao indivíduo em colaboração com o dispositivo, identificam-se duas situações em que o fenômeno da lavagem de provas na colaboração premiada gera diferentes efeitos sobre a cadeia de custódia e licitude das provas.
A primeira situação é aquela em que a autoridade passa a utilizar as informações obtidas após a negativa do acordo 71. Neste caso, as novas provas “lavadas” — obtidas a partir da negativa do acordo — estarão eivadas de nulidade, com base na regra expressa do § 6.º do art. 3º-B da Lei n.º 12.850/2013, em leitura conjunta com o art. 157 do CPP.
Com o fim de evitar a lavagem nestes casos e melhor identificar a cadeia de custódia, tal trabalho pode restar facilitado caso a defesa tome cautelas como: (i) a inserção de cláusulas ou safeguards diretamente no pré-acordo ou no acordo, discriminando as provas que não poderão ser utilizadas em seu desfavor; (ii) a documentação dos elementos e informações concedidas; bem como (iii) certificando a devolução dos documentos e informações prestadas 72.
No entanto, a verificação neste caso é complexa, sendo hercúleo o trabalho defensivo para identificar a eventual lavagem realizada, seja em razão do sigilo imposto às investigações em curso, seja pela ausência do dever de disclosure por parte da acusação. Implica este caso uma real situação em que a cadeia de custódia dos novos elementos poderá estar obscura ou dissimulada, entretanto, sem que possa ser efetivamente identificada.
Já a segunda situação consiste no caso em que a autoridade use as informações durante as negociações e só então passe a declinar o acordo. Neste caso, o fenômeno da lavagem se torna ainda mais complexo.
Relembra-se que a palavra do colaborador não é suficiente, por si só, para embasar uma sentença condenatória, além de não autorizar o juízo de admissibilidade positivo da acusação 73. Aliás, muitas das informações lançadas pelos colaboradores não vêm acompanhadas de material probatório, seja em razão do dificultado acesso a materiais apreendidos, seja pelo fato de estarem fundadas na própria inaptidão do colaborador para a produção probatória.
Esse déficit implica, necessariamente, a diligência persecutória do órgão acusador ainda durante a negociação. Em outros termos, a colaboração poderá ensejar novas diligências e produção de informações e elementos de prova, algo amparado pelo § 4.º do art. 3.º-B da Lei n.º 12.850/2013 74. Neste caso, quando as diligências surgem durante as negociações, embora exista eventual lavagem de provas — ainda que premeditada e em claro desfavor do pretenso colaborador —, parece inexistir afronta direta ao § 6.º do art. 3.º-B da Lei 12.850/2013 ou necessária violação da cadeia de custódia da prova, dada a autorização e o incentivo legal de investigação concomitante.
Pelo exposto, observa-se a possibilidade de existir lavagem de provas sem que dela resulte, necessariamente, nulidade ou ilicitude das novas provas obtidas. E, mesmo havendo a nulidade, resta praticamente impossível sua demonstração em casos concretos 75.
Nota-se, portanto, que a lavagem de provas tem o condão de criar situações notavelmente desfavoráveis e de grande insegurança jurídica aos pretensos colaboradores, como (provavelmente) ocorrido no MS/SP n.º 35.693 e, seguramente ocorrido na terceira opção do caso hipotético proposto na seção 3, acima. Diante da problemática exposta, é que se buscam possíveis soluções para o fenômeno.
Pode-se dizer que o acordo de leniência é, sistematicamente, equiparável à colaboração premiada 76, ao menos para os fins deste estudo. Desta forma, muito do que se discorreu acerca da lavagem de provas na colaboração premiada pode ser, mutatis mutandis, aplicável à experiência negocial dos acordos de leniências. Tratando-se o programa de leniência do CADE a mais antiga iniciativa brasileira (institucionalizada) de justiça negocial, este constitui importante parâmetro concreto para estudo, devido às suas duas décadas de amadurecimento, motivo pelo qual toma-se o modelo do CADE por base para análise.
Inicialmente, deve-se destacar que a instituição de programas de leniência teve início na autoridade antitruste norte-americana, o Department of Justice (DOJ), que, em 1978, instituiu o primeiro programa de leniência no mundo. Em que pese o projeto inicial não ter trazido muitos frutos — até meados da década de 1990, a média era inferior a um acordo por ano e nenhum dos acordos auxiliou na descoberta de cartéis —, o novo modelo acabou por ser redesenhado em 1993, trazendo maiores possibilidades e aumentando a segurança jurídica para as entidades privadas 77. Com as alterações no procedimento, diversos cartéis foram descobertos, devidamente processados e condenados. Enormes quantidades de multas foram aplicadas 78, resultando em diversas condenações criminais que, por sua vez, levaram grandes executivos a cumprir penas de prisão 79.
Diante dos resultados positivos da experiência americana, países como Austrália, Canadá, França, Alemanha, Nova Zelândia, Reino Unido, e Suécia, bem como o bloco denominado União Europeia, introduziram programas análogos em suas agências 80. Seguindo a denominada “ leniency revolution” 81, o Brasil também instituiu o seu próprio programa em 2000 82, com o primeiro acordo sendo celebrado em 2003, e, a partir deste, outros 101 tendo sido celebrados até o ano de 2020 83.
Em estudo acerca do tema, Marcos Paulo Verissimo indica que os programas de leniência — em especial dos EUA e da União Europeia 84 — só passaram a obter tal sucesso quando passaram a conferir aos colaboradores (i) transparência, (ii) segurança jurídica, (iii) certeza do resultado do processo e (iv) critérios objetivos de concessão da leniência 85. Estas lições foram especialmente compreendidas na autoridade antitruste brasileira, sendo várias as medidas tomadas em favor de desenvolver, propriamente, um programa de leniência.
Resgatando a problemática do trabalho, verifica-se que são duas as principais características que tornam a lavagem de provas um fenômeno latente durante as negociações dos acordos de colaboração premiada: (i) a autoridade que negocia o acordo é a mesma que investiga e processa criminalmente, como já mencionado, e (ii) o fato de inexistir clareza acerca da gestão da prova, que também se reflete na ausência de um “programa” — ou diretriz — claro de colaboração premiada nos órgãos de acusação. Para estes problemas, que têm o potencial de gerar grande insegurança jurídica aos pretensos colaboradores, é que o programa de leniência do CADE possui interessantes soluções, as quais se pretende explorar.
No CADE, embora a autoridade responsável pela investigação, negociação e assinatura de acordos de leniência seja o Superintendente-Geral 86, a experiência e a consolidação do programa ao longo de duas décadas resultaram na disposição separada entre setores investigativos e negociantes. Esta cisão tem como objetivo resguardar as diferentes atribuições da superintendência e promover a adequada gestão probatória e de informações sensíveis compartilhadas pelo leniente 87, criando uma “ chinese wall” dentro do órgão. Isto é, existe uma unidade especialmente dedicada à negociação dos acordos de leniência que não abarca os servidores públicos responsáveis por conduzir as investigações do órgão 88. Desta forma, não se compromete a capacidade defensiva do proponente frente ao próprio CADE — que confessa a prática anticoncorrencial —, no caso de recusa no acordo, bem como diante outras esferas, sejam administrativas ou judiciais.
De todo modo, em que pese exista cognição por parte do Superintendente-Geral, a correta gestão de provas e a segurança do não compartilhamento de informações sensíveis são temas centrais dentro do programa de leniência do CADE. Essa questão como um todo tomou tamanha importância para o programa que foi editada a Resolução n.º 21/2018 89 pelo Tribunal do CADE. Tais disposições foram elaboradas buscando, sempre em respeito à Lei de Acesso à Informação, resguardar documentos sensíveis do domínio público 90.
Essas simples diligências do CADE seguem as antigas lições dos programas de leniência americano e europeu, que precisaram trabalhar e realizar reformas a fim de estabelecer e pacificar os pontos de insegurança jurídica. Nesse sentido, a Resolução busca pacificar e esclarecer que, a depender da forma pela qual o acordo é negociado e a forma de tratamento e gestão da prova, a autoridade negociante pode auxiliar e promover segurança jurídica a seus colaboradores, recebendo em troca um auxílio do envolvido nas suas capacidades investigativas. Isso, naturalmente, fortalece e promove o institucional programa de leniência da autoridade.
Conforme o disposto, nota-se que o programa de leniência do CADE já apresenta sinais de amadurecimento, com o incremento de adeptos à sua política premial. Embora muitas das questões relacionadas à gestão da prova e do sigilo dentro do órgão já estejam pacificadas, a manutenção da segurança jurídica no âmbito do programa de leniência do CADE também passa pela via da promoção da “advocacia da concorrência” 91 — i.e., a contínua difusão dos valores da concorrência que, no caso, também englobam a conscientização da lesividade de ações que busquem a devassa probatória e de informações sensíveis como fatores de desestímulo e contrários à política empregada pelo órgão.
Sugere-se que estas três medidas adotadas no âmbito dos acordos de leniência do CASO sejam espelhadas em matéria criminal, incluindo eventuais reestruturações internas e até mesmo políticas — em sentindo amplo — dentro dos órgãos negociantes, especialmente o Ministério Público. Explica-se.
Para a primeira problemática — de unicidade entre autoridade negociante 92 e autoridade investigativa-persecutória — a exemplo do que faz o CADE, poderia ser bastante produtivo e resultar em maior segurança jurídica às defesas em colaboração, se houvesse um órgão central de colaboração nos Ministérios Públicos. Tais autoridades centrais poderiam negociar — sempre em auxílio do promotor natural — evitando que as informações sensíveis obtidas na negociação ficassem sob a custódia única do membro natural, antes da homologação do acordo, desestimulando a eventual prática de lavagem de provas. Tal medida, aliada à identificação de elementos, provas, datas e cláusulas no pré-acordo garantiriam a cadeia de custódia da prova e maior higidez no procedimento. Desse modo, promover-se-ia a institucionalidade na tratativa do acordo, isto é, a relação entre indivíduo e Estado — em detrimento de uma eventual e (indesejada) personalização entre o membro responsável com as partes.
Neste ponto, interessante trazer uma segunda lição do CADE: existe um programa claro de leniência, com diretrizes, transparência e garantias 93. A colaboração premiada, enquanto instituto, também poderia assim ser tratada dentro do Ministério Público ou, ao menos, efetivamente regulamentada. Isto é, seria de grande utilidade a preocupação com um tratamento uniforme, contando com guias, modelos, diretrizes e normas de boas práticas dentro das negociações dos acordos, somado a programas como o de proteção a testemunhas. Não obstante, seria de interesse criar um mecanismo de revisão e pacificação de entendimento acerca do tema, tal qual existente nas Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF, replicado aos demais órgãos negociantes. Em suma, efetivamente, algo pensado de modo a constituir um ambiente institucional de justiça negocial.
Por fim, e como última lição trazida da experiência junto ao CADE: ao lado das medidas já apontadas, deve-se promover nos órgãos negociantes da colaboração premiada uma filosofia equivalente à da “advocacia da concorrência”, existente nos órgãos negociantes do CADE. Destacam-se entre os pilares que promoveram o sucesso nos programas de leniência: o reforço de boas práticas, a institucionalização, a correta gestão de provas e a conscientização das partes acerca dos benefícios da negociação. Semelhante filosofia no âmbito da colaboração premiada poderá contribuir não apenas para a promoção de segurança jurídica e maior confiabilidade e transparência nos órgãos de acusação, como, consequentemente, em mais e melhores acordos celebrados.
A colaboração premiada é um instituto que se mostra indispensável ao desbaratamento da nova criminalidade organizada e que tem demonstrado resultados extremamente positivos para a sociedade. Sua natureza jurídica, como um fenômeno complexo, implica a leitura de que é um meio de obtenção de prova, um negócio jurídico processual e um mecanismo legítimo de defesa do imputado.
Passou-se à discussão acerca do fenômeno da lavagem de provas, conceituando-o como a ocultação ou dissimulação da origem da informação — de regra inutilizável no processo — como fonte de novos meios de prova. Identificou-se que o momento propício para a ocorrência da lavagem é a fase de negociação de um acordo de colaboração premiada.
A partir de um caso hipotético, vislumbraram-se ao menos três medidas durante as negociações a serem tomadas pela autoridade negociante (MP), as quais podem levar a diferentes situações jurídicas, dentre elas, a ocorrência da lavagem de provas.
A primeira delas e mais simples, é quando o órgão acusador apenas encerra a negociação e não utiliza as provas apresentadas, razão pela qual não há qualquer movimento de lavagem de provas ou de ilicitude por parte da acusação, apenas se constituindo a aquisição de elementos informativos por parte da autoridade negociante – o que é natural, a partir da entrega e do conhecimento de materiais.
A segunda ocorre quando a acusação encerra as tratativas e se utiliza das informações que obteve confidencialmente, ainda que sem acesso aos materiais. Neste caso, concluiu-se que se configura uma autêntica lavagem de provas, e com uma consequente quebra na cadeia de custódia, de modo que as informações obtidas por este meio são ilícitas.
E, por fim, em uma terceira hipótese, quando a autoridade, durante as negociações, utiliza-se dos materiais apresentados e obtém elementos equivalentes de forma cruzada ou de maneira independente, e, somente ao final das investigações e averiguações acaba por declinar do acordo de colaboração. Nesta última hipótese, concluiu-se que há a lavagem de provas, no entanto, não é uma situação em que há nulidade ou ilegalidade das provas obtidas a partir dos documentos entregues pelo colaborador, uma vez que a colaboração admite a investigação complementar nesta fase nos termos dos § 4.º do art. 3.º-B da Lei n.º 12.850 de 2013.
Assim, diante dessa última possibilidade, é que se passou a discutir uma possível forma de combate a esta conduta por parte da acusação, destacando a importância de assegurar ao colaborador que sua pretensa colaboração, ainda que na fase de negociação, seja efetivamente levada em seu favor. Neste contexto, utilizou-se como modelo o programa de leniência instituído pelo CADE, aproveitando-se de suas características e diligências para a correta gestão da prova, de forma a evitar devassas e investigações baseadas única e exclusivamente na quebra da boa-fé negocial, especialmente destacando-se a divisão interna entre o departamento de leniência e os de investigação e apuração de infrações.
Seguindo as lições do programa, como forma de evitar ou minimizar os nefastos efeitos da lavagem de provas, sugere-se o uso de três lições do programa de leniência antitruste a serem aplicados na colaboração premiada: (i) criação de uma autoridade central responsável pela negociação de acordos de colaboração premiada, em auxílio ao promotor natural; (ii) criação de um “programa” de colaboração premiada ou, ao menos, sua regulamentação em âmbito interno; e (iii) promoção e difusão dos valores e boas práticas dentro das negociações e acordos de colaboração premiada, tal qual realizado no antitruste com a “advocacia da concorrência”.
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