TEORIA DA PROVA PENAL
O standard de prova para condenação por crimes sexuais: é viável e eficaz a flexibilização da exigência de corroboração probatória em crimes dessa espécie com o objetivo de redução da impunidade?
The standard of proof for convictions for rape crimes: Is it feasible and effective to weaken the requirement for corroboration of evidence in crimes of this kind with the aim of reducing impunity?
O standard de prova para condenação por crimes sexuais: é viável e eficaz a flexibilização da exigência de corroboração probatória em crimes dessa espécie com o objetivo de redução da impunidade?
Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 8, núm. 2, pp. 1007-1041, 2022
Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal
Recepção: 11 Abril 2022
Revised document received: 16 Abril Abril Abril Maio Maio Maio 2022
Aprovação: 06 Agosto 2022
Resumo: Os crimes sexuais fazem parte do grupo dos delitos difíceis de provar e as estatísticas de impunidades relacionadas a eles são altas. Nesse contexto, a jurisprudência nacional tem seguido o caminho da flexibilização do standard probatório, considerando a palavra da vítima suficiente para condenação. O presente estudo analisa o seguinte problema: é constitucionalmente viável e é eficaz, pela perspectiva de política criminal, um rebaixamento de standard com o objetivo de reduzir a impunidade? Argumentou-se que a atenção especial conferida à palavra da vítima deve significar a compreensão do contexto de dificuldade de obtenção de provas, o esforço para se verificar a coerência externa a partir dos elementos fáticos que efetivamente podem ser obtidos em cada caso e uma avaliação desprovida de estereótipos de gênero. Mas uma condenação deve pressupor confirmação sólida da hipótese acusatória por elementos independentes. A adoção de uma presunção de veracidade não é compatível com a presunção de inocência e implica uma politicamente problemática conformação com condenações equivocadas, além de sequer impactar positivamente nas estatísticas de incidência do crime. Há espaço para se melhorar a qualidade da prestação jurisdicional, mas o foco das políticas públicas deve estar sobretudo na prevenção e no combate aos fatores sociais e estruturais que estão na raiz do problema.
Palavras Chaves: Processo penal, Standards probatórios, Crimes sexuais, Palavra da vítima, Presunção de inocência.
Abstract: Rape crimes are part of the group of crimes that are difficult to prove and the impunity statistics related to them are high. In this context, Brazilian case law has followed the path of flexibilization of the evidentiary standard, considering enough for conviction the victim’s testimonial. This study analyzes the following problem: Is it constitutionally feasible and, from the perspective of criminal policy, is it effective to lower the standard of proof, with the aim of reducing impunity? It is argued that the special attention given to the victim’s word must mean understanding the context of difficulty in obtaining evidence, the effort to verify external coherence from the factual elements that can effectively be obtained in each case and an assessment devoid of gender stereotypes. However, a conviction presupposes solid confirmation of the accusatory hypothesis by independent elements. The adoption of a presumption of veracity is not compatible with the presumption of innocence and implies a politically problematic tolerance for mistaken convictions, apart from the fact that it does not have a positive impact on crime incidence statistics. There is room to improve the quality of judicial provision, but the focus of public policies should be mainly on preventing and combating the social and structural factors that are at the root of the problem.
Keywords: Criminal procedure, Standards of proof, Rape crimes, Victim’s testimony, Presumption of innocence.
Sumário: Introdução; 1. O standard de prova para julgamento do mérito da acusação no processo penal; 2. A tendência à flexibilização do standard de prova para a “nova criminalidade” e seu provável impacto na “velha criminalidade”; 3. A problemática da prova nos crimes sexuais; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
A delimitação dos contornos do standard da prova é um tema relevante dentro de um processo penal que, do ponto de vista epistemológico, está comprometido com a produção de decisões com o menor número de erros possível e que, do ponto de vista político, considera a condenação de um inocente um erro mais grave do que a absolvição de um culpado. Trata-se de especificar o nível de robustez exigido de um conjunto probatório para se fundamentar a corroboração necessária para que se possa considerar procedente a hipótese acusatória dentro de um processo penal concreto e, com base nessa corroboração, submeter um cidadão ao exercício do poder punitivo estatal.
O tema ganhou atenção recente não apenas pelo notório desenvolvimento dos estudos da prova no processo jurídico nas últimas décadas, mas também porque o conceito de standard probatório tem se mostrado controverso. Se há quem o defenda como uma sofisticação na técnica da valoração da prova, há também aqueles que lançam dúvidas sobre a efetiva funcionalidade do importado “beyond a reasonable doubt” na prática judiciária nacional.
O problema específico que motiva o presente estudo pode ser condensado na seguinte pergunta: é constitucionalmente viável e é eficaz, pela perspectiva de política criminal, um rebaixamento de standard, como aquele já realizado na jurisprudência nacional, com o objetivo de evitar a impunidade para os crimes sexuais? Assim, pretende-se discutir o estabelecimento de um standard probatório para o julgamento dos crimes dessa espécie e o dilema a ele associado. Por um lado, os crimes sexuais fazem parte do grupo dos delitos difíceis de provar - essa dificuldade está principalmente relacionada ao seu usual modus operandi, que frequentemente não deixa qualquer vestígio ou testemunha - e as estatísticas de impunidades relacionadas a eles são altas. Por outro lado, uma redução dos níveis de prova exigidos como suficientes para uma condenação, como já ocorre na jurisprudência nacional, leva a um conflito com a presunção de inocência e com as pretensões epistêmicas do processo penal, o que aumenta o risco de condenações equivocadas.
O presente estudo apresenta uma reflexão sobre essa questão. Para tanto, expõe-se, em primeiro lugar, uma breve introdução do problema do standard da prova para o julgamento de mérito da acusação no processo penal. Em segundo lugar, discorre-se sobre as novas tendências no direito penal e no processo penal, que caminham no sentido da flexibilização de seus núcleos duros. Por fim, em terceiro lugar, expõe-se as dificuldades inerentes à prova nos crimes sexuais e se apresenta uma crítica aos caminhos tomados pela jurisprudência brasileira. A abordagem teórica se dá a partir da revisão bibliográfica de estudos sobre standard probatório e sobre a prova nos crimes sexuais, bem como a partir da análise da jurisprudência sedimentada dos tribunais superiores sobre esses temas. O foco é a identificação dos problemas políticos e constitucionais dos consensos jurisprudenciais sobre a valoração da palavra da vítima nos crimes sexuais.
1. O standard de prova para julgamento do mérito da acusação no processo penal
Standards probatórios, ou “padrões de prova”, dizem respeito ao problema da valoração de fatos juridicamente relevantes e são, em última instância, um problema epistemológico da verdade2. Por standard probatório, pode-se compreender um critério que estabelece o grau de confirmação probatória necessária para que, dentro de um processo concreto, um juiz(a) ou uma câmara de juízes(as) possa considerar provado determinado enunciado fático3.
O art. 93, IX, da CF exige que o convencimento do juiz ou da juíza, no que diz respeito aos enunciados fáticos, seja motivado e centrado nas provas produzidas nos autos. Em coerência com essa exigência, os standards podem servir como critérios que limitam o princípio do livre convencimento e buscam o submeter ao controle de racionalidade4. Os fundamentos apresentados na decisão, assim, em tese permitem um esforço para o controle da qualidade do raciocínio apresentado pelo(a) juiz(a) na valoração dos elementos probatórios e na justificação de que determinada hipótese fática pode ser tida como provada5.
Identifica-se, em geral, a existência de vários tipos de standards probatórios, sendo três os principais: um modelo mais rígido, que exige prova apta a produzir um convencimento que supere qualquer dúvida razoável; um modelo menos rígido, que exige material probatório claro e convincente para que se considere verdadeira uma hipótese fática; e um modelo de probabilidade preponderante, ainda menos rígido, que aceita como provada a hipótese “mais provável que não” 6.
A decisão sobre qual é o standard mais adequado para cada tipo de processo e para cada momento processual é política e deve ser guiada pela busca do critério que maximiza os acertos e minimiza os erros no juízo de fato7, levando em conta a intensidade com que devem ser garantidos os direitos ou interesses afetados pelos erros possíveis. Os dois principais erros possíveis são “considerar provado um fato que é falso” (erro 1) e “considerar não provado um fato que é verdadeiro” (erro 2). Se os interesses afetados pelo erro 1 merecem mais proteção do que os afetados pelo erro 2, o standard deverá ser mais exigente8. E quanto mais exigente o standard, mais racional será a decisão9.
Dentro do processo penal, especificamente quando se discute o nível de exigência de prova para se considerar provados fatos que correspondem a crimes, prevalece o entendimento de que um standard adequado deve ser especialmente rígido10. A razão é que a condenação criminal legitima aquela que, em tese, é a mais dura intervenção que o Estado é capaz de fazer na esfera de direitos de um cidadão: a pena privativa de liberdade. A aplicação de penas dessa natureza, além de afetar direitos fundamentais, é também capaz de gerar consequências bastante graves e traumáticas na vida do apenado, prejudicando sua vida social, seus laços afetivos, sua carreira profissional, seus potenciais projetos de vida, etc., além de ter um caráter estigmatizante11 como efeito colateral. Além disso, e apesar do disposto no art. 5º, XLV, da CF12, a pena, em certa medida, também afeta terceiros, uma vez que familiares e demais pessoas do ciclo social a que pertence o apenado também sofrem os impactos indiretos da pena. Por isso, a condenação de um inocente é, de fato, um erro bastante grave, que produz prejuízos individuais e sociais irreversíveis.
No horizonte de se evitar os prejuízos da aplicação das penas, e em coerência com o princípio da intervenção mínima, está estabelecido o princípio da presunção de inocência, que funciona como um importante norte dentro do processo penal. Dentre as funcionalidades desse princípio, a que mais interessa a este estudo é a de se constituir como uma regra de juízo fático e de avaliação probatória da sentença (in dubio pro reo)13. Essa regra incide justamente no momento de se valorar a prova produzida e de se indicar se as exigências do standard foram ou não atingidas. Uma vez que se conclui que as provas existentes não são suficientes para afastar a dúvida sobre determinado enunciado fático, essa incerteza deve pender em favor do réu ou da ré. Ou seja, a hipótese acusatória deve ser considerada não provada. O artigo 386, VII, do CPP, estabelece, inclusive, que a(o) ré(u) deve ser absolvido se “não existir prova suficiente para a condenação”. Isto é, se a prova produzida nos autos não confirma a hipótese acusatória no grau exigido pelo standard, deve-se absolver, porque o prejuízo por uma condenação injusta é maior do que o prejuízo por uma absolvição injusta.
No processo penal há, por isso, uma relação direta entre a presunção de inocência e o standard probatório14: parece claro que apenas um standard bastante rígido é compatível com esse princípio, pois a predileção pela liberdade é a escolha política que guia o processo penal democrático. Assim, no gerenciamento dos erros, deve-se pretender que haja mais culpados absolvidos do que inocentes condenados15.
Todavia, a viabilidade da adoção do standard “para além de qualquer dúvida razoável” no Brasil é controversa. Para Matida e Vieira16, esse standard não cumpre a sua esperada função de dificultar condenações e de racionalizar as decisões judiciais porque em vez de colocar ênfase na prova, coloca-a naquilo que o(a) juiz(a) deve ter em mente no momento da decisão (certeza moral e ausência de dúvidas razoáveis). Assim, conforme os autores, o standard, além de não ajudar em nada no estabelecimento de critérios para se considerar provada determinada hipótese fática, permite que disfarçadamente se profiram decisões subjetivistas com base na íntima convicção. E, de fato, tribunais brasileiros vêm se utilizando desse standard para flexibilizar, em vez de aumentar, a exigência de prova17. Também Lucchesi18 chama a atenção para o uso indevido desse standard por autores que o transplantam de forma acrítica para o direito brasileiro, sem compreender de fato seu papel no ordenamento jurídico nativo, e o defendem como um mecanismo que serve para facilitar, em vez de dificultar, o cumprimento da carga probatória atribuída à acusação19.
Sem dúvida remanescem dificuldades relativas à definição do que significa exatamente “para além de qualquer dúvida razoável”, pois o standard não confere critérios precisos para a decisão. Com efeito, enquanto a tarefa da valoração das provas consiste em conferir a determinado enunciado fático maior ou menor suporte, que pode ser genericamente medido em graus de probabilidade, o standard apenas indica o tamanho da rigidez da exigência, ou seja, qual o grau de probabilidade ou certeza é requerido20. Nesse sentido, a expressão “mais além de qualquer dúvida razoável” não seria nada além de um indicativo de que o “honesto reconhecimento da invariável falibilidade abstrata do juízo não deve impedir a condenação21”.
Há autores que realizam um esforço para viabilizar a aplicação desse standard e evitar seu mau uso. É o caso, por exemplo, de Vinicius Vasconcellos. O autor reconhece a imprecisão desse standard e o risco de que ele se torne um mero argumento retórico em sua aplicação prática22. Reconhece, também, a necessidade de se afastar uma visão subjetivista, que justifica a comprovação dos fatos no convencimento pessoal do julgador. No entanto, o autor investe na possibilidade de aprimorar esse padrão de prova de forma a superar sua imprecisão, em vez de o descartar, considerando a vantagem de que a noção de “prova além da dúvida razoável” já está consolidada internacionalmente23. Assim, busca reduzir ao máximo possível a margem de subjetivismo, especialmente a partir da controlabilidade da decisão24. Em suma, o autor propõe, em primeiro lugar, a exigência de que a acusação seja capaz de “explicar de modo coerente e íntegro os fatos comprovados no processo com a apresentação de critérios confirmatórios disponíveis25”. Em segundo lugar, que essa explicação seja capaz de afastar quaisquer eventuais explicações alternativas aos fatos provados. Vasconcellos estabelece critérios para definir o que é a “dúvida razoável”, compreendendo-a como “a hipótese alternativa à tese incriminatória que se mostra logicamente possível e amparada pelo lastro probatório do processo26”. Sugere, enfim, a adição de artigos ao CPP de forma a esclarecer a aplicabilidade do standard27.
Dentro desse cenário, e independentemente da adoção desse standard específico, entende-se essencial o estabelecimento de um horizonte: a) de que o nível de exigência de comprovação para que determinado enunciado fático possa ser considerado verdadeiro deve ser alto; b) de enfoque no material probatório dos autos, em vez de na mera convicção subjetiva do julgador, de forma a exigir que o juízo justifique sua decisão com base na prova, não em sua certeza moral; e c) de exigência de argumentação racional que apresente a relação, com critérios objetivos e uma conexão dedutiva sólida, entre os enunciados fáticos considerados verdadeiros e as provas produzidas nos autos.
Partindo dessa perspectiva, o horizonte estabelecido deve produzir impacto em ao menos três momentos. Em primeiro lugar, na relação entre verdade e prova. Em especial, na definição do significado do termo “verdadeiro”, quando atribuído a determinado enunciado fático dentro do processo28. Em segundo lugar, na distribuição da carga probatória. O processo penal parte de um estado de presumida inocência da pessoa acusada. Pelas razões de política criminal já indicadas anteriormente, esse estado deve ser protegido e não pode ser desconstituído facilmente. Por isso29, deve recair sobre a acusação todo o ônus da sua desconstituição30.
Em terceiro lugar, especificamente em relação ao grau de confirmação, o processo penal deve exigir - levando-se em conta as limitações de um standard probatório - um guia para o julgamento que seja centrado na prova dos autos31. Mostra-se factível a exigência de que apenas pode haver condenação se o enunciado fático (aqui chamado também de “hipótese”) acerca da culpabilidade do(a) acusado(a) não tenha sido refutado e, ao contrário, esteja solidamente confirmado. A condenação pressupõe que o enunciado fático que afirma a inocência da pessoa acusada não tenha sido confirmado ou tenha sido confirmado apenas de forma débil. A confirmação será sólida se as provas, consideradas em conjunto, só encontram explicação se a hipótese acusatória for verdadeira e são incompatíveis com a hipótese de inocência. A confirmação será débil se as provas podem ser explicadas se a hipótese acusatória for verdadeira, mas são também passíveis de serem explicadas se hipótese de inocência for verdadeira32. Para a absolvição, não há necessidade de confirmação sólida da hipótese defensiva - em verdade, é a versão apresentada na denúncia que está sendo verificada -, mas tão somente de uma refutação da solidez da hipótese acusatória33.
A centralização do julgamento na valoração da prova dos autos implica consideração cuidadosa sobre a força de corroboração atribuída a procedimentos probatórios34 como provas indiretas35 e presunções, bem como sobre o grau de tolerância com o uso de máximas de experiência36. De fato, não há incompatibilidade de um standard rigoroso com provas indiretas37. A rigidez do standard probatório é, todavia, proporcional à qualidade das premissas utilizadas para o raciocínio inferencial que conclui como verdadeira a hipótese acusatória38. As premissas utilizadas como base do raciocínio inferencial, por isso, devem ser apresentadas nas razões de decidir, para que se justifique a coerência da lógica utilizada. A qualidade dos argumentos de confirmação39 é também essencial, já que há inúmeras variáveis circunstanciais que pesam para se considerar uma hipótese solidamente confirmada em determinado caso (a exemplo do número e da variedade provas, do número de passos inferenciais que separam a prova da hipótese fática, etc.).
Em síntese, em um standard rigoroso, como deve ser o do processo penal, a uma, o julgamento deve estar centrado na relação de confirmação entre a prova e os enunciados fáticos; a duas, as inferências são admissíveis, mas dependem da qualidade das premissas adotadas; e a três, é essencial a argumentação racional que discorra sobre os motivos pelos quais determinado quadro probatório permite a conclusão de que a hipótese acusatória pode ou não ser considerada verdadeira.
2. A tendência à flexibilização do standard de prova para o julgamento da “nova criminalidade” e seu provável impacto na “velha criminalidade”
Apesar do consenso de que no processo penal devem ser altos os níveis de exigência do grau de corroboração que as provas devem ser capazes de promover para fins de que se considerem provados determinados enunciados fáticos, há uma tendência no sentido de sua flexibilização em relação a certos tipos de crimes. Em termos simples, essa problemática pode ser resumida no embate entre a defesa de garantias clássicas do processo penal, entre as quais se incluem o alto rigor do standard probatório, e a pretensão de que os órgãos de investigação sejam eficazes na identificação e comprovação da ocorrência dos delitos considerados difíceis de provar.
A discussão usualmente ocorre com relação aos delitos que constituem a chamada nova criminalidade: especialmente a partir das décadas de 70 e 80 do século passado houve uma onda de novas criminalizações que expandiu o direito penal, levando o poder punitivo a campos onde ele tradicionalmente não se encontrava, com a criminalização de ofensas ao sistema financeiro, ordem tributária, meio ambiente, lavagem de dinheiro etc. Uma excelente descrição do fenômeno e reflexão sobre suas causas pode ser encontrada na obra de Silva Sánchez intitulada “La expansión del Derecho Penal40”.
Há significativas diferenças entre esses novos delitos e os crimes clássicos. Trata-se de criminalizações que pretendem a tutela de bens jurídicos supraindividuais, e que, assim, caracterizam-se como crimes sem vítima. São recorrentes as criminalizações através de tipos de perigo abstrato, de tipos de mera conduta, do uso de normas penais em branco, etc. As condutas criminalizadas são mais complexas, frequentemente envolvendo conhecimentos técnicos ou especializados e hierarquias empresariais. Todas essas características tornam, em regra, muito mais difícil a investigação e a produção de prova de fatos que atestem os novos crimes, se comparado com os crimes clássicos. O quadro se mostra ainda mais problemático ao se constatar que mesmo em relação aos crimes clássicos, em tese mais fáceis de investigar, a cifra oculta é enorme, devido à baixa capacidade operativa do sistema penal. Essa defasagem leva à seletividade do poder punitivo, que em regra termina por conseguir alcançar apenas as obras de mais fácil detecção, porque praticadas de forma mais tosca41. Essa cifra oculta provavelmente é muito maior em relação à nova criminalidade.
A maior dificuldade na investigação e produção de prova gera, por consequência, uma maior dificuldade em se produzir condenações pelos caminhos tradicionais com relação a crimes dessa natureza. Especificamente no que diz respeito à prova, as dificuldades descritas levaram à tendência ao excesso da utilização de meios de prova invasivos, que afetam direitos fundamentais, como quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático, além de interceptações telefônicas. A quebra de sigilo bancário, por exemplo, que figura como um meio de prova excepcional para crimes comuns, passou a ser a regra no caso da lavagem de dinheiro. Houve, também, uma elevação da importância do papel das colaborações premiadas, que frequentemente aparecem não apenas como o ponto de partida, mas com um papel central em investigações sobre corrupção e lavagem de dinheiro. E, finalmente, essa flexibilização também atingiu o standard probatório, especificamente com a maior tolerância com condenações baseadas em confirmações frágeis das hipóteses fáticas acusatórias. O nível de exigência com a qualidade das premissas que baseiam as inferências utilizadas para se concluir por verdadeiro o enunciado fático tem diminuído42, especialmente no que diz respeito à comprovação do dolo.
Há autores que buscam racionalizar essa tendência geral de flexibilização de garantias clássicas, com teses que propõem a criação de um sub-ramo dentro do Direito Penal43 ou a criação de um ramo intermediário entre o Direito Penal e o Direito Administrativo44 como forma de resguardar o núcleo duro com relação aos crimes clássicos - tema que não será abordado neste estudo. Especificamente quanto ao problema do standard probatório, destaca-se a tese de Dallagnol45, que apresenta uma proposta de solução especificamente para o dilema da especial dificuldade em se investigar determinados crimes. O autor considera que um nível de exigência probatória muito alto, que alcance 95% de certeza, poderia ser adequado para a condenação por um crime como o homicídio, mas geraria ampla impunidade para um crime de alta complexidade como a lavagem de dinheiro. Deste modo, em síntese, Dallagnol propõe uma relação de proporcionalidade entre o nível de exigência probatória e a dificuldade de produção de provas com relação a determinado crime. Esse rebaixamento do standard poderia ocorrer em crimes como aqueles praticados por organizações criminosas, lavagem de dinheiro e corrupção, desde que o fato concretamente investigado efetivamente seja difícil de provar, que os órgãos de investigação tenham esgotados os meios exigíveis para elucidação dos fatos e que seja mais elevado o rigor da motivação judicial quanto à valoração da prova. Quanto aos possíveis erros judiciais que decorram do standard rebaixado, o autor os considera um efeito colateral lamentável, mas inevitável se se quer a punição de culpados.
A tese é criticada por Malan e Mirza46. Estes apontam que Dallagnol estaria desconsiderando o papel da presunção de inocência na conformação do standard, ao desrespeitar a escolha política já feita pelo legislador na ponderação dos custos sociais dos erros referentes à falsa absolvição e à falsa condenação. Os autores apontam, ainda, que a tese de Dallagnol implicaria violação à garantia de igualdade perante a lei processual e levaria ao paradoxo de que os acusados e as acusadas por crimes menos graves, sujeitos a penas mais leves, só poderiam ser condenados com base em um standard probatório rígido, enquanto aqueles que mais precisam dessa proteção poderiam ser condenados com o standard rebaixado.
Apesar da pertinência das críticas, a flexibilização defendida por Dallagnol tem se revelado a realidade da jurisprudência nacional nos últimos anos e se mostra uma tendência global47. É preciso levar em consideração que tendências como essa, apesar de se estabelecerem a partir do pretexto do combate de certos tipos de crimes, costumam se estender e modificar todo o direito penal e o processo penal48. Por exemplo, as propostas de reformas legislativas intituladas “10 medidas contra a corrupção”, não obstante terem por pretexto o combate especificamente da corrupção, pretendiam redução de direitos de defesa dos(as) acusados(as) em relação a crimes de todas as naturezas49.
É em razão dessa vagueza dos discursos de combate a emergências que a referida tendência se encontra com o problema específico dos crimes sexuais. Em primeiro lugar, porque são crimes em geral difíceis de provar50, não sendo necessário grande esforço retórico para se justificar o rebaixamento de standard probatório a pretexto de analogia com delitos que integram a referida “nova criminalidade”. Em segundo lugar, porque na prática judicial já se constata esse rebaixamento de standard51, mas carente de um discurso que a legitime. É curioso observar, paradoxalmente, que no voto proferido no julgamento da APN 470, a Ministra Rosa Weber52 realizou analogia inversa, justificando o rebaixamento de standard para “delitos de poder” com o pretexto de que isso já seria autorizado nos crimes sexuais. Esse cenário nebuloso é indicativo de que o tema merece atenção, tanto no sentido de se clarificar a discussão, quanto no de se encontrar respostas factíveis, conectadas com a realidade judicial e compatíveis com as garantias constitucionais.
3. A problemática da prova nos crimes sexuais
Dentro do contexto apresentado nos tópicos anteriores, emerge o problema de prova especificamente nos crimes sexuais: em delitos dessa natureza seria possível se falar em atenuação na rigidez da valoração da prova? Haveria efetivamente alguma diferença no que diz respeito ao standard probatório? O que significa dizer que a palavra da vítima possui especial valor probatório? Por crimes sexuais, aqui se entende especificamente os crimes de estupro (art. 21353 do CP) e de estupro de vulnerável (art. 217-A54 do CP).
O estupro é um relevante problema social, há décadas discutido no âmbito acadêmico, mas que especialmente nos últimos anos vem tendo seu interesse jornalístico aumentado e vem ganhando mais espaço nos debates públicos. Várias pesquisas recentes têm demonstrado a dimensão social do estupro, que, por um lado, está inserido num contexto de violência física, psicológica e simbólica de gênero55, com grandes consequências sociais, mas, por outro lado, é legitimado pela cultura machista presente na sociedade56, inclusive nas práticas judiciais57. A alta incidência de crimes dessa natureza no país, somada à grande impunidade, coloca o estupro também como um grande problema de segurança pública58.
Pela perspectiva da dogmática do Direito Penal, as recentes mudanças de comportamento sexual na sociedade, em especial a redução da tolerância com comportamentos invasivos masculinos, impactaram no aumento da envergadura daquilo que se compreende por ato libidinoso para fins do crime de estupro. Se na época em que o Código Penal entrou em vigência compreendia-se como agressão sexual apenas a conjunção carnal e os atos análogos, hoje a jurisprudência já aceita como estupro ações bem menos invasivas, mas que também são praticadas com a pretensão de satisfação da lascívia59. Há precedentes, inclusive, que dispensam o contato físico do agressor com a vítima para se considerar consumado o estupro60.
Essa atenção recente, somada à tendência descrita no tópico anterior, reanima a discussão sobre aspectos penais e processuais relativos aos crimes sexuais. No que diz respeito ao standard probatório, que é o foco deste estudo, o estupro tradicionalmente apresenta algumas dificuldades especiais. Apesar de figurarem dentro do rol dos crimes clássicos, já há muito é amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que crimes dessa natureza são usualmente difíceis de serem provados, uma vez que são costumeiramente praticados longe de testemunhas, em locais onde não costuma haver vigilância de nenhuma natureza, frequentemente por pessoas que integram o ciclo social da vítima e se valem de uma relação de confiança. Outra dificuldade é que frequentemente estupros não deixam vestígios61. Isso pode acontecer por diversas razões. Por exemplo, porque a vítima, em razão de coação, física ou psicológica, ou por um estado de embriaguez, não ofereceu resistência física. Ou porque o modus operandi não foi fisicamente violento. Ou ainda porque o tipo de conduta praticada não deixa vestígios, como nos casos em que o agressor apenas toca superficialmente ou oralmente a genitália da vítima ou esta é forçada a tocar a genitália do agressor. Desse modo, frequentemente a única prova que atesta o fato diretamente é a palavra da vítima62.
Mas o depoimento da vítima também é, por si só, rodeado de obstáculos. Além da dificuldade de reunir elementos que atestem a ocorrência do fato, vítimas também sofrem eventualmente com o descrédito das demais pessoas, inclusive de familiares e de representantes de órgãos de investigação. A vítima constantemente é tão julgada quanto a pessoa acusada. Esta, pela prática do crime, e aquela, pelo seu comportamento sexual, pela forma como reagiu à agressão e pela sua vida pregressa63. Desse modo, frequentemente “a vítima se vê obrigada a provar que não contribuiu, de forma alguma, para a ocorrência do fato e que vive de acordo com papel determinado pelos padrões sociais pré-estabelecidos64”. É comum que a própria vítima se sinta culpada pelo fato e a dúvida sobre sua palavra contribui para aumentar essa sensação. Essas circunstâncias tornam mais penoso noticiar crimes dessa natureza. A dificuldade é ainda maior quando o crime em questão é o estupro de uma criança. Isso porque há inúmeros óbices inerentes ao depoimento de menores de 14 anos de idade, que não têm a mesma desenvoltura que uma pessoa adulta para identificar que estão sendo vítimas de um crime sexual e são mais vulneráveis a coações por parte do agressor.
Esses obstáculos pesam em desfavor das vítimas e dos órgãos de acusação, que constantemente não conseguem formar um quadro probatório apto a dar suporte à afirmação de que o fato criminoso aconteceu. A falta de provas é causa comum de absolvições. A falta de perspectiva de conseguir comprovar os fatos é também um fator que inibe muitas vítimas a noticiar o crime às autoridades competentes.
Diante desse contexto, a seguinte questão poderia ser colocada: a pretensão da eficácia na punição de autores de crimes dessa natureza justificaria a redução do rigor exigido pelo standard probatório em matéria penal? Mas o termo eficácia, nessa pergunta, está direcionado tão somente à perspectiva de êxito em punir agressores, ou seja, à perspectiva de segurança pública. Porém, eficácia, em matéria processual penal, implica respeito a direitos e garantias fundamentais e o norte político está estabelecido no sentido de se evitar condenações equivocadas. A solução não poderia ser tão simplista.
A questão deve ser refletida especialmente em relação à valoração da palavra da vítima, nos contextos probatórios em que não há outra prova direta para a condenação. Esse depoimento merece, de fato, uma atenção especial. Mas esta não poderia significar uma presunção de veracidade. Em primeiro lugar, porque haveria uma inversão do ônus da prova, que no processo penal brasileiro está claramente colocado sobre a acusação, por força do artigo 156 do CPP65. Em segundo lugar, porque isso facilitaria o êxito de denunciações caluniosas, sobretudo considerando a dificuldade, e eventual impossibilidade, da prova negativa de um fato. Especialmente em relação aos estupros de menores de 14 anos, ainda haveria o problema das falsas memórias66, dos depoimentos colhidos ou valorados de forma metodologicamente equivocada67, da mentira que deriva de alienação parental ou que decorre de imaturidade e de ausência de compreensão das consequências da acusação68.
Enfim, essa presunção de veracidade implicaria efetivamente uma alteração no standard probatório, com a tolerância do aumento do número de condenações equivocadas a pretexto de se aumentar as condenações corretas. Aqui se aplicariam as mesmas críticas à tese de Dallagnol quanto ao rebaixamento do standard em relação a crimes complexos: por um lado, isso é incompatível com o princípio da presunção de inocência e desrespeita as escolhas políticas do legislador quanto à preponderância de se evitar condenações equivocadas; por outro lado, implica desigualdade perante a lei processual e leva ao paradoxo de flexibilizar as exigências de prova justamente com relação a crimes classificados como hediondos, com penas em geral bastante altas. Além disso, mesmo do ponto de vista da segurança pública essa flexibilização seria questionável, já que, por um lado, devido à baixa capacidade operativa do sistema penal e à vasta cifra oculta, o aumento de condenações mesmo em tese não seria significativo a ponto de impactar as estatísticas, e, por outro lado, seria uma solução extremamente simplista para um problema social tão complexo como a violência de gênero69.
Considerando essas circunstâncias, seria possível se admitir uma condenação por crime sexual apenas com base no depoimento da vítima? Costuma se dizer na jurisprudência de alguns tribunais europeus, como os espanhóis, que o princípio do “testis unus testis nulllus” (testemunho único, testemunho sem valor) é obsoleto, por se tratar de um resquício do sistema de prova tarifada70. Ramírez Ortiz sustenta, todavia, que esse princípio pode ser compreendido dentro do movimento revolucionário e racionalista da defesa da “livre valoração”. O princípio foi defendido por iluministas como Beccaria71. O significado a ele atribuído era que um único testemunho seria insuficiente para a condenação, apesar de que a existência de dois testemunhos não obrigaria o(a) juiz(a) a condenar72. Tratava-se de uma espécie de prova legal negativa estabelecida como garantia contra uma convicção arbitrária de culpabilidade motivada pela “livre convicção” num contexto judicial em que não havia uma cultura de motivar as decisões73. Com a versão racionalista do livre convencimento, o princípio restou superado e a questão da credibilidade do depoimento da vítima passou a ser colocada. No final dos anos 80, a Corte Suprema espanhola estabeleceu três critérios para verificação dessa credibilidade74: i) a análise da credibilidade subjetiva, que consiste na avaliação das características psíquicas da vítima (idade ou alguma incapacidade), das relações emocionais com o(a) acusado(a) (ódio, ressentimento, vingança ou inimizade) ou a existência de interesses de outras naturezas (como a intenção de proteger terceiros); ii) a análise da verissimilitude, que consiste na avaliação coerência interna (lógica e plausibilidade) e externa (coerência dos dados objetivos externos) do relato; e iii) a análise na persistência no depoimento, que consiste na avaliação da coerência entre os vários depoimentos dessa mesma pessoa (ausência de modificações essenciais, de nebulosidades e de contradições). Essa pauta serve apenas como referência para o grau de fiabilidade, pois a existência de defeitos no depoimento não significa que ele seja imprestável. O depoimento isolado da vítima é, todavia, insuficiente, porque a simples convicção íntima de quem acusa jamais poderia sustentar uma condenação.
O ponto central é a presença de elementos externos de corroboração75. Com eles, evita-se uma valoração do depoimento da vítima que se centra em sua performance (confiança e convicção demonstrada pela vítima, grau de persuasão e riqueza de detalhes de sua versão), a qual pode induzir o julgador a erro76, e, assim, evita-se condenações com base em narrativas falsas, porém convincentes. Foca-se, por outro lado, na busca da constatação de que a declaração efetivamente reflete a realidade e corresponde aos fatos tais como descritos pela acusação. Assim, tudo aquilo que é dito pela parte e que é passível de comprovação deve ser comprovado por fontes independentes. Além disso, o depoimento da vítima deve ser colhido de forma técnica, evitando fatores que a intimidam, que prejudicam a sua memória ou que a induzem a determinada narrativa77, para que se possa obter o relato com a maior qualidade possível.
Com base nesses parâmetros, pode-se delimitar em que deve consistir especificamente a atenção especial a ser dedicada aos depoimentos das vítimas. Sua valoração implica, em primeiro lugar, a compreensão do contexto de dificuldade de obtenção de provas, ou seja, de que a ausência de outros depoimentos e de outras provas não é indicativo de que o fato não aconteceu. Assim, deve-se analisar cada caso para se avaliar quais provas são passíveis de serem produzidas e quais são provas impossíveis. Por exemplo, se a versão acusatória aduz que a vítima teria sofrido abuso sexual de um familiar sempre longe do olhar de terceiros, a ausência de testemunhas presenciais não pode ser considerada circunstância que indica a inocorrência do fato. É certo que eventualmente as circunstâncias de um caso podem reduzir bastante o número de provas possíveis. Mesmo assim, a comprovação da versão da vítima deve se dar apenas considerando o que é possível, sem exigir provas impossíveis da acusação, mas, ao mesmo tempo, sem dispensar a produção de provas de corroboração.
Em segundo lugar, a valoração implica o esforço para se verificar a coerência externa a partir dos elementos fáticos que efetivamente podem ser obtidos em cada caso. Nesse sentido, por exemplo, o ponto de trabalho indicando a hora de saída, os vídeos de segurança das câmeras que registraram por onde a vítima passou e os depoimentos daqueles que testemunharam seu trajeto são importantes elementos de prova se a acusação indica que o estupro ocorreu em uma rua não movimentada após uma perseguição furtiva do agressor78. Ainda, se conforme a versão acusatória a vítima em idade escolar estaria sofrendo abusos em casa que estariam impactando seu comportamento na escola, com agressividade direcionada a colegas e notas que passaram a ser baixas a partir do início dos fatos, o boletim escolar, bem como o depoimento de professores(as), são provas passíveis de serem produzidas. Se a acusação aduz que a criança, após o início dos abusos, passou a publicamente tentar evitar contato com o familiar acusado, é possível obter testemunhos que atestem se havia, de fato, essa tentativa de repulsa. Se a versão acusatória indica que a vítima recebia ligações diárias com ameaças para não denunciar o fato e o acusado nega ter feito esses telefonemas, o registro de ligações telefônicas é elemento probatório passível de ser produzido. Essas provas são relevantes porque podem corroborar ou infirmar a coerência de vários aspectos da acusação. Deste modo, é possível que a versão da vítima seja considerada verdadeira sem provas diretas do fato, desde que se comprove os elementos circunstanciais passíveis de serem provados e que, se somados, mostrem-se premissas fáticas suficientes para se inferir a ocorrência do crime sem saltos lógicos ou presunções de veracidade. É importante frisar que esses elementos devem ser independentes, ou seja, que não podem ser derivados da palavra da vítima. Por exemplo, uma testemunha de ouvir dizer, que apenas repete o que a vítima lhe relatou, não é uma prova independente.
Em terceiro lugar, a valoração deve estar desprovida de estereótipos de gênero79 e de juízos morais. Por isso, para se considerar que o fato é verdadeiro ou falso, não se deve levar em conta, por exemplo, a vida sexual pregressa da vítima, seus hábitos, suas vestes, sua orientação sexual e sua classe social. Isso significa que é irrelevante o comportamento moral ou sexual da vítima se ela não consentiu com a prática da relação sexual.
Acrescenta-se, por fim, que também deve haver um cuidado especial na motivação da decisão, que deve expor todo o raciocínio utilizado para concluir que o depoimento é ou não confiável ou se está ou não confirmado pelas demais provas.
Esses parâmetros não representam um rebaixamento do standard probatório. Deve remanescer a exigência de confirmação sólida da hipótese acusatória para que haja condenação. A diferença é que, como já afirmado, a valoração da palavra da vítima deve receber a atenção especial descrita acima.
A jurisprudência brasileira, todavia, não segue esses parâmetros. Em que pese haver inúmeros precedentes no Superior Tribunal de Justiça que manifestam o entendimento de que a palavra da vítima precisa de corroboração por outros elementos80, não há exigência de que sejam elementos externos e independentes. Há uma centralização do julgamento na valoração palavra da vítima - frequentemente afirmada como suficiente81 ou preponderante82 e medida pela performance de quem depõe83 - e uma redução da relevância dos elementos de corroboração, bem como do rigor com a qualidade destes, não raras vezes com a tolerância a depoimentos de ouvir dizer. Portanto, na prática há, sim, flexibilização do standard probatório84, como inclusive foi expressamente reconhecido pela Ministra Rosa Weber no já citado voto proferido no julgamento da APN 470.
Além dos inconvenientes jurídicos já apontados acima, é questionável que essa flexibilização seja o melhor caminho para se lidar com o problema social dos crimes sexuais. É certo que a punição criminal desempenha um papel relevante no trato dessa questão, porém historicamente as políticas penais se mostram decepcionantes na contribuição para solução efetiva de problemas sociais85. Dentro das limitações da atuação dos órgãos de investigação e do Poder Judiciário, como bem aponta Matida86, o que se pode fazer é melhorar a qualidade das investigações (frequentemente sequer se investiga e a palavra da vítima acaba se tornando o ponto de partida e o ponto de chegada do caso) e a qualidade da prova produzida (especialmente dos depoimentos orais). Porém, repete-se, é preciso ter ciência de que o poder punitivo não é capaz de oferecer uma solução verdadeira ao problema social.
Há que se considerar também que a cifra oculta é gigante, pois segundo estimativa do Ipea87, apenas 10% dos estupros consumados chegam ao conhecimento das autoridades policiais. Por analogia a estudos88 de cifra oculta já realizados com relação a outros tipos de crime, é possível afirmar que desses 10%, apenas uma fração chega a ter investigação instaurada e uma parcela ainda menor chega ao resultado de se ter uma denúncia oferecida. As intervenções penais, por isso, são casuísticas, e a simples facilitação de condenações em casos duvidosos não se mostra capaz, nem mesmo em tese, de causar impacto relevante nem com relação às estatísticas de impunidade, nem com relação às de incidência de novos casos, e ainda produz o efeito colateral de se aumentar as chances de condenações equivocadas.
Diante desse cenário, entende-se que a jurisprudência dos tribunais superiores quanto a esse tema merece ser repensada. Propõe-se a adoção dos critérios acima mencionados para se definir mais claramente o que é a especial atenção a ser conferida à palavra da vítima nos crimes sexuais. Sabe-se que a concretização desses critérios não é fácil, mas eles podem contribuir para racionalização do uso do poder punitivo para se lidar com os crimes sexuais. Ainda assim, é preciso ter ciência de que por mais próxima que a atividade jurisdicional esteja de um modelo ideal, sua capacidade de impacto no problema social em questão continuará sendo baixa. Por isso, propõe-se também a adoção do horizonte político de que o foco das políticas públicas, em vez de estar na facilitação de condenações em casos duvidosos, deve estar na prevenção e no combate aos fatores sociais e estruturais que estão na raiz da questão.
Considerações finais
Standards probatórios são critérios que definem o grau de exigência de corroboração que a prova existente no processo deve ser capaz de produzir para que se possa tomar por verdadeiro determinado enunciado fático. Em processo penal, em razão da proporcionalidade com a gravidade das sanções que podem ser impostas, e em coerência com o norte político estabelecido pelo princípio da presunção de inocência, o padrão estabelecido deve ser o mais rigoroso possível. A hipótese fática acerca da culpabilidade dos agentes só pode ser considerada verdadeira se houver confirmação sólida, não compatível com a hipótese de inocência. A solidez da confirmação pode se dar por meio de provas indiretas (ou indutivas), desde que as premissas que sustentam o raciocínio inferencial sejam robustas e estejam expressamente indicadas nas razões de decidir.
Há sinais de que jurisprudencia nacional está caminhando no sentido da flexibilização desse standard no processo penal, com a redução do rigor de exigência de confirmação probatória para se tomar por verdadeira uma hipótese acusatória. A razão é a dificuldade de detecção e investigação de delitos que compõe a chamada “nova criminalidade”, os quais, pelo seu modus operandi, a produção de provas é especialmente difícil. A demanda pela redução dos níveis de exigência probatória tem como pretexto a maior eficácia no combate desses crimes. Há dificuldade teórica em conciliar essa tendência com a garantia constitucional da presunção de inocência e com as pretensões epistêmicas do processo penal. Há, também, o risco de que, com uma retórica de combate a emergências, essas flexibilizações se estendam a todo o processo penal.
Em relação aos crimes sexuais, há tempos se consolidou o entendimento de que a palavra da vítima merece uma atenção especial. Porém, é necessário especificar no que exatamente essa atenção consiste. Esta deve ser compreendida como um respeito à técnica de sua colheita e uma valoração desprovida de estereótipos de gênero que leva em conta o contexto de dificuldade de produção de provas de crimes dessa natureza e, desse modo, busca encontrar uma coerência com elementos externos, a partir dos elementos fáticos passíveis de serem conhecidos em cada caso. Essa é a condição para a fiabilidade da prova e mantém intacto o standard probatório no processo penal. O rebaixamento do standard para viabilizar a condenação com base apenas na palavra da vítima e em elementos derivados desta, em que pese ser realidade na jurisprudência dos tribunais superiores, é incompatível com a presunção de inocência, facilita a condenação de inocentes e é medida incapaz de impactar positivamente nas estatísticas de impunidade e de ocorrência de novos crimes.
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