Resumo: Embora as injustiças testemunhais tenham sido pensadas originalmente por Miranda Fricker apenas como redução de credibilidade, neste texto a autora assume a redefinição proposta por Jennifer Lackey para incluir, dentro das injustiças testemunhais, também a hipótese de excesso de credibilidade causada por uma injustiça agencial, isto é, quando a injustiça é cometida por se atribuir excesso de credibilidade a declarações precisamente quando a agência epistêmica do sujeito (as condições de agir como um sujeito de conhecimento) foi obstruída. A partir de sua preocupação com as instituições, Fricker tanto examina o contexto da justiça criminal que propicia as falsas confissões como propõe reflexões sobre as mudanças que são necessárias para a implementação de mais justiça epistêmica no interior dos sistemas de justiça criminal.
Palavr1s-chave: Injustiça testemunhal, injustiça agencial, injustiça testemunhal institucionalizada, excesso de credibilidade.
Abstract: Although testimonial injustice was originally conceived as a prejudiced and unwarranted reduction of credibility, in this text the concept is expanded according to Jennifer Lackey’s proposal to include excess credibility caused by agential epistemic injustice as part of the concept. Agential epistemic injustice occurs when excessive credibility is attributed to a person’s statements precisely when the subject’s epistemic agency (the condition of acting as a subject of knowledge) has been obstructed. From a concern with institutional reform, the article both examines the context of criminal justice systems that facilitate false confessions and proposes reflections on the changes that are necessary for the implementation of more epistemic justice within those systems.
Keywords: Testimonial injustice, agencial Injustice, institutionalized testimonial Injustice, credibility excess.
Dossiê: “Injustiça epistêmica nos contextos penal e processual penal”
Injustiças Testemunhais Institucionalizadas: A Construção do Mito da Confissão1
Institutionalized Testimonial Injustices: The Construction of a Confession Myth
Received: 07 March 2023
Accepted: 15 March 2023
É uma honra ser convidada a contribuir para esta edição especial sobre injustiça epistêmica. A fim de registrar algo de meus próprios esforços a esse respeito, começarei com alguns comentários resumidos sobre o que pensei estar fazendo no livro de 2007 e, em seguida, oferecerei algumas novas reflexões sobre os vícios epistêmicos institucionais e, em particular, uma forma sinistramente importante de vício epistêmico institucionalizado no contexto do procedimento e treinamento policial padrão nos Estados Unidos. Saltando do trabalho recente em epistemologia social de Jennifer Lackey, e, particularmente, do trabalho em psicologia empírica de Saul Kassin, argumentarei que certos aspectos desses procedimentos exemplificam uma série de três etapas de injustiças testemunhais institucionalizadas.
Na filosofia acadêmica britânica de tradição amplamente anglófona, ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, o panorama intelectual tinha uma forma curiosamente debilitada para qualquer um que tivesse uma mentalidade analítica e, ao mesmo tempo, fosse atraído por questões sobre como a desigualdade de poder social pode se relacionar com assuntos da epistemologia. Embora existissem vários debates sobre tais questões dentro da filosofia feminista — notadamente na teoria do ponto de vista, no pós-modernismo feminista e no feminismo psicanalítico francês — na epistemologia analítica, ao contrário, parecia haver uma total falta de recursos teóricos até mesmo para articular tais questões. A filosofia européia, sob as primeiras influências historicizadoras e politizadoras de Hegel e Marx, há muito centrou essas questões como essenciais para a forma como nos imaginamos no mundo; mas a tradição analítica parecia ter inteiramente contornado essas influências, preferindo um a-historicismo que fizesse esses temas parecerem “meramente empíricos” — assunto da sociologia ou da política feminista, mas não da filosofia (como estudante de pós-graduação, eu era repetidamente questionada “Então sua dissertação é em sociologia do conhecimento, certo?” ou “O que a torna filosofia?”. Eu ainda não sabia como responder; embora quisesse). Existiam vertentes vitais da epistemologia feminista pressionando as questões socializadas, frequentemente em termos de debates entre o empirismo feminista, cujas raízes estavam na filosofia feminista da ciência; a teoria feminista do ponto de vista, cujas primeiras raízes estavam na sociologia, espalhando-se rapidamente para a filosofia; e o pós-modernismo feminista e a crítica pós-colonial, cujas raízes estavam no pensamento pós-estruturalista e pós-moderno na tradição europeia.3 Foi a partir dos diferentes panoramas desses debates que meu próprio interesse cresceu na possibilidade de teorizar — no território aparentemente insular da epistemologia analítica — o que vim a conceber em termos de “injustiça epistêmica”. Esse território teórico forneceu uma boa proporção de minha educação e sensibilidade filosóficas, e geralmente funcionou com uma concepção de senso comum do conhecimento cotidiano (uma concepção factiva) que eu compartilhava, e que também sentia ser necessária para qualquer tipo realista de teorização sobre injustiça. No entanto, a insistência em uma concepção maximamente abstrata do sujeito cognoscente — uma concepção resolutamente pressuposta repetidas vezes em questões definidoras (“O que é necessário a S para saber que p?”, “O que é necessário para S estar justificado em acreditar que p?”, e daí por diante) — me pareceu uma escolha teórica manifestamente inibidora, e de forma alguma o ponto principal da epistemologia propriamente dita como se acreditava ser.
Eu também estava ansiosa em abordar as questões do ponto de vista da experiência cotidiana da injustiça epistêmica (a filósofa da ciência e teórica da teoria feminista do ponto de vista, Sandra Harding, capturou memoravelmente esse compromisso metodológico em seu slogan “começar o pensamento a partir de vidas marginalizadas” — como se vê, por exemplo, em Harding 1991. A socióloga e teórica da teoria feminista do ponto de vista Patrícia Hill Collins pensa a partir das multiplas opressões da experiência social das mulheres negras, teorizando, entre outras coisas, em termos de viver como um “forasteiro de dentro” — como se vê, por exemplo, em Collins 1990). Existem diferentes abordagens metodológicas para iniciar o pensamento filosófico do ponto de vista da experiência marginalizada, mas a minha era um tanto literária em sua orientação, porque acredito que romances, roteiros e biografias podem revelar aspectos filosoficamente relevantes da vida de maneiras ricas em imaginação. Por esta razão, estava interessada na possibilidade de fazer um tipo de texto filosófico mais híbrido — uma miscelânea de trechos substanciais ao longo do livro, às vezes mais de um trecho do mesmo romance ou roteiro em capítulos diferentes, que informariam a filosofia e forneceriam algumas fronteiras úteis para a discussão. Usando biografia e ficção, desenhei ilustrações de peças que eu esperava fornecerem à imaginação filosófica algumas texturas mais ricas de experiência vivida do que geralmente é possível com ilustrações da familiar variedade da experiência mental (Fricker 2007, p. 23). Em contraste, o Estado de Natureza — um tipo muito diferente de ficção do qual também fiz uso substancial — está deliberadamente totalmente ausente das texturas diárias da vida, sendo um modelo despojado e altamente abstrato das necessidade epistêmicas mais simples e universais (como a necessidade de compartilhar informações). Dessa forma, vários tipos contrastantes de ficção foram empregados, e uma noção das implicações filosóficas substanciais contidas neste ou naquele estilo de ficção permeou o método do livro como um todo.
Um argumento abrangente do livro dizia respeito ao conteúdo do conceito de conhecimento. O argumento era que há pelo menos uma concepção plausível do conceito de conhecimento — nomeadamente, a concepção funcionalista avançada de Edward Craig (Craig, 1990), de acordo com a qual o conceito de conhecimento tem a ideia de um “bom informante” no seu “núcleo” — de tal modo que as preocupações filosóficas feministas sobre o poder e a exclusão das práticas epistêmicas acabam sendo características do núcleo de nosso conceito propriamente compreendido e, portanto, o cerne da epistemologia analítica. Se o núcleo de nosso conceito de conhecimento é entendido funcionalmente em termos que requerem ser reconhecido como um “bom informante”, então tudo o que precisamos acrescentar aos aspectos motivacionais não ideais já incorporados ao cenário do Estado de Natureza por Craig (motivos para mentir e ocultar) é um proto-preconceito básico, como o proto-preconceito que os nativos tendem a ter contra forasteiros, por exemplo. Isso é suficiente para gerar o risco de que alguém (um forasteiro) seja injustamente impedido de participar da própria prática que, no quadro de Craig, gera o conteúdo central de nosso conceito de conhecimento. Isso, argumentei, traz o risco de déficit de credibilidade prejudicial — por exemplo, ser desacreditado meramente porque alguém é estranho ao grupo — essencial para entender o conteúdo central do conceito de conhecimento. E segue-se que a proto-virtude corretiva desse déficit de credibilidade prejudicial, a justiça testemunhal, está igualmente presente no Estado de Natureza, de modo que se revela como uma das “virtudes da verdade” básicas, na expressão de Bernard Williams.4 Concebidas dessa maneira, então, tais perspectivas socializadoras não podem ser consideradas marginais à epistemologia analítica; não pode ser considerado como decorrente de um conjunto de preocupações próprias exclusivamente da sociologia do conhecimento ou da política feminista; mas, sim, deve ser considerada como pertencente a um conjunto localizado no cerne do projeto analítico em epistemologia. Pois o próprio conteúdo do conceito de conhecimento acaba por incluir, em seu núcleo, medidas para corrigir o preconceito endêmico que, de outra forma, obstruiria o compartilhamento de boas informações e provas. Em outras palavras, o conteúdo central do conceito de conhecimento acaba por incluir medidas para prevenir a injustiça testemunhal. Em suma, um argumento abrangente do livro era que, se você está preocupado com o conteúdo e a estrutura do conceito de conhecimento, então você já está preocupado com o risco de injustiça testemunhal.5Portanto, essas preocupações epistemológicas feministas devem ser entendidas como centrais para as preocupações epistemológicas analíticas.
De interesse mais proeminente para a maioria dos leitores talvez tenham sido as definições amplas de dois tipos propostos de injustiça epistêmica, além do rótulo genérico de “injustiça epistêmica” em si. Busquei situar e explicar os fenômenos que eles captam em uma estrutura teórica integrada, oferecendo uma taxonomia expansível de tipos e subtipos. Assim, por exemplo, tanto a injustiça testemunhal quanto a injustiça hermenêutica são apresentadas como tendo subtipos que são “sistemáticos” e “incidentais”, respectivamente. No meu esquema de coisas, esta é uma importante distinção, e eu gostaria de destacar novamente aqui, porque a distinção permite diferenciar entre aquelas formas que são parte integrante de um determinado sistema de injustiça estrutural e aquelas que não são, mantendo constante a estrutura básica do próprio erro epistêmico. O interesse orientador em teorizar as dimensões epistêmicas da injustiça estrutural me levou a lançar as formas sistemáticas de injustiça epistêmica como “centrais” do ponto de vista do livro. É crucialmente o aspecto sistemático — bem como a pura severidade e persistência no tempo — que pode tornar apto o termo opressão epistêmica (Fricker 1999; 2007 pp. 59-156).6
A categoria de injustiça testemunhal foi expandida por vários filósofos e, neste artigo, desejo oferecer um desenvolvimento adicional da ideia de que pode haver formas de injustiça testemunhal que envolvem não o déficit de credibilidade prejudicial, mas, sim, o excesso de credibilidade prejudicial. Minha proposta incidirá sobre uma certa forma institucionalizada de excesso de credibilidade prejudicial, e a desastrosa contribuição que dá à injustiça estrutural e jurídica quando franqueada por práticas institucionalizadas de déficit de credibilidade prejudicial. A ideia de que alguns tipos de excesso de credibilidade deveriam ser incluídos em uma concepção ampliada de injustiça testemunhal foi apresentada pela primeira vez por José Medina como uma linha de objeção construtiva ao meu trabalho. Posteriormente, artigos de Emmalon Davis, Audrey Yap, e Jennifer Lackey representam outras contribuições construtivas e distintas para o debate em andamento.7 Em meu livro, depois de alguma reflexão, finalmente cheguei à conclusão de que apenas um déficit prejudicial correspondia ao erro distintivo que eu queria enfatizar com o conceito de injustiça testemunhal. Cheguei a essa conclusão porque estava particularmente interessada, como expliquei acima, em isolar o tipo de subestimação injusta de alguém como doador de conhecimento que é plausivelmente entendida como endêmica na prática epistêmica central que gera nosso próprio conceito de conhecimento (ou seja, boa informação no Estado de Natureza).
No entanto, se uma exploração das variedades de injustiça testemunhal for realizada separadamente desse projeto analítico altamente específico, então as coisas ficam bastante livres e os propósitos para os quais se pode colocar o conceito de injustiça testemunhal podem obviamente se ampliar. De qualquer maneira, gostaria de contribuir com um pensamento adicional entre as várias sugestões na literatura e, em particular, aproveitar a recente sugestão de Jennifer Lackey de que existe um tipo distinto e importante de injustiça testemunhal que ela chama de “injustiça testemunhal agencial”, que é exemplificada no fenômeno da falsa confissão no contexto de interrogatório policial. Isso é o que devo construir para promover a ideia de injustiças testemunhais institucionalizadas e mostrar que no método de interrogatório policial para o qual Lackey chamou nossa atenção epistemológica crítica precisamos posicionar tanto o déficit quanto o excesso de credibilidade em cena, e, além disso, roteirizar o drama epistêmico que eles representam não principalmente em termos de julgamentos individuais de credibilidade, mas, sim, no nível do processo institucionalizado. Só então, afirmo, seremos capazes de ver em sua perspectiva adequada a escala da tragédia epistêmica que é tão institucionalizada.8
Com nosso resumo das principais ideias ético-epistêmicas sobre a mesa, podemos agora voltar nossa atenção para o quadro político. Ou seja, o quadro do poder institucional. As instituições podem incorporar virtudes e vícios epistêmicos de diferentes maneiras. Amplamente falando, um hábito institucional arraigado pode assumir a forma de um conjunto de métodos ou processos epistêmicos (bons ou ruins) e/ou um conjunto de valores epistêmicos (bons ou ruins) que constituem um ethos. Um exemplo de um processo epistemicamente disfuncional pode ser uma prática que envolve a confiança em provas inadequadas ou a avaliação de provas por meio de lentes prejudiciais. Um exemplo de um conjunto de valores epistemicamente ruim pode ser o cuidado insuficiente com a verdade ou a valorização muito alta de um determinado alvo, de modo que comprometa a avaliação da prova e, consequentemente, a integridade da investigação. As interações cotidianas com várias instituições — agências de notícia, práticas médicas, publicidade e assim por diante — nos tornam inteiramente familiarizados com a ideia de que uma instituição pode envolver uma ou ambas estas coisas — bons/maus processos epistêmicos e/ou bom/mau ethos epistêmico. Se processos e/ou ethos são temporalmente e contrafactualmente estáveis no corpo institucional, então eles carregam todas as marcas de um traço de caráter epistêmico institucional e, portanto, de um vício ou virtude epistêmica institucional, dependendo do valor ou desvalor epistêmico da característica.9 Em outro trabalho, argumentei que devemos pensar em más características epistêmicas como indicativos de vício apenas se a má conduta for culpável. Mas aqui permaneço neutra nesta questão e, claro, há espaço para diferentes pontos de vista sobre este e outros aspectos.10
Ainda que eu tenha colocado este breve esboço sobre virtude e vício institucional em pauta a fim de estabelecer o que vem a seguir, não há nada que eu defenda aqui que dependa disso, pois embora seja apropriado conceber a injustiça testemunhal institucionalizada em termos de vício epistêmico institucional, certamente isso não é compulsório. Alguns leitores podem preferir concebê-la em termos teoricamente mais neutros de disfunção epistêmica institucional simples, por exemplo. Meu objetivo é modelar certos processos epistêmicos institucionalizados Com o objetivo de destacar sua importância para a injustiça epistêmica e, por implicação prática imediata, a injustiça legal, uma vez que a injustiça epistêmica funciona como uma porta de entrada para a injustiça legal. No entanto, embora o quadro teórico da virtude e vício epistêmicos não seja compulsório, ainda assim, eu insisto que, quando estamos preocupados com alguns de nossos valores mais importantes, como não condenar inocentes ou a proporcionalidade das decisões judiciais, a linguagem mais eticamente carregada da discussão sobre virtude e vício institucionais é certamente apta. Isso porque, pelo menos no que diz respeito às funções primárias das instituições de justiça, nos preocupamos não apenas com os próprios procedimentos e resultados funcionais, mas também com os valores institucionais dos quais eles decorrem. Em suma, nos preocupamos não somente com o que tais instituições fazem, mas igualmente com que ethos as caracteriza.
Podemos agora explorar os contornos de uma institucionalização particularmente problemática de vício epistêmico — que combina dois tipos de injustiça testemunhal — conforme consagrado em normas institucionalmente prescritas de investigação criminal no policiamento dos Estados Unidos. Atualmente nos Estados Unidos, a polícia tem o direito jurídico em todos os cinquenta estados de mentir para suspeitos adultos quando eles são detidos para interrogatório, e esse direito de mentir, confundir e induzir o suspeito à autoincriminação é amplamente visto na aplicação do direito como uma ferramenta legítima para obter uma confissão (a maioria dos estados permite isso não apenas em relação a adultos como também em relação a menores11). Muitos adultos, e sobretudo as crianças, não sabem que a polícia está legalmente autorizada a enganá-los desta forma, essa ignorância os torna especialmente vulneráveis à manipulação no interrogatório. Para usar a expressão de Carel e Kidd, essa situação exemplifica a “opacidade institucional” e esta opacidade “vulnerabiliza epistemicamente”12 aqueles pegos em processos institucionais (Carel e Kidd 2021).
É claro que todos têm direito a um advogado em situações de interrogatório, e uma parte crucial do trabalho de um advogado é impedir que um suspeito diga qualquer coisa que possa incriminá-lo. No entanto, alguns renunciam ao direito a um advogado, e os inocentes são especialmente propensos a fazerem isso, talvez devido a uma atitude honesta de não ter nada a esconder e de abertura para ajudar a polícia em suas investigações. Isto pode ser catastrófico, pois se alguém está de fato sendo tratado como suspeito, então os interrogatórios ocorrem sob uma presunção de culpa, de modo que esta mesma abertura pode levar à autoincriminação, até mesmo à falsa confissão. Como escreve Saul Kassin:
A fenomenologia da inocência pode estar enraizada em uma crença generalizada e talvez motivada em um mundo justo em que os seres humanos recebem o que merecem e merecem o que recebem…Isso pode se originar de… uma “ilusão de transparência”, uma tendência das pessoas de superestimar a extensão em que seus verdadeiros pensamentos, emoções e outros estados internos podem ser vistos pelos outros
(Kassin 2005, p. 218).1314Em um trabalho recente e em um livro que será publicado em breve, Jennifer Lackey explora este terreno, e propõe que o emprego de um conceito de injustiça testemunhal como déficit de credibilidade prejudicial não pode dar um quadro completo do que está indo mal com os julgamentos de credibilidade nestas situações. Ela argumenta (e eu concordo) que também devemos olhar para o que acontece com a credibilidade atribuída ao suspeito no momento da sua confissão sob interrogatório. Lackey propõe uma expansão da ideia de injustiça testemunhal para que seja incluída a “injustiça testemunhal agencial”: “onde um excesso injustificado de credibilidade é concedido ao falante quando sua agência epistêmica foi negada ou subvertida na obtenção de seu testemunho” (Lackey 2020, p. 43)15. Além da especial vulnerabilidade dos inocentes, já mencionada, Lackey descreve vários “fatores de disposição” que tornam um suspeito particularmente e injustamente vulnerável a confessar falsamente, citando em particular o “status juvenil” e a “deficiência mental, incluindo deficiências de desenvolvimento e doenças mentais” (Lackey 2020, p. 48). Ser inocente, ser jovem ou ter uma deficiência mental de qualquer tipo torna alguém especialmente vulnerável às pressões policiais nos interrogatórios, de modo que quando esse alguém é colocado sob a poderosa combinação de sofrimento físico, emocional e informativo, acaba confessando. Alguns inocentes que acabaram confessando algo que não fizeram estão respondendo, em desespero visceral, a promessas de alívio por um breve momento da situação de interrogatório e vão geralmente procurar (em vão) retratar sua confissão logo depois da confissão; outros internalizam a ideia de que são culpados e tendem a abraçar a narrativa do interrogador.16
Tudo isso nos ensina que (o que poderíamos chamar de) o Mito da Confissão — a suposição popular de que as pessoas não confessam crimes que não cometeram — é seriamente equivocado. É um mito influente que, apesar de estar completamente enfraquecido pelas descobertas de mais de duas décadas de pesquisa psicológica, continua a influenciar não apenas a imaginação popular, mas também os principais procedimentos institucionais de investigação criminal nos Estados Unidos. As proporções épicas da atuação deste mito só podem ser totalmente compreendidas quando consideramos a impossibilidade institucional de se retratar uma confissão. Uma confissão, uma vez feita, é praticamente irreversível, pois é o objetivo principal do interrogatório, e funciona como um dos tipos de provas mais fortes — o “padrão ouro das provas”, como diz Lackey (Lackey 2020; p. 43). Como explica Kassin: “Uma vez que um suspeito confessa, a polícia geralmente encerra a investigação, considerando o caso resolvido, e ignora informações exculpatórias — mesmo que a confissão seja internamente inconsistente, contraditória por provas externas, ou produto de um interrogatório coercivo” (Kassin 2012 p. 433)17.18
Esta norma de ignorar informações exculpatórias e assim por diante é parte integrante da Técnica Reid, o método de nove etapas de interrogatório policial comumente usado para treinamento policial nos EUA. Entre os detetives, parece que há níveis extraordinariamente elevados de confiança em sua capacidade de discernir, antes de um interrogatório, quem é inocente e quem é culpado. Nesse sentido, Kassin relata:
Vários anos atrás, eu estava em uma conferência de aplicação da lei em Montreal, na qual Joseph Buckley — presidente da John E. Reid & Associates — deu uma palestra sobre a influente, embora controversa, técnica Reid de interrogatório…Posteriormente, um membro da plateia perguntou a Buckley se ele estava preocupado que seus métodos às vezes levassem pessoas inocentes a confessar. Sua resposta foi: “Não, porque não interrogamos pessoas inocentes”.
Perdi a conta de quantos detetives já ouvi dizerem a mesma coisa
(Kassin 2022, p. 55).19O que, então, é a Técnica Reid, e como ela se compara com outras formas de interrogatório policial? Podemos comparar proveitosamente os princípios básicos da Técnica Reid com o Modelo PEACE de procedimento policial em situações de interrogatório, pois como Gudjonsson explica, o Modelo PEACE foi desenvolvido e implantado no Reino Unido em 1993 como um programa nacional de treinamento para agentes policiais. Ele foi desenvolvido como resposta a uma série de casos notórios de erros judiciais graves com os quais foi possível aprender e fazer melhorias procedimentais. Também foi adotado na Noruega e na Nova Zelândia. Gudjonsson escreve:
O Modelo PEACE [Preparation and planning, Engage and explain, Account, Closure, and Evaluation] foi desenvolvido com base em princípios psicológicos sólidos, que se seguiram de um valioso trabalho colaborativo entre acadêmicos, psicólogos, profissionais da polícia e advogados. A intenção era levar em conta a vulnerabilidade de alguns entrevistados, com o objetivo de minimizar o risco de uma falsa confissão (Shawyer et al., 2009). O foco está na equidade, abertura, trabalhabilidade, accountability e descoberta verdadeira dos fatos, em vez de meramente obter uma confissão. Perguntas direcionadas, forte pressão, e manipulação psicológica são evitadas, potencialmente reduzindo o risco de falsa confissão enquanto ainda se produzem confissões verdadeiras
(Shawyer et al., 2009).
Em contraste com o Modelo PEACE, a Técnica Reid, que é influente nos EUA, incentiva os entrevistadores a usar um processo de entrevista em duas etapas (Gudjonsson & Pearse, 2011; Inbau, Reid, Buckley, & Jayne, 2013). A primeira etapa é uma entrevista não acusatória, na qual são obtidas informações gerais sobre o suspeito, uma relação de rapport e confiança são construídas, e uma determinação é feita sobre se o suspeito está ou não mentindo sobre a ofensa. Se for considerado que o suspeito está mentindo, a entrevista prossegue para uma abordagem acusatória de nove etapas (presunção de culpa), normalmente chamada de “interrogatório” (Inbau et al., 2013). Kassin e Gudjonsson (2004) argumentam que a Técnica Reid de nove etapas pode ser reduzida a três fases gerais: “custódia e isolamento” (ou seja, o suspeito é detido e isolado, ansiedade e incerteza são geradas a fim de enfraquecer a resistência); “confronto” (ou seja, a culpa do suspeito é assumida e ele ou ela é confrontado com supostas provas incriminatórias que podem ou não ser genuínas, as negações são rejeitadas, mesmo que sejam verdadeiras, e a conseqüência da negação contínua é enfatizada); e “minimização” (ou seja, o interrogador tenta ganhar a confiança do suspeito e fornece desculpas para justificar o crime, inclusive sugerindo que foi um acidente ou que a vítima merecia). Em contraste com o Modelo PEACE, a Técnica Reid tem sido associada ao aumento do risco de falsa confissão (Gudjonsson & Pearse, 2011; Pearse & Gudjonsson, 1999; Snook, Luther, & Barron, 2016)
(Gudjonsson 2018; p. 47).20Cito detalhadamente o resumo de Gudjonsson, incluindo suas citações incorporadas, para expor estes fatos básicos sobre técnicas de entrevista/interrogatório e assim deixar claro como a Técnica Reid que é habitualmente utilizada no treinamento policial nos EUA tem a presunção de culpa explicitamente construída na fase de interrogatório como um preconceito metodológico institucionalmente incorporado.21 Isso constitui um preconceito na medida em que envolve um deslocamento motivado da prova: a motivação é a vontade pré-determinada de obter uma condenação a partir do interrogatório, idealmente uma confissão; o deslocamento da prova é inerente ao fato de não ser uma abordagem de inquirição com a mente aberta, mas sim uma tentativa direta e autoconsciente de obter alguma coisa autoincriminatória do suspeito.22 É notavelmente deslocada da prova no momento da conclusão (confissão), na medida em que o método permite aos interrogadores “ignorar informações exculpatórias” ou outra contraprova. A confissão prevalece sobre tudo.
Até agora, o manual sobre a Técnica Reid chocantemente permanece desconectado de qualquer coisa que se pareça com uma investigação genuína, embora claramente seja para isso utilizado. Mas o que eu gostaria de destacar, no entanto, é um outro ponto. A presunção preconceituosa de culpa que caracteriza a fase de “interrogatório” é super assistida pelo poder de manipulação epistêmica inerente ao direito legal do interrogador de mentir. No caso notório de Marty Tankleff — o jovem de 17 anos que em 1989 foi acusado de assassinar seus pais — a polícia lhe disse, entre outras mentiras, que seu pai havia emergido brevemente do coma para apontar Marty como seu agressor (ver Lackey 2020, citando Kassin et al 2010). Condenado apenas com base na confissão, este adolescente, órfão por um duplo assassinato, cumpriu dezenove anos de prisão até sua exoneração. Outro caso infame e trágico é o dos cinco adolescentes negros e latinos exonerados — Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana e Korey Wise — que foram enganados para confessar falsamente o estupro e espancamento de uma mulher que estava fazendo jogging no Central Park de Nova York em 1989.23 Como Kassin et al descrevem:
Cada menino retratou sua declaração imediatamente após a prisão, dizendo que havia confessado porque esperava ir depois para casa. Todos os meninos foram condenados e enviados à prisão para serem exonerados apenas em 2002, quando o verdadeiro estuprador deu uma confissão, de forma precisamente detalhada, que foi confirmada por provas de DNA
(Kassin et al 2010, p. 4).24Este ponto sobre a impossibilidade de retração é uma parte crucial do quadro de vício epistêmico institucional. Se olharmos para a filosofia para aplicar as categorias de injustiça testemunhal a este cenário de interrogatório, então sugiro que o que precisamos é de uma moldura diacrônica que apresente três fases. Primeiro, uma fase de injustiça testemunhal institucionalizada (déficit de credibilidade prejudicial institucionalizado) onde, no mínimo, a metodologia institucional de presunção de culpa é, em si mesma, um preconceito incorporado na prescrição do método Reid de interrogatório. Esta presunção-de-culpa-preconceituosa pode muitas vezes ser combinada com outros preconceitos, mais especificamente com o racismo, intensificando o erro epistêmico e introduzindo outros erros para além daqueles que apresentam uma estrutura sistemática.25 A segunda fase é aquela que Lackey categoriza como injustiça testemunhal agencial, na qual a agência intelectual do suspeito é “negada ou subvertida”, de modo que ele é deixado mais suscetível à confusão, sugestionabilidade, desinformação sobre as conseqüências da confissão, e/ou em total desespero para sair da situação. Esta fase, como bem enfatiza Lackey, é de excesso de credibilidade, embora ela prefira não a considerar como inerentemente o produto do preconceito, enquanto em minha opinião vejo o objetivo institucional da incriminação através da presunção de culpa como constituindo em si um preconceito institucional. Também enfatizaria os benefícios de considerar o excesso de credibilidade envolvido em acreditar numa confissão extraída não apenas no nível dos julgamentos de credibilidade dos interrogadores individuais, mas também — e do ponto de vista da crítica institucional, primariamente — no nível do processo institucional. Porque faz pouca diferença o que qualquer interrogador pode ou não acreditar pessoalmente sobre o confessor se o processo que são treinados a encenar é dirigido a levar o suspeito a ser considerado culpado ao final do interrogatório. Finalmente, devemos acrescentar a terceira fase, que marca a impossibilidade de retratação, e que conduz ao retorno da injustiça testemunhal institucionalizada na variedade de déficit de credibilidade prejudicial quando o suspeito reafirma sua inocência.
O que nos confronta, então, é um processo institucional trifásico epistemicamente vicioso, movido pelo preconceito metodológico de culpa presumida. O processo é caracterizado por um padrão de déficit de credibilidade funcional, depois excesso, depois déficit novamente, e é o resultado direto de um método de interrogatório prescrito institucionalmente, na verdade literalmente um “livro didático”, projetado para assegurar a confissão, ou, falhando isso, alguma forma mais fraca de incriminação. Trata-se de um modelo trifásico de diferentes injustiças testemunhais institucionalizadas através do qual podemos ver formas de injustiça epistêmica funcionando como uma desastrosa porta de entrada injusta para a injustiça legal da confissão extraída e da condenação injusta.26
Há uma outra característica deste processo trifásico que merece ser notada, e que se integra ao nosso modelo filosófico. Vimos que o método de interrogatório prescrito pela Técnica Reid envolve a presunção de culpa combinada com ferramentas poderosas para produzir provas institucionalmente conclusivas de culpabilidade — notadamente, o direito legal de manipular epistemicamente o suspeito. Com base no fato de que isto confere aos interrogadores uma capacidade maciçamente aprimorada de assegurar confissões dos presumidamente culpados, então o que vem à tona, uma vez dissipado o Mito da Confissão, é que a polícia tem assim um quase super-poder de construção social constitutiva. Este tipo de construção social envolve um poder de fazer alguém ou algo contar como tendo uma característica F em um contexto, tratando-o como se tivesse uma característica F no contexto. Aqui, o poder social construtivo possuído pela polícia é fazer com que um suspeito conte como culpado no contexto institucional legal, via uma confissão irreversível, tratando-o como culpado com o objetivo de levá-lo a apresentar a prova institucionalmente conclusiva de que ele é realmente culpado. E o particular contexto institucional no qual um suspeito vem a ser considerado culpado por ser tratado de tal forma é o único contexto que importa, já que é o contexto no qual as autoridades relevantes irão proferir uma sentença de prisão ou pior. Este tipo de construção social é significativamente diferente da construção social causal, que é um poder de fazer algo ou alguém realmente vir a possuir a característica F no contexto. Não importa o quanto o direito permita a polícia utilizar ferramentas capazes de produzir uma confissão, mesmo dos inocentes, essas ferramentas nunca podem fazer com que os inocentes sejam de fato culpados do crime que supostamente cometeram. Mas há pouco conforto nisso. Somos simplesmente lembrados do fato sinistro de que, em alguns contextos autoritários, é o que você conta que determina seu destino.
Para resumir este modelo filosófico diacrônico de um método padrão de interrogatório policial nos Estados Unidos, sugeri que uma primeira fase é a injustiça testemunhal institucionalizada produzida pelo método da suposta culpa, aqui representada como um preconceito institucionalmente arraigado que produz déficits de credibilidade. Em seguida, invoquei a concepção de Lackey de injustiça testemunhal agencial (abordei a questão do preconceito) como a fase intermediária na qual a confissão de um suspeito cuja agência epistêmica tenha sido ativamente violada é imediatamente considerada como crível. Finalmente, a terceira fase diz respeito à irreversibilidade da confissão, outro preconceito institucionalmente arraigado que produz déficits de credibilidade. Esta norma conduz ao retorno da primeira forma de injustiça testemunhal institucionalizada, pois as tentativas do suspeito de retratar-se da confissão através de novas afirmações de inocência são, mais uma vez, consideradas não críveis como uma questão de preconceito epistêmico institucionalizado. Todas estas normas e processos são inteiramente contingentes, e poderiam ser alterados diante da vontade política. Enquanto escrevo, no estado de Nova York há um projeto de lei pendente, o Projeto de Lei do Senado 324, patrocinado por Zellnor Myrie, que propõe a proibição do engano policial nos interrogatórios e exige que os tribunais avaliem a confiabilidade das confissões antes de admiti-las.27
É importante reiterar que nenhuma parte da crítica epistêmica institucional que ofereço situa-se ou recai sobre o reflexo exato dos julgamentos de credibilidade dos interrogadores individualmente ou de outros oficiais. As normas epistêmicas institucionalizadas não governam diretamente o que os indivíduos podem pessoalmente acreditar; elas governam o que conta como crível ou não crível nos processos institucionais adotados. Talvez um interrogador individual acredite na confissão, ou na tentativa de retração, ou talvez não acredite; talvez não tenha certeza, ou talvez não se importe. Não faz diferença para o modelo, porque o que estamos rastreando aqui é um processo epistêmico institucional trifásico que determina se o suspeito será considerado culpado aos olhos da lei. Se o sistema considerar que você confessou, isso é suficiente para a culpa, salvo e até que uma exoneração de DNA possa um dia ser realizada.28 Portanto, o modelo trifásico é oferecido como o retrato de algo no nível da realidade institucional ao invés de algo que representa necessariamente as atitudes proposicionais de indivíduos que são treinados para executar processos determinantes. O superpoder social construtivo para fazer um suspeito ser considerado como legalmente culpado não é algo possuído por qualquer indivíduo. É um poder embutido nas práticas arraigadas do corpo institucional — práticas que precisam ser urgentemente informadas pelas descobertas psicológicas que há muito têm exposto o Mito da Confissão como um complexo preconceito institucionalizado que não serve nem à verdade nem à justiça.29
Editor-in-chief: 1 (VGV)
Associated-editor: 2 (JM, AP)
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