Resumo: A injustiça epistêmica agencial no processo penal ocorre quando se imputa excessiva credibilidade a declarações prestadas pelo locutor em momentos de reduzida capacidade de autodeterminação. Especificamente no contexto da retratação de confissões extrajudiciais, questiona-se quais critérios jurídicos de valoração probatória racional seriam capazes de prevenir a ocorrência de injustiças agenciais. A metodologia empregada foi a pesquisa bibliográfica em injustiça epistêmica, confiabilidade probatória da confissão e precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Analisando estudos empíricos sobre falsas confissões e as práticas forenses brasileiras, constata-se um risco relevante de ocorrência dessa forma de injustiça, tendo em vista que confissões extrajudiciais são largamente utilizadas para fundamentar sentenças condenatórias. O artigo conclui com duas propostas: (I) desconsiderar, para fins de valoração da prova, confissões extrajudiciais não confirmadas em juízo; e (II) adotar como um dos critérios de valoração da confissão o grau de efetiva agência epistêmica do acusado ao confessar, atribuindo-se menor credibilidade às confissões obtidas em situações de agência reduzida.
Palavras-chave: Injusticia hermenéutica, Confissão, Valoração da prova.
Abstract: Agential epistemic injustice in criminal prosecution occurs when declarations taken in moments of reduced capacity for self-determination receive excessive credibility. Specifically in the context of recanted out-of-court confessions, the article investigates which legal criteria for the rational evaluation of evidence could prevent agential injustices. The method employed was bibliographical research on epistemic injustice, reliability of confessions as criminal evidence, and the Superior Court of Justice’s case law. Analyzing empiric research on false confessions and forensic practices in Brazil, a significant risk for agential injustices can be detected, mainly because out-of-court confessions are largely used to justify criminal convictions. The article concludes with two propositions: (I) to disregard, during the evaluation of evidence, out-of-court confessions not repeated before a judge; and (II) to consider the level of the defendant’s effective epistemic agency when evaluating their confession, with less credibility given to confessions obtained in situations of reduced agency.
Keywords: Agential epistemic injustice, Confession, Evaluation of evidence.
Dossiê: “Injustiça epistêmica nos contextos penal e processual penal”
Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas
Agential epistemic injustice in criminal prosecution and the problem with recanted out-of-court confessions
Received: 30 December 2022
Corrected: 24 February 2023
Revised document received: 30 DecemberJanuary January February 2022
Accepted: 13 March 2023
O multifacetado conceito de injustiça epistêmica proposto pela filósofa britânica Miranda Fricker3 tem, na base de suas múltiplas acepções, a ideia de desequilíbrio na aptidão de um sujeito apreender e relatar (com chances equânimes de obter credibilidade) suas próprias experiências; em outras palavras, na vocação de ser efetivamente um sujeito epistêmico, capaz de inteligência e discurso linguístico crível. A injustiça epistêmica – pelo menos na visão original de Fricker – consuma-se quando, na formação do saber ou em sua expressão discursiva, imputa-se de maneira apriorística um déficit de capacidade ao sujeito, que é, então, percebido como menos crível ou menos capaz. Diversos são os possíveis campos de aplicação dessa refinada ideia, da sociologia à medicina, passando pela história e pela política.
Não menos fértil para injustiças epistêmicas é o processo penal, que tem em seu cerne, como regra, a contraposição de versões fáticas entre acusação e defesa, ambas disputando o escasso recurso da credibilidade para que prevaleçam na sentença judicial. Diante da impossibilidade de acessar diretamente o passado, no seio da jurisdição penal está uma atividade de acertamento de fato4 sobre eventos pretéritos, em que se busca determinar a maior ou menor probabilidade de ocorrência de uma hipótese fática5, a fim de verificar se a hipótese supera o standard exigido para tê-la como provada6. É no afã de produzir a prova e valorá-la que surgem as maiores possibilidades de cometimento de uma injustiça epistêmica, pelo risco de que certos discursos recebam maior ou menor credibilidade a depender de condições pessoais, preconceitos ou vieses cognitivos, em prejuízo à racionalidade e às chances de acerto da jurisdição criminal7.
Expandindo os trabalhos originais de Fricker, Jennifer Lackey propôs recentemente a ideia de injustiça epistêmica agencial (agential epistemic injustice)8 – ou injustiça testemunhal agencial – para se referir à categoria de injustos caracterizados pelo excesso de credibilidade atribuído à fala de um sujeito nas situações em que sua capacidade de autodeterminação (agência) é diminuída ou suprimida, aliado ao déficit de credibilidade que o mesmo sujeito recebe quando, em um cenário de maior agência, retrata-se da narrativa primeva.
O principal fenômeno processual penal que interessa à injustiça epistêmica agencial é a confissão extrajudicial e sua retratação em juízo – especificamente na maior confiabilidade atribuída por Tribunais, promotores e policiais à primeira confissão prestada pelo investigado, ainda no inquérito, quando confrontada com a retratação judicial. Constatou Lackey que, não raro, o único momento em que o réu recebe alguma credibilidade no processo penal é quando confirma o teor da acusação, independentemente do grau de voluntariedade de suas palavras (isto é, do seu nível de agência epistêmica quando da extração da confissão). Se, posteriormente, retrata-se da confissão e passa a afirmar sua inocência, é improvável que essa nova postura encontre a mesma receptividade entre os agentes encarregados da persecução penal9.
Na dinâmica da injustiça epistêmica agencial, considera-se mais confiável a narrativa do réu quando são pequenas as suas possibilidades de autodeterminação (quando se encontra acuado, interrogado pela polícia, sem assistência de advogado, sem um plano de defesa estruturado); se o acusado tiver sido vítima de tortura-prova nas mãos da polícia, então, sua agência ao confessar foi inexistente, mesmo que nunca consiga provar o tormento sofrido. Paralelamente, quando o réu está mais bem preparado para enfrentar uma acusação criminal (ouvido em juízo, assistido por advogado, com um projeto de defesa técnica em andamento), seu relato é tido por menos crível.
A credibilidade de suas palavras é, assim, inversamente proporcional a sua capacidade de autodeterminação: se em um único momento de desespero o investigado confessar, de pouco adiantará que ele passe em seguida a manter sua inocência, ainda que o faça reiteradamente por muitos anos e mesmo que haja provas fortes em seu favor10.
Atento a esse breve resgate teórico, o presente artigo analisará as possibilidades de valoração da confissão extrajudicial e sua retração no processo penal, a fim de acrescer contribuições originais à recém-formada doutrina da injustiça epistêmica agencial e responder aos seguintes questionamentos: como neutralizar ou mitigar o risco da ocorrência de uma injustiça agencial11 no processo penal brasileiro, com o instrumental dogmático atualmente existente em nossa legislação? À luz do direito posto, quais interpretações possíveis do arcabouço legislativo podem contribuir para evitar a ocorrência de injustiças agenciais?
Com esse objetivo, será utilizada a pesquisa bibliográfica voltada aos mais recentes desenvolvimentos filosóficos em injustiça epistêmica – bem como aos dois únicos precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, ao tempo em que escrito este artigo, já abordaram o tema12 – e estudos empíricos sobre a confiabilidade probatória da confissão. A abordagem deste trabalho propõe, então, um diálogo entre a pesquisa interdisciplinar já consolidada sobre a confiabilidade probatória da confissão (a ser feita na parte 1), o inovador referencial teórico da injustiça epistêmica agencial e os dois sobreditos precedentes do STJ (tarefa da parte 2). Busca-se, com isso, construir respostas aos questionamentos propostos que sejam adequadas às peculiaridades do direito brasileiro e levem em conta os atuais movimentos de interpretação da legislação federal por parte do STJ, consoante o detalhamento da parte 3.
Outrora louvada como “rainha das provas” e meio de expiação espiritual do autor de uma infração penal, a confissão sofreu graves reveses em seu valor probatório objetivo a partir do final da década de 1980, com a progressiva popularização do uso do exame de DNA no meio forense. Por mais contraintuitiva que pareça a possibilidade de alguém confessar falsamente a autoria de um delito – e mesmo sendo grande o ceticismo de parte dos atores do sistema de justiça a esse respeito13 –, a revolução probatória do DNA demonstrou, com alta confiabilidade, que mesmo réus confessos e presos há anos eram inocentes dos crimes pelos quais foram condenados.
Segundo dados do Innocence Project, organização não governamental que atua na reversão de condenações injustas nos Estados Unidos da América (EUA), 29% das 375 condenações anuladas por seu trabalho de 1989 a 2022 foram proferidas contra réus confessos14. Semelhantemente, no National Registry of Exonerations15 – arquivo sob a curadoria da Universidade do Michigan que cataloga os dados de todas as condenações penais revertidas nos EUA desde 1989 –, 365 das 3.060 exonerações registradas até abril de 2022 (cerca de 12% do total) tinham acusados confessos16. Existem, pois, provas numerosas de que falsas confissões, contraintuitivas como sejam, efetivamente acontecem e podem desvirtuar profundamente as finalidades do sistema penal, levando ao encarceramento de pessoas inocentes.
Os estudos que seguiram ao advento forense do DNA consolidaram, nos últimos 30 anos, um virtual consenso científico sobre a existência de confissões inverídicas e seus principais fatores de risco. De modo geral, confessam falsamente pessoas com doenças mentais, pouca educação formal, jovens, inexperientes no trato com autoridades estatais, excessivamente confiantes nas boas intenções de policiais, desprovidos de assistência jurídica prévia ou pertencentes a populações minoritárias17. Tais grupos encontram-se mais suscetíveis a acreditar que os ganhos imediatos de uma confissão serão superiores aos prejuízos que dela podem advir, especialmente por dificuldades em compreender os severos impactos de seu ato18. Mesmo que um acusado não se enquadre em nenhuma dessas situações, a expectativa de que a confissão seja a solução estrategicamente mais adequada naquele momento (para evitar uma prisão cautelar ou uma pena alta, por exemplo) pode impeli-lo a confessar, ainda que seja inocente19.
Diversas técnicas policiais, reputadas como boas práticas pelas corporações, exploram essas vulnerabilidades para extrair confissões, como conduzir interrogatórios longos e cansativos, sem permitir o contato do investigado com terceiros e rejeitando peremptoriamente escusas apresentadas pelo interrogado. Com frequência, parte-se da presunção de que o investigado é culpado e utiliza-se o interrogatório não como uma ferramenta para desvendar novas linhas investigativas, mas para manipular o interrogado a confirmar a crença inicial que a polícia já nutria em seu desfavor. Disso resulta que, intencionalmente ou não, o interrogador termina por repassar ao investigado detalhes sobre o modo de cometimento do crime até então só conhecidos pela polícia, a fim de vê-los reproduzidos em sua confissão, que se tornará então mais crível20.
Também são conhecidas as técnicas de maximização e minimização, pelas quais a polícia aumenta o medo do interrogado quanto a uma futura condenação, afirmando (mesmo que falsamente) deter provas irrefutáveis de sua culpa e apresentando a confissão como única salvação possível; ao mesmo tempo em que busca diminuir a gravidade moral do delito, para que o interrogado se sinta mais confortável em confessar21.
Táticas como essas integram o método de interrogatório mais utilizado pelas polícias ocidentais, formulado por John Reid22 em 1947. Seu potencial para produzir confissões falsas é bem documentado23, principalmente porque as formas de manipulação por ele propostas se destinam mais a extrair do investigado repetições do que a polícia quer ouvir (num evidente viés de confirmação) do que, propriamente, descobrir a dinâmica dos fatos delitivos. Parte das técnicas integrantes do método Reid, especialmente aquelas voltadas a exaurir o investigado e enganá-lo sobre a existência de provas contra si (ou sobre os efeitos de sua confissão), já foram declaradas ilícitas em tribunais dos EUA24 e Canadá25; na Alemanha, o § 136-A da Strafprozeßordnung as veda expressamente.
Apesar disso, no Brasil, o método Reid é ensinado nas academias de polícia e utilizado na prática por seus agentes, mesmo que ocasionalmente não o conheçam por esse nome26. Acometida por deficiências estruturais severas e por vezes incapaz de conduzir investigações aprofundadas, com a descoberta de fontes de prova sólidas e independentes27, a polícia termina por criar uma forte dependência da obtenção de confissões como um de seus métodos investigativos preferidos28, na expectativa de que a confissão conseguida durante o inquérito seja capaz de direcionar psiquicamente o julgador à condenação. Não é difícil perceber a eficácia dessa estratégia, tendo em vista que a confissão é um dado probatório extremamente persuasivo29 e que, seguindo uma interpretação literal do art. 155 do Código de Processo Penal (CPP)30, magistrados valoram largamente, como fundamentos de sentenças condenatórias, elementos de informação produzidos no inquérito policial31.
Merecem destaque, para ilustrar essa tendência prática do Judiciário brasileiro, duas pesquisas empíricas nacionais.
Na primeira32, foram analisadas 458 sentenças publicadas por juízos criminais da cidade de Maceió/AL no ano de 2016, verificando-se que 80,6% delas se utilizavam de elementos produzidos na etapa investigativa para condenar o réu. Já no segundo trabalho (mais abrangente), resultante da pesquisa doutoral de Marcelo Semer33, examinaram-se 800 sentenças em ações penais pelo crime de tráfico de drogas, proferidas por juízes de 8 Estados da Federação, em todas as 5 regiões do país. A pesquisa constatou que 13,88% das decisões se valiam da confissão colhida pela polícia para condenar o acusado, enquanto outras 6,25% mencionavam relatos indiretos dos policiais sobre supostas confissões informais34. Mesmo quando retratadas em juízo, e ainda que com relatos de tortura pela polícia em sua obtenção – apresentados em 14,75% dos casos analisados –, as confissões policiais prevaleciam sobre o interrogatório judicial do réu em sentido contrário35. A conclusão do trabalho é mesmo intuitiva: “não é exagero dizer que o interrogatório só tem credibilidade com a confissão”36.
O problema do desprezo a denúncias de tortura-prova e do desinteresse institucional em sua apuração, destacado por Semer, é corroborado por diversas outras fontes independentes. De fato, o Brasil tem recebido sucessivas reprimendas internacionais no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos37 e da Organização das Nações Unidas (ONU)38, motivadas pela comprovação de que a tortura-prova ainda é uma prática sistemática e difundida entre as polícias do país. Não obstante, juízes em regra desconsideram narrativas dos acusados sobre o cometimento de tortura na extração de confissões extrajudiciais.
O levantamento mais abrangente sobre a matéria até o momento foi realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o exame de 55.799 relatos de tortura feitos por presos em audiência de custódia: segundo o estudo, “em menos de 5% dos casos registrados houve investigação sobre os relatos de maus-tratos e tortura”39. Outras pesquisas empíricas alcançaram resultados similares, demonstrando também que, nos poucos casos em que a narrativa do acusado é levada a sério, as investigações são em geral inconclusivas, mesmo porque são conduzidas com pouca independência funcional por entidades integrantes do próprio sistema estatal de segurança pública40.
Esses dados objetivos permitem concluir com bastante segurança que, para além dos problemas inerentes à sobrevalorização da confissão extrajudicial (e dos elementos do inquérito de modo geral) como meio de prova, o acusado brasileiro encontra-se ainda sujeito ao risco da tortura para a extração dessa confissão durante a investigação policial. E, se realmente for torturado, dificilmente seu relato receberá alguma credibilidade do Judiciário; ao contrário, esse hipotético réu provavelmente será condenado pelo crime que lhe foi imputado, inclusive com espeque na confissão ilegalmente obtida, pelo completo desinteresse das instituições sancionadoras em investigar sua versão dos fatos.
O instrumental filosófico da injustiça epistêmica fornece elementos preciosos para analisar esse quadro institucional nacional – fotografado em sua nudez pelas pesquisas ora citadas – e, quem sabe, indicar possíveis soluções dogmáticas na esfera processual penal; é disso que se passa a tratar agora.
Em breve síntese, duas são as espécies de injustiça epistêmica propostas por Fricker41. Na injustiça testemunhal, despreza-se o status epistêmico do locutor simplesmente por ele ser quem é, subestimando-se a sua capacidade de compreender os eventos que lhe aconteceram ou retirando-se a priori a credibilidade de sua fala; há, portanto, um déficit na confiabilidade que se atribui a sua narrativa. Paralelas a esse déficit fluem dinâmicas socioeconômicas, raciais, profissionais, etárias ou de gênero que, refletindo a distribuição desigual de poder – inclusive o poder de determinar a versão oficial sobre os fatos –, resultam em atribuições apriorísticas (e também desiguais) de credibilidade.
Com isso, o orador presumido de antemão como menos confiável será prejudicado nas atividades em que estiver em jogo a necessidade de ser levado a sério como um sujeito epistêmico. Em poucas situações, aliás, a necessidade de receber credibilidade é tão premente como no seio de uma ação penal, em que a própria liberdade de locomoção do orador pode depender de quão crível é (percebido) seu discurso. Os prejuízos de um déficit apriorístico e irracional de credibilidade, aqui, são gravíssimos, comprometendo de forma irremediável a vida do cidadão, em tese protegido pelas mesmas garantias jurídicas que todos os demais, e a racionalidade da jurisdição criminal como um todo. Pensando no contexto do processo criminal, há injustiça epistêmica testemunhal, e.g., quando o relato do acusado é desprezado como decorrência automática de sua posição no polo passivo da ação penal, sem maiores preocupações quanto à corroboração fática de sua versão ou sua relação com os standards de prova do processo.
Na injustiça epistêmica hermenêutica, por sua vez, o desequilíbrio ocorre em um momento antecedente, pela falta de recursos linguísticos para entender determinada situação ou comunicá-la de forma precisa. À semelhança dos falantes da novilíngua orwelliana42, a vítima – ou mesmo o autor – de uma injustiça hermenêutica permanece em um estado de hipocognição43, por nem dispor das palavras necessárias para comunicar o que lembra, pensa e sente. Em suma, sua linguagem (ou a de sua instituição) não contém termos essenciais para o registro inteligível de alguma situação.
De forma exemplificativa, está-se diante de uma injustiça hermenêutica na esfera criminal quando as instituições encarregadas da persecução penal, contaminadas pelo viés de confirmação e cegas pela visão de túnel44, partem do pressuposto de que todo investigado ou réu é culpado e orientam toda sua atividade para corroborar essa crença preexistente, sem nem contar com o conceito de inocência em seu instrumental investigativo45.
Os anos seguintes à publicação de Epistemic Injustice (ocorrida em 2007) trouxeram relevantes acréscimos aos conceitos originais de Fricker. Embora tal hipótese fosse rejeitada pela autora46, Medina e Lackey teorizaram que não apenas o déficit de credibilidade pode configurar uma forma de injustiça testemunhal, mas é possível que o ponto de partida do exame das alegações de um sujeito epistêmico já lhe seja bastante superior aos demais, como se sua narrativa fosse dotada (também de forma apriorística) de um superávit de credibilidade ou – em termos mais próximos à linguagem processual – presunção de veracidade47. Nessa ótica, é injusta, do ponto de vista testemunhal, não apenas a desigualdade para menos na distribuição da credibilidade, mas também a desigualdade para mais, quando se presumem verdadeiras as falas de determinado indivíduo ou grupo.
Com isso, o conceito de injustiça epistêmica testemunhal passou a refletir com maior precisão dinâmicas de poder em que determinadas categorias (sociais, profissionais, econômicas) detêm hegemonia no convencimento de interlocutores sobre a confiabilidade de suas palavras48. Pródigo, igualmente, é o processo penal em exemplos de hipervalorização de certas narrativas, há muito denunciados pela academia: os atos documentados do inquérito policial49 e os testemunhos de agentes de segurança pública50 são talvez os mais recorrentes.
A classificação das espécies de injustiça epistêmica é de extrema valia para o estudo de fenômenos processuais penais e o julgamento de casos práticos. Não por acaso, o tema recebeu recente atenção do STJ, em dois acórdãos relatados pelo Ministro Ribeiro Dantas (que introduziu o tema na jurisprudência superior) nos anos de 2021 e 2022.
No primeiro precedente, o agravo em recurso especial (AREsp) 1.940.381/AL51, o STJ tratou da injustiça epistêmica testemunhal pela desvalorização da versão dos fatos apresentada pelo imputado (jovem negro, em situação de rua, pai na adolescência), então agravante, condenado em primeira e segunda instâncias em um procedimento sancionador por ato infracional análogo ao crime de homicídio. Enquanto o representado afirmava ter agido em legítima defesa, para proteger sua namorada grávida contra o ataque físico de um homem mais velho e alcoolizado, o juízo de origem e o Tribunal local desconsideraram seu relato e o condenaram a partir unicamente de testemunhos indiretos de dois agentes militares (um policial e um bombeiro). Estes, por sua vez, não viram efetivamente os fatos, mas apenas narraram aquilo que ouviram dizer de testemunhas oculares, as quais não cuidaram de identificar.
Nenhuma outra prova dentre as várias possíveis – o exame de corpo de delito, a ouvida das testemunhas diretas – foi produzida para rechaçar a versão apresentada pelo jovem acusado, que se viu ignorado pelo Estado e a receber o ônus de provar sua inocência. O menor representado foi, então, vítima de uma dupla injustiça epistêmica, pela falta de confiabilidade imputada a sua fala e pelo excessivo peso atribuído aos testemunhos de agentes estatais que, mesmo não tendo visto os fatos, foram considerados mais críveis do que o jovem. A Quinta Turma reconheceu nesse procedimento evidentes vícios na valoração da prova, pois Ministério Público, juiz e Tribunal local não forneceram justificativas racionais para que fosse reputado falso o relato do adolescente (mesmo porque o Estado negligenciou todas as oportunidades de produzir provas capazes de desmenti-lo, incorrendo em perda da chance probatória52). Por isso, à unanimidade, o colegiado deu provimento ao recurso especial defensivo para absolver o recorrente.
Meses depois, no julgamento do AREsp 1.936.393/RJ53, o Ministro Ribeiro Dantas propôs ao colegiado o enfrentamento da injustiça epistêmica testemunhal sob o enfoque da hipervalorização probatória da palavra do policial no processo criminal. Ao julgar uma ação penal por tráfico de drogas, o Ministro relator compilou dezenas de pesquisas nacionais e internacionais sobre o modo de atuação da polícia brasileira para apontar os riscos da verdadeira onipotência54 atribuída à palavra do policial por parte do Judiciário. Mais do que isso: para o relator, a simples encampação acrítica das narrativas apresentadas pela polícia gera mais do que uma injustiça epistêmica testemunhal, mas verdadeira injustiça epistêmica hermenêutica, pois indica que nem sequer há, no repertório lexical das instituições encarregadas da persecução penal, o aparato linguístico para a expressão de algum ceticismo em relação ao que é dito pela polícia.
A proposta apresentada pelo Ministro Ribeiro Dantas para mitigar esse problema foi a impossibilidade de que, no campo da valoração probatória, a palavra do policial servisse, isoladamente, para comprovar qualquer elemento essencial do crime (mormente a autoria delitiva). Para tal fim, seria necessária a corroboração do testemunho do agente por gravação audiovisual, pela sistemática de câmeras corporais ou veiculares.
Acompanhada pelo Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, essa específica sugestão do relator não recebeu adesão da maioria dos membros da Quinta Turma do STJ: prevaleceu o voto divergente do Ministro Joel Ilan Paciornik (seguido pelos Ministros Jesuíno Rissato e Jorge Mussi), para quem a palavra do policial é em tese idônea para sustentar uma condenação, mesmo que não externamente corroborada. De todo modo, foi unânime o colegiado ao prover o recurso especial defensivo e absolver o acusado, justamente por constatar o excesso de credibilidade atribuído, no caso concreto, aos depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante, novamente somado à injustificada desvalorização do relato do próprio réu.
2.2. Dinâmica da injustiça epistêmica agencial
A referência às classificações de injustiça epistêmica e aos dois casos julgados pelo STJ é útil para contextualizar os elementos que compõem o conceito de injustiça agencial apresentado por Lackey a partir de seu objeto de estudo original: a confissão extrajudicial retratada em juízo55. Quando o réu afirma em seu interrogatório judicial que a confissão prestada durante a etapa policial foi obtida sob pressão, manipulação psicológica ou mesmo tortura, ou simplesmente não corresponde à verdade dos fatos, se instala uma espécie de concurso de credibilidade entre acusado e acusação56: o primeiro tem em seu favor apenas o próprio depoimento, enquanto a segunda conta com a poderosíssima palavra dos policiais sobre os eventos que aconteceram durante o interrogatório extrajudicial no qual se colheu a confissão.
Na ausência de provas externas de uma ou outra narrativa, chega-se a um “ponto de inflexão”57 na valoração da prova que, como indica a comprovação empírica abordada no capítulo anterior, é em regra decidida pelo descarte do relato do réu e prevalência do testemunho do policial. Subjacente a esse raciocínio encontra-se a resistência (estado de negação)58 dos agentes do sistema de justiça em considerar a possibilidade de que um réu tenha sido pressionado ou torturado para confessar, ou que seja falsa a confissão por ele prestada. Com isso, não se exigem da acusação provas sobre o modo de produção do interrogatório extrajudicial ou que corroborem os fatos narrados na confissão.
Para além da mais evidente injustiça epistêmica testemunhal (em suas duas vertentes, pela desvalorização do testemunho do réu e excessiva valorização ao relato da polícia), é também perceptível a adequação desse estado de coisas ao conceito de injustiça hermenêutica. Como registra o Ministro Ribeiro Dantas em seu voto no AREsp 1.936.393/RJ59, os autos processuais diariamente analisados pelo STJ indicam que, no vocabulário das instituições sancionadoras, frequentemente não há “ferramentas linguísticas para considerar a possibilidade de inocência do réu. Em ações penais decorrentes de uma prisão ou apreensão em (suposto) flagrante, o sistema jurídico pátrio parece considerar a expressão ‘acusado inocente’ uma impossibilidade lógica”.
Ao contrário, prevalece nos autos de inquéritos policiais a sanitização, que é uma das formas linguísticas da injustiça hermenêutica. Faltam no léxico dos documentos oficiais as palavras para descrever com precisão o modo real (e bem documentado internacionalmente, como visto na parte 1) de atuação da polícia brasileira. Em seu lugar, são inseridas as expressões típicas do jargão policial, que retiram dos registros oficiais qualquer fato que possa soar desabonador à instituição60. Trata-se de uma espécie de oficialês (Amtssprache)61, uma linguagem burocrática que atribui palavras suaves, mais aceitáveis em documentos estatais, para representar realidades por vezes inconfessáveis, para as quais já existem na língua palavras outras, mais diretas.
As três tipologias de injustiça epistêmica interagem, dessarte, na dinâmica da injustiça agencial: confere-se valor excessivo à narrativa da polícia quanto ao modo de obtenção da confissão extrajudicial (injustiça testemunhal por superávit de credibilidade) e despreza-se o relato do acusado sobre os fatos quando a retrata em juízo (injustiça testemunhal por déficit de credibilidade), enquanto a possibilidade de que este tenha falado a verdade, ou que a polícia tenha agido de forma ilícita, nem chega a ser aventada (injustiça hermenêutica). Opera-se simultaneamente uma terceira injustiça testemunhal, porque a confissão do réu recebe um excesso de credibilidade, quando comparada com a retratação, independentemente das condições em que realizado o interrogatório policial. Com isso, embora o acusado tenha em tese a prerrogativa de exercer sua agência epistêmica e se retratar da confissão, como permite o art. 200 do CPP, suas oportunidades de sucesso nessa empreitada são baixíssimas.
Este último ponto foi identificado por Medina62 com o nome de desempoderamento (disempowerment), em complementação ao conceito de Lackey, como um componente adicional da injustiça agencial. Nas formas mais sub-reptícias dessa espécie de injustiça, a vítima aparenta dispor de algum mecanismo para manifestar sua autodeterminação, mas essa possibilidade é prevista meramente proforma, já que não há chances reais de que seu discurso seja ouvido e ponderado. A previsão formal de mecanismos ineficazes de agência é, então, um simples pedágio para que se chegue a um desfecho já sabido antecipadamente por todos. Com uma mão, o sistema discursivo empodera fictamente o agente com a oportunidade de se manifestar, enquanto com a outra o desempodera ao retirar a eficácia prática de sua manifestação.
O cenário desenhado pelos estudos empíricos referidos no capítulo 1 deste artigo registra a sutileza percebida por Medina: conquanto possa o réu questionar uma confissão extrajudicial, essa forma de exercer sua agência epistêmica é, no mais das vezes, apenas um obstáculo a ser saltado na corrida rumo à sentença condenatória. A argumentação defensiva será, ao fim, recebida por polícia, Ministério Público e Judiciário como uma mera manobra para fugir à punição, sem prospectos reais de que se reconheça algum tipo de má conduta estatal na extração da confissão.
Essa dimensão da injustiça agencial é exacerbada, no Brasil, pela concepção subjetiva (ou irracional63) da prova – ainda predominante no Judiciário nacional64 –, segundo a qual o sistema de livre apreciação instituído no art. 155 do CPP permitiria ao juiz formar seu convencimento pessoal em qualquer sentido, desvinculado de critérios objetivos, desde que expusesse os motivos (íntimos, pessoais, subjetivos) que o embasam. Por isso, quando o art. 200 do CPP anuncia que a confissão é retratável “sem prejuízo do livre convencimento do juiz”, introduz-se na prática uma abertura retórica para que o julgador “não se convença” da retratação da confissão e, consequentemente, atribua maior peso às declarações extrajudiciais do acusado.
A pesquisa doutoral de Marcelo Semer65 mostra que as razões de “convencimento” expostas na sentença resumem diversas formas de expressar um único fenômeno: a crença na palavra da polícia, aliada à descrença na narrativa do acusado. A insuficiência dessa exigência de justificação retórica, de longa data percebida aqui66 e alhures67, é agravada pelas deficiências crônicas do sistema investigativo da polícia judiciária brasileira, fomentando um sistema de persecução criminal com profundas lacunas de racionalidade e objetividade.
Não é exagerado concluir, à luz dessas ponderações e da documentação citada no tópico 1, que o processo penal brasileiro apresenta todos os fatores de risco para a prática de injustiças epistêmicas agenciais quando da valoração de confissões extrajudiciais. Vive-se num estado de extrema credibilidade conferida ao discurso policial, somada à baixa (ou mesmo inexistente) credibilidade imputada a qualquer argumentação defensiva divergente, em que a inocência do acusado por vezes não é sequer cogitada. Ao mesmo tempo, as garantias de que dispõe o sistema para empoderar a posição jurídica do réu – como a retratabilidade da confissão e a exigência de motivação das decisões judiciais – mostram-se inefetivas para prevenir a injustiça agencial porque dependem, no fim das contas, do livre convencimento subjetivo do juiz (arts. 155 e 200 do CPP), que tende a privilegiar os elementos produzidos pela polícia no inquérito.
Pensar em soluções jurídicas capazes de neutralizar tais fatores, ou ao menos mitigá-los, é o objetivo do próximo capítulo.
Em face dos argumentos até aqui apresentados, e considerando as recentes evoluções na jurisprudência do STJ, duas são as propostas deste trabalho para prevenir a injustiça agencial no processo penal.
Primeiramente, deve-se privilegiar a prova “judicializada” – expressão de certo modo pleonástica, já que prova é somente aquela produzida em juízo68, ressalvadas as irrepetíveis e cautelares – no momento da valoração probatória pela sentença. Isso significa que, caso não reste repetida no curso da ação penal, a confissão extrajudicial deve ser desprezada pelo julgador enquanto elemento desfavorável ao réu. E, em segundo lugar, mesmo que a confissão seja reiterada pelo acusado no interrogatório judicial, seu grau de agência epistêmica deve ser considerado racionalmente pelo juízo sentenciante como um dos critérios de valoração dessa prova.
Profundamente influenciada pelo gérmen inquisitorial do CPP, antiga e enraizada é a tradição judicial brasileira de valorar os elementos informativos colhidos durante o inquérito policial “em conjunto” com a prova produzida em juízo69, numa peculiar espécie de holismo probatório. Com isso, se os indícios não restam desmentidos sob o crivo do contraditório (ou se são minimamente corroborados pela prova), tem-se um fato por provado nos termos do art. 155 do CPP.
Nos últimos dois anos, entretanto, o STJ tem conduzido um movimento de recuperação do papel da prova judiciária no processo penal, colocando-se em oposição a essa leitura do art. 155 do CPP.
Cabe citar, como exemplos, os precedentes que – mudando anos de orientação jurisprudencial anterior – assentaram a impossibilidade de pronunciar70 ou condenar71 o réu, no rito do tribunal do júri, apenas com base em elementos informativos do inquérito. E mais: atento aos estudos doutrinários em epistemologia da prova72, o STJ não admite somente a menção holística ao “conjunto da prova” em decisões judiciais, mas entende ser dever do juiz também avaliar individualmente, de maneira atomista, quais dados probatórios comprovam cada elemento essencial do crime73.
O conceito de prova é, em seu âmago, indissociável do contraditório74: sendo cabível a repetição de um elemento informativo do inquérito no processo judicial em contraditório, para qualificá-lo com a natureza superior da prova, não pode o Judiciário se contentar com o indício inquisitorial não confirmado em juízo. Logo, tendo em vista que só a prova é capaz de gerar condenação (como se extrai, ainda que a contrario sensu, do art. 386 do CPP); que a prova, e não o indício do inquérito, é quem serve para fundamentar a sentença (art. 155 do CPP); e que a confissão é retratável e repetível (arts. 185 e 200 do CPP), conclui-se que a confissão extrajudicial somente pode ser valorada em desfavor do réu pelo juiz criminal se integralmente confirmada durante a ação penal.
Não sendo repetida a confissão, o magistrado não fica, por óbvio, obrigado a absolver o acusado, porque pode encontrar nas demais provas dos autos, se existentes, razões objetivamente fortes o bastante para superar o standard probatório do processo penal e ter como provada a hipótese acusatória. É esse o sentido mais racional da parte final do art. 200 do CPP, quando afirma que a retratação da confissão ocorre “sem prejuízo do livre convencimento do juiz”. Por outro lado, nada há no dispositivo que, numa leitura sistemática (com os arts. 155, 185 e 386 do CPP) e constitucionalmente adequada (art. 5º, LV e LVII, da Constituição da República), autorize o julgador a fundamentar a condenação num dado probatório – a confissão extrajudicial retratada – precário e vocacionado apenas à formação da opinio delicti ministerial. Entendimento diverso desprezaria o regime de repetibilidade do interrogatório do réu e a primazia da prova judiciária, sacrificando o standard de elevadíssima probabilidade exigido para a condenação criminal.
É importante lembrar que, quando ouvido em juízo, o acusado encontra-se no exercício de um grau de agência epistêmica muito maior do que aquele presente no inquérito policial. Durante o processo, o réu já conhece a imputação vertida na denúncia, sabe quais são as provas existentes em seu desfavor (art. 400 do CPP), está obrigatoriamente assistido por defesa técnica (art. 261 do CPP) e, mesmo que se encontre preso, permanece sob os olhares atentos de membros de duas outras instituições (o Judiciário e o Ministério Público) diversas daquela responsável por sua prisão. Nenhuma dessas garantias existe no inquérito, em que o réu é flagrado, preso, autuado, custodiado e ouvido unicamente nas entranhas da polícia, senhora de seu destino naquele momento.
Evidente, pois, que a capacidade de o acusado tomar decisões livres e informadas sobre o que dizer – sua agência – é maior no processo judicial, quando comparada à pequena agência que tinha durante a investigação. Acreditar que réus ou investigados só dizem a verdade quando estão sob pressão, com sua agência restrita ou suprimida, é precisamente uma das expressões da injustiça epistêmica agencial. Um sistema preocupado em preveni-la deve fazer exatamente o oposto.
Mesmo que o maior risco de confissões falsas esteja presente no inquérito, como visto na parte 1 deste artigo, a confissão confirmada em juízo tampouco é imune a falhas75. Considerando também a determinação do art. 197 do CPP, a confissão no interrogatório judicial não leva automaticamente à condenação do acusado, mas precisa ainda ser valorada pelo juiz.
Nenhum critério de valoração é dado explicitamente pelo CPP; isso, contudo, não significa a inexistência de parâmetros76, competindo à doutrina e à jurisprudência defini-los de maneira objetiva. Não há, em um processo penal que se proclama democrático e almeja a racionalidade, espaço para que decisões sobre fatos – que podem resolver de forma irremediável o destino das pessoas – baseiem-se unicamente no convencimento íntimo e pessoal de um juiz, ainda que motivado. Embora a interpretação subjetiva do livre convencimento ainda predomine na jurisprudência brasileira, ganha cada mais vez força a concepção racionalista de que a valoração probatória precisa se amparar em critérios intersubjetivamente controláveis para se avaliar o grau de corroboração da hipótese acusatória77. Além de adotada pelo STJ em mais de uma ocasião78, tal corrente representa na epistemologia da prova o que há de mais moderno, constitucionalmente válido e harmônico com os arts. 155, 315, § 2º, e 386 do CPP.
Sem pretensões de esgotar os possíveis critérios para o exame das provas em geral e da confissão especificamente – tarefa que exigiria dimensões monográficas –, este trabalho propõe um possível parâmetro de valoração probatória, dentro da delimitação feita em sua introdução, para prevenir a injustiça epistêmica agencial, a saber: o peso probatório da confissão colhida ou confirmada em juízo será diretamente proporcional ao grau de agência do confessor. Declarações prestadas em momentos de pouca capacidade de autodeterminação, mesmo que ratificadas no processo judicial, devem por consequência ser recebidas com reservas pelo julgador.
Na aferição do grau de agência do réu, o magistrado precisa se atentar em especial para os fatores de risco comprovadamente capazes de produzir confissões falsas, já abordados na parte 1: interrogatórios longos, pouca participação ativa da defesa técnica, (in)existência de uma estratégia defensiva organizada, desconhecimento real sobre a totalidade das provas existentes, presença de vulnerabilidades pessoais etc. É imprescindível ponderar, igualmente, se os fatores que podem demonstrar maior agência do réu (como a assistência por um defensor) foram efetivos ou meramente formais, sem realmente elevar seu poder agencial, na perspectiva desenvolvida por Medina79. Isto é: a simples ausência de fatores estressores, por si só, não demonstra necessariamente maior agência por parte do acusado se os meios pelos quais ele pode exercer sua autodeterminação não são eficazes.
Não é viável especificar com precisão matemática o impacto desses elementos sobre a confiabilidade de uma confissão, mas pelo menos de forma comparativa pode-se traçar paralelos que auxiliem a valoração probatória e a tornem mais racional.
A confissão prestada em juízo pelo acusado preso que se encontrou rapidamente e pela primeira vez com um defensor dativo nomeado minutos antes de uma audiência, sem tempo útil para estabelecer uma estratégia defensiva eficaz, v.g., é substancialmente distinta daquela ofertada pelo réu que, em liberdade e assistido desde o princípio das investigações por advogado, confessa ao celebrar acordo de colaboração premiada, após longas rodadas de negociações e com um compartilhamento de provas transparente entre defesa e acusação, do qual resulta ampla corroboração das alegações do colaborador. Há entre elas uma diferença relevante em termos de agência epistêmica, pois a capacidade de autodeterminação do primeiro acusado é significativamente menor, já que se encontrou privado de sua liberdade, assistência jurídica e conhecimento sobre as provas desde que o aparato sancionador o viu pela primeira vez.
Isso não se significa, é claro, que a confissão do segundo exemplo seja absolutamente segura ou isenta de riscos, mas somente que, ao prestá-la, o réu pôde exercer sua agência com maior efetividade, o que lhe acresce em segurança epistêmica. Ambas, por sua vez, são mais seguras do que a confissão informal colhida pela polícia militar no banco de trás de uma viatura, pouco após a prisão em flagrante do investigado, que nessa situação tem ainda menos agência para tomar decisões sérias em seu próprio prejuízo – inclusive pelo risco de que seja torturado caso se recuse a confessar80.
Ponderar eventuais restrições à agência epistêmica do réu, com a atribuição de menor valor probatório a declarações incriminatórias prestadas em momentos de agência reduzida, é uma das formas epistemicamente justificadas de valorar a prova com racionalidade e evitar o cometimento de injustiças agenciais. Preocupações epistêmicas, é certo, não são as únicas perseguidas pelo processo penal, mas são elas essenciais para que este cumpra uma de suas missões: o acertamento de fatos referido no começo deste artigo – ou, numa perspectiva de verdade por correspondência, que as hipóteses fáticas tidas por provadas no processo correspondam àquilo que ocorreu no mundo externo81.
O conceito de injustiça epistêmica agencial bem descreve a situação enfrentada pelo acusado brasileiro que (por tortura, coerção, desespero) tenha confessado a prática de um crime à polícia, na etapa inquisitorial, e se retratado da confissão em juízo. Dada a alta penetração de elementos do inquérito no processo penal pátrio, aliada ao ceticismo de magistrados quanto a questionamentos sobre a veracidade do testemunho policial, o mais provável é que o réu seja vitimado pela injustiça agencial: suas declarações reputadas mais críveis serão precisamente aquelas prestadas no momento de menor agência. Tudo isso num cenário judicial em que ainda predomina uma concepção academicamente ultrapassada de livre convencimento – em que pesem os relevantes avanços liderados pela jurisprudência do STJ –, que dificulta uma avaliação objetiva sobre o acerto ou desacerto do juiz na valoração da prova.
Recuperando as perguntas propostas na introdução, vislumbram-se duas possibilidades concretas para prevenir injustiças agenciais, diante desse quadro em que é tão elevada a chance de sua ocorrência: (I) desconsiderar, para fins de valoração da prova, confissões extrajudiciais não confirmadas em juízo; e (II) mesmo para as confissões colhidas ou confirmadas perante o juiz, adotar como um dos critérios de valoração o grau de agência do acusado ao confessar, com a atribuição de menor credibilidade a confissões prestadas quando as condições de autodeterminação do réu eram menores. Tal compreensão contém uma interpretação racional, objetiva e essencialmente garantista – já que é o processo o locus por essência do controle das atividades estatais, tendo como parâmetros as garantias do acusado – dos arts. 155, 185, 197, 200 e 386 do CPP, que valoriza a capacidade de autodeterminação do réu e fomenta o exercício mais pleno e efetivo de sua defesa.
Além de se alinhar ao recente movimento jurisprudencial do STJ, que tem deslocado o epicentro da produção probatória para o seio do processo judicial (numa atualização da interpretação tradicionalmente dada ao art. 155 do CPP), essa proposta combate diretamente os fatores que compõem a dinâmica da injustiça agencial. O controle dessa injustiça, afinal, passa obrigatoriamente pela quebra da relação inversa de proporção entre agência e credibilidade. Vale dizer: se, na dinâmica da injustiça agencial, a credibilidade do réu é inversamente proporcional a sua agência, a construção de um processo justo exige que se atribua maior confiabilidade ao que é dito pelo acusado precisamente nos momentos em que esteve no ápice de sua agência.
No fundo, uma resposta institucional efetiva – e não meramente retórica ou formal – à injustiça agencial exige também o enfrentamento de dois fatores antigos e enraizados na cultura processual brasileira.
Primeiramente, é necessário superar a resistência judicial em reconhecer as dinâmicas de poder que se desenvolvem socialmente e resultam na distribuição desigual da credibilidade, por fatores financeiros, étnico-raciais, etários, profissionais, de gênero. O processo penal, enquanto método de exercício dos mais intensos poderes do Estado, não é imune a tais dinâmicas: ao contrário, os agentes que nele exercem suas funções, públicas ou privadas, não podem ignorar acriticamente o que acontece no mundo social, já que, embora legalmente regulamentado, o processo não existe à parte desse mundo. A contaminação dos dispositivos processuais – e de seu ápice, a sentença – por preconceitos e injustiças de matizes diversos é um risco real e que precisa ser adequadamente compreendido e endereçado pelas instituições encarregadas da administração da Justiça.
E, em segundo lugar, é urgente a superação do paradigma subjetivo do livre convencimento motivado (ou livre apreciação da prova), que carrega em si o risco de converter todas as garantias processuais constitucional e legalmente asseguradas em simples pedágios retóricos. É pequena a força de direitos fundamentais como o contraditório e a ampla defesa se, para superar a presunção de não culpabilidade que protege o acusado, basta que o juiz se convença de uma ou outra narrativa. De pouco adianta ao réu poder se defender de uma acusação, ou contraditar seus termos, se o simples convencimento pessoal do julgador – potencialmente influenciado por vieses e injustiças desconhecidas quiçá do próprio magistrado –, ainda que fundamentado na escrita da sentença, é suficiente para gerar uma condenação criminal.
Tais garantias tornam-se essencialmente desempoderadas num modelo probatório subjetivo, que situa o ponto nuclear do acertamento de fatos da jurisdição penal não naquilo que está objetivamente corroborado pelas provas, mas sim na opinião pessoal que o juiz formou a seu respeito. Encarar o problema do livre convencimento subjetivo é tarefa da qual o direito brasileiro não terá como se esquivar por muito tempo, se almejar a construção de um sistema penal racional e menos injusto.
As sugestões aqui apresentadas não exaurem, certamente, a profundidade do tema. Como direcionamentos possíveis para pesquisas futuras, há ainda um grande espaço a ser explorado quanto aos específicos critérios de valoração racional da prova (e da confissão), de modo a preencher o vácuo deixado pela escola subjetiva do livre convencimento. A própria injustiça epistêmica agencial é ainda um conceito novo e não abordado explicitamente por estudos empíricos brasileiros, de modo que seria valiosa a pesquisa empírica que, tendo-a como referencial teórico, buscasse examinar sua aplicabilidade (e eventuais dinâmicas próprias de incidência) no modo de atuação das instituições encarregadas da persecução penal no Brasil.
Editor-in-chief: 1 (VGV)
Associated-editor: 2 (JM, AP)
Reviewers: 3
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