Teoria da Prova Penal
Pensando a qualidade do juízo fático-probatório: um modelo de evolução baseado no aprendizado com erros
Thinking about the quality of adjudication of facts: a model of improvement based on “learning from errors”
Pensando a qualidade do juízo fático-probatório: um modelo de evolução baseado no aprendizado com erros
Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, no. 3, pp. 1213-1256, 2023
Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal
Received: 31 July 2023
Revised document received: 04 August August August September September 2023
Accepted: 20 September 2023
Resumo: As consequências trágicas de uma condenação criminal errônea impõem a adoção de mecanismos de prevenção de sua recorrência, não sendo admissível que se despreze o conhecimento desenvolvido no âmbito da chamada ciência da prevenção ou ciência da segurança (Safety Science), que há muito busca o melhor caminho que uma dada organização deve seguir para reduzir o risco de resultados trágicos em sua operação. No presente artigo, que se volta a perquirir sobre qual seria o modelo de tutela contra o erro que deveria ser adotado pelos gestores e gestoras do próprio Poder Judiciário, aborda-se justamente o conhecimento teórico relacionado à prevenção de incidentes trágicos, dando-se especial destaque à defesa de uma abordagem “amigável” dos erros, inevitável à compreensão de seu complexo causal e à contenção de sua recorrência. A partir daí, defende-se um modelo de aprendizado organizacional com base na análise de casos de erros judiciários, indispensável à evolução do Sistema de Justiça, conjugando os reclames da ciência da segurança, os princípios da inovação judicial responsável e as normas que disciplinam a tomada de decisão penal, sobretudo acerca da quaestio facti.
Palavras-chave: Erro Judiciário, Valoração da Prova, Aprendizado organizacional, Aprendizagem baseada em erros, Inovação Judicial.
Abstract: The tragic consequences of a wrongful conviction require the adoption of mechanisms to prevent its recurrence, and it is not acceptable to disregard the knowledge developed by the safety science, which has long searched for the best path that a given organization should follow to reduce the risk of tragic results in its operation. This article – which seeks to answer the question of which model of protection against error should be adopted by the Judiciary itself – deals precisely with the theoretical knowledge related to the prevention of tragic incidents, with special emphasis on the defense of a friendly approach to errors, which is inevitable to understand their causal complex and to contain their recurrence. From there, a model of organizational learning based on the analysis of cases of judicial errors, indispensable for the evolution of the Justice System, is drawn, which is done from the combination of the claims of safety science, the principles of responsible judicial innovation and the rules that discipline criminal decision-making, especially the facts adjudication.
Keywords: Wrongful Convictions, Evaluation of Evidence, Organizational Learning, Error-based learning, Judicial Innovation.
Introdução
É inevitável reconhecer que determinadas inovações tecnológicas – como os exames de DNA, os sistemas de videovigilância e de georreferenciamento – propiciam um incremento de segurança ou de confiabilidade no conhecimento sobre um determinado fato do passado quando comparado àquele viabilizado pelos meios tradicionalmente empregados nos processos judiciais, de sorte que o uso das mesmas na demonstração o erro de um decreto condenatório pode evitar o “dito pelo não dito”, impasse comum na grande maioria dos casos de revisão criminal, que durante, muito tempo, só era superado em situações raríssimas, como o caso da “vítima” de homicídio que reaparecia viva na região2 ou do indivíduo que, no leito de morte, confessava a autoria de crime e revelava alguma informação que só o próprio criminoso poderia saber3.
O emprego dessas tecnologias, assim, além de ter a aptidão para gerar um resultado imediato – a exposição do erro e a correção da injustiça decorrente –, termina por viabilizar a formação de uma amostra que parece não estar contaminada por qualquer fator relacionado a uma peculiar capacidade de enganar da prova que conduziu às condenações errôneas ou por qualquer outro que tornasse mais factível o erro e que, por isso, se candidata a representar o total das condenações de um dado sistema de justiça. De fato, não parece haver uma razão concreta que indique que, no conjunto total de condenações (ou de prisões processuais), a prevalência de condições que incrementariam o risco de erro dá-se numa proporção menor que na referida amostra, já que a formação desta decorre de um fator aleatório, desconectado dessa ideia de má-qualidade da prova que levou à condenação: justamente a disponibilidade de um elemento ou vestígio que, mediante o uso da nova tecnologia, termina por expor o erro4.
Essa verdadeira revolução na identificação de erros judiciários e os resultados que já vem propiciando justificam uma preocupação com a qualidade do Sistema de Justiça Criminal, em especial ao risco de erro que se associa à cada julgamento, fazendo emergir um problema digno de uma trabalho científico, que pode ser assim ementado: o que se deveria fazer para prevenir5a recorrência de casos de erros judiciários? Ou, de modo mais estreito, qual modelo de tutela contra o erro deveria ser adotado pelos gestores e gestoras do próprio Poder Judiciário?
A hipótese que será testada nesse trabalho é a de que a adoção de um modelo de aprendizado organizacional com base na análise dos casos de erro, defendido pela chamada Ciência da Segurança (ou da prevenção) – Safety Science –, mostra-se adequado e necessário à redução da recorrência de erros.
O caminho a ser trilhado consiste em pesquisa na bibliografia nacional e estrangeira que se dedica a perquirir sobre a devida abordagem dos resultados trágicos de organizações e/ou sistemas (como os acidentes aeroviários), com a finalidade de propiciar uma base teórica indispensável a uma reflexão sobre a utilização dos próprios casos de erro como recurso indispensável a um aprendizado e evolução organizacional.
Como arremate, recorrer-se-á aos princípios da inovação judicial e às exigências para a decisão fático-probatória, com vistas a rascunhar um modelo de aprendizado adequado ao Judiciário brasileiro.
1) O erro judiciário e sua cifra oculta
O termo «erro judiciário» padece uma grave imprecisão; aliás, o próprio vocábulo “erro” pode querer dizer coisas distintas: em inglês, “mistake” é mais utilizado para se referir ao desrespeito a determinado padrão ou standard que regula uma determinada ação ou procedimento; “failure” está mais relacionado à ideia de falha no resultado de uma organização, atividade ou sistema, como a não consecução de um determinado objetivo6; no Brasil, “erro” termina podendo significar as duas coisas.
Daí porque se utilizará «erro decisório» ou «erro na valoração da prova»7, para se fazer referência a essa primeira acepção, ou seja, para referir-se ao descumprimento de critérios que condicionam a tomada de decisão; «erro judiciário» será empregado numa acepção mais abrangente, para se referir ao resultado, significando a falha no cumprimento da finalidade do Sistema (failure), quer decorra do desrespeito dos critérios decisórios (ou do modelo teórico que limita a liberdade decisória), quer da imperfeição do próprio modelo teórico, ou seja, «erro judiciário» aqui equivalerá ao erro substancial: «falso positivo» – condenação de alguém inocente – ou «falso negativo» – absolvição de alguém culpado.
Nosso ordenamento admite referida distinção ao instituir dois controles sobre erros: i) mediante uma nova reconstrução dos fatos, a partir de um quadro probatório diverso, que possa levar a um resultado mais seguro e, consequentemente, revelar o «erro judiciário», ou seja, a uma demonstração de que a proposição que se considerou provada não corresponde com a realidade empírica (621, III, do Código de Processo Penal); ou ii) mediante uma revaloração do próprio conjunto probatório utilizado na primeira reconstrução, com vistas a detectar o «erro na valoração da prova» (CPP - 621, I, parte final).
Perceba-se que, ao contrário da ideia de «erro judiciário» (ou erro substancial), o «erro decisório» ou «erro na valoração da prova» reclama um conceito que dê operatividade a um sistema de controle, isso porque, embora no plano teórico se possa afirmar que o erro (mistake) corresponde o descompasso entre aquilo que foi realizado e a ação esperada de acordo com um determinado padrão ou critério concebido abstratamente8, faz-se necessário conferir ao juízo fático-probatório uma espécie de estabilidade, mediante uma espécie de margem de tolerância9, a ser respeitada pelo órgão revisor (ou controlador), isso porque um controle sobre o «erro decisório», para apresentar alguma efetividade, precisa mesmo ser restrito; do contrário, a instância controladora se convolaria numa terceira instância recursal e as preocupações relacionadas à qualidade da decisão apenas mudariam de lugar.
Daí que, mesmo que se consiga detectar e corrigir os erros decisórios mais graves, aos quais (a princípio) se associa um maior risco de erro substancial10, não se pode considerar que o remanescente (aquilo que não pôde ser detectado e corrigido) formaria cifra desprezível, notadamente porque o próprio sistema de controle (sobre erros) tende a se concretizar de uma forma ainda mais estreita que o seu desenho teórico.11
É certo que aquele controle que dispensa a imputação de um erro decisório indiretamente propicia a correção daqueles erros decorrentes de uma valoração da prova inadequada não passíveis do controle específico; todavia, como referida via depende da disponibilidade de novos elementos de prova (e/ou de novas tecnologias para sua significação), algo aleatório e ainda raro, notadamente no Brasil12, não há como projetar um impacto significativo no conjunto dos erros judiciários não detectados.
Assim, contentar-se com os controles disponíveis e seguir, escondendo-se atrás de uma suposta insignificância do número de erros judiciários reconhecidos equivale a tapar o sol com a peneira, esquivando-se da aferição da qualidade do Sistema de Justiça, em especial, do sistema de valoração da prova, tanto em sua idealização como em sua concretização na praxe judicial.
Daí porque não se pode olvidar que os erros judiciários detectados por ambas as vias fornecem um bom indicativo da ínfima proporção dos chamados erros inevitáveis, ou seja, daqueles que são inerentes ao próprio desenho teórico assumido pelo Sistema de Justiça.
Nesse sentido, o estudo que Brandon Garrett fez dos (até então) 250 casos de condenações errôneas reconhecidas a partir da atuação do Innocence Project americano13, que autoriza concluir que em sua quase totalidade decorreram de graves erros na valoração da prova; evitáveis, portanto, o que deve ser tomado como um alerta para as pessoas responsáveis pela qualidade do Sistema de Justiça Criminal brasileiro14, isso porque já se demonstrou que júri americano decide com uma acurácia semelhante à do/a juiz/a profissional15, e seria demasiado ingênuo (e irresponsável) considerar que o/a juiz/a brasileiro/a julga melhor que o/a juiz/a americano/a.
Ademais, a casuística brasileira, embora pequena, revela que a inadequada valoração da prova foi a causa das condenações errôneas detectadas e corrigidas, o que decorreu de um atraso no conhecimento de mundo relacionado à significação da prova do reconhecimento de pessoas (o Caso Israel16 e os Casos Antônio, Robert, Igor e Sílvio17), não havendo qualquer razão que autorize admitir que o/a juiz/a brasileiro/a apenas não saberia valorar a prova de reconhecimento de pessoas, mas saberia valorar as demais espécies, que trazem associadas diversas fontes de erro já mapeadas.
Assim, se se quer um dimensionamento seguro da até agora desconhecida (e subestimada) cifra oculta, ou seja, dos casos de erro judiciário não detectados pelo sistema de controle, não há outro caminho senão a realização de uma séria abordagem dos casos de erro. Basta pensar no estudo feito por Samuel Gross, que fornece indicativos seguros para admitir que, nos Estados Unidos, cifra oculta é pelo menos nove vezes maior que a dos erros reconhecidos18, ou seja, sequer 10% dos erros são detectados. Daí, se se considera que na realidade americana os caminhos para o reconhecimento de erros judiciários apresentam-se mais largos (como se verá mais detidamente adiante), não há por que pensar que a cifra oculta brasileira seja menor que isso, senão o contrário19.
Aliás, deve-se sempre ter em mente que a ausência de muitos casos de erros reconhecidos não é indicativo algum de que as coisas andam bem20, já que não se pode poder de vista associação direta entre os chamados “erros latentes” e as “baixas defesas”21.
2) A experiência dos países de Common Law: um sistema voltado à descoberta de erros e um cadastro oficial de condenações errôneas
A otimização dos mecanismos de controle sobre erros — quer aquele com base na demonstração de erro na valoração da prova, quer aquele que se dá mediante a proposta de uma nova reconstrução dos fatos —, não só propiciaria melhores resultados diretos – a correção do erro e a contenção e/ou reparação do dano decorrente —, como também poderia reforçar um modelo de aprendizado com o erro, parecendo óbvio que, quanto mais erros detectados, mais informações relevantes (sobre os fatores que contribuíram para aquele resultado) serão obtidas; ou seja, tanto se reduzirá a cifra oculta como se formará uma amostra com mais capacidade para melhor retratá-la e, consequentemente, de viabilizar um caminho para sua redução.
A elevada importância daquilo que configuraria um (sub)sistema voltado à descoberta e comprovação de erros autoriza concluir que próprio Estado deveria assumir os serviços inerentes, sem prejuízo da participação da sociedade civil organizada, através dos “projetos inocência”, que sem dúvidas prestam um excelente serviço e efetivamente contribuem para melhores resultados desse (sub)sistema.22
Assim, quer porque a identificação e correção do erro, apenas pela sua repercussão imediata, já se mostra demasiado relevante, quer porque o Sistema de Justiça, para evoluir, precisa dessa matéria-prima preciosa, deveria o Estado brasileiro seguir a experiência estrangeira e instituir órgãos ou comissões voltadas ao reconhecimento de erros, o que poderia ocorrer no âmbito da defensoria pública, das procuradorias públicas e/ou em órgãos ligados à defesa dos direitos humanos.
Nesse sentido, vale registrar a experiência norte-americana com as chamadas Conviction Integrity Units, as quais são divisões específicas das promotorias, dedicadas exclusivamente a identificação, correção e prevenção de condenações errôneas23, o que se justifica porque, embora fosse possível enxergar o/a promotor/a (do caso passível de revisão) como legitimado/a e obrigado/a a adotar medidas voltadas à descoberta de erros e sua correção, seriam inúmeras as razões que contraindicariam um modelo centralizado na pessoa do/a acusador/a24.
Há diversas outras experiências do que se poderia chamar de um «sistema voltado à descoberta de erros» na Inglaterra, Canadá, Escócia, Austrália.25 Na Noruega, por exemplo, a Comissão de Revisão de Casos Criminais (Norwegian Criminal Cases Review Commission – NCCRC), inspirada nos exemplos inglês e escocês, é um órgão independente, com orçamento próprio, dotado de corpo próprio de investigadores/ras e peritos/as e de poderes de requisição de diligências e documentos, tendo, ademais, o poder de definir, por maioria de votos, se o caso será reaberto, ou não.26
Assim, a operação desses dois (sub)sistemas de tutela contra o erro – o segundo, voltado à sua investigação ou descoberta do erro na condenação, o primeiro, voltado à desconstituição desta – geram, como uma espécie de subproduto, um conjunto de casos de erros reconhecidos pelo próprio Judiciário, como, p. ex., o banco nacional de condenações errôneas que propiciou a operação cumulada do modelo americano, o qual, desde seu início, em 1989, até 15 de setembro de 2023, já havia registrado 3.378 casos de condenações errôneas reconhecidas27, que conta com um relato de cada caso, com a indicação das causas que levaram ao erro, permitindo que pesquisadores e pesquisadoras interessadas na prevenção de erros estudem-nos a fundo, parecendo claro que a ideia de evolução do Judiciário, notadamente através da estipulação de boas práticas e do treinamento dos/as agentes envolvidos/as com o Sistema de Justiça, pressupõe produção de conhecimento (científico ou seguro), o que reclama uma boa base de dados28.
De fato, dada a natureza submersa das condições que geram os erros do Sistema de Justiça, os erros reconhecidos, porque permitem enxergá-las, devem assim ser considerados um verdadeiro tesouro29, daí a importância do produto gerado pelo sistema de revisão americano30.
3) As bases para um «aprendizado com erros»
Ainda que se reconheça o avanço na adoção de um sistema voltado à descoberta/comprovação de erros, este parece insuficiente para propiciar a máxima aproximação entre o Sistema idealizado e a sua concretização na praxe. É que:
a) como já dito há pouco, a própria natureza do sistema de revisão impõe seu estreitamento, posto que se for demasiado aberto, o problema relacionado à qualidade apenas mudaria de “lugar”;
b) o próprio sistema de revisão pode apresentar os mesmos (ou até maiores) problemas que o sistema de valoração, ou seja, por mais que se invista num sistema de investigação e comprovação de erros, haverá revisões acolhidas, onde genuinamente culpados serão (falsamente) declarados inocentes, e revisões recusadas, onde os inocentes permanecerão rotulados como culpados.
Não se quer aqui desprestigiar o trabalho voltado à demonstração de erros/falhas do Sistema — eles são simplesmente imprescindíveis — o que se quer dizer aqui é que a esse sistema de revisão de erros deve ser seguido de um trabalho voltado ao aprendizado e à evolução, o qual, por sua vez, reivindicaria uma abordagem amigável do erro; o que, segundo já firmado pela chamada “Ciência da segurança” ou “Ciência da prevenção” (Safety Science), é indispensável para aproveitar o seu lado positivo.
Afinal, como defendem aqueles/as que se dedicam ao estudo da prevenção de erros31, deve-se partir da ideia de que estes não são consequências, mas causas; de que eles têm uma história, o que faz com que a descoberta do erro não seja vista como um fim, mas apenas o começo. Somente compreendendo as circunstâncias de um erro é que uma organização pode considerar prevenir sua recorrência.
É certo que as falhas em uma determinada organização não podem ser simplesmente vistas como aleatórias nem incontroláveis, mas daí não decorre que sempre haverá um indivíduo (ou de um grupo delimitado) responsável. Se se resume a atribuir a culpa a uma pessoa, perder-se-á a oportunidade de plena compreensão e aprendizado, daí porque não se deve priorizar uma abordagem preocupada em culpar, responsabilizar e punir seus eventuais causadores.32
Tirar bom proveito dos erros requer, inicialmente, uma mudança de postura em relação ao mesmo. De uma cultura do perfeccionismo, onde as ideias de erro, culpa, vergonha33 estariam imbricadas, deve-se seguir a uma abordagem mais positiva (ou mais amigável34) do erro.
Essa atitude positiva em relação ao erro é o primeiro passo para se assumir uma cultura de segurança, entendida como o conjunto de atitudes, crenças e valores dos operadores de um determinado sistema ou organização, que determinam a gestão de segurança ou prevenção de erros ou falhas. Referida cultura, por conseguinte, incorpora a comunicação de erros e incidentes críticos.35
Uma determinada cultura, que, por exemplo, compreenda o número de erros descobertos como indicativo do nível de segurança do sistema, pode inculcar a ideia de que o erro humano é inadmissível, porque poderia ter sido controlado, o que leva a um foco exagerado no erro do/a operador/a da “linha de frente”. Essa cultura da perfeição (utópica) pode levar a culturas localizadas de culpa, vergonha, autopreservação e coleguismo, gerando consequências como, p. ex., a ocultação de determinadas informações de segurança36. Vale mencionar, ainda, os efeitos dos relatórios de erro, que (para que gerem efeitos positivos) não prescindem de uma cultura organizacional que o considere como ferramenta de aprendizado37.
É comum alguns associarem a tragédia de um erro judiciário à necessidade de responsabilizar alguém, como se a regra fosse a possibilidade de atribuir (causalmente) uma falha a alguém sozinho. Entretanto, estudos demonstram o potencial “destrutivo” de uma abordagem preponderantemente disciplinar (punitiva) dos erros. Mesmo nos casos em que emerja um erro humano, o reconhecimento da culpa, desídia do/a agente não dispensa o conhecimento sobre uma complexa relação de interação causal38. Afinal, fracasso e sucesso provêm das mesmas fontes e sua interpretação está nas narrativas das pessoas.39
Como exemplo dessa abordagem positiva do erro, pode-se mencionar o disposto no anexo 13 da Convenção de Aviação Civil Internacional de Chicago — Investigação de Acidentes Aeronáuticos —, que registra que o único objetivo da investigação de um acidente ou incidente será a prevenção de acidentes e incidentes; não sendo propósito desta atividade atribuir culpa ou responsabilidade40.
Não se quer fazer um “ataque” ao modelo disciplinar sancionador: extrapola nosso objeto definir a partir de que ponto ele poderia produzir algum bom resultado na melhoria do Sistema de Justiça. O que se quer defender é que a colocação desse modelo para ser a linha de frente da lida com os erros não contribuirá para a melhoria do Sistema, senão o contrário.
Surge, daí, a necessidade de compreensão de outra ideia: a de erro organizacional. É normal que haja numa organização uma espécie de tendência, decorrente da própria cultura ali difundida (da ausência de treinamento ou mesmo de um determinado treinamento ruim; de seus “bons” exemplos etc.), que explicariam o descumprimento de certos padrões de atuação, onde não se mostra relevante ou preponderante as condições individuais do/a “infrator/a”.41
A divisa entre o erro organizacional e o erro individual não é precisa, daí porque — em uma abordagem positiva do erro — para configurar este último, deve-se enxergar uma atuação idiossincrática de um determinado indivíduo ou grupo limitado; não sendo isso evidente, impõe-se rotulá-lo como um erro organizacional42.
A propósito, pensando na valoração da prova, percebe-se que os ditos fatores humanos que influenciam o processo decisório não dependem exclusivamente do agente; nesse sentido, basta refletir que a atividade resulta: i) da arquitetura cognitiva do (cérebro do/a) agente, ou seja, a sua aptidão natural; ii) do sistema de treinamento e motivacional ao qual foi submetido/a; iii) do nível de autoconfiança do/a agente; iv) das informações irrelevantes sobre o caso; v) das informações relevantes sobre o caso (ou seja, da prova).43
Associada a essa ideia, a Ciência da prevenção (safety Science) recomenda que a abordagem dos erros deve superar um velho paradigma de causas como fontes isoláveis44. Ali se costuma questionar o potencial de aprendizado (sobre o porquê de sistemas complexos falharem) e, consequentemente, de reforço da segurança que traria a identificação e “rotulagem” de um determinado ato ou omissão isoladamente considerados, o que se costuma denominar de busca da “causa raiz”. Defende-se que tal caminho estaria muito distante da realidade de um sistema complexo e que, ademais, apresentaria uma espécie de distração em relação à falha estudada, impedindo o aprendizado subsequente. Daí que, embora o fator humano seja o último filtro de segurança de um sistema que falha ocasionalmente, na maioria dos casos, toda uma série de fatores contributivos também desempenham um papel de alguma forma na criação das condições nas quais um incidente ocorre ou um/a operador/a comete um erro.45
Se se pensa num sistema de gestão do conhecimento que permita o aprendizado, deve-se incorporar a ideia de que um sistema complexo requer capacidades multifacetadas para criar um valor ótimo deste, daí porque, se o isolamento de um erro pode limitar o aprendizado, a abordagem das falhas sistêmicas, que constituem um terreno fértil para mais erros, pode contribuir consideravelmente para o aprendizado organizacional capaz de levar a um ambiente mais seguro e mais eficiente. A partir delas, o aprendizado é expandido para atingir seu maior potencial somente quando a lição de erro é ajustada ou elaborada para cada perfil que integra a organização.46
Tomando emprestado os ensinamentos dos/as que se dedicam à segurança do transporte aeroviário, vale mencionar o que ensina Patriarca (et. al.) 47, que, defendendo um modelo de segurança proativo e holístico, adere à ideia de que aprender com erros (ou mais abrangentemente com eventos) pode ser visto como uma mudança no repertório de comportamentos de uma dada organização, fruto de uma análise que pensa em ações para preveni-los; todavia, o autor critica a tradição de buscar a identificação da(s) causa(s) do evento com base numa perspectiva newtoniana da investigação retrospectiva, que busca uma reconstrução linear do que seria a trajetória que levou ao evento adverso. Embora reconheça a validade de tal método para sistemas simples, Patriarca defende que não permanecem válidas para os sistemas sociotécnicos atuais, onde a complexidade não pode simplesmente ser reduzida e tem que ser gerenciada. As investigações, então, não deveriam seguir uma lógica de relógio, onde um sistema é estruturado como uma sequência de posições estáticas; dá como exemplo o resultado da investigação de um acidente envolvendo um cargueiro da DHL e um Tupolev que transportava crianças da Rússia até Barcelona, que mostrou que o evento não teve nenhuma causa ou erro atribuível claramente aos operadores da linha de frente (pilotos, controladores de voo etc.), mas adveio de uma confluência de múltiplas condições, muitas das quais eram claramente subótimas. Assim, uma «inteligência de segurança» eficaz deveria conseguir explorar a complexidade do sistema sociotécnico, ao invés de visar a identificação de uma causa raiz.
4) Por um «laboratório de prevenção de erros judiciários» no âmbito do próprio Poder Judiciário
“Uma justiça que reconhece os próprios erros e se corrige, que não os procura manter e defender com fórmulas vãs, é uma justiça edificante, que só confiança poderá inspirar”.48
Isso que poderíamos chamar de uma cultura de segurança (em geral) ou de um sistema de aprendizado com os erros (em particular) pode ser implementado e gerido no âmbito do Poder Judiciário, com a instalação de um laboratório de inovação especificamente voltado à prevenção do erro.
Os laboratórios de inovação são ferramentas de gestão do conhecimento, que objetivam a produção de saberes seguros, confiáveis, a partir da experiência dos gestores/ras e demais integrantes de uma determinada organização, identificando experiências e testando-as empiricamente. Sua essência é, pois, que os saberes obtidos através da experiência profissional merecem uma abordagem mais segura, como a propiciada pela Ciência, o que sobremaneira não afasta a necessidade o confronto com uma visão externa49.
Numa apertada síntese, um laboratório de inovação no Judiciário pode ser visto como o espaço físico, ou mesmo virtual, onde juízes/as e servidores/as, com outros/as protagonistas do Sistema de Justiça (inclusive jurisdicionados/as), mediante métodos baseados em design thinking, refletem sobre problemas e desenvolvem soluções para aprimorar a prestação jurisdicional.50
A ideia de gerir a inovação no âmbito do Judiciário é recente51, o que se explica pelo tradicional isolamento e conservadorismo que ali até bem pouco tempo imperavam. Seu marco normativo mais importante é a Resolução do CNJ nº. 395/2021, que instituiu a Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário52, onde são enunciados os dez princípios da gestão da inovação: (i) cultura da inovação; (ii) foco no usuário; (iii) participação; (iv) colaboração; (v) desenvolvimento humano; (vi) acessibilidade; (vii) sustentabilidade socioambiental; (viii) desenvolvimento sustentável; (ix) desburocratização; e (x) transparência53.
Em linhas gerais, são pressupostos fundamentais da inovação judicial: i) a concepção da jurisdição (também) como um serviço judicial; ii) a agregação de valor judicial a esse serviço por meio da ressignificação de práticas tradicionais; iii) a remodelagem centrada no/a jurisdicionado/a, ocorrendo de fora para dentro e preferentemente implodindo a camada burocrática que desumaniza a prestação jurisdicional; e iv) a finalidade de proporcionar a melhor experiência possível ao/a jurisdicionado/a, ainda que isso não implique o acolhimento da pretensão deduzida na lide.54
Entende-se, assim, que as ideias defendidas pela Ciência da segurança, que reclamam uma mudança de cultura mais preocupada com a prevenção do erro e, portanto, com o/a jurisdicionado/a, sobretudo o/a da justiça criminal, confluem com as ideias defendidas pelo atual movimento de inovação do Judiciário brasileiro, no sentido de que “[...] a inovação precisa ser elemento propulsor de mudança de cultura organizacional, por meio da agregação de uma espécie de valor judicial, com foco direcionado ao jurisdicionado, em busca de uma jurisdição mais humana, democrática, transparente, sustentável e solidária”55.
Admitindo isso, passa-se aqui a propor algumas ideias gerais para o funcionamento do que seria o laboratório de prevenção de erro judiciário, mediante a conjugação dos reclames da Ciência da Segurança, dos princípios da inovação judicial responsável56 e dos critérios para uma adequada de Valoração da Prova Judicial57.
a) a finalidade exclusivamente preventiva
A finalidade do laboratório é testar o sistema teórico (ou idealizado) e a medida da sua concretização na praxe, com o fim exclusivo de propor o aperfeiçoamento quer do próprio Sistema como das práticas judiciais.
Deve-se, pois, adotar medidas voltadas a evitar a exploração dos aspectos negativos dos erros, da dor sofrida pela pessoa condenada e sua família, bem assim, expor aqueles/as que seriam os/as responsáveis. Longe de configurar alguma espécie de corporativismo, tal abordagem, como se viu há pouco é recomendada pela Ciência da Segurança (ou da prevenção); não sendo à toa que, justamente onde o erro deve ser mais levado a sério, essa medida constitui pressuposto básico de uma atuação preventiva.
b) a matéria-prima do laboratório: os erros e os “quase erros”
O trabalho do laboratório não deve se resumir aos casos de erro reconhecidos pelo Sistema de Revisão; nada impede que se estudem casos de outros países, p. ex. Ademais, é recomendado que se estudem casos que se enquadrem como “quase erros” (near misses), como longas prisões preventivas seguidas de absolvições, uma sentença condenatória reformada em apelação, um voto condenatório que não chegou a obter a adesão da maioria etc.
O estudo dos chamados near misses é importante porque estes viabilizam a comparação entre os “percursos” que levaram a resultados diversos, permitindo perceber o que pode ter feito a diferença; a ideia, assim, consiste em utilizá-los tanto para a identificação de fontes potenciais de erros, como para formar um grupo de controle. Jon Gould et. al. considera importantíssima a abordagem, porque se poderia viabilizar o conhecimento de como, em casos que não redundaram em condenações errôneas, vêm sendo contidas as diversas fontes de erro já mapeadas58.
Registre-se, ademais, que, embora se enverede para uma casuística mais ligada ao processo penal, não se defende que o laboratório deveria voltar-se exclusivamente à prevenção de casos de condenações criminais errôneas: casos cíveis de repercussão e/ou de elevada danosidade do erro podem e devem ser analisados pelo laboratório.
c) Linhas gerais para o trabalho do laboratório
Todos/as os/as integrantes do laboratório assumirão o papel de analistas de casos, o que se adequa à ideia defendida pelos que se dedicam à inovação no Judiciário, no sentido de que uma estrutura não hierarquizada nos laboratórios aproveitaria ao máximo a participação de cada protagonista. Assim, juízes/as, servidores/as, pesquisadores/as e outros/as agentes do Sistema de justiça atuarão em uma rede que garanta a todos um lugar de fala e de escuta, de modo a proporcionar o enriquecimento do processo de deliberação.59
O/a analista deve ser alguém treinado/a, de preferência um/a especialista na área (Direito Probatório, Raciocínio Probatório, Epistemologia, Psicologia Cognitiva etc.), já que não passa de um mito a ideia de que o senso comum, entendido como uma habilidade inata do indivíduo, que lhe permitiria, mesmo sem o completo domínio das razões inerentes, conhecer algo e obter conclusões seguras, ou seja, de que o senso comum como forma de pensar que permitiria “[...] saber sem saber como se soube e sem saber dizer como se soube”60.
O estudo de casos deve se operar com base em todo o material que estava disponível quando da prolação da decisão errônea, incluindo os autos do inquérito, com seus apensos, os arquivos de áudio e/ou vídeo em que foi registrada a prova oral; deve-se seguir uma dupla abordagem às cegas, sem que nenhum dos/as analistas conheça a análise do/a outro/a e, na medida do possível, sem ter conhecimento da prova nova e/ou das razões que fizeram a Corte revisora reconhecer o erro judiciário; isso para evitar a atuação do viés de retrospectiva ou o “eu-sempre-soube”61.
O ponto de vista a ser assumido pelo/a analista é, então, o do/a julgador/a, devendo promover a organização da prova, sua análise, voltada primeiramente a estabelecer o vínculo entre cada prova e cada probanda, buscando definir, primeiro, se se tratou de uma condenação sem provas. Na sequência, dever-se-á aferir a confiabilidade de cada prova e a medida da corroboração que fornecem a cada probanda. Ao final, uma organização de cada enunciado segundo uma história que englobe os fatos sob reconstrução, a investigação62 e o processo, de sorte a poder, assim, perquirir se o standard de suficiência foi atingido.
É importante seguir esse caminho porque isso pode levar a conclusões acerca do potencial protetivo do standard frente ao potencial protetivo de uma séria organização e abordagem atomista da prova, de modo, por exemplo, a orientar a formação/atualização dos juízes; afinal de contas, como se disse há pouco, o aprendizado com erros não só afere o cumprimento dos critérios de valoração, mas testa os próprios critérios.
O/a analista não deve se contentar com a identificação de uma má interpretação ou mau raciocínio por parte do/a julgador/a63 — o que poderia simplificar em demasia seu trabalho —; deve, primeiro, sempre pensar que pode haver uma tendência do Sistema de Revisão a ser mais ou menos rigoroso quando se trata de um determinado tipo de criminalidade (econômica, p. ex.), de sorte que deve incorporar a ideia de que haverá casos de condenações materialmente corretas revisadas por decisões materialmente erradas; e, mesmo que não consiga se afastar da ideia de que, ali, há potencialmente um erro de julgamento, deve incorporar que o propósito de sua análise é seguir adiante, especular fatores juridicamente irrelevantes64: por exemplo, o número de sentenças ou acórdãos produzidos por aquele mesmo juiz; a demanda a que estava submetido na época; a formação na área que foi disponibilizada a ele; se mostrou alguma tendência (viés) a desconsiderar ou desvalorizar um tipo de prova; se havia ou não réu preso, se a prisão se deu por conta de decisão do/a próprio/a julgador/a (ou de outro/a juiz/a); o tempo que o/a mesmo/a dispôs para proferir a sentença (acórdão) etc.
Nesse sentido, é a crítica feita em realização à maneira de estudar os erros judiciários: Jon Gould e Richard Leo sugerem que essas pesquisas deveriam se concentrar nos “[...] fatores que de algum modo contribuíram” para uma condenação errônea, ao invés de se buscar as tais “fontes exclusivas” do erro.65
Deve-se, por isso, sempre que possível registrar o tempo da análise, da estruturação do seu raciocínio, de suas reflexões e da redação de seu relatório, isso porque há (por enquanto só) um mito de que o julgamento seguindo uma determinada pauta de racionalização demandaria um tempo significativamente maior do que o/a juiz/a e sua equipe dispõem: parece ser extremamente relevante saber, p. ex. que o/a analista levou 20 horas para julgar um caso que o CNJ impõe seja julgado em 2 horas.
Assim, deve-se buscar a compreensão de um cenário causal (muitas vezes complexo e multifatorial), não se contentando com a catalogação de problemas isolados, como ocorre em diversas análises, que apontam como causas as falsas confissões, falsos reconhecimentos etc66.
A necessidade dessa abordagem sistêmica implica que o analista não pode se contentar, por exemplo, com o achado de uma prova particularmente enganosa (misleading evidence)67. Como resultado dessa abordagem tradicional, a maioria dos estudos sobre os erros judiciários terminam apontando/classificando as causas ou fontes com base no tipo, ou na origem da prova que “levou” à condenação, apelando para um potencial ilusório que elas teriam. O resultado da cumulação desses estudos é, muita vez, a recomendação da exclusão da prova que não preenche um ideal de qualidade e/ou a exigência de reforço (corroboration requirement).
Não há dúvidas que é importante alertar para o potencial ilusório de um determinado tipo de prova, por razões intrínsecas a ela e/ou por conta do despreparo ou má-fé de quem a formaliza, na medida em que se pode refletir sobre adoção de medidas de contenção específicas, relacionadas à sua coleta, registro e preservação, na limitação de sua força probatória (corroboration requirement) ou até mesmo na sua exclusão.
Há, todavia, que se reconhecer como uma espécie de coarctação do potencial de aprendizado se uma dada análise para no reconhecimento de que a causa de um dado erro foi a apresentação de uma «prova particularmente enganosa». Daí porque é bastante elucidativa a abordagem sistêmica da chamada misleading evidence proposta por Smit, Morgan e Lagnado68.
Para os autores, uma dada prova é potencialmente enganadora quando o seu significado — em termos de corroboração de uma dada hipótese — puder não ser totalmente compreendido (ou não for claramente expressado).
Em estudo que sobre 235 casos rotulados como misleading evidence, extraídos de 218 apelações julgadas pela Court of Appeal of England and Wales, concluiu-se que, na maioria deles (76%), as provas ditas enganosas, na realidade não eram tão enganosas assim, já que o reconhecimento do erro não necessitou da apresentação de uma nova prova. Ademais, em 66% dos casos, os enganos estavam relacionados à própria interpretação da evidência, o que significa que não teriam ocorrido se se tivesse providenciado mais transparência (via abordagem analítica) na relação entre a evidência e a probanda69.
Daí porque registram que se utilizam do termo misleading evidence com uma abordagem retrospectiva, para se referir à evidência que enganou ou que apresentou o potencial de enganar o/a decisor/a70. De fato, uma abordagem prospectiva só poderia a levar a classificação de uma prova como particularmente enganosa, se se projetar uma valoração com alguma defasagem cognitiva do sujeito da valoração71. A partir da análise de diversos estudos sobre o que seriam provas periciais derivadas de uma “ciência ruim” (junk science), espécie de prova enganosa, verificaram que os respectivos erros judiciários não decorreram apenas de falhas nos métodos dessas provas, mas, sobretudo, de falhas de comunicação e de interpretação delas. Concluem ser errado eleger uma determinada categoria de prova como a “maçã podre”, enquanto os muitos dos erros poderiam ter sido evitados com uma boa valoração da prova72.
Pensando, assim, trazendo a responsabilidade também para o/a designer do sistema teórico, para os gestores e gestoras dos serviços judiciais, notadamente os que definem as prioridades formativas do/a juiz/a brasileiro/a, pode-se pensar em caminhos para melhorar a qualidade da própria valoração da prova73.
Finalmente, vale registrar que o laboratório gerará três tipos de “produtos”: (i) os relatórios de casos, com a identificação do cenário causal74, os quais, com a respectiva documentação, poderão ser utilizados em treinamentos de juízes/as e demais operadores/as do sistema; (ii) relatórios de meta-análises, com o resultado do tratamento de informações obtidos a partir dos casos acumulados; (iii) (minutas de) recomendações, para o aprimoramento de diversas práticas e, eventualmente, do próprio Sistema normativo, que deverão ser submetidas ao plenário do CNJ.
Conclusões
As reflexões trazidas acima autorizam concluir que uma verdadeira preocupação com a prevenção do erro judiciário não dispensa a uma espécie de apologia ao erro75, não com a finalidade última de chegar a uma aferição precisa do risco inerente ao Sistema76, mas, sobretudo, para conhecer suas tipologias77 e fontes e, assim aproveitar sua aptidão pedagógica.78
O estágio atual do conhecimento, que embasa a prevenção de grandes tragédias, propicia a construção de um modelo de aprendizado organizacional baseado em erros, que não pode ser desconsiderado pelos gestores e gestoras do Judiciário, notadamente numa cultura em que ainda se pensa que o erro judiciário é excepcional, quando excepcional é apenas o seu reconhecimento.
De fato, o resultado da conjugação desse conhecimento com os princípios da inovação judicial responsável e com as exigências para uma adequada (com baixo risco de erro) valoração da prova embasa uma prognose favorável relacionada à produção de um conhecimento seguro sobre a realidade brasileira – sobre o seu sistema normativo e sobre as praxes judiciais –, o que se mostra indispensável à sua evolução.
Por fim, vale o registro de que o modelo apresentado como resposta ao problema de pesquisa não se trata de algo pronto, acabado e operativo; no máximo, o esboço de algumas ideias que poderão gerar inúmeros debates. Mais adiante, pelo trabalho de outros, talvez se possa chegar a um bom modelo de prevenção baseado no aprendizado com erros.
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