CADERNO TEMÁTICO: A ATUALIDADE DO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE

PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO-MUNDO: FORMAÇÃO PARA A LIBERDADE E A VIVÊNCIA NA CIDADE

Vivian Martins
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Gabriela Sousa Ribeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil

PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO-MUNDO: FORMAÇÃO PARA A LIBERDADE E A VIVÊNCIA NA CIDADE

Olhar de Professor, vol. 23, pp. 01-18, 2020

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 01 Janeiro 2020

Aprovação: 31 Dezembro 2020

Resumo: Considerando a importância da vivência da e na cidade para a educação, este trabalho objetiva compreender, em contexto de pesquisa-formação na cibercultura, como a teoria do conhecimento de Paulo Freire pode ser entrelaçada com os estudos de ampliação da educação para além das instituições escolares, considerando a vivência dos estudantes em seus territórios, suas culturas e suas identidades construídas nas experiências urbanas. O referencial teórico é constituído pelas obras de Paulo Freire e de outros autores que relacionam educação e cidade. Utilizando a metodologia da pesquisa-formação na cibercultura, o contexto da pesquisa foi no curso Formação docente para comunicação, cultura e arte. Buscamos conversar com os dados a partir de três noções: existência problematizadora que modifica o mundo, docência que respeite os saberes dos educandos e esperançar um novo mundo. A educação freiriana para ressignificar vivências e percepções urbanas mostra-se fundamental para construção de um mundo mais justo e diverso.

Palavras-chave: Educação na/com a cidade, Paulo Freire, Pesquisa-formação na cibercultura.

Abstract: Considering the importance of experience in the city for education, this work aims to understand, in the context of research-training in cyberculture, how Paulo Freire´s theory of knowledge can be intertwined with studies that expand education beyond schools, considering students´; experiences in their territories, cultures, and identities built in urban experiences. The theoretical framework comprises studies by Paulo Freire and other authors that relate education and the city. We used the methods of research-training in cyberculture. Our research context was the Teacher training for communication, culture and art course (Formação docente para comunicação, cultura e arte). We sought to dialogue with the data based on three notions: a problematizing existence that changes the world, a teaching approach that respects the students´ knowledge, and hopes for a new world. We believe in Freirean education to resignify urban experiences and perceptions, which are essential for building a more just and diverse world.

Keywords: Education in/with the city, Paulo Freire, Research-training in cyberculture.

Resumen: Considerando la importancia de la vivencia en la ciudad para la educación, este trabajo tiene como objetivo comprender —dentro del contexto de la investigación-formación en cibercultura— cómo la teoría del conocimiento de Paulo Freire puede entrelazarse con los estudios de la expansión de la educación más allá de las instituciones escolares; valorando las vivencias de los estudiantes dentro de sus territorios, sus culturas y sus identidades, construidas con base en sus experiencias urbanas. El marco teórico está fundamentado en los trabajos de Paulo Freire y otros autores que relacionan educación y ciudad. Utilizando la metodología de investigación-formación en cibercultura, esta investigación tuvo como escenario el curso de Formación de Profesores en Comunicación, Cultura y Arte. Buscamos dialogar con los datos a partir de tres nociones: la existencia problematizadora que cambia el mundo, la docencia que respeta los conocimientos de los estudiantes, y esperanzar un mundo nuevo. Para poder resignificar las experiencias y percepciones del urbano, la Educación Freiriana se muestra como fundamental en la construcción de un mundo más justo y diverso.

Palabras clave: Educación en/con la ciudad, Paulo Freire, Investigación-formación en cibercultura.

PENSAMENTOS INICIAIS1

Esta pesquisa parte das reflexões a respeito de uma interlocução entre a educação para a liberdade e a vivência na e da cidade, principalmente, a partir da “teoria do conhecimento” (FREIRE; GUIMARÃES, 2013) desenvolvida por Paulo Freire, ao longo de sua vida. Ao pensar a relação do ser humano com o mundo, Freire considerava a educação para a leitura problematizadora do mundo, em diálogo constante, visando a conscientização para o entendimento do mundo que cerca os educandos. Avançamos no sentido de propor um diálogo com estudos sobre a educação na cidade, entendendo-a como territórios educativos; a ideia de educação em diferentes espaços-tempos2 e a possibilidade da educação freiriana para ressignificar nossas vivências e percepções urbanas.

Ribeiro et al (2020) defendem a importância da efetivação do direito à cidade, principalmente a partir das premissas das cidades educadoras e dos direitos humanos, para que as cidades possam ser vetores educacionais a ampla gama da população. Ao considerarmos os preceitos educativos de Paulo Freire, entendemos que valorizar a vivência urbana no processo educacional pode ajudar na emancipação de pensamento do indivíduo em relação à sua condição na cidade, potencializando sua apropriação da mesma, tanto na experiência nos espaços que a compõem, das relações socioculturais que possibilitam, quanto na reivindicação por direitos.

Nossas inquietações originaram duas questões de estudo: como o referencial teórico de Paulo Freire poderia se relacionar com a educação na e com a cidade? E de que forma professores, praticantes3 da pesquisa, podem incluir as cidades em suas práticas pedagógicas considerando o arcabouço teórico-prático de Paulo Freire?

O objetivo da pesquisa é compreender, em contexto de pesquisa-formação na cibercultura, como a teoria do conhecimento de Paulo Freire pode ser entrelaçada com os estudos de ampliação da educação para além das instituições escolares, considerando a vivência dos estudantes em seus territórios, suas culturas e suas identidades construídas nas experiências urbanas.

A metodologia escolhida foi a pesquisa-formação na cibercultura (SANTOS, 2014), por proporcionar o desenvolvimento de uma investigação entrelaçada com a formação, em que a pesquisa ocorre ao longo de processos educacionais. No contexto dos cursos, uma pesquisa é delineada como meio material e imaterial para elucidar a inquietação dos pesquisadores.

O contexto da pesquisa foi o curso de Formação Inicial e Continuada (FIC) denominado Formação docente para comunicação, cultura e arte, desenvolvido semestralmente, no período de 5 de março de 2018 a 15 de junho de 2019. O curso contou com três edições e as narrativas aprofundadas no presente artigo foram de praticantes da terceira edição, em 2019.1. O curso foi delineado no ambiente virtual de aprendizagem Moodle (MARTINS; SANTOS; DUARTE, 2020) a partir da abordagem didático-pedagógica da educação on-line (PIMENTEL; CARVALHO, 2020), mas também contava com aulas presenciais no campus Belford Roxo do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e nos equipamentos culturais-educacionais das cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

O curso foi campo de pesquisa por se tratar de espaço com abertura pedagógica com praticantes interessados, que procuraram voluntariamente o curso com uma perspectiva de formação continuada, novas oportunidades de trabalhos, complementação e atualização profissional. Nosso objetivo ao longo dos processos formacionais no curso era desenvolver uma relação com educadores e educadoras, em especial da Baixada Fluminense4, professores e demais profissionais da educação atuantes em redes educativas diversas, como escolas, exposições artísticas, instituições de memória, centros culturais, movimentos sociais e diversos setores públicos e privados das cidades que compõem o público de maior procura do curso.

Buscamos a formação5 de profissionais para a educação que olhassem com mais profundidade para a necessidade de incluir a comunicação, a cultura e a arte em suas propostas educacionais, considerando nessa interface a necessária relação com a cidade como um entrelaçamento necessário para a educação como prática de liberdade. Para tanto, apresentamos o curso como o campo de pesquisa, com a criação de um dispositivo6 formacional/investigativo para compreender a interlocução entre a educação e a cidade, em especial com as concepções de Paulo Freire. A partir do dispositivo de pesquisa, narrativas de professores emergiram, contribuindo para a nossa compreensão do objeto de pesquisa, essas narrativas serão apresentadas em análises conversando com o arcabouço teórico e acontecimental da pesquisa, despontando diferentes interpretações, conceitos e percepções sobre o processo de construção da pesquisa e seus resultados.

O presente artigo foi desenvolvido em tópicos específicos: esta introdução, apresentando o contexto da pesquisa, as questões de estudo, o objetivo geral e as opções teórico-metodológicas; na seção 2, os diálogos entre as concepções freireanas de educação e a possibilidade de relação com a cidade; na seção 3, como o método da pesquisa-formação na cibercultura entrelaça os caminhos da pesquisa, a apresentação do contexto, do campo e do dispositivo da pesquisa como um caminho percorrido; na seção 4, a conversa com os dados emergentes do campo de pesquisa, por fim, algumas considerações conclusivas, com a síntese dos conteúdos abordados.

Sinalizamos, desde o início, que esse texto não se pretende acabado, está em constante construção, afinal, não poderíamos falar de uma obra tão vasta e que assume complexas e diferentes interpretações como a de Paulo Freire com o ar de finitude. Assumimos nosso constante processo de busca nesse ensaio e em nossas interlocuções com esse autor, que se faz tão plural. E em segunda instância, ao comunicar através de uma teoria do diálogo, como a de Freire, convidamos os leitores à conversa, às críticas e à recriação do que está iniciado aqui.

PAULO FREIRE, A EDUCAÇÃO E O MUNDO: DIÁLOGOS VIÁVEIS

Paulo Reglus Neves Freire é um pensador brasileiro nascido em Recife-PE no ano de 1921. Suas pesquisas são importantíssimas para o cenário educacional, fato que contribuiu para ter recebido o título de Patrono da educação brasileira. O autor é internacionalmente estudado, de acordo com uma pesquisa realizada em Londres, é o terceiro autor mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo (VEIGA, 2019). Possui uma extensa publicação e o termo “pedagogia” é central nos títulos de grande parte de seus livros: Pedagogia do oprimido, Pedagogia da esperança, Pedagogia do conflito, Pedagogia da autonomia, Pedagogia do compromisso, Pedagogia da indignação, Pedagogia dos Sonhos Possíveis, Pedagogia da tolerância, entre outros7.

A educação foi o grande tema de interesse de Freire e buscamos, neste artigo, compreender seus fundamentos, a partir de uma articulação com estudos sobre cidade, território e contexto urbano. A defesa de Freire era para uma educação para a liberdade, contrária à opressão, propondo uma educação dialógica, crítica, reflexiva, estética, ética e que respeitasse os saberes prévios dos estudantes e sua relação com o mundo em que está inserido. “Não há, por isso mesmo, possibilidade de dicotomizar o homem do mundo, pois que não existe um sem o outro” (FREIRE, 2013, posição 282). Ao propor que a construção do conhecimento ocorra mediante a confrontação com o mundo, Freire (2013) nos inspira a incentivar uma atitude curiosa do sujeito frente ao mundo, em uma busca constante por entendê-lo e, assim, criar, com invenções para transformar o que está posto.

Importante ressaltar que não entendemos o mundo, palavra tão mencionada por Paulo Freire, como somente um espaço físico, assim como a cidade também não poderia ser considerada apenas dessa forma, mas como um subjetivo/objetivo e complexo espaço-tempo social, educacional e filosófico relacionado à vida, à existência, aos atravessamentos dos sujeitos. A cidade e a educação encontram-se inseridas no mundo, em diálogo constante com ele, por esse motivo criamos a expressão educação-mundo, defendida ao longo do texto.

No momento em que esse artigo é construído, a educação está apartada fisicamente da cidade, tendo em vista a pandemia de Covid-19, causada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2). O distanciamento social físico (MARTINS, ALMEIDA, 2020) nos fez entender ainda mais a importância da cidade para os processos educacionais, valorizando o que tínhamos e esperando por novos tempos, diferente do que estamos vivendo atualmente.

A cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de apreender, de ensinar, de conhecer, de criar, de sonhar, de imaginar de que todos nós, mulheres e homens, impregnados seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios, impregnados suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, (…) deixado em tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto de certa época. A cidade é cultura, é criação, não só, pelo que fazemos nela e dela, pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria mirada estética, ou de espanto, gratuito que lhe damos. A cidade somos nós e nós somos a cidade (GADOTTI, 2007, p. 72-73).

As afirmações de Gadotti (2007) vão ao encontro do pensamento de Freire ao nos colocar a refletir sobre a relação constante entre as experiências de vida e as práticas educativas. Se, conforme disse o autor, “a cidade somos nós e nós somos a cidade”, como podemos deixá-la de fora do processo de formação do ser humano? As experiências que os filhos da classe operária têm são distintas das crianças de classes abastadas porque a cidade em que vivem não é a mesma, ainda que tenham o mesmo nome.

Essas distinções são decorrentes de constantes disputas em torno dos espaços citadinos e de suas manifestações sociais, culturais, espaciais, econômicas e políticas. Essa disputa em torno da cidade faz parte de sua constituição, podemos dizer que há vários mundos/várias cidades dentro de uma mesma cidade. Nesse sentido, conforme Freire (1995), não é possível pensar a educação e a linguagem a ser abordada com os estudantes sem considerar o mundo em que estão inseridos, sem pensar o poder, a ideologia, sem considerar que as constituições desse mundo se dão a partir de construções históricas e sociais e que não são dadas e acabadas. O autor defende a importância de respeitar as culturas e as identidades dos estudantes no processo de aprendizagem. O que não quer dizer que devam ser privados do “padrão culto”, mas que lhes sejam ensinados que “ao aprender, por direito seu, o padrão culto, percebam que devem fazê-lo não porque sua linguagem é feia e inferior, mas porque, dominando o chamado padrão culto, se instrumentam para a sua luta pela necessária reinvenção do mundo” (FREIRE, 1995, p. 46).

Em Pedagogia da autonomia, Freire (2011) elenca saberes indispensáveis à prática docente, entre eles uma docência que respeite os saberes dos educandos. Esse será o primeiro ponto que aprofundaremos para compreender os diálogos possíveis entre os estudos de Paulo Freire e a cidade.

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que tem os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes? Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia (FREIRE, 2011, p.24).

Freire (2011) instiga seus leitores a estabelecer uma proximidade entre os saberes curriculares e a experiência dos educandos e questiona: “Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade?” (FREIRE, 2011, p. 24). Para uma educação libertadora os homens e as mulheres devem ser sujeitos do seu próprio pensar, estar munidos de todas as informações que contribuam para sua conscientização frente ao mundo.

Em Pedagogia do oprimido, Freire (1987) destaca que “o mundo não é um laboratório de anatomia em que os homens são cadáveres que devam ser estudados passivamente” (FREIRE, 1987, p. 85). Ao longo da obra, Freire (1987) expõe o método pelo ponto de vista de uma educação libertadora, em que os educandos devem ser entendidos, assim como suas realidades. Freire (1987) chama de investigação temática, “um esforço comum de consciência da realidade e de autoconsciência, que a inscreve como ponto de partida do processo educativo, ou da ação cultural de caráter libertador” (FREIRE, 1987, p. 57). O autor alerta que poderão dizer que a investigação não é “pura”, por sermos tal qual os educandos, mas afirma que é ingenuidade achar que os temas seriam puros e fora dos seres humanos, já que “os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo” (FREIRE, 1987, p, 56). E o segundo alerta de Freire (1992) é que partir do saber do educando não significa girar em torno dele, repetidamente. Mas sim, “partir do ‘saber de experiência feito’ para superá-la não é ficar nele” (FREIRE, 1992, p. 37).

O conceito antropológico de cultura é uma dimensão que Freire (1967) aborda em Educação como prática de liberdade, principalmente para pensar a alfabetização de adultos, no sentido de eles acharem que o que produzem não seria culturalmente referenciado, sendo a democratização da cultura algo fundamental. Ao aprender a ler e escrever, o educando assumiria papel de sujeito e não objeto do mundo. “A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana” (FREIRE, 1967, p. 115).

Em Ação cultural para a liberdade (FREIRE, 1981), o autor também menciona a prática da leitura e da escrita de forma crítica, inventando, relacionando com outros saberes, recriando e reescrevendo. Destacamos que para intervir na cidade é preciso ler o mundo e a cultura que pulsam nesse território, entender a cultura como “criação humana” (p. 116), até que eles compreendam o que um educando expressou ao pensador: “‘Faço sapatos’, disse outro, ‘e descubro agora que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros’” (p. 116).

A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente, como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele, como o letrado, tem um ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana (FREIRE, 1967, p. 115-116).

Esses apontamentos dialogam com Canclini (2015), quando este discute sobre patrimônio cultural e educação patrimonial. Ele pondera a necessidade de discutir sobre a cultura hegemônica, em que alguns bens simbólicos são colocados como “legítimos” e que, por isso, devem ser preservados e propagados. Defende que é necessário haver espaço tanto para a reprodução desses valores mais hegemônicos como para o heterodoxo, o “marginal”, o popular, de modo a serem “compartilhados por todos sem que igualem a todos, em que a desagregação se eleve a diversidade, e as desigualdades (entre classes, etnias ou grupos) se reduzam a diferenças” (CANCLINI, 2015, p. 157).

No mesmo sentido que Freire defende que o mundo do estudante seja o ponto de partida para sua educação, Canclini defende que a população só pode entender um bem, um espaço, uma edificação ou uma manifestação como patrimônio cultural se fizerem parte de sua vivência. O autor pondera, entretanto, que à medida que desce o nível de escolaridade (consequentemente, a classe social), menos acesso as pessoas têm a vivenciar essas culturas institucionalizadas, fazendo com que sejam menos apreendidas e significativas a elas. Isso se dá pela disputa em torno da cultura, em que a constituição do que vem a ser considerado patrimônio é elencada, geralmente, por uma elite que seleciona os seus bens, espaços, edificações e manifestações, aqueles com os quais se identifica, ainda que não seja assim para a maioria da população.

Falando sobre criação e intervenção no mundo, encaminhamos para o segundo tópico que gostaríamos de anunciar, a existência problematizadora que modifica o mundo. Para Freire (1987), deve haver um compromisso do ser humano com o mundo, pois sua existência não pode ser muda ou mentirosa. A concepção de educação bancária que o educador busca combater possui uma falsa visão sobre as pessoas, com uma inverídica dicotomia humanos-mundo, “homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo” (FREIRE, 1987, p. 36). Enquanto isso, a educação reflexiva, dialógica, conscientizadora e libertária propõe a visão de homens e mulheres em relação com o mundo: “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão (...)” (FREIRE, 1987, p. 44).

Freire (1967) alerta que essas intervenções e relações das pessoas com o mundo apresentam características que vão além de um contato, estando com o mundo as pessoas se abrem à realidade, com criticidade inexistente no simples viver. “Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo, só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles” (FREIRE, 1967, p. 40). O processo de conscientização também passa pela sua atuação frente à opressão e problemas sociais, tal intervenção que o faz histórico, como veremos a seguir:

Na verdade, já é quase um lugar comum afirmar-se que a posição normal do homem no mundo, visto como não está apenas nele, mas com ele, não se esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão somente a uma das dimensões de que participa — a natural e a cultural — da primeira, pelo seu aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem pode ser eminentemente interferidor. Sua ingerência, senão quando distorcida e acidentalmente, não lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse lícito interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo — o da História e o da Cultura (FREIRE, 1967, p. 41).

Ao pensar os seres humanos como interferentes do mundo, Freire (1967) os lança em áreas que eles dominam: a história e a cultura. Na obra Ação cultural para a libertação (FREIRE, 1981), o autor estabelece uma diferenciação entre seres humanos e os demais animais, afirmando que somos seres históricos, “inseridos no tempo e não imersos nele, os seres humanos se movem no mundo, capazes de optar, de decidir, de valorar. Têm o sentido do projeto, em contraste com os outros animais, mesmo quando estes vão mais além de uma rotina puramente instintiva” (FREIRE, 1981, p. 52-53). Dessa forma, atuamos, intervimos, criamos e movemos o mundo. Com o potencial transformador que temos, precisamos acreditar nos nossos feitos e em suas repercussões.

Para aprender e se libertar é preciso ressignificar, deslocar o olhar do que está posto para o que pode vir a ser, o inédito viável (FREIRE, 1987). A esse respeito, iniciamos a reflexão sobre o terceiro e último, por agora, ponto que trazemos para estabelecer uma interlocução entre a teoria do conhecimento de Freire e os estudos na e com a cidade: esperançar um novo mundo. O verbo esperançar para Freire não remete a esperar, mas lutar com esperança. “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero” (FREIRE, 1987, p. 47). Para tal ponto, recorremos a Pedagogia da esperança, em que Freire (1992) aposta no engajamento para a transformação pela luta, a transformação das condições de opressão, mas, para isso, é preciso a percepção da realidade, conhecer o mundo e as lógicas de opressão para alcançar mudança(s).

Além do conhecimento da lógica perversa, Freire (1992) alerta para o desenvolvimento de uma linguagem própria.

A imaginação, a conjectura em torno do mundo diferente do da opressão, tão necessários aos sujeitos históricos e transformadores da realidade para sua práxis, quanto necessariamente faz parte do trabalho humano que o operário tenha antes na cabeça o desenho, a “conjectura” do que vai fazer. Aí está uma das tarefas da educação democrática e popular, da Pedagogia da esperança – a de possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário dos “educadores”, de sua linguagem, que, emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo. Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção da cidadania (FREIRE, 1992, p. 20).

Assim, Freire (1992) nos provoca para que a linguagem direcionada para a realidade das classes populares se alinhe com o desenho de um mundo novo, finalizando com um ponto importantíssimo da sua fala, que essa linguagem seja um caminho de intervenção cidadã. Afinal, “não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 1992, p. 47). Os educadores e educadoras são convocados por ele a entender a leitura de mundo, percebendo as táticas para a resistência ao que estão submetidos os(as) oprimidos(as) para intervir no mundo. Não há denúncia sem anúncio, nos ensina o pensador, “não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens” (FREIRE, 1992, p. 47). A continuidade se dá pelo novo, pelo sonho, pela esperança.

O que não podemos, como seres imaginativos e curiosos, é parar de aprender e de buscar, de pesquisar a razão de ser das coisas. Não podemos existir sem nos interrogar sobre o amanhã, sobre o que virá, a favor de que, contra que, a favor de quem, contra quem virá; sem nos interrogar em torno de como fazer concreto o “inédito viável” demandando de nós a luta por ele (FREIRE, 1992, p. 47).

Concluímos este tópico com a chamada para a ação, com a reflexão de que a mudança é necessária para a libertação dos indivíduos e de forma dialógica ou até cíclica, a libertação se faz necessária para a transformação da sociedade. “É a “leitura do mundo” exatamente a que vai possibilitando a decifração cada vez mais crítica da ou das “situações-limites”, mais além das quais se acha o “inédito viável”” (FREIRE, 1992, p. 55). O inédito viável passa a ser possibilidade materializada pela práxis libertadora, um sonho que ao ser sabido/projetado pode se tornar realidade.

A PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: DISPOSITIVO DE PESQUISA E CAMINHOS POSSÍVEIS

A reflexão sobre os processos de formação só é produtiva na medida em que os participantes investem ativamente cada etapa de trabalho neles mesmo, bem como nas interações que o grupo oferece. Nós qualificamos esse cenário como “pesquisa-formação” porque a atividade de pesquisa contribui para a formação dos participantes no plano das aprendizagens reflexivas e interpretativas, e situa-se em seu percurso de vida como um momento de questionamento retroativo e prospectivo sobre seu(s) projeto(s) de vida e sua(s) demanda(s) de formação atual (JOSSO, 2008, p. 420-421).

A pesquisa-formação é a metodologia criada por Josso (2004) para o desenvolvimento de uma teoria da formação com abordagem autobiográfica. Em uma entrevista realizada por Margaréte May, Marie-Christine Josso é questionada sobre qual a influência ou o impacto de Paulo Freire em seu trabalho. Josso afirma que “foi o seu método de análise dos discursos e dos silêncios, como fonte das realidades essenciais, que inspiraram o desenvolvimento da minha maneira de analisar e interpretar as narrativas escritas, no diálogo com autores das narrativas de formação de si, ao longo da vida” (JOSSO, 2009, p. 138).

Uma metodologia baseada na história de vida, na formação e na pesquisa dos envolvidos busca compreender o conhecimento produzido pelas experiências dos praticantes ao se implicar, se transformar e se conhecer durante o processo formacional. Entendemos que a experiência “é produzida por uma vivência que escolhemos ou aceitamos como fonte de aprendizagem particular ou formação de vida. Isto significa que temos de fazer um trabalho de reflexões sobre o que foi vivenciado e nomear o que foi aprendido” (JOSSO, 2009, p. 137). Josso (2004) cria o método com algumas etapas, que denomina por tempo (de 0 a 3): tempo 0 – apresentação; tempo 1 – informações, discussão e negociação; tempo 2 – a narrativa oral; e tempo 3 – comentários e análises das narrativas escritas.

A formação é pela pesquisa e a pesquisa é sobre a formação, em especial, de professores. Conta com um pesquisador implicado, que trabalha com atores da mudança, como mencionado por Macedo (2010). Um dos pressupostos da pesquisa-formação é a não neutralidade. Macedo (2010), ao mencionar o pesquisador implicado, assume que o pesquisador tem um vínculo com o objeto estudado, com o conhecimento e a forma como ele é produzido. Em vez de se distanciar do fenômeno, como prevê o positivismo, há o pressuposto básico de um pesquisador que busca formar e (trans)formar-se durante a ação da pesquisa, construir significados e sentidos a respeito dos acontecimentos.

Necessário se faz explicitar ainda, que a concepção de pesquisa aqui trabalhada, entretece sem hierarquizações e antinomias, implicação como competência epistemológica e qualidade investigativa. Nestes termos, vínculo, pertencimento e afirmação como mobilizadores de modos de criação de saberes e atores como sujeitos coletivos criadores interativos de sapiências emergem numa lógica e numa epistemologia social ao mesmo tempo heurística e acionalista. Acolhemos na integralidade o argumento de Guattari (1999, p. 23) de que “o sujeito implicado não pode se contentar em interpretar o real. Ele deve ser instado a se projetar e intervir” (MACEDO; SÁ, 2018, p. 332).

A pesquisa-formação é criada como uma metodologia de pesquisa que considera uma intervenção intercrítica para a formação. Uma pesquisa implicada com as demandas da educação, com o olhar de que o conhecimento prático do grupo social na cotidianidade da instituição é mais relevante do que dos “especialistas que vêm de fora da conviviabilidade grupal da comunidade ou da instituição” (MACEDO, 2010, p. 160). O rigor está, primeiramente, no observador que se observa e é observado, em um movimento intercrítico e autocrítico. Em segundo lugar, na desconstrução da necessidade de neutralidade para que a pesquisa seja considerada científica, um legado positivista que buscamos não herdar. Acrescentamos a importância de evidenciar as intenções, as implicações do pesquisador no desenvolvimento da investigação e o tratamento sincero, ético e respeitoso aos praticantes da pesquisa.

Nesse sentido, Josso (2004, p. 214) questiona: “A posição do pesquisador-formador difere, e em quê, da posição do pesquisador-aprendente ocasional?”. A autora acredita que o pesquisador-formador precisa lançar “(...) uma atenção consciente sobre si mesmo e sobre a situação” (p. 215). Desse modo, os envolvidos são ao mesmo tempo sujeitos e o propósito da formação, ocorrendo um processo de autorreflexão do formador e dos participantes sobre si mesmos, pesquisando sua prática constantemente. O professor-pesquisador (TRANCOSO; MARTINS, 2019) é aquele que ensina, aprende, pesquisa, se autoriza a criar e inovar em um método aberto, conforme alerta Freire (2011):

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar e, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 2011, p. 23).

Pensar no ensino sem pesquisa é uma visão fragmentada do fazer docente. Freire (2013) reforça tal concepção reconhecendo educadores(as) e educandos(as) como sujeitos cognoscentes na situação educativa, mediados pelo que buscam conhecer, o objeto cognoscível. O desenvolvimento da presente pesquisa-formação prevê o esforço em compreender a relação com o saber, a temática, o campo de pesquisa, os conhecimentos adquiridos ao longo da investigação e da formação (nossa e do outro), reconhecendo a (trans)formação ao longo da pesquisa.

Apresentamos como o dispositivo de pesquisa foi delineado. A proposta é a realização de experiências em contextos educacionais diversos, como escolas, exposições artísticas, instituições de memória, centros culturais, patrimônios materiais, manifestações culturais reconhecidas como patrimônios imateriais, movimentos sociais e diversos setores públicos e privados das cidades, relacionados aos eixos de formação do curso Formação docente para comunicação, cultura e arte.

O perfil dos praticantes8 da pesquisa é composto, prioritariamente, por docentes, mas também por profissionais da educação de forma geral. Com requisito mínimo para matrícula o ensino superior em andamento, os praticantes comprovavam formações diversas, em grande parte em nível de graduação e pós-graduação. O perfil etário também era diverso e eram moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ao longo da terceira edição do curso, 2019.1, contamos com 31 praticantes, no total. Consideramos como praticantes os estudantes matriculados no curso, lembrando que nem todos participaram efetivamente de todos os componentes curriculares, por não terem concluído o processo formacional, infelizmente.

A atualização do método por Santos (2014) para a pesquisa-formação na cibercultura contribui sobremaneira para nossas pesquisas com cursos que assumem a abordagem da educação on-line (SANTOS, 2017). Como mencionado anteriormente, o curso (campo da presente pesquisa) conta com as tecnologias digitais para a construção dos saberes. Os módulos do curso Formação docente para comunicação, cultura e arte são: Educação On-line, Saberes Pedagógicos, Educação e Cultura, Vivências Docentes I, Vivências Docentes II, Educação e Comunicação, Arte-educação e Seminário de Comunicação, Cultura e Arte. A carga horária do curso é de 162 horas e as disciplinas possuem em torno de 18 a 30 horas. Neste artigo, analisaremos, principalmente, as construções desenvolvidas nos módulos Saberes Pedagógicos, Educação e Cultura, Vivências Docentes I e Vivências Docentes II. No quadro 1 apresentamos as atividades pedagógicas desses módulos do curso.

Quadro 1: Descrição do dispositivo de pesquisa9
Quadro 1: Descrição do dispositivo de pesquisa9

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continua

Fonte: elaborado pelas autoras.

Quadro 1: Descrição do dispositivo de pesquisa9
Quadro 1: Descrição do dispositivo de pesquisa9

conclusão

Fonte: elaborado pelas autoras.

A partir do dispositivo de pesquisa descrito anteriormente, narrativas emergiram e foram entrelaçadas com aporte teórico construído ao longo da pesquisa, em um movimento de ida e vinda de prática-teoria-prática. No próximo tópico, apresentamos a interpretação dos dados.

POR UMA EDUCAÇÃO SEM FRONTEIRAS, MAS COM ASAS

Porque o homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira que não tem fronteira. O fechamento de sua vida doméstica por meio da porta significa que ele destaca um pedaço da unidade ininterrupta do ser natural. Mas assim como a limitação informe toma figura, o nosso estado ilimitado encontra sentido e dignidade com o que materializa a mobilidade da porta: quer dizer com a possibilidade de quebrar esse limite a qualquer instante, para ganhar a liberdade (SIMMEL, 1996, p. 14).

Simmel (1996) reflete a respeito do humano ser um ser sem fronteira, ilimitado, buscando a liberdade. Dessa forma, partimos do pressuposto de uma educação também sem fronteiras, livre das portas da escola. Ou, como veremos no diálogo entre as narrativas dos praticantes, nossa experiência ao longo da pesquisa e o diálogo com nosso referencial teórico, uma educação sem fronteiras, mas com asas. Asas para criar, para problematizar, para avançar pelos muros da escola, para modificar o que está posto e esperançar por um mundo melhor, a educação-mundo.

O curso FIC Formação docente para comunicação, cultura e arte buscava um diálogo com profissionais e futuros profissionais da educação, pensando a articulação de saberes necessários à educação contemporânea. O curso foi desenvolvido para auxiliar esses profissionais a trabalharem a importância da escola superar a educação bancária e formar o cidadão em dupla dimensão: individual e social. É preciso preparar o sujeito para pensar livre e criticamente dentro de um contexto social construído.

Para um educador progressista coerente não é possível minimizar, desprezar, o “saber de experiência feito” que os educandos trazem para a escola. A sabedoria desta está em fazer compreensível que a ruptura que o saber mais exato, de natureza científica, estabelece, em face daquele saber, não significa que ele seja desprezível. Pelo contrário, é a partir dele que se alcança o mais exato. (...)

[É preciso] inquietar os educandos, desafiando-os para que percebam que o mundo dado é um mundo dando-se e que, por isso mesmo, pode ser mudado, transformado, reinventado (FREIRE, 1995, p. 30).

Porém, ao realizar pesquisa explorando as visões de educadores e usuários da escola, Paro (2007) percebeu que, em diferentes níveis de respostas, professores e gestores colocam à escola um papel limitado, principalmente relacionado ao aprendizado para um mercado de trabalho que não exige muita qualificação. Percebeu que a cultura não é considerada como direito fundamental. O autor problematiza essa falta de percepção tanto no que diz respeito a uma cultura “legitimada”, aquela reconhecida e considerada cultura, como, por exemplo, o patrimônio cultural, como também da cultura cotidiana, mais relacionada à educação “dada em casa”. Percebeu que os educadores não consideram esse conjunto como conteúdo escolar. Há um desconhecimento da escola enquanto formadora do cidadão em sua integralidade, não apenas na dotação de informações.

O autor pondera sobre a construção histórica do ser humano educado. Relaciona essa construção do ser humano educado com a qualidade na escola, que precisa resgatar a socialização dos indivíduos e entender que a educação de qualidade é a que forma o cidadão na sua integralidade. A construção do ser histórico depende das interações sociais, culturais, artísticas, comunicacionais, educacionais do ser humano, da valorização de sua experiência cotidiana para sua formação cidadã. É preciso perceber que as pessoas estão captando informações de forma constante, que a sociedade está incessantemente “falando” com elas, mesmo que não estejam aptas a escutar. Assim, é preciso considerar a integralidade educativa de espaços formais, não formais e informais. E, neste sentido, a vivência e apreensão citadina se faz fundamental nessa construção.

Como o curso foi desenvolvido na modalidade à distância, as narrativas que apresentaremos foram postadas no ambiente virtual de aprendizagem da turma. As narrativas emergem de diálogos em fóruns, chats, wikis, diários de bordo, blog de escrita coletiva e tantas outras interfaces de comunicação com os estudantes que potencializam a dialogicidade. Freire (2013) nos ensina que, no diálogo e na problematização, educador e educando desenvolvem postura crítica, resultando na percepção de que esses saberes construídos em conjunto refletem o mundo e/com os homens em interação. A narrativa de Eliane Gomes sobre o aplicativo Google Arts & Culture foi disparada a partir de um fórum de conversação em que questionávamos como os professores poderiam criar aulas utilizando esse aplicativo que reúne espaços de culturas e artes.

por Eliane Gomes - 29 Mar 2019 - Ao longo dos tempos a internet tem sido cada vez mais utilizada no nosso dia-a-dia. Precisamos desfrutar desse meio para facilitar nossas vidas, a cibercultura ou ciberespaço nos ajuda para o aprendizado e é através dos ambientes virtuais como a aplicativo Google Arts & Culture, que podemos interagir conhecendo artigos diversos para acrescentar no nosso “conhecimento de mundo”. Essa plataforma cheia de recursos que podemos explorar, como a função de selfie que possibilita que o indivíduo tenha a feição da face comparada com alguma obra. Portanto se tornando uma ferramenta para se aplicar em sala de aula, tive a criatividade de pensar uma aula não tradicional, onde o discente faria uma releitura da obra: Pop Arte, buscando traçar a mesma técnica do movimento, trazendo para o cotidiano do mesmo, praças, casas, ou seja um lugar específico que o individua quer representar.

“A arte de Lichtenstein tem a capacidade de ser apreciada e entendida por todos, pelo menos em algum nível, devido ao fato de que seu assunto foi retirado de materiais cotidianos. Ele usou cor de revista, uma linha gráfica e pontos de ben-dia. Suas pinturas eram essencialmente pintura pura e tradicional, sem colagem, materiais experimentais ou técnicas complicadas. É nas suas impressões que Lichtenstein experimentou materiais. Ele fez sua primeira impressão, uma combinação de litografia e xilogravura, em 1948, quando estudou na Ohio State University em Columbus, e adicionou os processos de entalhe, gravura e aquatinta em 1950. Red Barn segue a célebre Haystack e Cathedral Series de Lichtenstein, o que o próprio Lichtenstein se referiu como “fabricado por Monet” em 1969. Entre 1969 e 1993, o artista completou mais de vinte séries de estampas estendidas, a maioria das quais compreende seis a oito imagens” (Fonte: Google, Arts & Culture).

Destacamos na fala de Eliane as palavras “conhecimento de mundo”. A professora criou uma atividade que relaciona os saberes dos discentes e seus cotidianos, por meio de praças, casas, ou lugares que desejem representar, com uma releitura das obras de Lichtenstein, buscando traçar com seus estudantes a mesma técnica do movimento do pintor. A arte e suas manifestações de ordem estética, realizadas por meio de uma grande variedade de linguagens, atravessam nossa existência. O trabalho da praticante apresenta essa possibilidade aos estudantes, além de pensar a integração cidade-escola. Assim, podemos considerá-lo parte do nosso primeiro tópico de diálogo com Paulo Freire (2011), a docência que respeite os saberes dos educandos, por incentivar que a realidade-mundo dos estudantes seja seu contexto e ponto de partida.

No fórum de debates do componente curricular Saberes Pedagógicos, criamos questionamentos para disparar o diálogo, em que uma das questões era: “Como podemos pensar em práticas pedagógicas pelas cidades?” Indo pelo mesmo caminho de Eliane, Viviane Ribeiro respondeu: “Levando em consideração a vivência desses sujeitos, em que mundo ele está inserido e a partir daí desenvolver métodos de ação em conjunto, levando esse indivíduo a conhecer e a se apropriar da cidade em que mora.” Observamos nas narrativas das duas praticantes o que Paulo Freire chama de “conscientização da situação” (FREIRE, 1987, p. 58). Ou seja, a consciência histórica, a tomada de consciência originária da emersão, do aprofundamento da realidade.

Nos componentes curriculares Vivências docentes I e II, abordamos a proposta de inclusão das redes educativas da Baixada Fluminense em um mapa colaborativo no Google My Maps. A atividade tinha como objetivo a circulação de conhecimento sobre espaços importantes para a comunicação, a cultura e a arte em um território desacreditado por muitos, que possui um estigma de que nada acontece, que não “produz cultura” ou que a cultura é a “cultura da bala”, algo que já foi desmistificado no presente artigo. Diante desse cenário, a praticante Juliana Gallo reflete:

por Juliana Gallo - 16 Mai 2019 - Acredito que seja importante pensar em práticas educacionais pela cidade. Trata-se de uma forma de ir mais a fundo quando se trata de contextualizar o currículo à realidade de cada aluno; de trazer mais significado e sentido à educação; de lembrar que cultura é a forma como se vive e, assim, valorizar - ao invés de apagar ou subestimar - as vivências cotidianas dos educandos. Uma forma de implementar esta ideia às nossas práticas é a pesquisa no google, através de palavras-chave conseguimos encontrar e/ou localizar projetos já implementados. Mas, é sabido, assim como muitas das nossas andanças não constam no Maps (aí a importância deste projeto!), muitos projetos legais provavelmente também não possuem https://. Então, acredito que caminhar com mais atenção pelo nosso bairro (como se fôssemos turistas, sabe?) e conversar com as pessoas, em especial com educadores, são boas formas de descobrir esses cristais que certamente existem por aqui.

Li hoje uma frase que acredito que casa bem com o que acabo de escrever aqui: “Sempre tem alguém antes de você. Sempre tem alguém abrindo o caminho pra você trilhar o seu. Educação é resistência. Resista por quem vem depois.” Através desta perspectiva é mais provável pensar que a movimentação já exista por aqui (só não é amplamente divulgada) do que aceitar o que muitos repetem por aí que ‘Baixada não tem nada”, “Baixada não tem cultura, não tem museu, etc”.

Por isso, acho ótima a ideia da construção do mapa colaborativo e espero que tenha adesão. Eu incluí lá alguns locais como o Museu ciência e vida (Caxias), Teatro municipal Raul Cortez (Caxias), Casa da cultura (Praça da bandeira, perto de casa <3) e Museu Marinheiro João Cândido (agora no Ed. Antares, ao lado da prefeitura de São João de Meriti). Mas toda praça, toda esquina com crianças fazendo música e dança são também pontos de cultura. Hoje mesmo, dando aula sobre alimentação e nutrientes, eu utilizei as lanchonetes do bairro e o que elas oferecem, como forma de contextualizar a cultura alimentar local (Quando propus que fosse uma análise local, os alunos já pensaram se tratar de Brasil ou Rio de Janeiro. E, para surpresa deles, eu ressaltei que local seria o Parque Alian e que pensaríamos sobre nossas vivências, porque nosso bairro também tem sua cultura).

Uma narrativa rica, que aborda múltiplas temáticas, como “contextualizar o currículo à realidade de cada aluno”, “trazer mais significado e sentido à educação”, “lembrar que cultura é a forma como se vive e, assim, valorizar – ao invés de apagar ou subestimar – as vivências cotidianas dos educandos”. Direciona o nosso olhar para exemplificar a docência que respeite os saberes dos educandos, principalmente, quando a praticante inclui um exemplo de atividade que realizou com os estudantes para “contextualizar a cultura alimentar local”. Acreditamos que a interlocução com os equipamentos das cidades possibilita refletir sobre sua situacionalidade. Freire (1987) pontua que os homens são seres em “situação”, “se encontram enraizados em condições tempo-espaço que os marcam e a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desapoiados por ela, agem sobre ela” (p. 58). A narrativa de Flavio Silva também contribui para nossos entendimentos, promovendo a reflexão sobre a inclusão de equipamentos urbanos para o desenvolvimento de ações pedagógicas.

Flavio Silva - 8 Mai 2019 - Uma biblioteca, uma praça, uma esquina, um campo de futebol irregular, são locais nos quais podemos transcender a aparências desses objetos urbanos e, sim, busca a essência desses objetos, busca compreender os diversos significados que cada grupo social acaba se apropriando e atribuindo novas funções. A partir disso, creio, que poderemos desenvolver novas práticas pedagógicas.

Ao buscar compreender os significados que cada grupo social atribui aos espaços urbanos, as formas como eles se apropriam e a atribuição de novas funções, Flavio abre caminho para pensarmos sobre a existência problematizadora que modifica o mundo, segundo tópico de diálogo com Paulo Freire. O pensador acredita que a “análise crítica de uma dimensão significativo-existencial possibilita aos indivíduos uma nova postura, também crítica, em face das ‘situações-limites’. A captação e a compreensão da realidade se refazem, ganhando um nível que até então não tinham” (FREIRE, 1987, p. 55). Se pensarmos a educação como uma possibilidade de promover reflexão, criticidade e problematização, podemos pensar em ressignificar os espaços que estão próximos, entender que eles podem agregar aos nossos projetos de sala de aula, promover o conhecimento daquele espaço pela comunidade e contribuir para a luta da manutenção desses locais, afinal, as pessoas lutam pelo que elas conhecem.

Thais da Costa - 17 Mai 2019 - O uso desse tipo de tecnologia que possibilita a inserção de “pontos” no mapa, nos mostra o quanto podemos ser protagonistas das nossas próprias vivências. Locais que, apesar de públicos, não são populares e até desconhecidos. A partir disso, podemos modificar algumas práticas de ensino, tanto dos locais em que seriam realizadas as aulas que ministraríamos, quanto na apresentação de novos espaços para os alunos. Reafirmo a importância dessa educação fora do espaço, quando leio Paulo Freire (1992) afirmando que “a cidade é cultura, é criação, não só, pelo que fazemos nela e dela, pelo que criamos nela e com ela.”. Tendo nós, papel fundamental no ambiente das cidades.

Quando pensamos na possibilidade de intervenção nos espaços citadinos, como Thais da Costa reflete, articulamos a possibilidade de que a nossa ação cidadã proporcione alterações nos espaços, por meio do nosso uso e até de reivindicações. Para tais modificações, é preciso que o cidadão se identifique com seu território, a identificação é preponderante para o processo de significação, sem a sensação de pertencimento a um bem coletivo, as pessoas ficam alienadas àquele território, gerando desinteresse e resultando na degradação do espaço urbano. Reafirmamos, as pessoas não lutam pelo que elas não conhecem. Consideramos esse processo cíclico, em que uma ação alimenta a outra. Assim, pensamos a existência problematizadora que modifica o mundo, a praticante Thais afirma que nós, educadores, possuímos papel fundamental e podemos ser protagonistas de nossas vivências. Acrescentamos que podemos contribuir para a identificação, a significação, o pertencimento e o interesse, ações contrárias à alienação, com uma proposta pedagógica que inclua a cidade-mundo dos estudantes. Thais acrescenta em sua narrativa uma citação de Freire, sobre criar na e com a cidade, acreditamos ser assim que modificamos o mundo ou o micromundo em que vivemos, afetando pela nossa existência e sendo afetado pelo entorno.

O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua submissão. Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso “bancário” meramente transferido do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente neste sentido que ensinar não se esgota no “tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível. E essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível e pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinando, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos (FREIRE, 2011, p.21).

Destacamos 3 pontos dos ensinamentos de Freire (2011, p. 21): “a capacidade crítica do educando”, que ensinar não deve se esgotar no tratamento superficial dos temas e que os “educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando”. A educação na e com a cidade precisa estar inserida nessa discussão, entendendo a necessidade da vivência experiencial para não tratar os temas superficialmente e a importância de compreender os estudantes como atores críticos e conscientes de suas ações pela reconstrução dos saberes/acontecimentos/vivências ocorridos dentro-fora da escola. Buscando, assim, uma escola que não vire de costas para a realidade que se apresenta no contexto social de seus estudantes. É nesse sentido que Freire (1987) defende a inter-relação entre o mundo do estudante e os conteúdos que ele constrói no processo educacional. Afinal, a educação não pode deixar do lado de fora de seus portões as experiências dos que ali adentram.

Torna-se necessário promover a reflexão aos docentes com conhecimentos teóricos e práticos, possibilitando a experiência em suas práticas educacionais da combinação entre as comunicações, as culturas e as artes como possibilidades de construções junto aos mundos dos estudantes, objetivo principal do curso FIC Formação docente para comunicação, cultura e arte. Não pretendemos generalizar nossas reflexões para todas as situações e nem apresentar uma receita do que pode ser assertivo ou não, pois somos subjetivos, seres humanos repletos de diferenças, então pretendemos apresentar nossas experiências e refletir sobre como podemos esperançar um novo mundo. Apresentaremos duas narrativas de praticantes que nos deram esperanças, de que é possível, de um inédito viável. Iniciamos pela fala de Viviane Ribeiro, a seguir.

Viviane Ribeiro - 16 Mai 2019 - Coloquei exemplos de lugares de interatividade e comunicação que conheço em São João de Meriti, lugar onde sou nascida e criada durante toda a minha vida. Aqui em São João existem poucas opções de lugares que ofereçam serviços de cultura e de arte, por isso, durante um bom tempo em minha vida eu procurei esses recursos sempre fora ou longe de onde moro, por acreditar que existiam uma espécie de dois paralelos entre o mundo “fora da Baixada” e entre a “Baixada e suas comunidades”. Através desse curso comecei a pensar: “porque não aqui”? “tudo o que produzimos por aqui também é cultura, existem coisas aqui que considero arte também”. Precisamos conhecer mais a Baixada Fluminense, ser observadores e também criadores da nossa cultura e da nossa arte. Existe um mundo ao nosso redor que constitui aquilo que somos e aquilo que seremos, o ser humano é um ser social, ou seja, ele é parte de um todo complexo onde modifica o meio ao mesmo tempo em que é modificado por ele.

A partir da narrativa de Viviane pensamos como a mudança de perspectiva sobre o território é possível através de um processo formacional, percebemos com o relato da experiência ao longo do curso que a praticante passou por uma transformação do modo de perceber seu entorno, sua realidade. Sobre a produção cultural e artística que a praticante salienta, Canclini (2015) discute que, frequentemente, os produtos gerados pelas classes populares têm pouco ou nenhum espaço para serem reconhecidos como representativos da cultura de uma nação. Ainda que sejam expoentes de criatividade muito maiores e mais complexos, decorrentes, inclusive, de sua habilidade de lidar com as dificuldades da vida e delas gerar soluções incríveis, nem sempre conseguem concorrer com as classes mais abastadas, que detém poder e capital necessários para colocar seus bens como representativos.

A esse respeito, apresentamos a intervenção na cidade, desenvolvida como trabalho de conclusão de curso pelas praticantes Thaís e Juliana, a Feira Crias da Bxd (Baixada):

por Thaís da Costa - 31 Mai 2019 - O projeto tem como objetivo a realização de uma feira de exposição, venda e diálogo. No passado, as feiras foram os primeiros locais de amostragem, venda e troca de mercadorias e atualmente têm ganhado espaço em eventos pela cidade. CRIAS da BXD abre espaço para criações de artesãs da Baixada Fluminense e aborda temas como empreendedorismo, economia criativa, empoderamento da mulher e consumo consciente. Nós, Juliana e Thaís, como artesãs que enxergam o artesanato como um elemento de reafirmação e autonomia, decidimos por organizar um espaço em que mulheres artesãs da Baixada pudessem expor seus trabalhos e dialogar diretamente com o público, a fim de apresentar a importância de seus trabalhos no âmbito da arte e da cultura. Mas porque falar da Baixada Fluminense? O estigma que cerca a Baixada é de um local com altos índices de criminalidade, pobreza e com poucas opções de lazer e cultura. Mas as produções culturais daqui vão muito além do que vemos. Pensamos em dar espaço e voz para pessoas [que] são protagonistas de suas histórias e que contarão elas para todos. Mas porque falar de mulheres? Quando reunimos num espaço, mulheres que decidiram trabalhar por conta própria e com o que elas mesmas produzem, vamos na contramão da lógica capitalista de produção. Ainda hoje, as mulheres são invisibilizadas em muitos ambientes de trabalho e seu trabalho ainda é visto como inferior. Decidir viver de uma renda obtida com o que se faz é um grande ato político. Mas como vamos fazer isso? Escolhemos o dia 6 de junho e o IFRJ - Nilópolis para promover um espaço que fale sobre empreendedorismo e economia criativa na Baixada Fluminense, através do trabalho de 12 artesãs locais. Um espaço de troca de diálogos informais e próximos de uma conversa. Afinal de contas, qual a melhor forma de aprender sobre o outro? Por fim, o nome do projeto dialoga diretamente com o que queremos propor. Falar como mulheres atuantes nesse local e trazer para o foco outras companheiras que seguem invisibilizadas dentro da nossa sociedade. Existindo, criando e resistindo.

Para estudiosos do urbanismo, como Pechman (2012), o sentido tradicional da cidade é “o lugar o encontro, o ‘locus’ da negociação, o campo do laço social, o chão da identidade, o espaço da política” (op. cit., p.258). Se não existe cidade sem encontros e consequentes negociações e conflitos, não existe cidade sem divisão de classes sociais. As disputas em torno dos territórios se dão cotidianamente, numa disputa entre forças verticais e forças horizontais, nos termos de Santos (2009), e reverberam na ocupação do espaço e no quanto de direito à cidade determinadas classes têm ou não acesso. Via de regra, o que, infelizmente, está posto é que as classes sociais mais altas têm mais direito à cidade que as baixas.

Porém, ponderamos que a luta pelo direito à cidade se inicia na ocupação e apreensão do espaço urbano, na possibilidade de vivenciar a cidade a partir de seu valor de uso e não apenas de seu valor de troca.

Nesse sentido, no componente curricular Educação e Cultura, as discussões e desafios propostos se deram com base, principalmente, nas discussões de Canclini (2015) e Freire (2011, 1995, 1987). As discussões empreendidas pelo primeiro dizem respeito à importância das pessoas terem a possibilidade de vivenciar os aspectos socioculturais que fazem com que um bem/espaço/manifestação seja considerado patrimônio cultural e, assim, poder reconhecê-los como tal e também como seus. O que corrobora com as premissas de Freire (2011, 1995, 1987), no que tange à importância de considerar os mundos dos educandos. Para lhes possibilitar mais autonomia e análise críticas, um dos desafios propostos aos praticantes, como meio para pensarem o processo educacional de seus estudantes, a partir das vivências e realidades de suas cidades, de suas culturas, de suas artes, de suas identidades, foi analisar locais ou manifestações culturais da cidade, institucionalizados ou não. Diante das realidades de cada cidade e de seus alunos moradores das mesmas, deveriam selecionar um local ou manifestação cultural e analisar criticamente como eles poderiam ser trabalhados com seus próprios estudantes para conectar suas vivências citadinas com aspectos discutidos em sala de aula. No caso de espaços institucionalizados, como, por exemplo, um museu que contasse com mediação própria, deveriam pensar meios de tornar a abordagem mais próxima aos seus alunos, às suas realidades e focando na reverberação dessa abordagem com as identidades e lugares de fala dos mesmos.

Os discentes relataram que a atividade lhes possibilitou abrir os olhos para as próprias cidades. Destacamos a fala de duas alunas, Thais e Sandra. Thais fala sobre sua vivência no Complexo Cultural de Nova Iguaçu:

por Thais da Costa - 6 Jun 2019 - Escolhi desenvolver a atividade proposta sobre esse espaço pois sempre foi um local em que eu estive muito inserida. Inaugurado em 2003, quando eu tinha apenas 10 anos, o Complexo Cultural de Nova Iguaçu é de responsabilidade da Secretaria de Cultura do Município e fica localizado no Centro do Município. Conta com quatro espaços, a Casa de Cultura Ney Alberto, o Quintal das Artes, o Teatro Sylvio Monteiro e a Biblioteca Cial Brito.

Apesar de ainda hoje ser um espaço pouco conhecido na cidade, minha mãe me levava para visitar o espaço assim que ele foi aberto ao público. Um dos espaços que mais me atraia era a Biblioteca, que tinha um espaço dedicado aos livros infantis e computadores, equipamento que eu não tinha em casa.

Anos mais tarde, já cursando a Graduação em Produção Cultural, tive a oportunidade de estagiar no espaço. Nele desenvolvi uma série de atividades educacionais, artísticas e culturais. Dentre elas, uma colônia de férias com crianças estudantes de escolas públicas municipais. Nela pude oferecer atividades, supervisionadas pela minha diretora, que foram o primeiro contato de algumas daquelas crianças com a leitura. Atividades de contação de histórias e criação de pequenos livretos eram as que mais desenvolviam a criatividade e promoviam a interação das crianças entre si e com a leitura.

Hoje em dia, trabalhando novamente num espaço público, tenho acesso ao Complexo frequentemente e continuo realizando tais atividades. A última delas e que considero como de grande relevância foi o Tour Literário, atividade da II Semana Municipal de Incentivo à Leitura e à Escrita em que grupos de cerca de 30 alunos fizeram visitas guiadas simultâneas pelo espaço e participaram de diversos tipos de atividade.

Visitar exposições, assistir uma peça de teatro, frequentar um espaço de leitura, são apenas alguns dos exemplos do que pode ser realizado no espaço, porém acredito que atividades como essas que realizei e descrevi são de grande importância para a formação dos alunos, além de estimular a criatividade e gosto pelo meio artístico.

Uma narrativa rica, que resgata suas memórias de infância e as relaciona com as reverberações que a possibilidade de frequentar esse local teve em sua construção de mundo. A partir daí, ela conseguiu desenvolver diferentes atividades no local, em momentos diversos de sua atuação no mesmo, e analisar como poderia abarcar as vivências dos mundos dos alunos com as possibilidades de vivências no espaço.

A fala de Sandra aborda uma realidade, infelizmente, ainda presente na vida da população brasileira, o racismo, e analisa meios para que o espaço cultural analisado possa ser uma ferramenta de combate à opressão.

por Sandra dos Santos - 26 Mai 2019 - Bom, primeiramente escolhi o “Museu Marinheiro João Candido”, porque vejo situações atuais parecidas e traço um paralelo de tantas injustiças, imposições, poder dos dominantes, que ainda acontece em nosso país. No Museu Marinheiro João Candido conta a história de sua trajetória, uma pessoa de nome de batismo João Candido Felisberto nascido no dia 24 de julho 1880 que foi de extrema importância para o Brasil que lutou contra a desigualdade social e racial. Foi titulado como “Almirante Negro”, pois não satisfeito com que aconteciam dentro da Marinha do Brasil, os maus-tratos e castigos físicos resultaram devido às faltas graves cometidas a qualquer tipo de deslize ou até sem motivos. Um verdadeiro descaso e injustiças contra os marujos atuantes na época no ano de 1910. (...) O trabalho seria uma visita agenda[da], feita com os alunos no espaço. Um exercício de conscientização, de pesquisa, e de cidadania. Nunca devemos deixar de lutar por nossos direitos. Um espaço de aprendizado, de conhecer personagens que não baixaram a cabeça, mas lutou com garra em conquistar uma luta que até hoje ainda persiste, luta social, racial e cultural.

A narrativa relaciona a importância dos espaços culturais serem vetor educacional para reverberar a vivência na e da cidade, na luta por uma cidade mais justa e plural, em que todos possam exercer sua cidadania e efetivamente vivenciarem seu direito à cidade.

Em um território onde se diz que tudo falta, podemos ver a potência que sobra. Sobra arte, sobra criatividade, sobre cultura, sobra mobilização, senso crítico, troca, garra, vontade, compartilhamento, afeto e tantas ações positivas que vislumbramos nesse espaçotempo de formação conjunta. Nossa compreensão do processo só nos incentiva a esperançar por melhores formas de existir nesses espaços tão sacrificados, por anos, pelo poder público. Que nossos escritos provoquem possíveis leitores a esperançar em seus territórios também, agindo pela mudança. Para uma educação-mundo, uma educação sem fronteiras, mas com asas.

REFLEXÕES FINAIS

Os ensinamentos de Paulo Freire nos auxiliam a refletir sobre nossas práticas educativas e buscar, constantemente, a partir dos mundos dos estudantes, de suas culturas, de suas identidades e de suas significações em seus territórios, construir junto a eles um mundo mais plural e justo. As leituras de suas obras, as vivências no campo de pesquisa e as narrativas dos praticantes originaram três noções que foram desenvolvidas ao longo do artigo: existência problematizadora que modifica o mundo, docência que respeite os saberes dos educandos e esperançar um novo mundo.

As relações socioculturais construídas na e com a cidade contribuem para fazer da educação uma constância, possibilitando trocas de informações e construções de conhecimentos para além dos muros das escolas. As construções desenvolvidas ao longo do curso FIC Formação docente para comunicação, cultura e arte analisadas demonstraram que considerar os diversos espaços culturais, artísticos, comunicacionais e de lazer da cidade, sejam eles institucionalizados ou não, são meios para potencializar as experiências citadinas, consequentemente, as experiências educativas.

No caso dos espaços da Baixada Fluminense, historicamente marginalizados e vistos como locais de carência, as experiências e narrativas dos praticantes mostraram a potência das cidades e de suas populações. Pensando que a educação pode mudar esse mundo injusto e desigual, precisamos reforçar junto à população da Baixada Fluminense sua potência, seu poder de desconstrução, construção e reconstrução do que está posto, fundamental para alcançar dignidade e justiça social.

REFERÊNCIAS

ALVES, N. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa; ALVES, Nilda (org.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. 3ª ed. Petrópolis: DP&A, 2008, p.13-38.

ARDOINO, J. Para uma pedagogia socialista. Brasília: Editora Plano, 2003.

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Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro do Programa Institucional de Incentivo à Produção Científica, Tecnológica e Artístico-Cultural (PROCIÊNCIA) e pelo Programa Institucional de Incentivo às Atividades de Extensão (PRÓ-EXTENSÃO) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
2 Adotamos a forma de inscrita reunindo palavras inspiradas em Alves (2008), para quem a escrita conjunta dos termos atua como um posicionamento contra a ciência moderna que separa as palavras como semelhantes, mas opostas entre si.
3 “Termo de Certeau (1994) para aquele que vive as práticas/táticas cotidianas” (ALVES, 2008, p. 10).
4 Baixada Fluminense é uma denominação tanto geográfica quanto política. No que concerne a uma classificação mais relacionada às características geográficas, é composta pelos municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Japeri, Queimados, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Sua denominação política tende a limitar sua área aos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados e Mesquita, todos ao norte da cidade do Rio de Janeiro, compondo sua região metropolitana. Em comum, esses municípios são caracterizados pela carência de infraestrutura urbana, baixa taxa de escolaridade de seus habitantes e altos índices de violência.
5 A formação é um processo que não se explica, deve ser compreendido. “Interessado em descrever para compreender, o pesquisador fenomenológico sempre está interrogando: o que é isto? No sentido de querer apreender o fenômeno situado e o que o caracteriza enquanto tal” (MACEDO, 2010, p. 18).
6 Assumimos o conceito de dispositivo a partir de Ardoino (2003), para quem os dispositivos são modos e meios utilizados pelos sujeitos para expressar noções necessárias ao pesquisador para compreender os fenômenos.
7 Grande parte da obra de Paulo Freire foi lida por uma das autoras durante o curso de extensão Paulo Freire em tempos de distanciamento social, ministrado por Aristóteles Berino pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a quem agradecemos pelas conversas e inspirações.
8 Optamos por não selecionar os estudantes participantes, mas por deixar que todos os inscritos no curso se sentissem à vontade para participar da pesquisa ou não, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido autorizando o uso de suas produções e narrativas textuais, imagéticas ou audiovisuais na conversa com os dados e na disseminação dos resultados das pesquisas. Agradecemos muitíssimo pela entrega e por darem vida a essa pesquisa, suas reflexões e provocações são as grandes motivações para continuarmos investigando e formando.
9 O curso é composto por oito componentes curriculares, sendo eles: Educação on-line, Saberes pedagógicos, Educação e cultura, Vivências docentes I, Vivências docentes II, Educação e comunicação, Arte-educação e Seminário de comunicação, cultura e arte. Neste quadro, são apresentadas as atividades dos dispositivos de pesquisa que estão sendo discutidas neste artigo. Vale ressaltar que além dessas atividades relatadas, os praticantes eram apresentados a mais atividades e materiais.
10 “Usamos aqui o termo ‘interfaces’ para todos os aparatos materiais que permitem a interação entre o universo da informação digital e o mundo ordinário.” (LÉVY, 1999, p. 37)
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