Artigos

A profissão docente: uma abordagem a partir da formação continuada

The teaching profession: an approach from the continuing education

Enseñanza y formación continua: un compromiso con el ejerciciode la profesión

Reginaldo Leandro Placido
Instituto Federal Catarinense (IFC), Brasil
Ivonete Telles Medeiros Placido
Universidade Regional de Blumenau (FURB), Brasil
Simão Alberto
Instituto Federal Catarinense (IFC), Brasil

A profissão docente: uma abordagem a partir da formação continuada

Olhar de Professor, vol. 25, pp. 01-20, 2022

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepción: 18 Julio 2020

Aprobación: 03 Abril 2022

Resumo: Este trabalho aborda a profissão docente a partir da formação continuada na perspectiva da práxis educativa, enquanto formação reflexiva. A temática fundamenta-se em reflexão teórica, balizada em pesquisa bibliográfica que permeia o diálogo com teóricos clássicos da educação contemporânea, sobretudo que apresentam questões sobre a formação da identidade docente na relação com a formação continuada. Nesse sentido, este texto problematiza a discussão da formação pedagógica, chamando a atenção para a valorização da práxis docente, as iniciativas dos sujeitos (educador e educandos) e o saber-fazer pedagógico, bem como o resgate da identidade da profissão docente. Indica, ainda, que a formação contínua dos professores deve ser assumida pelas políticas públicas, como importante estratégia no âmago da profissão docente e do compromisso da escola.

Palavras-chave: Formação de docentes, Formação continuada, Práxis docente, Mundo do trabalho, Identidade profissional.

Abstract: This work approaches the teaching profession from the point of view of continuing education from the perspective of educational praxis, as a reflexive formation. The theme is based on theoretical reflection, based on bibliographic research that permeates the dialogue with classic theorists of contemporary education, especially who present questions on the formation of teacher identity in the relationship with continuing education. In this sense, this text problematizes the discussion of pedagogical training, drawing attention to the valorization of teaching praxis, the initiatives of the subjects (educator and students) and pedagogical know-how, as well as the rescue of the identity of the teaching profession. It also indicates that the continuing training of teachers must be taken over by public policies, as an important strategy at the heart of the teaching profession and the school’s commitment.

Keywords: Teacher training, Continuing education, Teaching praxis, World of work, Professional identity.

Resumen: Este artículo aborda la profesión docente desde la formación continua del profesorado desde la perspectiva de la praxis educativa como formación reflexiva. El tema se fundamenta en la reflexión teórica, a partir de investigaciones bibliográficas que permean el diálogo con teóricos clásicos de la educación contemporánea, en especial aquellos que plantean interrogantes sobre la formación de la identidad docente en relación a la educación permanente. En ese sentido, el presente texto problematiza la discusión de la formación pedagógica, llamando la atención sobre la valorización de la praxis docente, las iniciativas de los sujetos (educador y educandos) y el saber hacer pedagógico, así como el rescate de la identidad de la profesión docente. También señala que la formación permanente de los docentes debe ser asumida por las políticas públicas como uma importancia estratégica en el seno de la profesión docente y del compromisso de la escuela.

Palabras clave: Formación docente, Formación en curso, La enseñanza de la praxis, Mundo del trabajo, Identidad profesional.

Introdução

Neste artigo, o cerne da discussão é a formação continuada de docentes, enquanto sujeitos comprometidos com o saber e o fazer pedagógico, a partir do exercício da sua profissão. Nesse caso, é prudente pontuar que a reflexão e discussão desta temática nasceu a partir de uma comunicação, cuja origem está em diálogos iniciados no Educere/PUCPR/2009 e promovidos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Em continuidade à apresentação, os autores têm produzido reflexões em torno da problematização da formação continuada e da práxis docente, sendo que em boa medida, as referências textuais e teóricas daquela comunicação foram contempladas e mantidas neste texto.

A insistência pela discussão sobre a formação docente continuada, reforça a compreensão de que a ausência de uma boa e sólida formação profissional pode contribuir para o fracasso da profissão docente. Essa ausência, por conseguinte, torna evidente a desvalorização, podendo, inclusive, frustrar o professor e promover nele o desencanto, uma realidade que pode prejudicar a formação de sua identidade profissional. Assim, é necessário que o docente compreenda que o exercício de sua profissão constitui-se em espaço de um permanente labor profissional, embora se reconheça que a linha divisória entre o trabalho docente e a formação continuada seja virtual e tênue.

A docência é, de fato, uma atividade complexa. Não obstante, na maioria das vezes, exige do profissional da educação decisões imediatas e ações não previstas e, por isso, nem sempre há tempo suficiente para o distanciamento e para o desenvolvimento necessários à reflexão de uma atitude analítica e crítica do fazer e da identidade docente. Pode-se, no entanto, dizer que nem sempre o docente consegue se apropriar de sua prática como lugar de formação continuada. Assim sendo, fica perceptível a complexidade e a gravidade oriundas da crise que se manifestam na exigência em identificar os saberes diversificados e as formas necessárias que propiciam base sólida à docência, que possam implicar em uma formação continuada, também nos espaços da atuação profissional docente. Destarte, uma formação continuada sólida é requerida, pois permite que docentes fundamentem sua prática pedagógica em uma perspectiva teórica e prática, de modo a oportunizá-los poder reconhecer- se em constante formação, tendo seu próprio local de atuação profissional como exercício primevo. Em se tratando do mundo do trabalho4, eminentemente excludente e competitivo, recomenda-se que a formação continuada de docentes seja condição sine qua non para e no exercício da profissão, pois a aproximação com o cotidiano escolar, convence que ainda a “escola gira em torno dos professores, de seu ofício, de sua qualificação e profissionalismo” (ARROYO, 2008, p. 19).

A fundamentação teórica deste trabalho pautou-se no diálogo com autores que dedicaram e/ou se dedicam ao estudo da formação continuada, como Freire (1996), Lüdke e Boing (2007), Pereira e Martins (2002), Tardif (2010), Vazquez (2011) e Veiga (2008). Assim, foi possível estabelecer uma profícua e inquietante discussão sobre a construção da identidade profissional de docente, abordando sobre a formação continuada e o cotidiano da prática docente como uma oportunidade para repensar a práxis educativa, mas também, de lidar com as repentinas e sucessivas mudanças que ocorrem no mundo de trabalho, cada vez mais excludentes e competitivas e, por fim, discutir a relação que existe entre adoção da pedagogia emancipatória e a superação de paradigmas conservadores da educação.

A discussão sobre a formação docente, que constitui o objeto deste artigo, trouxe à baila uma valiosa contribuição, pois permite discutir a profissão, a partir do escopo sobre a prática pedagógica inovadora e emancipatória. Cabe aqui refletir até que ponto, ao desempenhar à docência, apenas se replica práticas ou se inova neste processo? Em que momento é possível refletir, perceber e se apropriar das inovações, que advém da prática diária? Como discutido no corpo deste trabalho, a formação continuada, além de capacitar o professor no desempenho do exercício de suas atividades, é aqui compreendida como atividade imanente da profissão docente, contribuindo para sua valorização e deve ser encarada, nas políticas públicas, como ação estratégica na educação.

Docência, identidade profissional e o exercício da atividade docente em um mundo de trabalho cujas mudanças são imprevisíveis e sucessivas

O docente, enquanto profissional da educação, está inserido em um mundo de trabalho, cujas mudanças são constantes e imprevisíveis. Trata-se de mudanças, talvez, necessárias, porém, não planejadas, por isso, causam instabilidade no exercício da docência. Como manter vivo o compromisso docente com a profissão escolhida? De fato, a velocidade desenfreada de mudanças que ocorrem no âmbito da educação é inevitável.

Mesmo em meio a abruptas mudanças, é necessário reconhecer que o processo de construção da identidade profissional está incorporado no habitus social que envolve experiências sociais do campo da profissão a ser exercida, no sentido de se criar e executar estratégias individuais e coletivas dos determinantes e julgamentos da própria profissão. Pimenta (2000, p. 19), por exemplo, diz que uma “identidade profissional se constrói a partir da significação social da profissão, da revisão constante dos significados sociais da profissão, da revisão das tradições”. Nessa perspectiva, Pimenta (1996) assevera que a identidade docente se constrói com base no significado que cada professor dá para sua profissão, enquanto autor e ator, conferindo à atividade docente, no seu cotidiano, seu modo de situar-se no mundo, de suas representações e de sua prática docente. Nessa perspectiva, é possível conceber que os docentes são agentes ativos, cujas responsabilidades consistem em construir a própria prática e identidade profissional, sem se olvidarem que estão em interação com os demais e imersos nas limitações da escola. Assim, o habitus social docente é um dos elementos que fomenta a prática docente, portanto, nela fica evidenciada a formação continuada.

Desse modo, o processo de formação continuada, trata efetivamente de um processo contínuo e imbricado na identidade docente. Pode-se afirmar que formação contínua e identidade docente são “irmãs siamesas”, difíceis de separar. Por essa razão, deve-se envidar esforços que priorizem a formação profissional, pois a ausência de uma formação pode constituir-se em uma das causas que contribuem para a desvalorização da profissão docente e, consequentemente, estimular o desencanto pela profissão e dificultar a identidade profissional.

Diante do exposto, relegar a formação continuada a segundo plano, certamente, tende a ampliar as deficiências do processo formativo, tanto o inicial como o continuado e, por conseguinte, suscitar “nos docentes o medo da extinção da profissão ou o receio de desvio de sua natureza, de seus verdadeiros fins e objetivos”, afirmam Pereira e Martins (2002, p. 114). Dessa forma, a formação continuada do professor pode contribuir em muito para o fortalecimento e desenvolvimento da identidade profissional do mesmo, “[...] para evitar o risco de se tornar um mero executor das políticas emanadas de órgãos estatais” (LÜDKE; BOING, 2007, p. 3).

No que tange à socialização profissional, Lüdke e Boing (2001, p. 3) são da opinião de que “a formação inicial e o trabalho do professor [são] como bases para a construção de sua identidade profissional”. Ao se concordar com Lüdke e Boing, diz-se que não basta apenas a titulação da formação, já que a identidade profissional é um exercício de busca e de luta que se dá pelo exercício da própria profissão. Aliás, segundo Nóvoa,

[...] identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão”. Para tanto, vale observar que “a construção de identidades passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional” (NÓVOA, 1992, p. 16).

Nessa linha de pensamento, é “evidente que a identidade do professor está em constante transformação”, diz Veiga (2008, p. 18). Razão pela qual seu desenvolvimento deve valorizar os significados presentes na cultura, em que o profissional da educação está inserido. Pereira e Martins (2002, p. 131) reforçam essa compreensão, afirmando que a identidade docente “é construída no cotidiano, a partir da trilogia dos saberes específicos, saberes docentes e experiências adquiridas dentro e fora da sala de aula, nos desafios enfrentados e superação no exercício da sua função [...]”. Assim, considerando que a tarefa do professor tem como característica ser um trabalho interativo, a dificuldade de trabalhar com os saberes formalizados sugere contribuir para o aperfeiçoamento da prática docente e formação de professores. Na perspectiva de Paro (1999), essa construção não ocorre isoladamente, pois a vida enquanto expressão viva da existência humana, exige que se faça a conexão entre o ser humano e a cultura. Ademais, o docente, sujeito do processo ensino- aprendizagem, está inserido no contexto de uma cultura com símbolos e valores próprios a serem respeitados. Segundo Paro (1999, p. 109):

Na construção histórica do homem mediante a apropriação da herança cultural, o homem mantém contato com a natureza e com seus semelhantes, produzindo conhecimento, valores, técnicas, comportamentos, arte, tudo, enfim, que podemos sintetizar com o nome do saber historicamente produzido.

No que tange, ainda, sobre a construção da identidade profissional do professor, Pimenta e Anastasiou demonstraram certo apreço e admiração pela valorização do significado social e cultural, por isso, sem se omitirem, se manifestaram, dizendo:

A identidade profissional se constrói, pois, com base na significação social da profissão, na revisão das tradições. Mas também com base na reafirmação de práticas consagradas culturalmente que permanecem significativas [...]. Constrói também pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor, confere à atividade docente em seu cotidiano, em seu mundo, situar-se no mundo, em sua história de vida, em suas representações, em seus saberes, em suas angústias e anseios, no sentido que tem em vida o ser professor (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 77).

Sob esse ponto de vista e considerando o compromisso que o docente deve assumir com a educação, vale reforçar que uma qualificação profissional sólida, quando contextualizada com a realidade social dos sujeitos envolvidos no processo (educador e educandos), pode colaborar na consolidação dos ideais do professor que, por conseguinte, visam modificar o país e as pessoas que nele se encontram. Essa relação é possível, pois ainda se acredita na capacidade de o professor ser como um canal para transformar o meio em que vive, por ser “um sujeito consciente de seu papel político, capaz de problematizar a realidade e atuar na construção de uma sociedade justa e democrática”, escreve Lopes (2008, p. 82). Consciente do seu papel social, o professor pode envidar esforços para contribuir para a reflexão da superação da passividade e do conformismo, que tanto fragilizam o empenho da atividade docente, passando, inclusive, a enfrentar com mais determinação e confiança, os desafios profissionais.

Quando se trata a educação como prioridade, certamente, a formação continuada passa a ser valorizada e, assim, propicia aos docentes, uma prática pedagógica advinda de uma qualificação profissional, que os coloca em contato direto com a realidade social em que estão inseridos. Nessa dinâmica, é possível encontrar elementos necessários que permitam construir e valorizar a identidade profissional docente. Assim, a formação de docentes não pode ser entendida como sendo uma mera atualização dos conteúdos da disciplina que lecionam e, muito menos, os métodos de ensino a seu dispor. É necessário superar essa perspectiva de formação continuada conteudista e utilitarista; é preciso permitir que os professores se envolvam com a formação docente de qualidade, e que os faça compreender que manter uma relação mútua entre as experiências anteriores e as experiências do processo formativo contribui para a superação dos paradigmas conservadores da educação.

Quanto à construção da identidade da profissão docente é importante reafirmar que ela se constrói na significação social da profissão e na forma como o professor se relaciona com as transformações culturais. Sendo dessa forma, o docente tem o dever e a preocupação de reconhecer que, assim como o mundo está em constante mudança, a sua profissão também não está isenta dessa dinâmica, aliás, a identidade profissional docente não está balizada apenas na formação inicial. Não obstante, Delors (2004), adverte:

[...] o mundo no seu conjunto evolui tão rapidamente que os professores, como, aliás, todos os membros das outras profissões, devem começar a admitir que sua formação inicial não lhes basta para o resto da vida: precisam se atualizar e aperfeiçoar os seus conhecimentos e técnicas ao longo de toda a vida (DELORS, 2004, p. 162).

Partindo dessa premissa, a formação continuada de docentes não pode ser confundida como mero treinamento, mesmo porque, o professor não é uma espécie de máquina que executa instruções previamente elaboradas ou que apenas replica formatos prontos (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021). Para contribuir com a discussão da temática, Marcelo Garcia (1992, p. 47), afirma que “a linha de investigação sobre pensamentos do professor ensinou-nos que os professores não são técnicos que executam instruções e propostas elaboradas por especialistas”. Ao se concordar com essa mesma linha de pensamento, é importante observar que

uma política de desvalorização do professor prevalecendo às concepções que o consideram como um mero técnico reprodutor de conhecimentos, um monitor de programas pré-elaborados, um profissional desqualificado, coloca à mostra a ameaça de extinção do professor na forma atual (PEREIRA; MARTINS, 2002, p. 113).

Com base no exposto, vale ressaltar que o professor é, de fato, o protagonista da sua própria profissão, pois sua formação profissional é um processo de desenvolvimento individual, destinado a adquirir ou aperfeiçoar capacidades (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021, p. 36). Assim, a formação docente requer “equilíbrio entre competência na disciplina ensinada e competência pedagógica e deve ser cuidadosamente respeitado” (DELORS, 2004, p. 162). Nesse sentido, não se pode discutir a formação de docentes e a preservação de sua identidade profissional, relegando a formação continuada destes profissionais a um segundo plano. Não obstante, o temeroso desafio que envolve os profissionais da educação os obriga a se empenharem na busca de uma formação sólida e permanente, colocando-os na condição de eternos aprendizes, ou seja, assumindo o compromisso com o aprender a aprender.

A formação permanente e a práxis educativa: a oportunidade ímpar de repensar a prática docente emancipatória

A escolha em trazer o sentido de práxis para a discussão sobre formação docente parte de outras pesquisas realizadas (ALBERTO; PLACIDO; PLACIDO, 2021; PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2020, 2021), alicerçadas a partir da concepção de Vazquez (2011). Conforme abordado por Vazquez (2011, p. 202), o conceito de práxis pode ser compreendido como uma atividade prática que faz e refaz coisas, isto é, transmuta uma matéria ou uma situação (ALBERTO; PLACIDO; PLACIDO, 2021). Nesse contexto, pode-se afirmar que, no termo práxis, cabem todos os campos ou áreas culturais e as obras, porque é “o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais o sujeito ativo (agente) modifica uma matéria-prima dada” (VAZQUEZ, 2011, p. 221). Entretanto, cabe considerar que práxis refere-se a uma atividade conscientemente orientada e refletida, capaz de gerar novas atividade ou produto, pode “[...] ser uma nova partícula, um conceito, um instrumento, uma obra artística ou um novo sistema social” (VAZQUEZ, 2011, p. 223).

Ainda na perspectiva de Vazquez (2011, p. 267-305), torna-se viável compreender práxis como sendo uma ação que resulta, mas também é resultante da atitude teórica e reflexiva compreendida como prática social transformadora. Assim, pode-se dizer que o sentido de práxis não pode ser reduzido ao fazer prático, destituído de reflexão teórica. Tampouco não é possível afirmar que a práxis reveste-se apenas de pura teorização, pois na práxis, a relação entre teoria e prática são indissociáveis. Aliás, teoria é a descrição de tudo que ocorre na prática, enquanto prática é o resultado ou concretude, isto é, a exploração do extraído mediante a escrita. Conforme indica Saviani “a prática é a razão de ser da teoria, o que significa que a teoria só se constituiu e se desenvolveu em função da prática que opera, ao mesmo tempo, como seu fundamento, finalidade e critério de verdade” (SAVIANI, 2007, p. 3). Portanto, para que a formação continuada se consolide é fundamental que a prática e a teoria caminhem juntas, aliás, “a prática igualmente depende da teoria, já que sua consistência é determinada pela teoria”, completou Saviani (2007, p. 3).

Compreender a realidade sustentada na reflexão teórica é, de fato, condição para a prática transformadora, ou seja, trata-se da práxis em seu sentido lato. Assim, cabe observar que a atividade transformadora é, então, atividade informada teoricamente. Nesse aspecto, colocam-se em questão posições rotineiramente afirmadas ao nível do senso comum, da refutação da teoria e da centralidade da prática, ou seja, de contraposição teoria-prática, como bem expõe Vazquez (2011, p. 237-8):

[...] entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação; tudo isso como passagem para indispensável para desenvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da realidade ou antecipação ideal de sua transformação.

Entretanto, considerando que o ato educativo é um esforço pedagógico realizado por formas de intervenções reais, o ato educativo é uma prática transformadora em suas relações concretas na construção de conhecimentos socialmente significativos. Assim, toda ação docente de intervenção pedagógica, ou das relações docentes, pode ser compreendida como uma forma de práxis. Como no ato educativo aquele que ensina também aprende, a práxis é também modificadora das próprias relações e, portanto, ressignificadora dessas relações de forma reflexiva e reiterativa. Podendo, nessa e dessa prática, acontecer a construção e inovação dos saberes.

Nessa linha de raciocínio, Nóvoa (1995, p. 26) assevera que a “[...] troca de experiências a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar simultaneamente, o papel de formador e de formando”. Entretanto, deve-se reconhecer que, na prática docente, o professor tem a oportunidade de refletir sobre o labor pedagógico e, consequentemente, direcioná-la segundo a realidade que atua, na perspectiva de que a construção do conhecimento possa ser direcionada aos interesses e necessidades dos estudantes.

Isto implica em afirmar que a prática docente pode ser entendida como um espaço próprio de formação, onde o professor deve trazer reflexões críticas que enriqueçam sua prática docente. De fato, o exercício do pensamento reflexivo da práxis docente é um dos pontos que desperta a atenção, portanto, pode ser entendido como sendo também espaço de formação continuada e permanente.

Não é nenhuma novidade que a discussão sobre a formação continuada de docentes ainda domina vários debates no campo da educação, todavia, em alguns casos, as discussões sobre a temática não prosperam, pelo fato de o conceito sobre formação continuada em si, não estar bem delimitado (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2020). Talvez, isto ocorra porque, na maioria das vezes, o significado da expressão formação continuada se restringe à participação de docentes nos cursos de pós-graduação, em especial, lato sensu e stricto sensu ou qualquer atividade de caráter formativo oferecido pelas instituições escolares, ou assumidos por iniciativa dos próprios professores. A esse respeito, Gatti (2008, p. 4), afirma:

A formação continuada seria uma formação complementar dos professores em exercício, propiciando-lhe a titulação adequada a seu cargo, que deveria ser dada nos cursos regulares, mas que lhe é oferecida como um complemento de sua formação, uma vez que já está trabalhando na rede.

Se partir do princípio de que a profissão de docente suscita desafios imprevisíveis a vencer, é fundamental que o professor participe de cursos de atualização, ainda que no formato de seminários, congressos, fóruns e palestras que focam sua área de atuação, de modo a incrementar conhecimentos profissionais. Em face dessa realidade, Veiga (2008, p.14), esclarece: "A docência requer formação profissional para seu exercício: conhecimentos específicos para exercê-lo adequadamente ou, no mínimo, aquisição das habilidades e dos conhecimentos vinculados à atividade docente para melhorar sua qualidade”.

Embora comumente se prestigie como aspecto da formação continuada os cursos de formação (presencial ou a distância), é importante compreender que essa perspectiva assume a educação continuada como algo exógeno à prática docente, portanto, com necessidade exclusiva de agente externo que tenha o poder de carimbar uma certificação formal. Muito embora esse aspecto da formação continuada seja válido e necessário, ele não pode ser excludente de outras formas de acontecer a formação continuada. Portanto, é importante atentar para a figura do professor, como agente de sua própria formação, e valorizar o saber refletido de sua experiência como aspecto contínuo de sua formação (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021, p.40).

No que se refere à formação continuada, Nóvoa (1995) diz que a formação se constrói por meio da reflexividade crítica sobre as práticas e de construção permanente da identidade pessoal. Assim, estar em formação continuada implica que a pessoa do professor tenha um profundo desejo de formar-se, isto é, um envolver-se completamente. Segundo Nóvoa, “estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional” (NÓVOA, 1995, p. 25). Independentemente da compreensão que se tenha a respeito do conceito, deve-se admitir que a formação continuada fortalece a prática docente do professor no cotidiano.

A formação continuada pode ser entendida como acontecendo no exercício da profissão docente, ou seja, emergir da sua prática em sintonia com a reflexão teórica que a sustenta e a avalia. Por essa razão, a formação profissional de professores exige, de fato, uma fundamentação teórica explícita. Portanto, divorciá-la da prática constitui um perigo. Se assim for entendida, a prática se torna o “fundamento e referência da verdade da teoria que a reflete, e a teoria se converte em órgão de representação e instrumento de orientação da práxis” (SCHMIED-KOWARZIK, 1983, p. 21). A partir disso é possível compreender que as estratégias de ensino, bem como o aprendizado, ocorrem por meio da relação entre o professor e aluno, considerando todas as variáveis envolvidas, e que essas relações ocorrem no exercício cotidiano e na prática do fazer docente (PLACIDO et al., 2018).

Diante da exposição, resta esclarecer que a prática docente traz consigo desafios a serem superados a cada instante. Sendo dessa forma, o professor, enquanto profissional da educação, deve priorizar o aprender a aprender, isto é, colocando-se com humildade na condição de um permanente aprendiz e em uma postura reflexiva do seu fazer pedagógico. Nesse aspecto, o processo formativo torna-se inacabado, vinculado à história de vida dos sujeitos em permanente processo de formação, que proporciona a preparação profissional. No que concerne à formação continuada, vale ainda observar que o professor não pode se deixar influenciar por vãs ilusões, pensando que a simples participação em atividades de formação continuada, seja em cursos ou na prática docente, solucionará todos os problemas profissionais de um dia para o outro (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021).

Retomando a discussão que envolve a necessidade de reconhecer o espaço de trabalho docente, resta esclarecer que é nesse espaço de trabalho que “[...] o professor transforma pedagogicamente pelos processos cognoscentes, na sua ação prática, a matéria enquanto conteúdo a ser comunicado”, argumenta Campos (2007, p. 38). Além disso, é na relação entre educador e educando, em que as mediações nessa vivência são múltiplas, que o saber e o conhecimento se constroem coletivamente no exercício de fazer a aula (ALVES; PLACIDO, FARIA; ROHR, 2019, p. 581). Ainda é possível afirmar que a prática docente se constitui em um território em que se demarca o campo privilegiado da formação docente. Segundo Campos (2007, p. 40), “É a referência física, ou propriamente à área física e situacional do exercício profissional do professor na sua atividade clássica de ensino”. Finalmente, o espaço da atuação profissional do docente é o campo e pode se constituir, também, lugar de sua própria formação.

Com base no conhecimento construído a partir das leituras realizadas, para que o local de atuação profissional seja espaço de formação docente, se faz necessário que os processos educativos sejam pautados em uma relação dialógica entre educador e educando. Não obstante, “é por meio do diálogo que professor e aluno juntos constroem o conhecimento, chegando a uma síntese do saber de cada um” (HAYDT, 2006, p. 59). De igual modo deve ser espaço onde o professor possa criar condições que lhe permitam refletir sobre sua atuação pedagógica e constituir-se enquanto profissional. Nessa dinâmica, sem sombra de dúvida, o professor aprende novos saberes relacionados à formação humana. Tardif (2010, p. 11), por exemplo, afirma que “[...] o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional e com as suas relações com os alunos”. Com essas palavras, Tardif reforça a ideia de que aprender é também um processo vinculado à docência e é um processo integrado às relações humanas estabelecidas na sala de aula. Na mesma lógica, Masetto (1994, p. 46) reforça essa importante parceria entre os sujeitos do processo ensino-aprendizagem, dizendo: “Toda a aprendizagem precisa ser embasada em um bom relacionamento entre os elementos que participam do processo”.

Tomar a prática docente em sala de aula, considerando todas as relações e transformações que circundam esse fazer profissional, como um exercício de aprendizagem e, portanto, de formação continuada, carrega em si uma rica oportunidade de re/pensar a práxis e identidade docente (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021). Assim, espera-se que o docente enquanto mediador do processo ensino-aprendizagem assuma uma postura reflexiva e que considere sua prática na relação com o meio e os outros agentes de sua profissão. De fato, a construção do conhecimento coletivo permite que os sujeitos do processo possam alcançar êxitos. Como observa Nóvoa (1995, p. 27), as “[...] práticas de formação que tomem como referência as dimensões colectivas contribuem para a emancipação profissional e para a consolidação de uma profissão que é autónoma na produção dos seus saberes e dos seus valores”. E, para isso ocorrer é necessário que uma práxis inovadora surja e permita o diálogo com as concepções igualmente progressistas e inovadoras, em um convite à superação de paradigmas conservadores da educação.

A superação dos paradigmas conservadores da educação e a adoção da prática pedagógica emancipatória

Quando se faz menção a paradigmas educacionais, tem-se por suposto que são modelos, padrões que permitem a explicação de certos aspectos da realidade, como sendo uma construção humana, sujeitos a transformação, partindo de um posicionamento que leve a outras soluções, carecendo, além do entendimento, da esperança de que é possível a mudança (COSTA NETO, 2003, p. 36).

A adoção desse posicionamento, deve-se pelo fato de se saber que a leitura sobre os paradigmas enriquece as reflexões, pois as contribuições advindas do debate são significativas e demonstram que

[...] o paradigma desempenha um papel ao mesmo tempo subterrâneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente (MORIN, 2004, p. 26).

Se considerar importante essa tese, então, torna-se possível afirmar que os paradigmas funcionam como regulamentos e regras, por meio dos quais o ser humano faz uma leitura da realidade, julgando e classificando os fenômenos e “os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles” (MORIN, 2004, p. 25).

Compreender a corrente pedagógica à luz do paradigma epistemológico contribui para uma leitura do contexto e da construção do pensamento de determinada corrente em si, bem como é importante entender a influência no sistema educacional e discutir, no caso dessa reflexão sobre formação continuada de professores e as práticas da profissão docente. Feita essa observação, é preciso explicitar que o paradigma newtoniano-cartesiano na educação, parte do princípio de que os fenômenos podem ser compreendidos se forem reduzidos às partes que os constituem. Trata-se de um paradigma educacional caracterizado por uma visão mecanicista e materialista que se ocupa em fragmentar o conhecimento. A esse respeito, Behrens e Oliari esclarecem que o paradigma newtoniano-cartesiano insiste na separação da mente e matéria, e na fragmentação do conhecimento em diversas partes para buscar maior eficácia (BEHRENS et al., 2007, p. 59). Eis aí, talvez, um dos motivos pelos quais o paradigma newtoniano-cartesiano trouxe à educação uma herança que fragmenta o conhecimento e supervaloriza a visão racional, propondo a primazia da razão sobre a emoção. Esse tipo de compreensão do mundo propõe uma divisão do conhecimento em áreas, cursos e disciplinas. Ao mesmo tempo, reduz a prática pedagógica do professor e fragiliza a construção da própria identidade docente. Prova disso, é que não é incomum o docente, ao referir-se sobre o exercício de sua profissão, fazer questão de especificar a área de sua formação como um objeto que o delimita e o define; este não é mais professor, mas professor de tal disciplina/conhecimento.

Diante do exposto, se evidencia que o paradigma newtoniano-cartesiano apresenta-se bem definido enquanto orientador de práticas docentes, cujas ideias e pressuposições são muito bem delineadas. Ele pauta-se em estruturas mais gerais e determinantes, não só na forma de conceber a educação, mas também, na maneira de agir pedagogicamente. Essa concepção e prática está impregnada de maneira visível nas estruturas curriculares, nas cátedras e nos cursos de formação que, às vezes, supõem o conhecimento tão fragmentado que torna necessária a exoticidade de ações interdisciplinares, ou seja, reconhecendo a fragmentação do conhecimento na própria arquitetura curricular (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021).

Para contrapor-se a essa perspectiva fragmentadora do conhecimento, faz-se necessário recorrer à perspectiva sistêmica ou holística, pois esta, instiga o docente a adotar uma didática que contempla o desenvolvimento global do conhecimento e não fragmentá-lo em partes isoladas. Todavia, para se tornar um professor que se enquadre na visão sistêmica de ensino, é necessário que o professor tenha disposição de mudar sua maneira de pensar, ou seja, pensar na aprendizagem é pensar no todo e não, simplesmente, nas partes de forma isoladas. Segundo o entendimento de Costa Neto (2003, p. 30), que acredita que “isso significa que os educadores deverão mudar o seu modo de pensar fragmentário, o qual deverá tornar-se holístico”. Nesse contexto, a escolha recai na figura do professor reflexivo, que encontra, na práxis, uma oportunidade para também compor a formação continuada e sua identidade profissional. Assim, o professor reflexivo tem como desafio à formação integral de si e do indivíduo que educa, pois o ser humano é um ente indivisível que “participa da construção do conhecimento não só pelo uso da razão, mas também aliando as emoções, os sentimentos e as intuições”, completa Behrens (2007, p. 62).

Partindo dessa compreensão, pode-se, no entanto, afirmar que o professor reflexivo enquanto sujeito do processo ensino-aprendizagem consegue analisar criticamente os contextos históricos, sociais, culturais e organizacionais, nos quais ocorre sua práxis docente, podendo, inclusive, intervir nessa realidade e transformá-la. Nessas condições, cabe ao professor reflexivo transformar o seu processo ensino-aprendizagem, tornando-o dinâmico, criativo e global. Dessa forma, na atual conjuntura faz-se jus que o sistema de ensino-aprendizagem seja compatível e proporcione, ao docente, espaço para a formação continuada, a partir da práxis docente. Sob esse prisma, a educação, segundo a concepção emancipatória de ensino, deve pautar-se na reflexão crítica e criativa, isso porque “reflexão e educação são temas indissolúveis ou, pelo menos, deveriam ser, isto é, a escola deve ser, necessária e essencialmente, o lugar geográfico da construção e do diálogo crítico” (GHEDIN, 2002, p.146). Diz mais Ghedin (2002, p. 147):

O processo reflexivo não surge por acaso. Ele é resultado de uma longa trajetória de formação que se estende pela vida, pois é uma maneira de se compreender a própria vida em seu processo. Não é algo impossível de realizar-se. É difícil porque a sociedade em que nos encontramos, de modo geral, não propicia espaços para a existência da reflexão e da educação, em particular não raro reduz-se à transmissão de conteúdos mais do que à reflexão sobre eles e suas causas geradoras.

Em uma análise sobre o sistema educacional brasileiro, é possível dizer que a concepção da educação emancipatória pode muito contribuir para uma prática pedagógica equilibrada, pois além de pautar-se no diálogo, considera tanto educador como educando sujeitos na ação educativa. Ambos são parceiros na construção do conhecimento coletivo, portanto, estão em constante interação e mediação no processo ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, vale considerar que o processo de interação e mediação só é possível por uma prática educativa dialógica por parte dos educadores, se estes acreditam no diálogo como um fenômeno humano capaz de mobilizar o refletir e o agir dos homens e mulheres. Portanto, requer uma prática de ensino que difere da educação bancária, cujo propósito é ceifar a rebeldia intelectual do educando e, consequentemente, “anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não a criatividade, satisfaz aos interesses dos opressores: para esses, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação”, argumenta Freire (2005, p. 69).

Quando o pensamento newtoniano-cartesiano fragmenta o conhecimento, sem dúvida, tende a alimentar o paternalismo no sistema de ensino, pelo fato de os oprimidos receberem o nome de simpáticos e “assistidos” (FREIRE, 2005). Todavia, para se erradicar este sistema educacional que fortalece a divisão do conhecimento, do todo por partes, o professor enquanto educador deve empenhar-se em propor mudanças, isto é, ser ousado em buscar o novo. Mas há de se considerar aqui, a promoção de ambiente favorável ao distanciamento metodológico do objeto, para que essa inovação aconteça. Fora disso, o sistema educacional na contemporaneidade corre sérios riscos de entrar em colapso, pois ao se recusar em promover mudanças significativas na educação, estaria legitimando erros oriundos da educação bancária, em que o educando não passa de um mero objeto do processo ensino- aprendizagem. Segundo essa prática de ensino, o educando deve aprender calado, negando-lhe o direito de questionar o mundo onde está inserido. Nessa concepção de ensino, tem-se a falsa ideia de que o educando não possui conhecimento algum, capaz de contribuir para a prática educativa. Em contrapartida, quando o desejo dos sujeitos do processo for o de buscar uma educação libertadora, é de fundamental importância que o educador tenha “a coragem de romper consigo mesmo para poder instaurar uma nova compreensão da ação e dela imprimir uma nova ação reflexiva, tornando possível a ampliação do poder de autodeterminação” (GHEDIN, 2002, p. 148).

Sendo dessa maneira, torna-se imperioso que a educação contemporânea propicie, aos sujeitos do processo ensino-aprendizagem, espaços de reflexão crítica e criativa, como condição necessária à socialização e humanização. Vale registrar que nenhuma mudança acontece de maneira abrupta, movida por ameaças, rupturas ou imposições. Mudar com sucesso exige conquista, compromisso e envolvimentos dos sujeitos. Nesse particular, tem-se a impressão de que o professor reflexivo compreende que a formação continuada e efetiva ocorre quando há disposição, mobilização e paciência para romper com o modelo da pedagogia conservadora, cujos vestígios ainda estão presentes no interior de muitas escolas espalhadas pelo Brasil afora, fazendo suas vítimas no campo educacional, denominados de analfabetos funcionais. Trata-se de sujeitos que, embora tenham concluído algum grau escolar, não demonstram possuir comprovação de saberes requeridos em sua área de formação. Contrária a essa prática educativa, Behrens (2007, p. 55) adverte que essa prática pedagógica “pode limitar nossa visão de mundo quando homens e mulheres resistem ao processo de mudanças e insistem em se manter no paradigma conservador”. Nessa mesma linha de pensamento de Behrens (2007), se é forjado a entender que, na sociedade em que se vive, cujas transformações são abruptas e repentinas, a escola está sendo inexoravelmente atingida por um modelo pedagógico anacrônico que compromete a prática docente e, consequentemente, sua atividade profissional.

Nessas condições específicas, como bem lembra Veiga (2008, p. 15), a “formação assume uma posição de inacabamento, vinculada à história de vida dos sujeitos em permanente processo de formação, que proporciona a preparação profissional”. Ora, concordando-se com Freire (1996) – que define o termo formação como sendo o “ato de dar forma a algo; ter a forma; pôr em ordem; fabricar; tomar forma; educar” (ApudVEIGA, 2008, p. 15) –, esse modelo de educação, cuja filosofia de trabalho copia e repete os conteúdos tal como foram expostos, não serve de base para uma educação emancipatória.

Diante das inúmeras e repentinas mudanças às quais o sistema educacional brasileiro está sujeito, não se pode negar que a educação contemporânea passa por um processo caracterizado por desafios que causam, aos envolvidos no processo ensino-aprendizagem, perplexidade e inquietação diante do enfraquecimento das políticas educacionais. Entretanto, para enfrentar tais desafios se faz necessária uma formação sólida de docentes, capaz de corresponder às expectativas e as necessidades de uma sociedade em crise, porém, que almeja por mudanças. Do ponto de vista de Veiga (2008, p. 14) isso,

[..] implica compreender a importância do papel da docência, propiciando uma profundidade científico-pedagógica que capacite [os professores] a enfrentar questões fundamentais da escola como instituição social, uma prática social que implica as ideias de formação, reflexão e crítica (VEIGA, 2008, p.14).

Pelas razões já elencadas, não é possível continuar a realizar mais do mesmo. O momento é, de fato, tenso e crucial, portanto, requer uma mudança urgente. Aliás, no atual processo crítico de mundialização socioambiental, compreender as realidades que o sistema educacional exige é um conhecimento complexo do todo. Cardoso (1995, p. 36), por exemplo, ajuda a compreender a indivisibilidade da realidade em que se está inserido, dizendo: “O universo não é uma máquina composta por finalidade de objetos, mas por um todo dinâmico indivisível”. Assim, “a nova consciência holística só será desenvolvida com a percepção da interdependência entre os vários planos de totalidade [...] pessoal, comunitária, social, planetária e cósmica. Tudo o que ocorre em um dos planos repercute nos demais” (CARDOSO, 1995, p. 36).

Sem dúvida, a discussão sobre a temática gravita em torno da indivisibilidade do homem, defendida pelo paradigma sistêmico da complexidade, como afirma Behrens (2007, p. 62): “Uma visão de homem indiviso, que participa da construção do conhecimento não só pelo uso da razão, mas também aliando as emoções, os sentimentos e as intuições”. Entretanto, os problemas atuais não podem mais ser entendidos isoladamente, pois, segundo Capra (1996, p. 23), quanto “mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes”.

Em suma, uma educação contrária a domesticação dos participantes do processo, deve empenhar-se no resgate de uma prática educativa emancipadora, que considere a práxis do professor, a escola como lugar desta práxis e, naturalmente, deve reconhecer esse exercício como educação continuada na construção da identidade docente (ALBERTO; PLACIDO; PLACIDO, 2020). Assim, torna-se urgente um exercício de rebeldia paradigmática e crítica, pois “a superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosa, pelo contrário continua a ser curiosidade, se criticiza” (FREIRE, 1996, p. 31). Ao terem consciência dessas condições, os docentes se preparam para trilharem com segurança o caminho da construção de sua identidade profissional, bem como incentivam seus educandos a proceder de igual modo.

Considerações finais

A discussão apresentada neste artigo buscou criar a oportunidade para problematizar, mais uma vez, a formação continuada, bem como destacar a práxis como uma via dessa formação, visando fortalecer a categoria profissional que a todo instante busca alternativas para repensar a formação continuada. Ademais, os processos de formação profissional, inicial ou continuada, são extremamente importantes, pois permitem ao professor exercer seu ofício com mais eficácia e com mais possibilidade de desenvolvimento no mundo do trabalho. Entretanto, ficou também perceptível que a educação contemporânea não é para amadores, ou seja, assumir a docência na atual conjuntura requer formação docente coesa e equilibrada.

Portanto, entende-se que a práxis do professor – esse saber-fazer contínuo, progressivo e refletido que valoriza o aprender a aprender e envolve saberes específicos, pedagógicos –, é construída nos espaços da experiência docente cotidiana. Relaciona-se ao fazer pedagógico refletido permanentemente, visando dar o significado à aprendizagem construída coletivamente entre os envolvidos. Assim, destaca-se, aqui, a importância de uma atitude reflexiva do fazer pedagógico.

Outrossim, no decorrer da discussão ficou evidente que, no sistema de educação atual, pesa sobre os ombros do professor a responsabilidade pelas transformações requeridas pela sociedade, culpabilizando, quase que exclusivamente, a ação docente na escola (PLACIDO; ALBERTO; PLACIDO, 2021). Delors (2004, p. 115), por exemplo, em lugar de atribuir a culpa ao professor, ressalta a excessiva cobrança exigida dos professores e esclarece seu ponto de vista, nesses termos: “A competência, o profissionalismo e o devotamento que exigimos dos professores fazem recair sobre eles muita responsabilidade. Exige-se muito deles e as necessidades a satisfazer parecem quase ilimitadas”.

Considerando que o mundo do trabalho, na atualidade, seleciona profissionais, espera-se que o professor tenha consciência das possibilidades e das limitações da escola no contexto das profundas mudanças que o mundo vive e das perspectivas dos alunos nele inseridos. Feita a observação, cabe aqui, a advertência de Tardif e Lessard (2005, p.143) que o “aluno está mais consciente de que a escola não é o único lugar onde ele aprende”. Para Tardif, no mundo atual, o processo de aprendizagem não acontece apenas nas escolas-estruturas. Ou seja, os jovens dos dias atuais percebem que a escola só colabora com uma parte de seu aprendizado, que não é o único lugar onde se pode aprender. Isso implica afirmar que os alunos têm consciência de que “se aprende na escola, sim, mas também se aprende muito fora dela” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 143).

Assim, somente uma formação profissional sólida e contínua consegue garantir ao professor a construção de uma prática pedagógica da emancipação e o resgate de sua identidade profissional. Para Nóvoa (1992, p. 16), “a identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão”. Partindo dessa lógica, pode-se afirmar que a construção de identidades sempre passou por um processo complexo, portanto, cada um deve apropriar-se dele, considerando o sentido da sua história pessoal e profissional. Como assevera Nòvoa (1992, p. 16): “É um processo que necessita de tempo. Um tempo para fazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças”.

Diante do exposto, entende-se que no contexto mundial contemporâneo globalizado, para corresponder às necessidades da sociedade atual, a profissão docente exige que os envolvidos assumam a condição de eternos aprendizes, isto é, submeter sua profissão à atualização contínua e permanente. Isso implica dizer que uma sólida formação profissional facilita o envolvimento do professor na luta pela valorização do magistério e, consequentemente, dispor-se a construir sua identidade profissional em resgate da imagem positiva da categoria, que vem sendo desdenhada no seio da sociedade brasileira. Mas também significa que, considerando o hábitus e a práxis da profissão docente, é necessário que o professor esteja em constante formação.

Considerando que, no contexto das profundas transformações a que o processo educativo está sujeito, a formação contínua dos professores deve ser assumida como importância estratégica no âmago da profissão docente e do compromisso da escola. Não obstante, a eficácia da escola, enquanto lócus da formação continuada, será principalmente, resultado da forma com a gestão percebe a escola e o exercício da prática docente como oportunidades reflexivas de formação. Em suma, a formação continuada de professores não pode ser negligenciada em hipótese alguma, e deve considerar o lugar de exercício (a escola) e a práxis docente, em um exercício contínuo de superação de paradigmas e construção de saberes necessários à profissão docente. Como discutido no corpo deste trabalho, a formação continuada, além de capacitar o professor no desempenho do exercício de suas atividades, é compreendida como atividade imanente da profissão docente, contribuindo para sua valorização e deve ser encarada nas políticas públicas como ação estratégica na educação.

Referências

ALBERTO, S.; PLACIDO, P. L.; PLACIDO, I. T. M. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA PRAXIS DOCENTE / CONTINUING TEACHER TRAINING: AN APPROACH FROM THE TEACHING PRAXIS. Revista Dynamis, [S.l.], v. 27, n. 2, p. 82-100, set. 2021. ISSN 1982-4866. DOI: http://dx.doi.org/10.7867/1982-4866.2021v27n2p82-100.

ALBERTO, S.; PLÁCIDO, R. L.; PLÁCIDO, I. T. M. A formação docente e o tecnicismo pedagógico: um desafio para a educação contemporânea. RIAEE–Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 15, n. esp. 2, p. 1652-1668, ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v15iesp2.13837. Acesso em: 27 mar. 2022.

ALBERTO, S.; TESCAROLO, Ricardo. A formação docente e a formação continuada. Curitiba, EDUCERE, 2009.

ALVES, L. M. S., PLACIDO, R. L., FARIA, F. P., ROHR, M. L. (2019). Retalhos de experiências exitosas em Educação Profissional e Tecnológica. Debates em Educação, v. 11, n. 24, 564-585. Disponível em: https://doi.org/10.28998/2175-6600.2019v11n24p564-585 Acesso em: 28 mar. 2022

ARROYO, M. Ofício de mestre, imagem e auto-imagem. Petrópolis: Vozes, 10ª ed., 2008.

BEHRENS, M. A. A evolução dos paradigmas na educação: do pensamento científico tradicional da complexidade. In: Revista Diálogo Educacional: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007.

CAMPOS, C. M. Saberes docentes e autonomia dos professores. Petrópolis: Vozes, 2007.

CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

CARDOSO, C. A canção da inteireza: uma visão holística da educação. São Paulo: Summus, 1995.

COSTA NETO, A.. Paradigmas em Educação no Novo Milênio. 2. ed. Goiânia: Kelps, 2003.

DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC UNESCO, 2004.

FIGARO, R. O mundo do trabalho e as organizações: abordagens discursivas de diferentes significados. Organicom, [S. l.], v. 5, n. 9, p. 90-100, 2008. DOI: 10.11606/issn.2238-2593.organicom.2008.138986. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/organicom/article/view/138986. Acesso em: 23 ago., 2022.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GATTI, B. A. Análise das políticas públicas para a formação continuada no Brasil, na última década. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 13, n. 37, 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/vBFnySRRBJFSNFQ7gthybkH/abstract/?lang=pt Acesso em: 20 mar., 2022.

GHEDIN, E; PIMENTA, S. G. (Orgs). Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia crítica. In: Professor reflexivo no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

HAYDT, R. C. Curso de didática geral. 8 ed. São Paulo: Ática, 2006.

LOPES, A. C.; MACEDO, E. Política de currículo no Brasil e em Portugal. Porto: PROFEDIÇÕES, 2008.

LÜDKE, M.; BOING, L. A. O trabalho docente nas páginas de educação & sociedade em seus (quase) 100 números. In: Revista Educação e Sociedade. Campinas: Unicamp, v. 28, n. 100 - Out. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/G5bNChB6MwkQCGk4SVRCBHG/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 15 mar., 2022.

MARCELO GARCIA, C. A formação de professores: novas perspectivas baseadas na investigação sobre o pensamento do professor. In: NÓVOA, A (coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

MASETTO, M. Didática: a aula como centro. São Paulo: FTD, 1994.

MEIRIEU, P. Aprender... sim, mas como? Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2004.

NÓVOA, A. (Org.). Vida de professores. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, Antônio. Os professores e sua formação. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

PARO, V. H. O conselho de escola na democracia da gestão escolar. In: BICUDO, M.A.V; SILVA JÚNIOR, C.A. (Orgs.). Formação do educador e avaliação educacional: organização da escola e do trabalho pedagógico. São Paulo: Unesp, v. 3, p. 109-118, 1999.

PEREIRA, L. L.S; MARTINS, Z. I. Oliveira. A identidade e a crise do profissional docente. In: Profissão professor: identidade e profissionalização docente. Brasília: Plano Editora, 2002.

PIMENTA, S. G. Formação de professores - Saberes da docência e identidade do professor. Revista da Faculdade de Educação. São Paulo, v. 22, n. 2, p. 72- 89, 1996. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfe/article/view/33579 Acesso em: 20 mar, 2022.

PIMENTA, S. G. Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 2000.

PIMENTA, S. G.; ANASTASIOU, L.G.C. Docência no Ensino Superior. São Paulo: Cortez, 2002.

PLACIDO, R. L., ALBERTO; PLACIDO S., MEDEIROS, I.V. A docência e a formação continuada: um compromisso no exercício da profissão. Revista Formação@Docente, Belo Horizonte: Editora Izabela Hendrix, v. 13, n.1, p. 30-53, 2021. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas-izabela/index.php/fdc/article/view/2161 Acesso em: 10 mar. 2022.

PLACIDO, R. L.; DE LUCCA, A. G.; SOUZA, G. C. Uma proposta didática para o ensino de química: a aplicação do jogo químicasa. Revista Formação@Docente, Belo Horizonte: Editora Izabela Hendrix, v. 10, n. 1, p. 89-110, 2018. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas-izabela/index.php/fdc/article/view/1682 Acesso em: 10 mar. 2022.

SAVIANI, D. Pedagogias: o espaço da educação na universidade. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 37, n. 130, 2007.

SCHMIED-KOWARZIK, W. Pedagogia Dialética: de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1983.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005.

SÁNCHEZ VÁZQUES, A. Filosofía de la praxis. Buenos Aires: Consejo Lationamericano de Ciencias Sociales - CLACSO: São Paulo: Expressão Populoar, 2011.

VEIGA, I. P. A Profissão docente: novos sentidos, novas perspectivas. Campinas: Papirus, 2008.

Notas

4 Neste texto optou-se pela expressão mundo do trabalho em lugar de mercado de trabalho, considerando as discussões no campo da Educação Profissional e Tecnológica, contexto imediato da ação docente dos autores. Nesse sentido, compreende-se o mundo do trabalho “como o conjunto de fatores que engloba e coloca em relação a atividade humana de trabalho, o meio ambiente em que se dá a atividade, as prescrições e as normas que regulam tais relações, os produtos delas advindos, os discursos que são intercambiados nesse processo, as técnicas e as tecnologias que facilitam e dão base para que a atividade humana de trabalho se desenvolva, as culturas, as identidades, as subjetividades e as relações de comunicação constituídas nesse processo dialético e dinâmico de atividade” (FÍGARO, 2008, p. 92).
HTML generado a partir de XML-JATS por