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SOCIODRAMA COMO ESTRATÉGIA DE PROMOÇÃO DE SAÚDE EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO
Talita Andrade Leite; Walter Lisboa; Giceli Carvalho Batista Formiga
Talita Andrade Leite; Walter Lisboa; Giceli Carvalho Batista Formiga
SOCIODRAMA COMO ESTRATÉGIA DE PROMOÇÃO DE SAÚDE EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO
SOCIODRAMA AS A HEALTH PROMOTION STRATEGY IN A UNIVERSITY HOSPITAL
SOCIODRAMA COMO ESTRATEGIA DE PROMOCIÓN DE LA SALUD EN UN HOSPITAL UNIVERSITARIO
Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 30, pp. 1-13, 2022
Federacao Brasileira de Psicodrama
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RESUMO: A residência multiprofissional qualifica profissionais para o serviço na saúde pública, mas o tipo de atuação e os desafios podem gerar impacto à saúde mental, desde sintomas ansiosos e depressivos a transtornos mentais. O objetivo deste trabalho foi apresentar uma estratégia de intervenção sociodramática com residentes de um hospital universitário. Realizou-se uma reflexão a partir da interlocução entre um relato de experiência e da literatura. Durante a intervenção, os residentes mostraram-se receptivos à proposta sociodramática e relataram experiências de crescimento pessoal, acolhimento e fortalecimento do vínculo entre os colegas. Com isso, evidencia-se o potencial de promoção de saúde do sociodrama no contexto hospitalar, alinhado à Política Nacional de Humanização, ao propiciar acolhimento, crescimento pessoal e relações de trabalho mais harmônicas.

PALAVRAS-CHAVE: Internato e residência, Promoção de saúde, Prática psicológica.

ABSTRACT: The multiprofessional residency qualifies professionals for acting in public health system, but the kind of activities and challenges can have an impact on mental health, from anxious and depressive symptoms to mental disorders. This paper aimed to present a sociodramatic intervention strategy with residents in a university hospital. A reflection based on the interlocution between an experience report and literature was conducted. During the intervention, the residents were receptive to the sociodramatic proposal and reported experiences of personal development, welcoming, and strengthening of bonds among colleagues, culminating with a collective catharsis. Thus, the health-promoting potential of sociodrama in the hospital context, aligned with the National Humanization Politics, is evidenced by providing welcoming, personal development and more harmonious work relationships.

KEYWORDS: Internship and Residency, Health promotion, Psychological practice.

RESUMEN: La residencia multiprofesional cualifica a los profesionales para la acción en sistema de la sanidad pública, pero el tipo de actuación y los desafíos pueden repercutir en la salud mental, desde los síntomas ansiosos y depresivos hasta los trastornos mentales. El objetivo de este trabajo fue presentar una estrategia de intervención sociodramática con residentes de un hospital universitario. Se realizó una reflexión a partir de la interlocución entre un relato de experiencia y la literatura. Durante la intervención, los residentes se mostraron receptivos a la propuesta sociodramática y relataron experiencias de crecimiento personal, acogiendo y fortaleciendo el vínculo entre compañeros. Con esto, se destaca el potencial de promoción de la salud del sociodrama en el contexto hospitalario, en línea con la Política Nacional de Humanización, al brindar acogida, crecimiento personal y relaciones laborales más armoniosas.

PALABRAS CLAVE: Internado y residencia, Promoción de la salud, Prática psicológica.

Carátula del artículo

ARTIGO ORIGINAL

SOCIODRAMA COMO ESTRATÉGIA DE PROMOÇÃO DE SAÚDE EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

SOCIODRAMA AS A HEALTH PROMOTION STRATEGY IN A UNIVERSITY HOSPITAL

SOCIODRAMA COMO ESTRATEGIA DE PROMOCIÓN DE LA SALUD EN UN HOSPITAL UNIVERSITARIO

Talita Andrade Leite
Universidade Tiradentes, Brasil
Walter Lisboa
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
Giceli Carvalho Batista Formiga
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia, Brasil
Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 30, pp. 1-13, 2022
Federacao Brasileira de Psicodrama

Recepção: 27 Agosto 2021

Aprovação: 20 Abril 2022

INTRODUÇÃO

A residência multiprofissional em saúde se configura como uma pós-graduação lato sensu em caráter de educação em serviço a partir da cooperação e responsabilidade dos setores da saúde e educação. Tem seus parâmetros definidos pela Leinº 11.129 (Brasil, 2005) e pela Portaria Interministerial nº 1.077 entre o setor da Educação e da Saúde (Brasil, 2009), e é uma oportunidade de formação profissional ao mesmo tempo em que pode ser um campo para germinar novas práticas em saúde.

O objetivo da residência é qualificar jovens egressos de diversas áreas profissionais da saúde, entre elas psicologia, serviço social, fisioterapia, nutrição e enfermagem, a fim de inseri-los no mercado de trabalho, preferencialmente em campos do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse tipo de especialização é pautado nos princípios do SUS, abarcando a realidade sociocultural, territorial e epidemiológica dos usuários, assim como as particularidades regionais. A atuação é exercida em regime de dedicação exclusiva, com carga horária de sessenta horas semanais (distribuídas entre atividades práticas e teóricas), duração mínima de dois anos e sob coordenação docente-assistencial.

Nesse contexto de trabalho, os residentes apresentam índices de estresse elevados, com importante impacto na qualidade de vida (Rocha et al., 2018). É também observada a ocorrência de exaustão emocional, sintomas psicológicos, insatisfação com a própria saúde e baixa realização pessoal entre residentes de diversas categorias profissionais de saúde (Aoyagi et al., 2020; Dóro et al., 2018; Silva & Moreira, 2019). Consequentemente, tais problemas levam a números elevados de ansiedade, depressão, sintomas psicóticos (Pinheiro et al., 2021) e síndrome de burnout nessa população, o que evidencia a gravidade do problema, uma vez que tais dados já podem ser constatados no primeiro ano de residência (Cavalcanti et al., 2018).

Portanto é necessário intervir nessa situação de sofrimento, refletindo a educação e a formação em saúde e possibilitando às diversas áreas de atuação uma perspectiva ampliada do contexto em que o sujeito está inserido. As condutas que dedicam promoção da saúde, atividades de reabilitação psicossocial e prevenção de adoecimentos e agravos possibilitam aperfeiçoar as formas de existir dos indivíduos (Carvalho & Ceccim, 2006).

Ao longo da convivência entre os residentes, foi possível observar sentimentos de tristeza, estresse, queixas de cansaço físico e mental e insatisfação com a pós-graduação. A percepção dessas mudanças no comportamento, no humor e nas expressões despertou o interesse em realizar uma intervenção junto aos residentes.

Bleger (1984) menciona o conceito de higiene mental como a aplicação dos saberes, exercícios técnicos e recursos psicológicos para lidar com as expressões psíquicas do adoecimento e da saúde enquanto fenômeno coletivo. O autor prioriza a proteção da saúde, defendendo a promoção de melhores condições de vida para os indivíduos, sejam usuários ou profissionais da instituição.

Dentre as possibilidades de intervenção psicossocial, é possível encontrar na teoria socionômica, criada por Jacob Levy Moreno, o sociodrama, que se estabelece como um potente dispositivo de intervenção social que possibilita reflexões e mudanças na vida desses sujeitos. O sociodrama consiste em uma técnica dramática realizada com grupos, ancorada nas definições da antropologia vincular e da teoria dos papéis. Permite enxergar conflitos e pensar medidas de resolução bem como desenvolver os relacionamentos intergrupais. Um modo de aplicação do sociodrama se dá no âmbito institucional, configurando uma prevenção primária (Menegazzo et al., 1995), conforme constatado por Godoy e Riquinho (2018) que executaram um sociodrama como modo de amenizar as ansiedades de estudantes de pós-graduação.

O objetivo deste estudo é apresentar uma estratégia de intervenção institucional com residentes multiprofissionais baseada no sociodrama, com a finalidade de proporcionar acolhimento e promoção de saúde mental. Para isso, foi necessário descrever como a residência impacta na qualidade de vida do profissional, refletindo ainda sobre a atuação da psicologia da saúde embasada pela teoria socionômica diante do sofrimento mental do residente.

MÉTODOS

O método utilizado foi o relato de experiência e a revisão bibliográfica narrativa. A partir do primeiro, foram descritas a experiência e as técnicas utilizadas e, a partir do segundo, o qual consiste em estudos que caracterizam o estado da arte de um assunto definido, foi possível discutir as intervenções realizadas (Rother, 2007).

Local

A intervenção foi realizada em um hospital universitário no Nordeste do Brasil, com cerca de 120 leitos e 70 consultórios ambulatórios que atendem pelo SUS. Conta com atuação de técnicos, profissionais do hospital e alunos de uma universidade federal, desde graduação, pós-graduação, residência médica e multiprofissional, nas seguintes áreas: enfermagem, nutrição, psicologia, serviço social, farmácia, odontologia, fonoaudiologia e fisioterapia.

Participantes

Participaram 43 residentes do primeiro e do segundo ano de uma residência multiprofissional, sendo 7 homens e 36 mulheres, com idades entre 22 e 30 anos. Os participantes são profissionais das áreas de psicologia, serviço social, fonoaudiologia, enfermagem, fisioterapia, nutrição, odontologia e farmácia, os quais aceitaram o convite para participarem da atividade de acolhimento aos novos residentes, não se configurando uma atividade obrigatória.

Procedimentos

Após a aprovação no processo seletivo, os residentes foram recepcionados em uma semana de acolhimento organizada pela instituição (gerência de ensino e pesquisa) e as coordenações dos programas de residência. Tal solenidade é comunicada previamente aos novos residentes. Nesse evento são apresentados preceptores, coordenadores, organização das áreas de atuação e panorama geral de como o período da residência transcorrerá. Além disso, é um momento destinado a integração e partilha de experiências entre os residentes do segundo ano (R2) e os recém-chegados, residentes do primeiro ano (R1).

A intervenção descrita nesse estudo consistiu em uma dessas atividades de recepção. Foi destinado um turno vespertino para proporcionar um momento de acolhimento aos R1 pelos R2. Além disso, por parte dos autores deste artigo, havia o desejo de proporcionar aos residentes, como um todo, um momento de recepção mais profundo, que possibilitasse um real acolhimento nessa etapa tão significativa de suas vidas, que é a inserção em uma pós-graduação como a residência.

A participação na ação descrita nesse trabalho foi voluntária, sendo garantido aos participantes o direito de recusa sem qualquer prejuízo no processo formativo ou na atuação na residência. Eles foram assegurados sobre a confidencialidade dos dados e os relatos presentes neste trabalho não possuem informações pessoais ou de qualquer natureza que permita a identificação dos profissionais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A emergência da necessidade de intervenção

A residência multiprofissional é estruturada de modo a substituir o modelo biomédico de formação aos profissionais para o SUS, propondo-se possibilitar a qualificação dos residentes a partir de práticas inovadoras que favoreçam os serviços de saúde pública. Entretanto alguns aspectos dessa pós-graduação podem reunir fatores de estresse, como pouco tempo para leituras, estudo, interações sociais e atividades extracurriculares (Serenari et al., 2019). Trabalho excessivo e atuação direta com a vida e a morte estão relacionados com o aparecimento de ansiedade e maior vulnerabilidade ao estresse ocupacional, principalmente entre os residentes multiprofissionais. Dessa forma, é possível que haja impactos negativos nas áreas pessoal, social, familiar e institucional desses indivíduos. Em virtude das implicações deletérias que o estresse ocasiona no ser humano, alguns sujeitos ainda conseguem dispor de estratégias de enfrentamento individuais que lhes auxiliam em sua rotina profissional, contudo não é o suficiente para prevenção e promoção de saúde ocupacional ao pensar coletivamente. O que evidencia a necessidade de um olhar mais atento e cuidadoso para a saúde mental, a fim de promover estratégias de proteção e minimização de possíveis agravos nessa população (Matos & Araújo, 2021; Teruya et al., 2021).

Além das atividades exercidas, outros fatores também podem proporcionar o adoecimento do residente: a ausência de experiência profissional anterior, a vivência de um duplo papel social (profissional/estudante) e a longa carga horária do programa. Os desafios encontrados na profissão e no processo de formação podem submeter os residentes ao estresse e, por sua vez, a ausência ou a não aplicação de recursos apropriados para diminuir ou extinguir esse sofrimento os expõe a quadros psicológicos mais agravantes, como o surgimento da síndrome de burnout, que foi identificada com maior predominância em jovens adultos (Cavalcanti et al., 2018).

Na perspectiva moreniana, o conceito de papel é compreendido a partir dos aspectos coletivo e individual, pois o papel é composto por modos interrelacionais, resultados da particularidade do indivíduo e de sua inclusão na vida social. O desenvolvimento de novos papéis para o ser humano é complexo, pois necessita de uma postura flexível para integrar as novas condutas e para se relacionar com os contrapapéis dos demais indivíduos. Outro conceito primordial é o da espontaneidade e da criatividade, considerado intrínseco ao ser humano, contudo ele deixa de sê-lo em função das adversidades do meio ambiente, as quais geram modelos de comportamentos estereotipados, fixos, identificados como conservas culturais ainda que em determinado momento tenha representado uma criação espontânea (Gonçalves et al., 1988).

De tal forma, o hospital, com o rigor dos seus processos institucionais, pode levar ao adoecimento de seus funcionários a partir do momento que o conduz a uma rigidez de papéis e não gera estratégias promotoras de saúde. Levando-se em conta os objetivos da residência de propor uma capacitação aos profissionais de saúde para atuarem de maneira ativa e inovadora em saúde, principalmente no SUS (Bernardo et al., 2020), torna-se relevante a proposta psicodramática de promoção de saúde mental aliada ao desenvolvimento da espontaneidade e da criatividade. Diante disso, a Revolução Criadora proposta por Moreno (citada por Gonçalves et al., 1988), é o projeto de reconquistar a criatividade e a espontaneidade por meio da eliminação de modelos de comportamentos padronizados, que provocam a automatização do ser humano. Assim, o residente pode exercer a espontaneidade com a adequação das suas ações a seus próprios papéis, relacionando-se consigo e com os outros de uma maneira saudável.

A partir das demandas observada nos R2, a atividade que antes seria de acolhimento ganhou novos contornos. Em poucas semanas, eles encerrariam oficialmente o primeiro ano da residência e começariam uma nova fase como R2, assumindo novos papéis e novas responsabilidades. Dessa forma, a intervenção grupal teve como objetivo acolher os residentes em sua fase de iniciação (R1) e finalização de ciclo (R2), como um rito de passagem: um momento que favorecesse a troca de experiências, partilha de sentimentos e legitimação das emoções.

A intervenção sociodramática

A atividade ocorreu antes do início do decreto de isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19. Teve aproximadamente duas horas e trinta minutos de duração, em uma sala de aula da própria instituição. A psicóloga assumiu o papel de diretora e conduziu o sociodrama com o apoio de duas psicólogas R2 que auxiliaram na organização dos materiais e dos registros fotográficos. Para os participantes, foi o primeiro contato com esse tipo de vivência. Assim, inicialmente, foram informados quanto ao sigilo dos conteúdos emergidos e da necessidade de respeitar o silêncio e a privacidade uns dos outros durante a atividade, o contrato terapêutico grupal.

Os residentes foram acolhidos, tiveram suas dúvidas atendidas e, em seguida, o sociodrama foi realizado em torno do conflito grupal: “A inserção na residência multiprofissional e os sentimentos emergentes dos residentes”. Essa temática foi proposta da diretora, a partir do que os R2 compartilhavam entre si, na rotina hospitalar, e pelo interesse de compreender as percepções dos novos profissionais (R1). Fleury e Marra (2010) esclarecem que o lugar do sociodrama permite a legitimação e a resolução do conflito, já que as atitudes demonstradas no movimento intersubjetivo grupal, especifica as diferenças e alteram as conservas culturais, o que possibilita a expansão das concepções coletivas a respeito de suas dificuldades.

Para Moreno, há na utilização do método sociodramático a consideração de toda a plateia enquanto agentes terapêuticos e protagonistas sociais. Ele tinha a convicção de que, ao expandir a subjetividade do indivíduo na partilha de suas emoções, impressões e histórias, estaria ampliando a interação e a capacidade desses indivíduos, procurando uma comunicação que fosse mais eficaz para eles próprios (Marra & Fleury, 2010). Intervenções grupais como a que foi desenvolvida com os residentes multiprofissionais têm funções psicoterapêuticas e socioterapêuticas. Elas proporcionam a autoconsciência e a reestruturação de papéis e relações sociais, promovem e liberam o potencial espontâneo-criativo do sujeito e do grupo, possibilitam soluções para problemas coletivos e auxiliam os participantes a entenderem seu papel na comunidade maior, estimulando-os à catarse de integração intergrupal e interpessoal (Figusch, 2010).

De acordo com Moreno (1940/2002), o ser humano eventualmente será confrontado com situações potencialmente capazes de desequilibrar áreas de sua vida, como: mente, cultura, físico e social. Diante disso, o ser humano vive constantemente à procura de artifícios que o qualifiquem a alcançar ou ampliar seu equilíbrio. A teoria moreniana afirma ainda que o ápice do tratamento de um cliente comumente acontece em cena, através da atividade psicodramática. Esse ápice é a catarse de integração, que constitui um caminho de integração dos vários conteúdos que vão sendo trabalhados. No âmbito grupal, ela promove a manifestação de emoções e sentimentos inerentes ao protagonista e que geram identificação pelos demais participantes, a partir da percepção de conteúdos que antes lhes eram distantes da consciência. Todos interesses, sentimentos e emoções que vinham sendo evitados ganham voz, integrando-se não só de cada um em relação a si mesmo, mas também com o grupo (Gonçalves et al., 1988).

Fonseca Filho (1980) afirma que, para Moreno, a terapia de grupo possui um compromisso tanto frente à humanidade quanto das ideologias religiosas e políticas. É um acontecimento vinculado à criatividade e à espontaneidade. O jogo pode ser considerado enquanto o começo da autocura e das terapias grupais. A cura no psicodrama é compreendida enquanto o resgate à espontaneidade. O próprio Moreno (1993/2008) alega que parte considerável do sofrimento humano se deve ao desenvolvimento insuficiente da espontaneidade. Ela, por sua vez, atua no presente, ou seja, aqui e agora, e estimula o sujeito no caminho de uma resposta adequada a um novo contexto, ou a uma nova postura frente a uma circunstância velha. Diante disso, a intervenção com os residentes foi executada baseada na teoria moreniana e teve, portanto, quatro etapas: aquecimento inespecífico, aquecimento específico, dramatização e compartilhamento.

Aquecimento inespecífico

O processo de aquecimento é uma manifestação estimável e direta da espontaneidade, podendo se produzir em diversas direções. Ele corresponde à primeira etapa do jogo dramático e tem a finalidade de conduzir os indivíduos à dramatização propriamente dita. Foi planejada uma atividade que auxiliasse os residentes a se distanciarem do ambiente externo e se concentrarem no aqui e agora. Pois tudo converge para o momento atual no contexto psicodramático. O presente é mais importante. E essa experiência torna-se um convite a um diálogo humano revolucionário (Fonseca Filho, 1980). A proposta moreniana é de investigar e atuar nas características do inter-relacionamento entre as pessoas, considerando o presente e as correntes afetivas tais como estão sendo transmitidas e captadas no aqui e agora (Gonçalves et al., 1988).

Dessa forma, em uma sala de aula, as cadeiras foram dispostas em formato de círculo para comportar os mais de quarenta participantes. À medida que os indivíduos entravam na sala, escutavam músicas do gênero pop, para situá-los em uma atmosfera descontraída. Com a chegada de todos, os participantes foram solicitados a ficarem de pé e carregarem consigo uma caneta ou um lápis. A maior parte das lâmpadas foram apagadas, restando apenas uma acesa; uma música instrumental suave começou a tocar, e, com o tom de voz baixo, foram dadas as seguintes consignas:

Peço que cada um de vocês comece a caminhar pela sala, em sentidos aleatórios, em um ritmo devagar. Perceba o espaço onde você está. Em silêncio, olhe para as pessoas que estão ao seu redor. Comece a observar como você está neste momento: qual a velocidade em que está caminhando? Como está o seu corpo? Sente que alguma área está mais tensionada? Experimente alongar, mexer o pescoço, os ombros. Preste atenção na sua respiração, inspire e expire devagar, lentamente. Sinta os seus pés, você está aqui e agora. Aos poucos vá diminuindo o ritmo da caminhada até parar, deixando um espaço no centro da sala (neste espaço foram colocadas folhas de papel).

Pela falta de experiências sociodramáticas anteriores, os participantes, em um primeiro momento, estranharam a atividade, com sorrisos e brincadeiras, mas aos poucos foram se permitindo experienciá-la. Após os primeiros minutos, os residentes foram mostrando maior concentração, com passos mais lentos e compassados, respiração mais relaxada, evidenciando condições de realizarem o aquecimento específico.

Aquecimento específico

Esse momento visa preparar o grupo para a representação dramática, tal qual um direcionamento para a cena. Em um ato socionômico coletivo, é possível acontecerem episódios em que o aquecimento adequado estimule os participantes a estarem em cena. Dessa forma, foi realizado um psicodrama interno, visando compenetrar os participantes, vinculando-os ainda mais à dramatização através de visualizações mentais (Monteiro, 2008; Ramalho, 2011).

A dramatização seria relacionada à vivência da residência multiprofissional, o que teria um potencial de desencadear conteúdos emocionais difíceis ligados à experiência no hospital, em virtude do grau de fragilidade de alguns participantes com essa temática, especificamente os R2, pois comumente compartilhavam esses conteúdos em suas rotinas. Procurou-se então, através do aquecimento, relembrar primeiramente vivências desafiadoras anteriores, que pudessem suscitar recursos emocionais fortalecedores para as atividades que seriam desenvolvidas em seguida. Ao trabalhar com psicodrama interno, é importante a riqueza de detalhes para que o participante possa imergir na cena construída. Pois se trata de uma ação dramática simbólica. O indivíduo imagina, observa e vivencia a ação, mas não a representa (Cukier, 1992). Assim, os participantes foram convidados a permanecerem em silêncio, fecharem os olhos e relembrarem a época em que estavam no colégio e todo o percurso acadêmico que fizeram até o momento atual:

Como era o seu colégio? Onde ele ficava? Imagine que você está no ensino médio, você e seus colegas conversam sobre o vestibular, sobre quais cursos querem fazer; os professores estão realizando as últimas aulas de revisões para o Enem. Você fez a prova e é aprovado na universidade, vibra e fica muito contente com essa conquista. Está no seu primeiro dia de aula. Novos amigos, lugar diferente, começa a conhecer as matérias da grade do seu curso. Já se passou o primeiro período, o segundo... o terceiro... Você descobre quais disciplinas tem mais afinidade e quais não gosta de jeito algum. Umas mais fáceis, outras difíceis. Chega o período do estágio, momento que você quis muito, mas que também lhe gera medo. São novas responsabilidades. O tempo vai passando e você pensa a respeito do tema do TCC, passa dias e noites escrevendo. Você está prestes a concluir a graduação, começa a refletir sobre o que fazer depois que se formar, pensa no mestrado, no mercado de trabalho, descobre sobre a residência e a possibilidade lhe desperta o interesse. Fez as provas finais da graduação, terminou o seu trabalho de conclusão de curso, estava ansioso com o dia da apresentação, foi aprovado pela banca e finalmente se aproxima o dia da colação de grau. Você está muito feliz, esperou por esse dia, recebeu seu diploma e agora está formado. Começa a se preparar para as provas de residência, empenha-se, estuda bastante, abdica de algumas coisas e é finalmente aprovado. Você foi aprovado na residência multiprofissional em saúde do adulto e idoso pela UFS, em Aracaju/SE, um momento de muita alegria. Você está aqui, no HU, na sua primeira semana de residência. Aos poucos vá abrindo os olhos e pegue um dos papéis que está no centro.

No aquecimento específico, os participantes foram mais receptivos, já não apresentaram comportamentos dispersivos que pudessem indicar resistência. Demonstraram autopercepção, pertencimento ao espaço, atenção focada no aqui e agora e abertura para interação entre os participantes. Algumas pessoas se emocionaram com a experiência do psicodrama interno, outras apresentaram maior concentração, indicando que o grupo estava devidamente aquecido e preparado para o momento seguinte: a dramatização. Figusch (2010) ratifica que a experiência da cocriação tem a potencialidade de fazer surgir a confiança em que dificuldades coletivas possam ser solucionadas por meio de uma procura coletiva por sua resolução; possibilitando mudanças essenciais na postura e no clima afetivo do grupo, assim como melhor entendimento através de cada componente, de seu próprio papel na comunidade maior.

Apresentação e dramatização

Após as atividades de aquecimento, o grupo se configura de forma única e assegura o pertencimento de seus membros, legitimando-os enquanto indivíduos independentes. Dessa forma, essa categoria participativa pode auxiliar na resolução de problemas habituais, promovendo a reestruturação de modos de vida diária intra- e extragrupal, em que os hábitos, princípios e tabus podem ser pontuados, favorecendo o reconhecimento e o aperfeiçoamento de cada um. Assim, possibilita o resgate dos vínculos socioafetivos e novas proposições de realidades diferentes (Fleury & Marra, 2005).

Compreender o movimento do grupo como o próprio protagonista amplifica as oportunidades de ressignificar os vínculos existentes e a afinidade entre os membros. Dessa forma, evidencia conflitos e estimula o desenvolvimento e a mudança dospapéis nos grupos. A estrutura sociodramática tem sido compreendida como promotora da união e do crescimentodos grupos sociais, colaborando na identificação e no fortalecimento dos recursos disponíveis, e na idealização e reelaboração desentidos baseados na representatividade do grupo (Marra & Fleury, 2010).

Considerando que o grupo já se encontrava aquecido, foi solicitado que cada pessoa escrevesse no papel uma palavra (sentimento, adjetivo, verbo...) que representasse a residência para si naquele momento, preferencialmente a primeira palavra que lhe viesse à mente. Drummond e Souza (2008) compreendem a espontaneidade como a capacidade de o indivíduo responder apropriadamente aos acontecimentos inesperados da vida, com a maior liberdade possível. Moreno define a espontaneidade como o Fator E, um atributo do sujeito, que nasce com ele, mas seu desenvolvimento é persuadido pelas imposições sociais a se reprimir e se ajustar nas conservas sociais daquilo que a população acredita ser o correto. A despeito da perspectiva recorrente do senso comum, espontaneidade na perspectiva moreniana não significa agir sem pensar, de forma impulsiva ou excessiva. Pelo contrário, constitui-se enquanto atuação a partir da quebra dessas conservas culturais, ou seja, significa criar a partir do que existe, concebendo novas maneiras de agir de forma que integre percepções, histórias, sentimentos e seja saudável para a psiquê do sujeito e ao exercício de seus papéis naquele determinado momento. Assim, na concepção moreniana, o indivíduo tem o direito de exercitar atos espontâneos.

Depois, os papéis com as anotações foram dispostos no centro da sala, de modo que pudessem ser vistos por todos. Pediu-se que cada residente observasse as palavras escritas e ficasse próximo daquela que lhe impactou afetivamente (poderia ser a sua ou não). À medida que as pessoas se aproximaram das palavras, foram formados seis subgrupos compostos por uma média de oito pessoas. As palavras que eram sinônimas ou que representavam algo parecido foram descartadas, para que só ficasse uma palavra por grupo. Os subgrupos que se formaram tiveram como palavra escolhida: crescimento, resiliência, persistência, evolução, desafio e sonho. Foram dados 15 minutos para que cada subgrupo conversasse sobre a vivência e formulasse uma apresentação que pudesse ser vista por todos (grupo maior) e que representasse a palavra escolhida (poderia ser uma cena, uma música, imagem corporal...). Em seguida, as cenas foram apresentadas.

  • Primeira cena – Crescimento: Um participante ficou no centro do círculo simbolizando uma semente e, ao seu redor, estavam as outras integrantes da equipe, as quais, à medida que se aproximavam da semente, ajudavam-na a crescer. A semente tornou-se um tronco e os demais membros os galhos, concebendo simbolicamente uma árvore.

  • Segunda cena – Resiliência: Um dos membros assumiu o papel de residente, ficou em pé com as mãos em posição de receber. Os demais componentes do grupo passavam pelo residente e depositavam em suas mãos papéis com os dizeres: “más relações interpessoais”, “carga horária excessiva” e “problemas pessoais”. Conforme o residente recebia esses fardos sua postura corporal se prostava. Ao final da cena ele estava encolhido no chão. Ao finalizar a dramatização, a diretora pediu que a equipe refizesse essa cena final, congelando-a. Buscando explorar a percepção e os sentimentos do protagonista residente, foi-lhe questionado sobre como era estar nessa situação e ele informou que não se sentia bem. A diretora perguntou à sua equipe o que poderia ser feito para ajudá-lo. O grupo respondeu que ele poderia buscar a sua rede de apoio, psicoterapia e intensificar seus hobbies. Em seguida, a fim de concretizar as possibilidades elencadas pelos participantes, a diretora solicitou que eles dramatizassem a oferta de ajuda ao residente em sofrimento. Os membros se aproximaram e ergueram-no pelo braço, de modo que um clima de grande alívio e conforto permeou os presentes. Esse grupo teve como drama principal o sofrimento psíquico do residente. Foi composto por mais R2 (6) do que R1 (2); portanto com profissionais com mais de um ano de atuação no hospital, corroborando o sofrimento psíquico destacado na literatura (Cavalcanti et al., 2018; Rocha et al., 2018).

  • Terceira cena – Persistência: Duas integrantes se posicionaram em lados opostos e entre elas formou-se uma barreira humana, composta pelos demais componentes do grupo, os quais se comprimiam entre si para não permitir que uma das integrantes resgatasse a que estava do outro lado. Após inúmeras tentativas e por diversas formas, uma das participantes atravessou a barreira.

  • Quarta cena - Evolução: Os membros ficaram lado a lado, estáticos, formando uma linha horizontal, e organizaram suas posições/altura conforme os degraus de uma escada que simbolizava o percurso de suas vidas. Cada pessoa segurou uma palavra que remetia a subida desse caminho: Enem, graduação, estágio, formatura, residência e reticências. Entretanto teve um membro que se moveu durante a encenação, ele esteve próximo a cada “degrau” e acompanhou-os de forma ascendente, mostrando sua palavra apenas no final. Após passar por todos os degraus, ele se posicionou no último e só então mostrou o nome do seu papel: Evolução. Solilóquios sobre a representação de seus papéis e os impactos deles na vida das pessoas foram solicitados com alguns componentes do grupo.

  • Quinta cena – Desafio: O grupo foi composto apenas por R1, que escolheram a palavra desafio. Uma componente desempenhou o papel de “um cesto de bola” [sic]. Ficou imóvel com as mãos à frente estendidas e cruzadas. À sua frente estava outro membro que se posicionou de modo a dificultar o acesso a esse “cesto”. Um pouco mais afastada, estavam duas componentes da equipe; enquanto uma tentava arremessar a bola no cesto, a outra se colocou em seu caminho, impedindo-a de atravessar, ou seja, dificultando ainda mais o percurso. Ao final da apresentação, contudo, a participante conseguiu enfim arremessar a bola dentro do cesto, ultrapassando todas essas dificuldades e driblando os empecilhos.

  • Sexta cena – Sonho: Representada através da seleção da música A Estrada (Cidade Negra, 1998), que foi colocada para o grupo escutar. Essa equipe foi a última a se apresentar. Ela proporcionou a finalização do momento de dramatização com o recurso da música.

As dramatizações corroboram a afirmação de Marra e Fleury (2010), que reconhecem que libertar a espontaneidade e a criatividade define a ação dramática. Esclarecer as particularidades de cada uma de suas funções intensifica as chances de desenvolver um conhecimento solidário necessário ao grupo dos participantes, com limites, finalidades e competências específicas.

Compartilhamento

O grupo é absoluto no processo do trabalho desde a resolução até a finalização. Frequentemente, dele desponta mais deum desfecho para o conflito. É papel do diretor estimular a encenação de todas as possibilidades, de forma que os fluxosde pensamentos dos subgrupos estejam retratados e que a catarse se amplie para além dos atores. E, ao final da dramatização, segue-se o compartilhamento das experiências individuais. É o percurso para a análise das inter- e intrarrelações, destacando a finalidade da atividade, porém despertando para a vida (além da ação). É a oportunidade para que cada integrante do processo compreenda a vivência no cotidiano. Além disso, o compartilhamento proporciona reflexões sobre o modo como a cena sensibilizou a cada participante do sociodrama (Drummond & Souza, 2008; Monteiro, 2008).

Dentre os conteúdos que emergiram nesse momento, foi possível observar nos relatos dos residentes a prevalência de: percepção de ganhos pessoais e profissionais, a relevância de dividir experiências e emoções, a dimensão de ser acolhido, o conhecimento mais profundo dos colegas, descoberta de fontes de apoio à residência e como todo o processo de compartilhamento culminou numa catarse coletiva.

Verificou-se no compartilhamento que todos os participantes foram além da descrição das atividades, expondo afetos, pensamentos e as cenas que mais lhe tocaram. Muitos se emocionaram, permitindo a exposição de suas vulnerabilidades. Tal atitude confirma a importância da integração grupal, pois o nível de sinergia que o grupo atingiu proporcionou uma sensação de segurança coletiva, possibilitando a partilha de conteúdos dolorosos (Drummond & Souza, 2008). A partir das trocas, os residentes puderam ter um conhecimento mais aprofundado dos colegas, principalmente os R1, pois aquele foi o primeiro contato entre eles, um momento de apresentação:

Eu me senti muito acolhida e de certa forma protegida. … Além de poder conhecer melhor os outros colegas

(R1).

Considero que o momento foi importante, porque nos fez perceber ganhos pessoais e profissionais, uma vez que o cansaço no final do primeiro ano da residência pode nos deixar desatentos às conquistas que tivemos. Particularmente, a atividade me levou a olhar de uma outra forma para o período em que decidi seguir o caminho da residência, deixando uma reflexão que foi além do momento da dinâmica. Além disso, compartilhar as experiências e emoções dos outros residentes, os novos e os que continuam, fez surgir um sentimento de renovação e motivação para os próximos desafios

(R2).

A natureza humana é constituída pela necessidade de relacionamento e pertencimento a um grupo, consolidando a emoção de ser aceito e estimado. Essa prioridade de se relacionar e pertencer se apresenta na vida pessoal e profissional do ser humano, pois o modo que o sujeito se relaciona é atravessado pelas suas características individuais. E a integração do todo promove a visão sistêmica (Drummond & Souza, 2008). Os residentes em geral se descobriram como suporte socioafetivo uns aos outros durante a jornada da residência. Assim como as afinidades de pensamento e os vínculos afetivos também ficaram evidentes durante a partilha. Não é fácil e costuma ser diferente descrever o processo que aproxima ou que repele as pessoas umas para as outras. A sucessão de sentimentos que se constituem é um processo considerado tele, a capacidade de estabelecer na relação com o outro, em pleno reconhecimento de si e desse outro, sem distorções. Isso nos conduz a outro conceito moreniano, o conceito de encontro, no qual se vive o momento em mútua compreensão, efeito da espontaneidade e da criatividade proporcionadas pelo vínculo télico, que emerge na ação (Moreno, 1966/2002). Além disso, foram observadas pelos integrantes as seguinte características pessoais e qualidades dos colegas com os quais trabalhavam:

Agora eu sei que tenho com quem contar e a quem recorrer em caso de dúvidas. Além de poder conhecer melhor os outros colegas

(R1).

A dinâmica também foi importante na criação de laços e construção de um espírito de grupo e união. Creio que bastante importante para o início e transcorrer dessa nova jornada. Para mim em particular, foi algo reconfortante e ao mesmo tempo uma certa forma de autoconhecimento e reflexão interna. Foi muito bom e enriquecedor ter participado dessa experiência

(R1).

Saber que existem pessoas que vão lhe escutar torna o processo muito mais leve e prazeroso

(R1).

Os acontecimentos do drama podem incitar as emoções dos participantes e inquietá-los particularmente. A visão da cena pela primeira vez tem um caráter espontâneo, levando os sinais de desequilíbrio dos presentes a um alto grau de articulação. Dessa forma, tamanha foi a confiança e a necessidade de fala dos participantes ao final da dramatização, que eles encontraram no compartilhamento o momento para libertar os sentimentos que os angustiavam, atingindo a catarse de integração. O que gerou alívio não apenas aos participantes, como também à diretora. É sabido que a ação tem uma relevância claramente determinada no processo de catarse e, ao final, é por meio da espontaneidade, que em suas diversas expressões, proporciona aos participantes o reestabelecimento do seu equilíbrio (Moreno, 1940/2002):

Sobre o acolhimento, como não se sentir bem e aliviada durante todo o processo? … Ir para a minha cena e ver as dos outros me deixou realmente sem palavras. E o compartilhar deu um desfecho e ao mesmo tempo entendi que é um novo início e que estamos todos juntos, não estamos sozinhos

(R1).

O efeito desse exercício realizado em grupo me fez abrir os olhos para outros aspectos que eu não estava atenta, mas que fui me reconhecendo na fala dos/das colegas

(R1).

Um momento de alívio, desabafo, renovação das forças para mais um ano. Ao final, vimos que era disso que estávamos precisando, foram lágrimas e corações aquecidos

(R2).

Conforme observado em alguns relatos, o sociodrama proporcionou acolhimento aos participantes, uma das diretrizes da Política Nacional de Humanização. O acolhimento é um processo constitutivo das práticas de promoção de saúde e implica corresponsabilidade por meio da produção de vínculos solidários. Ele considera o indivíduo através de sua queixa, compreende suas aflições e utiliza uma escuta qualificada que permite avaliar a demanda e assegurar atenção integral e resolutiva através da horizontalidade do cuidado. Ademais, o acolhimento reconhece as especificidades e as habilidades criativas de cada sujeito, pois valoriza-o e oportuniza maior autonomia (Brasil, 2010):

Então é aí que entra a importância de ser acolhido, ouvido e de implantar um sentimento de companheirismo e partilha no grupo. Saber que existem pessoas que vão lhe escutar torna o processo muito mais leve e prazeroso. Desse modo, acredito que o acolhimento fez jus a seu propósito, acolheu e, além do mais, plantou uma semente regada de ótimas expectativas

(R1).

O acolhimento dos R1 com a intervenção grupal foi uma experiência maravilhosa, um momento importante para eles se sentirem de fato acolhidos, mas foi um acolhimento para nós R2 também

(R2).

Participar da intervenção de terça foi muito bacana. Eu me senti muito acolhida e de certa forma protegida

(R1).

CONCLUSÃO

O residente multiprofissional é uma figura importante nos hospitais-escolas, na medida em que trabalha na promoção e na recuperação da saúde dos usuários. Ele também colabora com pesquisas, projetos e ações de aperfeiçoamento da saúde coletiva. Em alguns momentos, foi possível observar que o residente possui questões distintas dos profissionais que já estão há mais tempo nas instituições de saúde. Diferenciam-se, portanto, por além da atuação profissional, serem também estudantes em processo de formação. Com isso, exercem um duplo papel, estando em contato frequente com responsabilidades e estressores de cada um desses papéis. Muitos desses, envoltos pelos processos e relações de trabalho, podem demonstrar em algumas circunstâncias uma cristalização cultural, observada através de uma postura enrijecida para com os processos e as atividades. Tais atitudes podem ser consideradas como produto das conservas culturais. Nesse sentido, o residente contribui com a saúde mental desse cenário, pois a sua presença pode gerar um movimento de mudança.

A partir de uma postura crítica e de reflexão diária, o residente se posiciona ativamente perante os desafios da prática. E, ao ocupar o papel de pós-graduando, coloca-se como constante aprendiz. Estimula-se a procurar, contrapor e confirmar os saberes e as informações. Desse modo, tais habilidades e circunstâncias auxiliam no desenvolvimento de sua espontaneidade, sua criatividade e na troca de experiências e partilhas entre os profissionais da instituição.

No papel de profissional, realiza discussões interprofissionais, aprende a se relacionar em equipe e compreende que o seu fazer possui limitações. Em alguns momentos, a dificuldade em desempenhar os dois papéis concomitantemente pode gerar dúvidas, confusão e insegurança no residente. Contudo, quando ele encontra acolhimento nos serviços, representa esses papéis de maneira saudável. Posto que exercer esse profissionalismo na condição de estudante lhe possibilita uma maior preparação na inserção ao mercado de trabalho, já que o residente é formado pelo SUS e para o SUS.

É esperado que o discente conclua a sua especialização consciente dos princípios e das diretrizes do sistema de saúde brasileiro, auxiliando na corresponsabilidade, no protagonismo e na autonomia dos sujeitos e coletivos. Ao propor mecanismos de promoção à saúde do residente, não é interessante limitá-los apenas a processos terapêuticos exclusivamente individuais com a finalidade de mitigar o sofrimento psíquico do sujeito. O meio em que o pós-graduando está inserido pode perpetuar o estresse, dificultar a comunicação assertiva, deslegitimar o seu sofrimento e desvalorizá-lo enquanto profissional. Dessa forma, faz-se importante desenvolver intervenções grupais e/ou organizacionais de amplo alcance coletivo.

O sociodrama, sendo um instrumento de estudo e intervenção das relações grupais que proporciona o conhecimento das estruturas e da dinâmica inter-relacional, proporcionou mudanças nas percepções dos residentes. Através da experiência com o sociodrama, foram relatados sentimentos de cuidado e acolhimento pelos participantes. Essa que é uma prática terapêutica grupal tem o potencial de promover saúde no residente multiprofissional, a partir do momento em que se propõe a acolhê-lo em sua individualidade e complexidade. Essa intervenção coletiva se configurou enquanto experiência inovadora neste hospital universitário e a repercussão positiva ultrapassou os seus muros, sendo realizada também com residentes de outra instituição hospitalar no mesmo município.

Entre as limitações desse trabalho destacam-se a presença de poucos estudos com propostas semelhantes no contexto hospitalar que pudessem auxiliar nas reflexões. É necessário, portanto, o desenvolvimento de mais estudos sobre as práticas psicodramáticas e sociodramáticas no contexto da saúde e hospital, de cuidado humanizado voltado à saúde do pós-graduando/profissional.

As residências multiprofissionais contribuem para a saúde pública, uma vez que estão inseridas no SUS, o qual tem como princípios a integralidade, a universalização e a equidade. Entretanto os estudos verificam a constatação de adoecimentos e agravos à saúde mental dos residentes multiprofissionais. É incongruente, portanto, que o residente atuante nos serviços do SUS não seja cuidado em sua integralidade, respeitado e sobretudo tratado equanimemente entre os demais profissionais da instituição. Logo, é pertinente seguir refletindo sobre as residências em saúde para que não sejam um meio de adoecimento.

Material suplementar
AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

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Notas
Notas
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA O compartilhamento de dados não é aplicável.
FINANCIAMENTO Não aplicável ao trabalho. A primeira autora recebeu bolsa-salário do Programa de Residência Multiprofissional (Ministério da Educação/Ministério da Saúde).
Autor notes
Editor de seção: Graziela Gatto
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES Conceitualização: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB;

Metodologia: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB;

Investigação: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB;

Redação – Primeira Versão: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB;

Redação – Revisão & Edição: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB;

Supervisão: Leite TA, Lisboa W e Formiga GCB.

*Autora correspondente: talita.andrade12@yahoo.com.br

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