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Uma abordagem psicodramática teatral com idosos em situação de residência
Maria Jade Pohl Sanches
Maria Jade Pohl Sanches
Uma abordagem psicodramática teatral com idosos em situação de residência
A theatrical psychodramatic approach with elderly in a residential setting
Una aproximación teatral psicodramática con personas mayores en situación de residencia
Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 32, e1924, 2024
Federacao Brasileira de Psicodrama (FEBRAP)
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RESUMO: O presente artigo reflexivo aborda uma pesquisa conduzida no âmbito da disciplina Estágio Supervisionado III – Oficina de Teatro, integrante do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Santa Maria, com foco no psicodrama. O projeto em questão adotou o drama como abordagem metodológica para o ensino de teatro com idosos e foi conduzido no ano de 2018 no Lar Vila Itagiba, situado no município de Santa Maria (RS). Nessa perspectiva, o objetivo geral da pesquisa consistiu em investigar a prática do drama e sua interação com o psicodrama em uma abordagem teatral com idosos, explorando suas memórias durante sessões psicodramáticas, visando compreender como essas experiências podem contribuir para o desenvolvimento emocional e cognitivo dos participantes.

PALAVRAS-CHAVE: Teatro, Idosos, Drama, Psicodrama.

ABSTRACT: This reflective article addresses a research project conducted in the scope of the Supervised Internship III–Theatre Workshop, part of the bachelor’s degree in Theatre at the Universidade Federal de Santa Maria, focusing on psychodrama. The project adopted the drama as a methodological approach to theatre education with the elderly, exploring the theme of memories, and was conducted in 2018 at Lar Vila Itagiba, located in the municipality of Santa Maria (RS), Brazil. From this perspective, the general objective of the research was to investigate the practice of drama with the elderly, based on their memories, during psychodramatic sessions.

KEYWORDS: Theatre, Elderly, Drama, Psychodrama.

RESUMEN: Este artículo reflexivo aborda una investigación realizada en el ámbito de la asignatura de Prácticas Supervisadas III - Taller de Teatro, parte de la Licenciatura en Teatro de la Universidad Federal de Santa María (UFSM), centrada en el Psicodrama. El proyecto adoptó el Drama como enfoque metodológico para la Enseñanza de Teatro con personas mayores, explorando el tema de los recuerdos, y se llevó a cabo en 2018 en el hogar Itagiba, ubicado en el municipio de Santa María (RS). Desde este enfoque, el objetivo general de la investigación consistió en investigar la práctica del Drama con personas mayores, a partir de sus recuerdos, durante las sesiones psicodramáticas.

PALABRAS CLAVE: Teatro, Personas mayores, de Drama, Psicodrama.

Carátula del artículo

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Uma abordagem psicodramática teatral com idosos em situação de residência

A theatrical psychodramatic approach with elderly in a residential setting

Una aproximación teatral psicodramática con personas mayores en situación de residencia

Maria Jade Pohl Sanches
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 32, e1924, 2024
Federacao Brasileira de Psicodrama (FEBRAP)

Recepción: 16 Mayo 2024

Aprobación: 25 Julio 2024

INTRODUÇÃO

Inicialmente, é importante contextualizar que a vontade de explorar o teatro e o psicodrama me levou a refletir profundamente sobre o tema das lembranças, dando origem à questão central da pesquisa: como podemos estimular as memórias dos idosos por meio do drama? Com base nesse questionamento, estabeleci meu objetivo geral: investigar a prática do drama e sua interação com o psicodrama em uma abordagem teatral com idosos, explorando suas memórias durante sessões psicodramáticas, visando compreender como essas experiências podem contribuir para o desenvolvimento emocional e cognitivo dos participantes.

Dessa forma, delineei objetivos específicos, tais como: familiarizar-me com a comunidade de idosos; investigar as memórias dos participantes; explorar o estímulo composto dos cinco sentidos – visão, olfato, paladar, audição e tato –; e criar um espaço de compartilhamento de lembranças.

Ao explorar lembranças relacionadas a momentos significativos, como eventos familiares, conquistas pessoais, tradições culturais e experiências cotidianas, busca-se não apenas reavivar e valorizar suas memórias, mas também facilitar uma compreensão mais profunda de seu próprio passado. Esse processo permite aos idosos refletir sobre suas experiências, compartilhar histórias que ajudam a construir uma identidade mais rica e reforçar sua autoestima.

É fundamental destacar que todos os participantes envolvidos nessa experiência deram seu consentimento explícito para a utilização dos dados e das informações coletadas. Esse consentimento foi obtido de forma transparente e consciente, assegurando que cada indivíduo compreendesse plenamente o propósito e a natureza da utilização das suas experiências.

Esta pesquisa ancora-se na experiência profissional do autor, respeitando os princípios éticos conforme Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, que afirma: “Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema [Comitê de Ética em Pesquisa] CEP/[Comissão Nacional de Ética em Pesquisa] CONEP: VII – pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito” (Conselho Nacional de Saúde, 2016).

Para a fundamentação teórica, utilizei principalmente a obra da pesquisadora brasileira Beatriz Ângela Vieira Cabral (2011), que discute convenções e estratégias para o drama. Também recorri a referências sobre psicodrama, como Jacob Levy Moreno (1975), Manuela Maciel (2020) e o pediatra e psicanalista Winnicott (1971). As pesquisas das professoras brasileiras de teatro Beatriz Pinto Venâncio (2008) e Vânia Pereira Silvério (2020) sobre teatro com idosos mediante suas memórias e práticas performativas também foram fundamentais.

Eu fazia teatro quando mais novo, eu me lembro…

O que mais me chamou a atenção ao explorar o teatro com idosos foi a questão das lembranças, muitas vezes esquecidas ou dolorosas de serem revividas, guardadas em gavetas empoeiradas há anos. A arte, com seu poder único, consegue ressuscitar esses momentos, abrir portas e armários, devolver sensações e, por vezes, conduzir a uma jornada pelo passado que pode ser tanto repleta de felicidade quanto dolorosa para alguns. Para outros, a lembrança é recontada e reimaginada, como um sonho que a mente constrói para escapar da realidade.

Nesse contexto, na pesquisa, o drama surge como uma técnica teatral e o psicodrama como um método psicoterapêutico, ambos originários da teoria socionômica (Maciel, 2020). A técnica do drama foi aplicada nessa experiência, promovendo resultados terapêuticos inéditos e substanciais para os participantes. Por sua vez, o método do psicodrama diferencia-se por necessitar ser aplicado com a autorização dos participantes e conforme as normas estabelecidas pela teoria e pelo Conselho Federal de Psicologia.

Nessa incursão pela memória, o drama consiste em uma prática teatral de origem anglo-saxã cujos fundamentos foram desenvolvidos pela professora e atriz Dorothy Heathcote e introduzidos no Brasil nos anos 1990 pela professora e pesquisadora Beatriz Cabral, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Para iniciar o drama, é fundamental ter um pré-texto, um material de suporte que pode ser extraído de reportagens, textos dramáticos, narrativas, contos ou roteiros, sempre contextualizado com a realidade dos participantes. Esse material serve como base para a concepção do universo ficcional.

Após a seleção do pré-texto, este é dividido em episódios sequenciais, proporcionando verossimilhança às atividades no contexto ficcional, o que pode engajar os participantes na narrativa criada. O professor desempenha um papel crucial no drama, atuando como mediador, podendo assumir diferentes papéis ou permanecer como ele mesmo. Essa estratégia é conhecida como “teacher in role” (Vidor, 2010).

Nesse sentido, o professor, ao estimular a imaginação dos estudantes e colaborar ativamente na construção das narrativas coletivas, torna-se um coautor e aliado das circunstâncias do jogo. Para auxiliar nesse processo, são adotadas estratégias que visam envolver os participantes na ficção e promover questionamentos e discussões sobre suas experiências, contribuindo para a criação autônoma da narrativa e enriquecendo-a com suas vivências pessoais.

Após a conclusão de cada episódio, é comum realizar registros para analisar a participação e o desenvolvimento no encontro, além de (re)planejar o próximo episódio. Esses registros são feitos pelos próprios estudantes e podem incluir pinturas, fotografias, escritos e entrevistas.

O drama diferencia-se pela ausência da busca por resultados definidos, priorizando a experimentação e a prática coletiva do processo. Nessa abordagem metodológica, os estudantes passam por transformações significativas, expandindo seu repertório teatral ao explorar livremente a fronteira entre ficção e realidade. Diante dessa escolha, busquei um teatro sensível com abordagens que trabalhassem as lembranças dos participantes, transformando os encontros em uma experiência poética e positiva.

Essa escolha, embora desafiadora diante das questões emocionais delicadas enfrentadas por alguns idosos, como a depressão e a melancolia, revelou-se promissora. No contexto do psicodrama, é possível criar um ambiente terapêutico em que as lembranças são exploradas de forma sensível, transformando o processo em uma jornada de recordações positivas e poéticas. Essa abordagem alinha-se com as visões de Silvério (2020, p. 178):

Minúcias, detalhes, pequenas mudanças, oportunidade de ser, instaurando o teatro como sendo o espaço encontrado para “alguma coisa que eu fizesse para que eu voltasse a ter vontade de continuar vivendo”. Representa a chance de falar das desigualdades vividas e vistas tendo o teatro como incentivo para chegar até essas condições de eu poder falar sobre isso e as pessoas me ouvirem e entenderem o meu lado.

Nessa nova perspectiva, influenciada pelo psicodrama de Maciel (2020), optei por adotar o drama como abordagem metodológica para auxiliar os atendimentos psicodramáticos na comunidade do Lar Vila Itagiba. O teatro revela-se uma linguagem potente para o contexto terapêutico, uma vez que sua linguagem intrínseca é fundamental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e afetivas. Esses benefícios são percebidos não apenas em pacientes adultos, mas também em crianças e idosos, conforme Fernández (2012, p. 16):

O aspecto criativo da arte tem a capacidade de resgatar e fornecer a alegria da autoria e da descoberta, podendo ser um forte aliado no tratamento de crianças com dificuldade de aprendizagem, pois a arte permite que a criança “distrai-se do previsto, do imposto e da dificuldade, para atender a possibilidade que é a condição básica para aprender e a substância do brincar”.

O drama, como delineado anteriormente, oferece uma metodologia de ensino que se baseia na exploração criativa de situações, emoções e memórias por meio de atividades teatrais. Essa abordagem estimula a participação ativa dos idosos, permitindo que eles expressem suas experiências de vida e emoções de maneira lúdica e significativa. Ao trabalhar com o drama, os facilitadores podem criar um ambiente estimulante e colaborativo no qual os participantes se sintam encorajados a compartilhar suas histórias e explorar suas identidades de forma positiva (Vidor, 2010).

Por sua vez, o psicodrama oferece uma estrutura terapêutica que permite aos participantes explorarem questões emocionais e relacionais por meio da representação teatral. Essa abordagem facilita a expressão e a elaboração de sentimentos, conflitos e experiências pessoais, promovendo o autoconhecimento e o crescimento emocional. Ao incorporar o psicodrama em sessões teatrais com idosos, os facilitadores podem proporcionar um espaço seguro e acolhedor para que eles explorem suas emoções, revelem suas histórias e fortaleçam seus laços interpessoais (Moreno, 1975).

Dessa forma, a integração do drama e do psicodrama resultou em experiência terapêutica e artística abrangente que promoveu o bem-estar emocional, o desenvolvimento pessoal e a qualidade de vida dos idosos, permitindo assim que os participantes se envolvessem em um processo enriquecedor de autoexploração, expressão criativa e interação social, contribuindo para uma vivência teatral significativa e transformadora. Tal experiência fez emergir lembranças e vivências em uma experiência radialista, como relatarei em seguida.

No decorrer da minha lembrança, está acompanhando, meu jovem?

Foi ao longo de toda a minha jornada no Lar Vila Itagiba que deparei com falas como esta: “Eu já viajei o Brasil inteiro, mas, se eu te contasse, duraria um ano só de conversa!”. A abundância de histórias e lembranças encontradas reforçou ainda mais minha vontade de empregar o teatro como uma abordagem metodológica para o atendimento psicodramático.

No primeiro dia, encontrei 35 idosos curiosos com a oficina de teatro. Para começar, introduzi alguns jogos teatrais e atividades destinados a explorar as lembranças, a atenção e a percepção visual e sonora do grupo. Foi comovente testemunhar a participação dos idosos cadeirantes que se envolveram nos jogos, apesar de suas limitações físicas. Isso me trouxe à mente as palavras de Azambuja (2005, p. 45):

O espaço das oficinas artísticas para idosos parece permitir que o sujeito se confronte com a realidade e apoie-se em seu referencial existencial para criar outras possibilidades de romper com aquilo que é instituído, com o que lhe é já conhecido, podendo assim superar um envelhecer marcado apenas por perdas e déficit.

Foi nessa quebra de barreiras impostas pelo processo de envelhecimento que deparei com o segundo encontro, que trouxe um número ainda maior de idosos, entusiasmados com a experiência anterior, e que convidaram seus “vizinhos” para se juntarem a nós. Aproveitando esse momento, conduzi uma investigação sobre suas lembranças, gravando suas respostas pelo celular e perguntando: “Quando eu menciono a palavra lembrança, o que lhe vem à mente?”. Esse exercício de narrativa ecoa as palavras de Venâncio (2008, p. 296): “Como narradores e contadores de outros tempos, mostramos como bebemos na fonte de nossas próprias experiências ou de aventuras dos outros, transmitidas de boca em boca, para criarmos uma história de vida que é quase nossa e nunca exclusivamente nossa”.

A entrevista sobre as lembranças rapidamente se transformou em uma rica coletânea de histórias, algumas delas claramente inventadas, como indicavam os olhares críticos dos presentes: “Não acredite, não é real, ele está inventando...”. Esse fato remeteu-me ao conceito de “realidade suplementar”, conforme descrito por Moreno (2008). Envolve a criação de uma realidade alternativa que complementa a realidade cotidiana do indivíduo.

Refletindo sobre os relatos, optei por não fazer julgamentos, mas sim considerar a natureza das lembranças e a maneira como elas podem ser reimaginadas, especialmente quando impulsionadas pelas criatividade e imaginação estimuladas pelo teatro. A importância da imaginação na reinterpretação das memórias surgiu como um tema central. Dessa forma, o psicodrama não se limitou apenas às suas técnicas, mas também se conectou com o processo de drama em nível teórico, promovendo uma integração mais ampla, além do uso metodológico:

Eu: Quando eu falo lembrança, o que vem à cabeça de vocês?

Idoso 1: Tudo e mais um pouco, o que eu sofri na lavoura. Eu entrei com 8 anos de idade na lavoura e parei agora em 92. Tive problemas de saúde e financeiros. Sabe o que eu arrumei? Uma doença e o resto nada!

Idoso 2: Eu? Minha lembrança? A morte da minha mãe!

Idoso 3: Uma pessoa querida que não está mais presente. Lembrança é importante para a gente lembrar todo o passado positivo, carregando em nós sem peso, mas com alegria e gratidão.

Idoso 4: Lembro bastante a família.

Idoso 5: Pensamento.

Idoso 6: Minha família, momentos bons.

Idoso 7: O que me vem à lembrança é que eu quero ficar bom desse ferimento aqui! É o que mais me preocupa, né!

Vovó: Alegria de viver, de participar dos encontros e de tudo!

Idoso 8: Eu gosto da vida!

Idoso 9: Minha cabeça está boa, pelo menos eu acho que está! [risos].

Idoso 10: Minha querida e estimável esposa!

Idoso 11: Lembro-me de um moreninho que eu ensinei a jogar futebol.

Idoso 12: Saudade da família!

Mediante a interação e o compartilhamento de histórias e lembranças entre os idosos, e ao relacionar a teoria do drama com a prática do psicodrama, alguns ajustes precisaram ser feitos. No decorrer do processo, enfrentei desafios, como a dificuldade de criar um contexto ficcional, pois alguns idosos esqueciam os encontros anteriores, enquanto outros mantinham um ceticismo em relação à imaginação. Além disso, alguns participantes não se sentiam confortáveis em experimentar outros papéis, mas em um episódio específico pude testemunhar uma mudança significativa, como detalhado a seguir.

Espontaneidade por meio da dança

Nesse dia, adotei a estratégia do drama conhecida como “professor no papel”. Nela me apresentei como uma prenda paulista. Sugeri que tinha viajado para o sul com o objetivo de aprender a dançar música gaúcha, para depois ensinar a dança em minha cidade natal. Essa abordagem permitiu maior imersão no processo psicodramático, ou seja, uma mobilização afetiva e terapêutica dos participantes que resultou na intervenção com a técnica do drama, incentivando os participantes a se envolverem na narrativa e a experimentarem diferentes papéis na história proposta.

É importante destacar que no decorrer da sessão um dos idosos, completamente envolvido na proposta, se apresentou como um músico renomado antes mesmo de iniciarmos a atividade. Ele compartilhou orgulhosamente que as músicas que tocava eram de sua própria autoria e, com grande entusiasmo, sentou-se na cadeira e presenteou-nos com uma de suas composições. Esse momento me fez recordar a espontaneidade no psicodrama, conforme descrito por Moreno (1993), que promove a vivência dessas experiências e integra o corpo na terapia.

Durante a dança, tive a oportunidade de interagir com todos os idosos presentes. Alguns foram pacientes ao me ensinar os passos, enquanto outros me criticaram de forma bem-humorada, dizendo que eu era uma prenda muito desajeitada. Surpreendentemente, até mesmo os residentes que utilizavam cadeira de rodas expressaram o desejo de participar. Então, gentilmente, convidei-os a se juntarem a mim, e dançamos juntos, celebrando a vida e a música.

Ao longo da semana seguinte, segundo relatos da supervisora do asilo, os idosos continuaram a recordar com carinho a presença da “prenda paulista atrapalhada”. Esse episódio evidenciou como uma simples atividade, como a dança, foi capaz de desencadear uma série de experiências imaginativas. Nessa vivência, testemunhamos a transformação dos participantes, que se identificaram como gaiteiros autorais, príncipes, professores de dança, mágicos e até mesmo um piauiense que, assim como eu, tinha dificuldade de dominar os passos. Fiquei impressionada com o envolvimento e a flexibilidade dos participantes em relação às suas memórias e imaginações, o que reforça a visão da mestra e pedagoga brasileira Decico (2006, p. 50):

Embora apoie-se amplamente no já conhecido e/ou no já experimentado pelo sujeito, o jogo de faz-de-conta envolve, a meu ver, a abertura de possibilidades de criação de novas relações entre os sujeitos, a atribuição de significados originais a determinados objetos, a representação de ação de formas diferenciadas, a construção de papéis e de temáticas novas que podem sempre conter o inesperado.

A receptividade do grupo, a capacidade de escuta e o cuidado com o próximo foram aspectos notáveis ao término da oficina, conforme relatado pelos participantes, que expressaram sentir-se mais conectados com o mundo ao seu redor, assim como no encontro seguinte.

Memórias e objetos afetivos

Apesar da ausência de um contexto ficcional estruturado, os jogos teatrais e as atividades propostas foram organizados em episódios distintos. Essa estruturação permitiu uma imersão dos idosos nos acontecimentos, evidenciando que, mesmo sem um enredo fictício definido, a essência do drama estava presente. O ponto de partida foi a própria lembrança dos participantes, o que possibilitou uma exploração mais aprofundada das estratégias de estímulo composto, também conhecidas como pacote de estímulos. Conforme apontado por Cabral (2011, p. 116):

O significado do conteúdo da valise, do arquivo, do envelope não poderá ser muito óbvio, nem impossível de fazer sentido – deverá estar na fronteira de possíveis interpretações. É este espaço de fronteira, entre ficção e realidade, entre possibilidades de interpretação, entre o contexto do drama e o material encontrado, que instaura um estado de jogo e o engajamento físico e emocional dos participantes. Engajamento físico porque os participantes irão apresentar o que está por trás destes objetos e mensagens, de forma convincente, como se fossem flashes do passado ou da lembrança de um deles.

Na busca por promover uma conexão física com as lembranças, decidi levar ao lar seis caixas contendo objetos variados, como bolinhas de gude, café moído, arroz em grãos, fotos antigas, laços de fita, bonecos de chumbo, bexigas e flores de plástico perfumadas. Ao apresentar esses itens aos idosos, enfatizei que poderiam senti-los, tocá-los, pegá-los, observá-los e interagir livremente com cada um deles.

Inicialmente, observei a grande curiosidade dos idosos em relação aos objetos. Eles exploraram as caixas com entusiasmo, alguns relembrando momentos da infância, amizades e brincadeiras. Outros associaram os objetos a memórias ligadas à vida familiar, como o café feito pela mãe ou as atividades agrícolas representadas pelo arroz.

A sala estava imersa em nostalgia quando um dos idosos decidiu inflar um balão, iniciando uma brincadeira animada. Em pouco tempo, todos se envolveram na atividade, exibindo alegria e entusiasmo comparáveis a de crianças, brincando juntos. Grupos que antes não interagiam começaram a se tornar amigos durante a brincadeira, expandindo suas relações e, consequentemente, sua rede sociométrica. Essa rede é configurada pelos vínculos estabelecidos com os conhecidos. Conforme Bustos (1979, p. 20), “cada pessoa se movimenta dentro de um átomo social: conjunto de vínculos próximos que constituem a rede de relações de um indivíduo”.

Após a divertida brincadeira com os balões, convidei os idosos a expressarem suas emoções por meio de desenhos ou escritas em papel, ao som de uma música suave ao fundo. Enquanto observava os desenhos surgindo, notei uma variedade fascinante de representações, algumas surreais, outras mais tangíveis, algumas palavras legíveis, outras nem tanto. Por intermédio desses registros visuais, pude perceber o impacto profundo que o episódio teve em suas lembranças e emoções.

Outro aspecto que me chamou atenção foi o fato de que, mesmo após o término da oficina, os idosos continuaram compartilhando suas histórias e memórias nos espaços do lar. O que antes eram lembranças individuais passaram a pertencer ao grupo, observadas agora com um novo distanciamento que permitia uma compreensão mais profunda sobre a natureza humana e a diversidade de sentimentos que a permeia (Venâncio, 2008).

Afetos e brincadeiras com balões

Refletindo sobre a experiência anterior e percebendo a receptividade dos idosos aos balões, decidi levar uma variedade ainda maior deles para o próximo encontro. Dispus os balões de diferentes cores, tamanhos e estados de inflação no centro da sala, provocando uma reação de admiração nos idosos ao verem a multiplicidade de formas e cores diante deles. Essa reação me fez refletir sobre como o ato de brincar permite que o idoso se conecte com sua essência, sua liberdade e sua criatividade, como destacado por Winnicott (1971, p. 79): “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou adulto fruem de sua liberdade de criação”.

Nesse caso, os idosos trouxeram uma atmosfera alegre e vibrante para o espaço, e, para surpresa de todos, o gaiteiro do encontro anterior entrou na sala novamente, apresentou-se mais uma vez e começou a tocar sua gaita. Contagiados pelo ritmo da música, os idosos estouraram os balões ao som da melodia. Foi um momento cênico memorável!

Com esse episódio, pude observar que esse princípio se estende igualmente aos idosos, que muitas vezes se sentem entristecidos pela realidade em que vivem, mas podem encontrar na arte uma forma de escapismo. Talvez aquela lembrança sombria possa se transformar em uma experiência feliz e vívida por meio da expressão artística.

Nesse contexto, destaca-se a importância de “brincar” com o “outro”, como relataram alguns idosos que, antes das oficinas, se sentiam solitários e sem amigos, mas encontraram novas amizades no teatro que antes passavam despercebidas em seu ambiente. As relações entre as pessoas são mediadas por papéis sociais. O conceito de átomo social se forma por intermédio desses papéis e do fator tele. De acordo com Moreno (1974), o tele é um fator inato, referindo-se à capacidade de perceber o que ocorre nas interações, a dinâmica entre duas pessoas, e à percepção mútua entre elas, sem distorções, como se fosse um telefone de duas vias.

Quanto à necessidade de os idosos aprenderem a conviver em grupo e a praticar a escuta ativa, Ryngaert (2009, p. 56) ressalta: “A verdadeira escuta requer estar completamente receptivo ao outro, mesmo quando não se está olhando para ele. Essa qualidade não se limita apenas ao teatro, mas é fundamental para o jogo, pois garante a autenticidade da interação e da conexão”. A imersão no psicodrama se revelou como um elemento crucial para a saúde mental dos idosos, conforme observado pelos enfermeiros do asilo. Essa prática permitiu que os idosos experimentassem uma melhora perceptível em alguns aspectos da demência. Pela escuta ativa de si mesmos e dos outros, uma característica distintiva do psicodrama, os participantes foram incentivados a se envolverem profundamente na experiência, mesmo que não estivessem imersos em uma situação ficcional típica, mas sim em propostas baseadas na realidade.

Experiência radialista

No episódio subsequente, pude testemunhar uma significativa incursão na ficção com a proposta da experiência radiofônica: criar uma rádio dentro do asilo, na qual os idosos pudessem compartilhar acontecimentos locais, notícias, atualizações sobre futebol e enviar mensagens para suas famílias e amigos que estão dentro do espaço. Esse encontro, vivenciado dessa forma, revelou toda a história contida na experiência, como um efeito cascata. Ou seja, as lembranças evocadas resgatam todas as outras lembranças vividas e revividas ao longo da jornada individual e coletiva.

Os idosos relataram, conforme pude verificar pela gravação em áudio, que se sentiram genuinamente como se estivessem participando de um programa de rádio completo, com apresentador, músicas e orações. Durante o programa, as conversas sobre lembranças assumiram diferentes perspectivas, muitas delas mais felizes, enquanto outras foram recriadas para se adequarem ao contexto comunicativo proporcionado pelo rádio.

Essas lembranças e experiências vividas podem ser vistas pela descrição de áudio a seguir:

Bem-vindos à Rádio FM Itagiba.

Apresentador: Senhores ouvintes, agora pela minha, a sua, a nossa rádio 9.0, a FM Itagiba, que canta e encanta todos os dias! E agora vamos apresentar mais um cantor, que se apresenta agora!

Supervisora do asilo e idosos: Não me perguntes onde fica o Alegrete

Segue o rumo do teu próprio coração

Cruzarás pela estrada algum ginete

E ouvirás toque de gaita e violão

Pedra moura das quebradas do Inhanduy1 [aplausos e risos]1

Apresentador: Você está escutando a minha, a sua, a nossa rádio, a nossa FM do dia a dia.

A experiência radialista revelou a verdadeira potência do teatro quando incorporado aos atendimentos psicodramáticos de forma interdisciplinar, emergindo como uma relação profunda de autoconhecimento e desenvolvimento. Ela se manifestou como um veículo não apenas para evocar lembranças, mas também para desencadear uma gama de emoções, risos e, crucialmente, para dissipar as inseguranças dos idosos. Esse mergulho nas práticas teatrais não apenas proporcionou momentos de diversão e criatividade, mas também se desdobrou em uma jornada de descoberta dos aspectos cognitivos, afetivos, sociais e intelectuais.

Em consonância com a visão de Moreno (1975), que enxergava o ser humano não apenas como um ente biológico, psicológico e sociocultural, porém igualmente como um ser cósmico e relacional, essa experiência tornou evidente a importância do encontro como o cerne das relações humanas. Nesse processo, surgiu uma rica troca de percepções e emoções compartilhadas, ampliando tanto a compreensão de si mesmo e do outro como a visão da vida como um todo. Esse momento de interação intensa permite que algo essencial da vida seja revivido no aqui e agora, seguindo o próprio fluxo e padrão da existência.

No contexto da prática psicodramática, os participantes são guiados pela ação teatral para explorar profundamente suas emoções, afetos e sentimentos, envolvendo-se totalmente na experiência vivida. Essa imersão e autenticidade do processo ampliam a compreensão individual e fortalecem as conexões interpessoais, criando um ambiente favorável à expressão.

Nesse sentido, o psicodrama, combinado com a dinâmica de grupo, emerge como uma intervenção terapêutica eficaz na busca pelo equilíbrio emocional e sentimental. A ênfase na autenticidade das relações, proposta por Kurt Lewin (1944), ressoa na prática do psicodrama, permitindo aos idosos explorar suas emoções, interagir criativamente e desenvolver estratégias saudáveis para enfrentar os desafios da vida.

Vamos finalizar? Está na hora do meu descanso...

O teatro, como linguagem do psicodrama, emergiu como uma ponte para a expressão e saúde emocional e mental, permitindo a exteriorização de angústias, repressões e lembranças que por vezes permanecem guardadas ao longo da vida. Nesse contexto de comunicação, escuta e autoconhecimento, os idosos encontraram espaço para se identificarem com eles mesmos e com suas personagens, verbalizando cada sentimento e experiência no seu próprio tempo.

A investigação da prática do drama e sua interação com o psicodrama em uma abordagem teatral com idosos, explorando suas memórias durante sessões psicodramáticas, revelaram uma série de efeitos terapêuticos significativos. A aplicação da técnica do drama permitiu aos participantes não apenas reviver e recontar suas experiências passadas, mas também promover um desenvolvimento emocional e cognitivo profundo. O envolvimento em atividades dramáticas ajudou os idosos a acessar e expressar memórias que, de outra forma, poderiam permanecer reprimidas ou esquecidas. Esse processo não só trouxe à tona sentimentos de satisfação e realização, mas também possibilitou a construção de conexões sociais e a reavaliação de seus papéis e identidades pessoais.

Ao me despedir dessa extraordinária jornada no lar, percebo que aprendi muito mais do que ensinei. Recordo-me do meu estado inicial, repleto de ansiedade, emoção e insegurança diante do desconhecido. Assim como os idosos encontraram a liberdade de serem eles mesmos, também me senti à vontade para explorar novos horizontes e propostas.

A resposta para a questão que me instigou desde o início – como estimular as lembranças dos idosos por meio do drama em uma abordagem psicodramática – se revelou na própria experiência radialista. Foi possível notar que o psicodrama não apenas possibilita o trabalho com aspectos emocionais, cognitivos, motores e sociais, mas também promove uma profunda mobilização, percepção, memória e compreensão de si mesmo e do coletivo.

Ao reunir imagens, vídeos e áudios para criar a grande rádio, que os idosos interpretaram como uma “telenovela”, cujos protagonistas foram eles mesmos, ficou evidente a mudança na forma como os participantes desempenhavam o papel de protagonistas. Afinal, criaram suas próprias histórias, assumiram um papel que lhes era de direito. Eles puderam contar suas histórias conforme desejavam, criando e recriando quando necessário.

Esse processo não apenas me emocionou, mas também me fez crescer como artista/psicodramatista, desafiando-me a cada encontro e instigando-me a estar sempre disponível para o jogo com os idosos. Experimentei o que no teatro e no psicodrama chamamos de um belo e admirável “encontro”.

Material suplementario
AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 A música “Canto Alegretense”, de autoria dos Fagundes (Nico, Bagre e Neto), tornou-se um hino da região da fronteira, e seu primeiro verso virou placa sinalizando a entrada da cidade.
Declaración de intereses
CONFLITO DE INTERESSE Nada a declarar.
Notas de autor
Editor de seção: Érico Douglas Vieira https://orcid.org/0000-0002-9845-2245

* Autora correspondente: jade.pohl.sanches@gmail.com

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