RELATO DE EXPERIÊNCIA
Uma varanda: Contos e psicodrama
A balcony: Short stories and psychodrama
Un balcón: Relatos y psicodrama
Uma varanda: Contos e psicodrama
Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 33, e0325, 2025
Federacao Brasileira de Psicodrama (FEBRAP)
Recepción: 04 Agosto 2024
Aprobación: 04 Noviembre 2024
RESUMO: Buscou-se realizar um estudo de caso da intervenção “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” que acontece na varanda de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil em Salvador, Bahia. Partindo da sociatria e do psicodrama interno, conduziu-se a reflexão inspirando-se nas discussões teórico-metodológicas produzidas pela experiência no Grupo de Estudos Relações Raciais e Psicodrama, criado e coordenado por Maria Célia Malaquias. Os contos, escritos por Conceição Evaristo, permitem a construção de um espaço de fala e acolhimento de dores por vezes nunca verbalizadas. Conclui-se a importância de oferecer uma intervenção que favoreça a construção de espaços de aquilombamento, letramento racial e cura, nos quais é possível que se entre em contato com dores ancestrais, íntimas e coletivas.
PALAVRAS-CHAVE: Sociatria, Psicodrama interno, Saúde mental, Aquilombamento.
Abstract: The objective of this paper was to conduct a case study of the intervention “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” that takes place on the balcony of a Center for Psychosocial Attention to Children and Youth in Salvador, Bahia. Starting from the sociatry and internal psychodrama, the reflection is conducted inspired by the theoretical-methodological discussions produced by the experience in the Study Group Ethnic Racial Relations and Psychodrama, created and coordinated by Maria Célia Malaquias. The stories written by Conceição Evaristo when approaching the experiences of women allow the construction of a space for speech and reception of sorrows sometimes never verbalized. The conclusion is that it is important to offer an intervention that favors the construction of spaces in which it is possible to get in touch with ancestral, intimate and collective pains.
KEYWORDS: Sociatry, Internal psychodrama, Mental health, Aquilombamento.
RESUMEN: El objetivo fue realizar un estudio de caso de la intervención “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” que ocurre en el balcón de un Centro de Atención Psicosocial para Niños y Jóvenes en Salvador, Bahia. Basada en la sociatría y en el psicodrama interno, la reflexión se inspira en las discusiones teórico-metodológicas producidas por la experiencia del Grupo de Estudio sobre Relaciones Raciales y Psicodrama, creado y coordinado por Maria Célia Malaquias. Los cuentos escritos por Conceição Evaristo, al abordar las experiencias de las mujeres, permiten construir un espacio para hablar y acoger el dolor que a veces nunca se verbaliza. La conclusión es que es importante ofrecer una intervención que favorezca la construcción de espacios de aquilombamento, alfabetización racial y sanación, en los que sea posible entrar en contacto con los dolores ancestrales, íntimos y colectivos.
PALABRAS CLAVE: Sociatría, Psicodrama interno, Salud mental, Aquilombamento.
INTRODUÇÃO
Em um ensaio, Abdias do Nascimento (2016) inicia alertando o(a) leitor(a) que não pretende utilizar em sua escrita nenhuma “fórmula” convencionalmente prescrita para trabalhos acadêmicos, inclusive, enfatiza que não está interessado em fazer qualquer “tipo de ginástica teórica, imparcial e descomprometida”, destacando que não pretendia transcender a si mesmo, como faziam os cientistas sociais da época, e afirma: “quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada” (p. 47). A posição de Nascimento em relação a seu ensaio foi um convite para evidenciar que não conseguiremos um afastamento exigido por modos hegemônicos de fazer pesquisa científica, pois, enquanto autoras, estamos organicamente implicadas na intervenção e na análise de seus efeitos para as mulheres, para minha companheira no grupo e, neste artigo, em mim como psicodramatista, mulher negra, mãe e filha.
No ano de 2010, comecei um grupo de mães no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPSIA). O grupo acontecia às quartas-feiras, no turno matutino, e era basicamente formado por mães de crianças com o diagnóstico de transtorno do espectro autista. Nesse grupo, as mulheres falavam das filhas, dos filhos, das dificuldades na relação com eles, com a escola, com os direitos e benefícios sociais, etc.
Essa modalidade de intervenção aconteceu por alguns anos e com o movimento cotidiano das famílias e do serviço. Em 2016, o grupo acabou. As mães das crianças atendidas no CAPSIA e eu continuamos próximas, minha perceção foi mudando, e comecei a encontrar as mulheres para falar sobre assuntos que vão além do papel de mãe.
O novo encontro com as mães/mulheres, com minha colega Sandra Inés e a leitura de Conceição Evaristo fomentaram a criação do projeto “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” — um grupo de mulheres iniciado em 2022. À medida que as sessões aconteciam e o grupo se configurava em suas dinâmicas, houve uma reflexão sobre a metodologia da intervenção, e é isso que se pretende demonstrar neste artigo. Adicionalmente, pretende-se apresentar e discutir a intervenção “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres”, tendo como referência a sociatria, o Grupo de Estudos Relações Raciais, idealizado e coordenado por Maria Célia Malaquias, como inspiração e método, bem como os contos escritos por Conceição Evaristo.
Sociatria, técnica do psicodrama interno e trauma
A Socionomia, como uma ciência das relações sociais, revela seu caráter dinâmico e vívido, sendo “uma prática clínica e política” produtora de modos de existência espontâneos e criativos, incluindo economia da partilha e da produção social (Dedomênico, 2020). Ela não se restringe à análise compreensiva das relações sociais, mas propõe intervenção com vistas a uma transformação social.
O método sociátrico mais conhecido é o psicodrama, mas temos também sociodrama, axiodrama, psicoterapia de grupo, entre outros. Ramos (2023), ao se referir ao psicodrama, declara que “é um método de análise das relações humanas e um processo de terapêutica psicológica”, sendo que “ordinariamente é difícil separar o intuito analítico do intuito terapêutico” (p. 64). Sobre o sociodrama, Ramos (2023, p. 79) afirma que é um método que ele é um método de eliminação de preconceitos ou de estereótipos, e que objetiva libertar a consciência do individuo da pressão social (Barbosa, 2023, p. 79).
O psicodrama interno, como alega José Fonseca (2000), é uma técnica nascida da angústia do psicodramatista no seu trabalho bipessoal, na ausência de egos auxiliares e de um grupo. A técnica do psicodrama interno se aplica à psicoterapia individual, mas também pode ser utilizada em grupoterapia em determinadas circunstâncias.
A técnica do psicodrama interno requer um exercício de atenção sobre si, um tipo de atenção dirigida pela vontade deliberada (J. Fonseca, 2000). Khouri (2022) diz que a técnica do psicodrama interno se assemelha à técnica da visão de dentro. Ele propõe que, em memórias traumáticas, o modelo do psicodrama interno pode ser utilizado para tratar o trauma.
A experiência traumática imprime marcas na mente, nos sistemas biológicos e imunológicos, impactando todas as dimensões humanas. Esse impacto não é apenas individual, pois afeta todos os que rodeiam as pessoas que sofrem o trauma (Kolk, 2020). As consequências dos eventos traumáticos são transmitidas de geração em geração, ameaçando todas as possibilidades da comunidade, de grupos e até da humanidade (Kellermann & Hudgins, 2010).
A Socionomia e seus métodos possuem flexibilidade metodológica suficiente para propor intervenções capazes de tratar as dores produzidas por carências, violências, agressões, racismo, genocídio, consequências de eventos traumáticos, sejam individuais ou coletivos. Essa flexibilidade possibilita ao terapeuta acompanhar a pessoa ou o grupo, oferecendo técnicas que permitam um campo relaxado para a elaboração da experiência traumática.
Os métodos sociátricos possibilitam um espaço rico em trocas, que produz um sentimento relacional seguro. O método sociodramático, ao revelar a “influência mútua”, reafirma a “interdependência dos indivíduos participantes” e favorece a construção de um “espaço de responsabilidade relacional” (Marra, 2023, p. 5).
Essa compreensão dos métodos sociatricos aponta um caminho para ações e intervenções nas relações raciais. Malaquias (2017), ao agradecer o legado de Souza1, fala de sua contribuição para a mudança no imaginário social em uma perspectiva de acolhimento e respeito como estratégia de enfrentamento das dores produzidas pelas práticas racistas, ou seja, um adoecimento das relações, produzido por uma história de opressão e desumanização das pessoas negras.
A própria Maria Célia Malaquias vem, com seus trabalhos, contribuindo para a mudança no imaginário social do negro, da negritude e da branquitude, e do movimento psicodramático. Também inaugura, com a proposta do grupo de estudos Psicodrama e Grupo de Estudos e Relações Raciais, um espaço de acolhimento, letramento racial e cura em um ambiente de responsabilidade, influência mútua e interdependência que reflete, à medida que propõe e cria conhecimento e intervenções socionômicas, as relações raciais no Brasil.
Quilombo Malaquias: letramento racial e cura
A proposta do Grupo de Estudos Psicodrama e Relações Raciais nasceu no ano de 2016 na modalidade presencial. Com o advento da pandemia, passou a ser online em agosto de 2020, ampliando a participação de pessoas de diversos lugares do Brasil e do mundo (Dellagiustina, Oliveira & Gonçalves, 2022). Espontaneamente, o grupo de estudos foi reconhecido pelas e pelos participantes como um quilombo e batizado de Quilombo Malaquias.
A historiadora Beatriz Nascimento se dedicou ao estudo dos quilombos ao longo do tempo e no contexto afrodiaspórico. Ela compreende o quilombo como um espaço físico de preservação de memórias, valores e costumes dos povos africanos, mas principalmente como um caminho de afirmação da vida, uma concepção de um território psíquico de autocuidado e um espaço de acolhimento e diversidade (Santos, 2020).
A experiência de participar do Quilombo Malaquias revela que ele é um espaço de cuidado próprio e de outros por meio da elaboração de traumas produzidos por práticas racistas, mas especialmente da afirmação das vidas negras. Um cuidado relacional em um território psicossocial. No espaço do Quilombo Malaquias acontece, para todos e todas participantes, um letramento racial à medida que são confrontados modelos baseados em uma perspectiva eurocentrista e colonialista, inclusive no Psicodrama brasileiro, ajudando-os a pensar e enxergar de forma mais precisa o racismo, seus efeitos e a sua modelagem nas relações sociais.
Desse modo, opera-se um letramento racial visto que se implementam novas perspectivas, constroem-se novas formas de
olhar, entender e significar nossa história e nossas identidades, e desconstroem-se formas de pensar e agir que foram naturalizadas. E, quando o grupo de estudos se propõe a estudar as relações raciais, entende-se que o enfrentamento do racismo é desafiador para todos nós, negros e não negros (Almeida, 2017).
Entende-se, aqui, o Quilombo Malaquias como um caminho de cura que acontece pela integração do letramento racial, aquilombamento e do Psicodrama. “As pessoas participantes identificam e revelam situações vivenciadas como dores psíquicas e traumas sociais, ou seja, as questões subjetivas são acolhidas e trabalhadas” (Dellagiustina et al, 2022). O grupo se coloca disposto a acolher o conteúdo que emerge e que muitas vezes se revela uma dor que sempre foi sentida, produzida pelo racismo. Uma dor que é individual e também coletiva.
Contos de mulheres negras: vivências escritas e contadas
A escritora Conceição Evaristo (2020) relata que as escrevivências são um fenômeno diaspórico e universal e que a imagem nuclear, fundante do termo, é a “figura da Mãe Preta, aquela que vivia a sua condição de escravizada” (pp. 29-30).
O termo escrevivência, morfologicamente, é a associação entre “escrever” e “viver” com o sentido de escrever vivências ou fatos vividos (M. Fonseca, 2020). É possível conceber escrevivência como um “ato de mulheres negras que pretende resgatar a sua potência na escrita”, enfatizando que, no passado, a voz era negada às mulheres escravizadas, porém “hoje a letra, a escrita, nos pertencem também” (Evaristo, 2020, p. 30), embora mantendo a força ancestral das tradições de oralidade.
Evaristo (2020a), referindo-se à construção das personagens, coloca que elas são “humanas”, reafirmando a humanidade “como pertença de cada sujeito” (p. 31), revelando em sua escrita que a potência e a impotência habitam o existir humano. Ele afirma que “os dramas existenciais nos perseguem e caminham com as personagens que crio. E o que falar da solidão e do desejo do encontro?” (Evaristo, 2020a, p. 31).
Evaristo (2020b) apresenta personagens com vidas impactadas pela exclusão, consideradas à margem, mas com uma profunda capacidade de se reconstruir e se ressignificar, mesmo na dor. A dor e o sofrimento das personagens parecem encontrar eco nas dores e sofrimentos das mulheres pretas do grupo. Durante a leitura, elas se vêem em Helima, Natalina Solidad, Adelia Limoeiro, Shirley Paixão e outras. As personagens de Conceição Evaristo representam e revelam as mulheres do grupo.
Importante ressaltar que a escrevivência é um movimento literário de mulheres negras que, de alguma forma, ultrapassam uma barreira imposta pelo racismo, o lugar definido de não escritoras. As mulheres do grupo ainda não escrevem e não produzem suas próprias escrevivências como literatura, mas as produzem oralmente ao revelarem suas experiências como mulheres e suas sabedorias, conectando-se com as outras existentes no grupo e nos livros.
Quando as participantes contam suas próprias vivências e soluções diante das dores da vida, elas de alguma forma se conectam com a imagem nuclear da Mãe Preta, fundante do termo escrevivência, como proposto por Conceição Evaristo.
METODOLOGIA
Este artigo se trata de um estudo de caso, visto que tem como objetivo compreender uma intervenção no “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres”. “Entende-se que o estudo de caso melhor se aplica por ser um procedimento utilizado habitualmente na intervenção clínica com objetivo de compreensão e planejamento da intervenção” (Pereira; Godoy; Terçariol, 2009, p. 424).
Este artigo se origina de uma intervenção clínica realizada em um serviço público de saúde mental infantojuvenil, que apresenta uma proposta que carrega em si alguma originalidade dentro do serviço. Portanto, buscou-se compreender as bases teóricas metodológicas de uma intervenção na saúde pública com objetivo de organizar, planejar e atualizar a proposta. Desse modo, não houve submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa, mas, conforme a resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, foi apresentado o termo de consentimento livre e esclarecido, e, quando necessário utilizar a fala de uma das mulheres, optou-se por um nome fictício. Além disso, conforme a resolução 510/2016 do Conselho, não é necessário passar por sistema de avaliação aquelas pesquisas que se originaram a partir de relatos quanto a práticas profissionais, desde que mantenham e atentem para o anonimato dos sujeitos envolvidos.
A análise da intervenção debruçou-se sobre os registros documentais das sessões, a compreensão teórica e a escuta das mulheres participantes. Com o objetivo de escuta, foram realizados uma roda de avaliação e um questionário manuscrito. Descobriu-se, então, no processo de avaliação, que algumas das mulheres não sabiam escrever, sendo suas respostas ditadas e anotadas.
A análise regular documental foi realizada nos registros das sessões no período de 4/10/2022 a 27/10/2023, na qual contabilizam-se 36 encontros, com a participação de 212 mulheres, uma média de 6 mulheres por encontro. Aproximadamente 10 mulheres mantinham frequência, pois as crianças eram atendidas neste horário, enquanto outras estavam no CAPSIA por motivos como: acolhimento, consulta médica ou busca de informações.
As mulheres apresentavam faixa etária entre 25-45 anos. Eram mulheres pretas e pardas em sua maioria, das quais menos de 1% estavam contratadas formalmente e 99% eram trabalhadoras de casa que abdicaram de uma profissão para cuidar do filho ou da filha. Mulheres, que recebiam o benefício de prestação continuada, ou cujo marido trabalhava, precisavam realizar atividades para melhorar a renda como, por exemplo, venda de cosméticos ou artesanato, etc. mas não atribuíam um valor profissional a essas atividades.
O encontro teve uma frequência semanal com duração de 2 horas. A leitura do conto era feita pela diretora ou por membros da equipe do CAPSIA. O primeiro encontro ocorreu em 4/10/2022, após tomarem a vacina contra a Covid-19, com um grupo que acontecia ao ar livre, sendo todas muito bem-vindas para respirar ares de saúde e compartilhamento.
A intervenção partia de uma conversa, um conto. Optou-se pela leitura de duas autoras — Maya Angelou e Conceição Evaristo —, mas, no terceiro encontro, as mulheres optaram por continuar apenas com a escritora Conceição Evaristo. Ao fim da leitura, era feita uma pergunta que tinha relação com o tema do conto, e as mulheres compartilhavam percepções, impactos e vivências. A escolha das autoras teve relação com a posição de escrever para mulheres e sobre mulheres.
DISCUSSÃO E ANÁLISES
Se as forças cooperativas são mais determinantes que as forças de destruição nas relações humanas (Marra, 2023), pode-se pensar que a intervenção proposta permite a construção de um espaço de cooperação entre as mulheres, favorecendo a elaboração de questões relacionadas à posição da mulher, mas, principalmente, à cooperação entre elas.
A experiência de ouvir outras mulheres e suas dores apareceu no questionário de avaliação da intervenção como um aprendizado em que muitas delas falaram sobre a importância de não julgar as outras mulheres. A possibilidade de não julgar o comportamento de outra mulher parece ampliar os espaços relacionais e sociais delas. Uma das mulheres, respondendo como acredita que sua participação em “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” contribuiu para sua vida, argumentou: “Me deixa mais forte. Fala de assuntos que tinha vergonha. Ouvir e falar sem julgar. Fiquei mais falante e menos julgadora quando escuto os problemas de outras mulheres”.
A escuta é básica e implica em ouvir também a si mesma (Marra, 2023). Ao escutar os contos, as mulheres entram em contato com personagens reais, como enuncia Evaristo (2020b): “os personagens que escrevo são humanos, oferecendo, às humanas que escutam, a experiência de encontro”.
As imagens mentais são expressas nos relatos de suas próprias vivências de dor, tristeza, solidão, compartilhadas no grupo após a leitura. O compartilhamento no grupo parece favorecer às mulheres novos espaços e experiências, como se evidencia no fragmento de fala de uma das integrantes do grupo: “Entendo que posso ser eu mesma, ouvir e ser ouvida, um espaço onde posso aprender tanta coisa com outras mulheres presentes com seus relatos e suas lutas. Podemos trocar experiências”.
Optou-se, neste artigo, por apresentar três recortes dos encontros que permitem uma visão das dinâmicas dos encontros, exemplificando os caminhos teóricos e metodológicos da intervenção.
A linda baiana
Neste encontro apresentado, estavam presentes sete mulheres. O conto foi escolhido de forma aleatória. Fios de Ouro é o relato de uma neta sobre a história de sua avó escravizada e sua herança. Com poética, o conto nos fala sobre ancestralidade, os dons, as dores e as lutas das mulheres. Após a leitura, uma das mulheres disse: “Estou tremendo, desde que você começou a ler, eu comecei a tremer”. A partir disso, ela passou a relatar sua própria história: filha de uma família pobre, aos 12 anos virou empregada de uma família. Relatou um episódio no Carnaval, quando sua família a levou para a festa como companhia da filha do casal. Vestida de “baianinha”, foi com a família para a festa em um clube da cidade. Na festa, todos ficaram encantados com a sua beleza, recebeu muitos elogios por parte dos amigos da família. Em casa, a patroa raspou seus longos cabelos. “Ela passou a máquina, meu cabelo era grande”. Chorando muito, falou do medo e das violências sofridas ao longo da infância. Em seguida, outras mulheres também compartilharam as histórias de violências e abusos que sofreram, e como suas próprias mães, encontrando-se também em situações de extrema vulnerabilidade, não conseguiam defendê-las. A mulher que relatou a violência da patroa, ao final, expressou que sente uma enorme liberdade em poder falar sobre isso, sem julgamentos.
As palavras dos olhos
O conto escolhido neste outro encontro foi Olhos D’água, que talvez seja o mais famoso escrito por Conceição Evaristo (2016). Após a leitura, espontaneamente, as mulheres falaram da semelhança com suas próprias vidas, as carências na infância, as lutas para ter o mínimo e, principalmente, de suas mães — sua perda e a falta do carinho na infância, uma vez que as suas mães não conseguiam oferecer o tipo de cuidado de que elas precisavam. Surgiu então o perdão por tudo que foi vivido, sofrido, e uma das mulheres falou: “Olhos que buscam perdão e ainda não consegue perdoar”. Todas permaneceram reflexivas sobre a fala do perdão, um momento de acolhimento em silêncio. O grupo se acolheu e se emocionou com os relatos. O encontro chegou ao fim com abraços.
Gestar e parir: “Vocês aguentam”
O conto Natalina Solidad está no livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres de Evaristo (2020b). Após a leitura, percebeu-se que uma das mulheres parecia emocionada, mas, como não frequentava regularmente, não estava acostumada com a liberdade no grupo de falar a qualquer momento. Na condução do encontro, foi perguntado se ela gostaria de falar, pois sua emoção havia sido percebida. A mulher falou que lembrou de seu parto e como foi difícil ter o filho. Relatou que, no hospital, os médicos foram violentos, o parto foi induzido agressivamente e sentiu muita dor, mas não era ouvida. Sentiu que essa experiência causou dificuldade para cuidar do filho, como se a dor fosse produzida por ele, além de sintomas depressivos. Todas as mulheres compartilharam algum episódio de violência obstétrica, discutiu-se esse tema e como isso impacta as mulheres negras, inclusive com seus relatos de já terem escutado falas como: “vocês aguentam”, “para que esse drama, já teve um monte de filho”, “você é forte, aguenta”. As mulheres se encontraram na dor do parto e na falta de cuidado em seu entorno.
Uma varanda, um quilombo
Os três recortes apresentados revelam uma pequena amostra dos traumas a que estão submetidas mulheres, principalmente as negras e pobres. Os contos de Conceição Evaristo são eliciadores de imagens de vivências traumáticas passadas e presentes. Apesar de não acontecer um resgate da potência da mulher preta pela escrita, como propõe Evaristo, ao propor a corrente literária que denominou escrevivências, acontece no grupo um resgate da voz negada, da dor não escutada. São mulheres que ainda não estão autorizadas a expressar sua sabedoria, que ainda precisam entrar em contato com sua dor e, como falou uma das mulheres do grupo, isso é libertador.
Sobre escutar os contos e como eles ajudam, há alguns relatos das mulheres. Uma delas disse: “Favorece muito às mulheres se identificarem com o que já viveu, pois vê que não é somente ela quem sofre. Às vezes abre a ferida cicatrizada, mas sai um peso, desabafa. Choro e vivência”. Outra relatou: “Favorece demais, é enriquecedor cada conto onde pude conhecer histórias de mulheres e suas lutas”. E ainda: “Um deles (conto), pude me identificar e falar de uma dor muito guardada”.
Os contos desta intervenção poderiam ser entendidos como um recurso para o aquecimento, mas a experiência revela uma ampliação dessa função. Rojas-Bermúdez (1984) afirma a importância do aquecimento a partir da maneira que as pessoas chegam ao grupo “impregnadas do contexto social e com espectativas distintas” (p. 23). Ensina ainda que o aquecimento está em todo o processo, desde a chegada dos membros do grupo e dos terapeutas até o aquecimento inicialmente verbal, com perguntas simples do terapeuta, que são recursos de aquecimento (Rojas-Bermúdez, 1984). No grupo, as mulheres estão aquecidas para falar dos(as) filhos(as) e as dificuldades no cuidado, mas dificilmente o foco eram elas próprias e suas dores.
Para além de um recurso para o aquecimento, os contos conectam as mulheres com si mesmas e suas experiências. Os contos nessa intervenção podem ser compreendidos como a música que, apesar de não ser intrinsecamente um objeto intermediário, por não possuir suas características básicas, pode atuar como se fosse um. A música pode ser utilizada em uma sessão para ajudar a estabelecer a comunicação ou como técnica de aquecimento. A experiência na intervenção “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” revela que os contos cumprem as suas funções, como técnica de aquecimento e objeto intermediário, e criam as condições para que se estabeleça a comunicação e o clima grupal, favorecendo a construção de uma intervenção terapêutica (Rojas-Bermúdez, 1984, p. 170).
Nos recortes das sessões, o corpo está implicado nas reações espontâneas com abraços, choros e acolhimento. Outra participante expressou: “O encontro na varanda me ajuda, pois aqui todas nós nos ajudamos com relatos e opiniões. É uma terapia para as mães que às vezes não temos ajuda psicológica, nos sentimos sozinhas. Na varanda eu me sinto abraçada”.
A concepção de quilombo é trazida por Beatriz Nascimento como um espaço psicossocial, de cuidado e fortalecimento (Santos, 2020). Os recortes aqui apresentados revelam como as mulheres, olhando para as personagens, olham também para si e para as outras mulheres. O acolhimento das mulheres pelas mulheres, mediado pelas personagens dos contos, produz fortalecimento, conhecimento e reconhecimento.
A liberdade em falar é terapêutica, pois pode-se perceber que as falas eliciadas pelo conteúdo do conto estão produzidas por imagens mentais de vivências que vão sendo construídas ao longo da leitura. A mulher que relata o episódio da patroa raspando sua cabeça dela disse que é como se estivesse vendo sua própria história naquele momento, e seu corpo tremeu, uma reação física que só melhorou quando ela concluiu o relato da vivência, então se acalmou.
O psicodrama é um método de ação que tem na dramatização seu fundamento, mas, ao pensar a intervenção com mulheres pretas, pobres, com as exigências de cuidar de uma criança ou adolescentes com muitas demandas, cuidar da vida, da casa e todas as suas dores, ainda não é possível implicar o corpo em uma dramatização, é necessária uma etapa anterior, sendo preciso oferecer um espaço de linguagem e de imagens. Aqui se entende a “linguagem como ação”, algo que se realiza de “forma conjunta e relacional, que congrega a diversidade e descobre a estrutura interna dos significados”, aproximando as pessoas e “construindo histórias compartilhadas” (Marra, 2023, pp. 7-8).
As mulheres escutavam os contos e emergiam imagens sobre suas próprias vidas, tão vívidas e em detalhes que surgiam reações corporais como tremores, arrepios e choro. Ao compartilhar e receber o acolhimento do grupo, ocorria algo muito semelhante ao compartilhamento após uma dramatização, uma elaboração, talvez, à uma referência de uma vivência traumática.
Na roda de conversa de avaliação dos encontros, foi solicitado às mulheres que definissem com uma palavra o encontro, e as respostas foram: “maravilhoso”, “positividade”, “entretenimento”, “compreensão”, “desabafo”, “restaurador”, “guerreiras”.
A experiência com as mulheres nos conduz a pensar nos espaços de aquilombamento na Socionomia e sua flexibilidade para os contextos, grupos e pessoas; encontros que estão fincados na proposta teórica metodológica do Grupo de Estudos e Relações Raciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O início da intervenção foi muito despretensioso, mas, a cada encontro, as mulheres se aproximavam umas das outras e cobravam a realização do encontro. “Que horas vamos nos sentar na varanda?”, perguntavam. Isso nos fazia pensar no que estava sendo feito, e nós, que conduzíamos esse trabalho, só havíamos ouvido falar de Conceição Evaristo entre pessoas estudadas e intelectualizadas. Aqui, as mulheres não a conheciam, mas a reconheceram como irmã, e Evaristo passou a fazer parte do universo das mulheres da varanda.
A Socionomia oferece o olhar e a flexibilidade de uma ciência marcada pelo social, portanto, disponível às transformações e limitações das comunidades, que instrumentaliza o olhar para os grupos em sua dinâmica, suas urgências, seus caminhos e não dos rigores dos métodos, podendo seguir os grupos e encontrar suas potências. O Psicodrama interno destinado, de alguma forma, a aplacar a angústia da terapeuta na psicoterapia psicodramática bipessoal, aplica-se aqui como inspiração e como um caminho para cuidar de grupos em situação de vulnerabilidade e socialmente traumatizados.
O Quilombo Malaquias inspirou o “Em Contos na Varanda: um encontro de mulheres” a oferecer um espaço de aquilombamento, letramento racial e cura, em que é possível entrar em contato com dores ancestrais, íntimas e coletivas. O conhecimento das questões que interseccionam as relações entre as mulheres é fundamental em qualquer intervenção dedicada a mulheres em situação de vulnerabilidade.
AGRADECIMENTOS
Não se aplica.
REFERÊNCIAS
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Notas
Financiamiento
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Notas de autor
* Autora correspondente: luizaoliveiradelacerda@gmail.com
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