A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA PENITENCIÁRIA NACIONAL E O ENFRENTAMENTO ÀS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL[1]

THE INSTITUTIONALIZATION OF THE NATIONAL PENITENTIARY INTELLIGENCE AND THE CONFRONTATION OF CRIMINAL ORGANIZATIONS IN BRAZIL

Eli Narciso da Silva Torres
Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça., Brasil

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA PENITENCIÁRIA NACIONAL E O ENFRENTAMENTO ÀS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL[1]

Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 17, núm. 2, pp. 34-59, 2023

Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Recepción: 25/05/2021

Aprobación: 05/09/22

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os fatores determinantes que conduziram o processo de institucionalização da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen) – no âmbito do Departamento Penitenciário Nacional (atual Secretaria Nacional de Políticas Penais - Senappen) –, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Depen/MJSP). Para isso, procurou-se demonstrar a expansão do encarceramento, a origem e a consolidação da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e as ações de enfrentamento ao Estado (motins, rebeliões e homicídios) que motivaram ou influenciaram o processo de institucionalização. A análise utilizou-se de fontes bibliográficas, mediante consulta à literatura especializada, documental e de entrevista com gestores. Assim, o estudo demonstra, cronologicamente, o contexto de encarceramento, os caminhos percorridos e os agentes públicos envolvidos no processo de criação e consolidação da Diretoria. Por fim, identifica as ações desenvolvidas pelo órgão, com especial atenção aos avanços e desafios experienciados pela Inteligência Penitenciária no enfrentamento ao crime organizado que atua a partir das prisões brasileiras.

Palavras-chave: Inteligência penitenciária, Organizações criminosas, Primeiro Comando da Capital (PCC), Departamento Penitenciário Nacional.

Abstract: This article aims to analyze the determining factors that lead to the institutionalization process of the Penitentiary Intelligence Directorate (Dipen) within the scope of the National Penitentiary Department, an organ of the Ministry of Justice and Public Security (Depen/MJSP). To this end, it is expected to demonstrate the expansion of incarceration, the origin and consolidation of the criminal organization Primeiro Comando da Capital (PCC) and as actions to confront the State that motivated or lead to the institutionalization process. An analysis was used, from bibliographic sources, by consulting the specialized literature, documents and interviews with managers. Thus, the demonstration study, chronologically, the context of incarceration, the paths taken and the public agents involved in the process of creation and consolidation of the Board. Finally, identify the actions developed by the agency, with special attention to the advances and challenges experienced by Penitentiary Intelligence in the fight against organized crime that operates from Brazilian prisons.

Keywords: Penitentiary intelligence, Criminal organizations, First Capital Command (PCC), National Penitentiary Department.

Introdução

O Brasil aprisiona mais de 748.000 pessoas nos sistemas penitenciários e dispõe de 442.349 vagas distribuídas nos 26 estados da federação e no Distrito Federal[2]. No ano de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen)[3] estimava um déficit de 312.925 vagas (DEPEN, 2020a)[4]. O levantamento identifica que 362.547 pessoas estavam aprisionadas em regime fechado e 133.408 em regime semiaberto, ou seja, a maior parcela encontrava-se reclusa nos dois regimes mais gravosos de privação de liberdade. O indicador aponta, ainda, que 222.558 estavam presas provisoriamente (não foram julgadas ou não há sentença definitiva), o que corresponde a 29,75% das pessoas privadas de liberdade (DEPEN, 2020a).

Historicamente, o excesso de lotação está associado às condições inumanas de encarceramento, que, por sua vez, estão estreitamente ligadas aos vários fenômenos gestados no interior das prisões, dentre os quais se encontra a gênese das facções, os motins, os assassinatos e massacres, como, por exemplo, o massacre do Carandiru, no ano de 1992 (TORRES, 2019).

Vale ressaltar que o surgimento e o fortalecimento de organizações criminosas gestadas nas prisões têm simbiose com esse processo de desterritorialização ocasionado pelo afastamento do Estado no domínio de territórios prisionais, principalmente pela insuficiência de investimentos em políticas de reintegração social voltadas ao atendimento das pessoas privadas de liberdade.

Especialistas indicam a facção criminosa “Primeiro Comando da Capital (PCC)” como a expressão mais evidente do fenômeno “organizações criminosas nas prisões”, promovendo a crescente incitação de motins, massacres e rebeliões a partir do ano de 2001 (DIAS, 2011a; GODOY, 2015; TORRES, 2019).

Em resposta à demanda criada pelo processo de desterritorialização do sistema penitenciário em contexto de expansão do PCC, em 1º de janeiro de 2019, verifica-se a institucionalização da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen) do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), regida pelo Decreto Nº 9.662, que dispõe sobre as atribuições para dirigir e controlar as agências de inteligência penitenciária nos âmbitos federal e estadual (BRASIL, 2019).

Este artigo tem o objetivo de analisar os fatores determinantes que conduziram o processo de institucionalização da Diretoria de Inteligência Penitenciária no âmbito do Departamento Penitenciário Nacional (Depen/MJSP), observando sua contribuição como mecanismo de enfrentamento ao crime organizado no Brasil. Para isso, inicialmente se propõe a resgatar a gênese da organização PCC, identificar os principais enfrentamentos ao Estado por meio de rebeliões e tentativa de hegemonia para, por fim, demonstrar o gradativo investimento no processo de institucionalização da Inteligência Penitenciária Nacional.

A punição e a facção PCC na perspectiva teórica

A literatura sobre o encarceramento e as organizações criminosas é bastante fecunda, principalmente as análises circunscritas a levantes, resistências e enfrentamentos do Primeiro Comando da Capital (PCC) ao Estado brasileiro.

Na teoria clássica contemporânea, acerca da punição, destacam-se os autores Loïc Wacquant (2007; 2011) e Michel Foucault (1987). O referencial teórico de Wacquant (2007; 2011) indica que o fenômeno do encarceramento está intimamente relacionado ao endurecimento da legislação e à expansão de políticas neoliberais na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. O autor entende que o sistema de justiça criminal e o sistema penitenciário se destinam à função de modelagem social; por um lado, como expressão da soberania do Estado e, por outro, como mecanismo simbólico que modela com seletividade a vida e os atos, em especial, das camadas populares.

Foucault (1987), por sua vez, na obra “Vigiar e Punir”, apresenta a arqueologia[5] do nascimento da prisão num diálogo sobre a função social do aparato, além de sua transição nas formas históricas dos sistemas penais. Enquanto no exercício de genealogia[6] das práticas punitivas, o autor elenca pistas de que um novo contexto jurídico-científico se organizou como uma nova modalidade do poder de julgar e punir, com justificações e regras capazes de mascarar “sua exorbitante singularidade” (FOUCAULT, 1987, p. 23), o de instrumento de controle disciplinar dos indivíduos.

Assim, no século XIX, o sistema punitivo adotou a suspensão do suplício dos corpos dos condenados, baseando-se em nova legislação criminal sob influência iluminista e parte das diretrizes para o progresso e avanço da ciência. “Nesse ínterim, o martírio do corpo dá lugar ao que se convencionou chamar de ‘humanização da pena’” (TORRES; PEREIRA, 2019, p. 77). Isso porque, no período anterior, a penalidade era exercida sobre os corpos mediante mutilações, decapitações e incineração dos corpos de forma ritualizada, como comprovação de poder do soberano (FOUCAULT, 1987, p. 44).

No período demarcado pelos séculos XVI, XVII e XVIII, a pena calcava-se no corpo do apenado, como manifestação do poder. “Na transição da prática punitiva, há também a exigência do deslocamento do ponto de aplicação do poder, não o corpo, mas a alma dos sujeitos” (FOUCAULT, 1987, p. 28-29) seria impactada pelo uso e instrumentalização de mecanismos disciplinares na prisão[7]. Para Foucault (1987), na contemporaneidade, a prisão tem outras funções que se sobrepõem à finalidade da privação de liberdade, entre elas o disciplinamento dos corpos, tornando-os corpos dóceis à instituição e ao uso do Estado ou do sistema econômico vigente.

Na perspectiva das organizações criminosas que atuam no Brasil, os pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) consideram, em alguma medida, a hipótese de que a origem do PCC tem a célula inicial na constituição do Programa de Humanização de Presídios, que permitiu, à época, a organização das Comissões de Solidariedade (CS), formadas para representar os interesses dos presos no presídio do Carandiru, a partir de 1983, no estado de São Paulo.[8] Nesse ínterim, um subgrupo ter-se-ia formado no interior das Comissões de Solidariedade (CS) sob o nome de Serpentes Negras (ALVAREZ; SALLA; DIAS, 2013;DIAS; SALLA; HIGA, 2014; HIGA, 2015).

Observando em conjunto os estudos realizados por Jozino (2005); Biondi (2010); Dias (2011a); Leimgruber, Torres e Torres (2017); Leimgruber (2020) e Torres (2019), conclui-se que a organização criminosa foi fundada por Mizael Aparecido da Silva, no ano de 1993, na penitenciária de Taubaté, em São Paulo.

Biondi (2010), pioneira nos estudos acadêmicos sobre o PCC, apresenta a versão oficial sobre a origem da facção Primeiro Comando da Capital no ano de 1993.

Autores como Camila Dias (2011a) e Fernando Salla (2006) indicam a existência de simbiose entre a gênese das organizações criminosas e a superlotação carcerária, a violência institucional e os espaços insalubres das prisões. Para além disso, Torres (2019; 2020), Manso e Dias (2018) e Leimgruber (2020) demonstram que as taxas de homicídios e, por sua vez, a crescente elevação no número de mortes por meio de massacres e rebeliões nas prisões brasileiras são determinadas pelas organizações criminosas, em especial, pelo PCC.

O estudo de Godoy (2015, p. 20-21), em outra perspectiva, questiona o que ele chama de excessivas abordagens dos moldes de sociabilidade e das dinâmicas estabelecidas pelo fenômeno das facções criminosas, com especial foco na atuação privilegiada do PCC. A intenção do autor é problematizar a estrutura institucional da prisão e, com isso, “recolocar em discussão aspectos da arbitrariedade, da violência e das mazelas estruturais do sistema penitenciário”, somente ao considerar os “constrangimentos e injunções que as agências estatais impõem a eles” seria possível compreender a socialidade dos presos”, ou seja, os porquês da atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Salla sintetiza as análises, ao considerar que as rebeliões e as ações do PCC estão imbricadas em conflitos internos, polarização de poder e violações de direitos civis, “numa ótica da prisão como um sistema de poder fechado em si mesmo, polarizando os conflitos entre presos e equipe dirigente […], e se apresenta por intermédio das limitações institucionais” (SALLA, 2006, p. 280).

Em estudo anterior desenvolvido por esta pesquisadora, problematizou-se que o PCC se organizou no espaço de poder cedido pelo Estado nas prisões. Nesse ínterim, instituiu regulamentos e Estatuto próprio[9] como mecanismo de dominação e enfrentamento do Estado, travando verdadeira guerra[10].

Feltran (2018) refuta a compreensão de que a organização estrutural do PCC atenderia uma lógica organizacional empresarial. Numa direção contrária a autores como Dias (2011a), entende que as premissas da facção não estão sustentadas no lucro ou em lideranças déspotas. Ao invés disso, para o pesquisador, o PCC tem um sistema de fraternidade ou irmandade, semelhante às sociedades secretas organizadas entre iguais, como, por exemplo, a maçonaria. Então, “Como toda fraternidade, no PCC há apoio mútuo entre os irmãos. Ninguém atravessa os negócios nem a honra do outro irmão, todos se ajudam e assim cada um prospera, garantindo o progresso da irmandade” (FELTRAN, 2018, p. 22).

A análise considera que as relações de poder não são exclusivamente pactuadas pelo medo, mas sim na eficácia da representação dos interesses do grupo (preço de drogas ou redução de criminalidade na periferia) e no exercício de poder paralelo de justiça dentro e fora das prisões.

Organizações criminosas e encarceramento no Brasil

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) registrava a inclusão de 31 grupos criminosos no Sistema Penitenciário Federal (SPF), no ano de 2020. Facções com origens diversas, entre as quais encontravam-se grupos: a) que surgiram nas prisões, b) nas forças policiais (milícias) e, até mesmo, c) em gangues de rua. São eles:

Amigos dos Amigos; Amigos do Estado; Anti-bala /V7; Ato Terrorista; Bala na Cara; Bonde dos Cachorros; Cerol Fino; Comando Classe A; Comando Vermelho (CV); Consórcio do Crime; Escritório do Crime – RJ (milícia); Ex-servidor da Segurança Pública; Família do Norte; Gangue da Cidade de Barreiros-PE; Guardiões do Estado (milícia); Jalisco New Generation; Liga da Justiça; Máfia Paranaense; Massa; Milícia de Jacarepaguá; Nova Okaida; Os Abertos; Os Manos; Primeira (Restinga – POA/RS); Primeira Guerrilha do Norte; Primeiro Comando da Capital (PCC); Primeiro Grupo Catarinense; Sindicato do Rio Grande do Norte (RN); Tauras; e Terceiro Comando Puro. Pode-se afirmar que dois terços (205 indivíduos) dos presos nas 5 penitenciárias federais são membros faccionados ao PCC.

O número justifica-se, sobretudo, porque a organização criminosa “Primeiro Comando da Capital (PCC)” gradualmente tornou-se a maior organização criminosa do Brasil. Desde então, executou autoridades públicas, entre elas, o juiz de Execuções Criminais de Presidente Prudente, Antônio José Machado Dias, no ano 2003, sob a ordem de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC (G1, 2013).

Por sua vez, em 2 de setembro de 2016, o agente federal de Execução Penal Alex Belarmino Almeida Silva foi executado com 23 disparos, na cidade de Catanduvas, estado do Paraná, em cumprimento à ordem dada de dentro da Penitenciária Federal de Catanduvas (PFCAT) pelo preso Roberto Soriano (Tiriça), que à época exercia a função de comando “Sintonia Final” no organograma do PCC. A execução ocorreu com o objetivo de “intimidar e desestabilizar” a gestão do Sistema Penitenciário Federal (SPF), considerado, por eles, mecanismo de opressão do Estado (COSTA, 2017).

Na mesma direção de “intimidar e desestabilizar” o Estado e, com isso, fazê-lo recuar de medidas consideradas excessivamente duras e em desfavor dos presos recolhidos em penitenciárias federais, o PCC ordenou os homicídios dos servidores Henry Charles Gama Filho, agente federal de Execução Penal (Afep/Depen) e Melissa Almeida, especialista/psicóloga.

O agente federal Henry Charles Gama Filho foi vitimado em 12 de abril, na cidade de Mossoró (RN), onde se localiza a Penitenciária Federal de Mossoró (PFMOS). Enquanto a execução da psicóloga Melissa Almeida, lotada na Penitenciária Federal de Catanduvas (PFCAT), ocorreu em 25 de maio de 2017 (COSTA, 2017).

A investigação dos homicídios demonstrou que o grupo criminoso se ocupou de elevado nível de articulação e planejamento dos assassinatos e, em comum, encontra-se o fato que a ordem havia partido de dentro do Sistema Penitenciário Federal (SPF) como medida de enfrentamento ao Estado.

Expansão do encarceramento

Indicadores do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) demonstram que houve a expansão do encarceramento no Brasil na média de 7,57% ao ano, no período de dezembro de 1993 a junho de 2017. Cabe destacar que o ano de 1993 é demarcado como início da ascensão do número de prisões decorrentes da junção de inúmeros fatores, entre eles, o endurecimento das legislações referentes aos crimes hediondos (Lei Nº 8.072/1990) e a “nova” Lei de Drogas (Lei Nº 11.343/2006)[11].

O aprisionamento é muito superior à taxa de crescimento da população brasileira que, nesse período, cresceu em média 1,25% ao ano, como exposto no Quadro 1. Em 1993, o país contabilizava 126.152 presos, e atingiu 726.354 no ano de 2017 (DEPEN, 2019). Ou seja, ao analisar o comparativo percebe-se um crescimento de 476% em 24 anos (TORRES, 2017; 2019).

População brasileira geral e população brasileira encarcerada (1993-2017)
Quadro 1
População brasileira geral e população brasileira encarcerada (1993-2017)
TORRES, 2019.

Os especialistas Salla (2006) e Salla e Alvarez (2012), do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), consideram a progressão no aprisionamento, a partir dos anos 1990, como “alucinante”, ao indicarem que a taxa de prisão por cada grupo de 100 mil habitantes no ano de 1993 era de “ 126.152 presos (taxa de 83,2 por 100 mil habitantes); em junho de 2011, chegou-se a 513.802 presos (taxa de 269,3 por 100 mil habitantes)” (SALLA; ALVAREZ, 2012, p. 2).

Por sua vez, os investimentos do Estado em infraestrutura, na contratação de servidores penitenciários e nas assistências penitenciárias aos presos (material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa) previstas no art. 11 da Lei de Execução Penal (LEP) (BRASIL, 1984) foram insuficientes e não acompanharam a elevação do aprisionamento (TORRES; SANTIAGO; TORRES, 2015). Esses fatores, agrupados à superlotação carcerária e às condições inadequadas de custódia dos presos, contribuíram significativamente para a elevação das taxas de homicídios associadas aos eventos de motins e rebeliões nas prisões brasileiras a partir da década de 1990 (SALLA; ALVAREZ, 2012; DIAS, 2011a; TORRES, 2019).

Organizações criminosas nas prisões e a gênese da facção Primeiro Comando da Capital (PCC)

Em que pese às pesquisas do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) levarem à hipótese de que a gênese do Primeiro Comando da Capital poderia encontrar-se em dissidentes de grupos organizados nas prisões de São Paulo, a partir da institucionalização do Programa de Humanização de Presídios, criado pelo então Secretário de Justiça José Carlos Dias (1983-1987), os quais se denominavam Comissões de Solidariedade (CS) e visavam promover a representação de presos por meio de interlocutores com o Poder Judiciário. Esses dissidentes, de acordo com as pesquisas, denominavam-se Serpentes Negras (DIAS; SALLA; HIGA, 2014; HIGA, 2015).

A versão oficial dá conta de que uma partida de futebol, no dia 31 de agosto de 1993, disputada entre os times “Comando Caipira” e “Primeiro Comando da Capital”, ambos constituídos por presos alojados no Anexo da Casa de Custódia de Tratamento de Taubaté, na cidade de São Paulo, demarca a origem da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) (BIONDI, 2010; TORRES, 2017; LEIMGRUBER, 2020).

Biondi (2010, p. 48) relata que durante a disputa, os jogadores do time PCC executaram dois membros do grupo oponente. Na ocasião, temendo repressão desmedida por parte dos servidores aos integrantes do PCC, os membros pactuaram um acordo de proteção mútua, ou seja, quaisquer represálias a um dos integrantes do time resultariam em retaliação coletiva.

O grupo de presos alcançou representatividade nas prisões paulistas e gradualmente passou a negociar garantias constitucionais e pactuações relativas ao tratamento de presos e, assim,

[…] Tal discurso foi sendo ampliado entre os presos a partir de 1993 na busca de reconhecimento e representatividade nas penitenciárias de São Paulo. A facção, que se identificava como um partido de presos, em certa medida, pactua a representatividade inicial sob o argumento que o PCC enfrentaria as violações de direitos humanitários promovidas pelo Estado contra os apenados. Assim, reivindicavam, aos órgãos de segurança pública, por exemplo, em ocasião das rebeliões, garantias e atendimentos previstos na Lei de Execução Penal (LEP/84) aos custodiados (TORRES, 2019, p. 120).

Nas últimas décadas, o PCC, o “time de futebol”, tornou-se um “partido de presos” e congrega cerca de 35 mil faccionados e 12 mil deles estão recolhidos em penitenciárias no estado de São Paulo. Organizado informalmente no interior das prisões paulistas, expandiu seus tentáculos e domínios de territórios prisionais e criou estatutos, como vimos. O primeiro, idealizado por Mizael Aparecido da Silva, no ano de 1993, apresentava dezesseis orientações relativas à gestão, como diz Leimgruber (2020), da “ética do crime”, e, sobretudo, buscando estabelecer “diretrizes de obediência para os filiados, consolidava a organização criminosa sob o lema ‘Paz, Justiça e Liberdade’”, inspirado nos ideais da Revolução Francesa (TORRES, 2019, p. 121).

O alistamento ao PCC ocorre pelo batismo, com anotação em livro atribuindo ao filiado a sujeição às regras do PCC pela observância do estatuto do grupo criminoso. Estudos identificam que o estatuto da organização sofreu alterações no ano de 2011; desde então, contém dezoito dispositivos que estabelecem diretrizes aos faccionados, além da reformulação do lema “Paz, Justiça e Liberdade” para “Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União” (TORRES, 2020; LEIMGRUBER, 2020).

Motins e rebeliões e a busca de hegemonia nas prisões

O período de 1990 a 2006 é demarcado por motins e rebeliões. Dias (2011a, p. 128) revela que os conflitos se tornavam, gradativamente, mais duradouros e violentos, e demarcados pela ampliação no quantitativo de mortos durante os conflitos internos. Nesse ínterim ocorreram 40 motins e rebeliões no estado de São Paulo, e à época três episódios alcançaram visibilidade, sobretudo pelo registro da crescente violência empregada nos atos.

O primeiro deles, o “Massacre do Carandiru”, ocorreu no ano de 1992; não teve relação com ações de grupo organizado de presos e teve projeção internacional. Trata-se de um motim de presos, considerando que não houve pauta reivindicatória. O caso jamais teve a motivação esclarecida e resultou no homicídio de 111 custodiados durante a intervenção da polícia militar na Casa de Detenção de São Paulo[12] (MACHADO; MACHADO, 2015).

A “megarrebelião” no ano de 2001 situa-se como o segundo episódio que demarca a crescente violência nas prisões. Na ocasião, presos incentivados por representantes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) rebelaram-se, simultaneamente, em 29 penitenciárias no estado de São Paulo (SALLA, 2006; DIAS, 2011a; TORRES, 2019).

Salla (2006) relata que a rebelião conhecida como a megarrebelião de 2001 mobilizou, em média, 28 mil custodiados no estado de São Paulo. Durante a revolta, havia 7 mil custodiados da Casa de Detenção (Presídio do Carandiru) e as negociações aconteceram por meio de representantes da facção PCC, que denunciaram maus-tratos sofridos, precariedade na assistência à saúde, na assistência jurídica e na alimentação, e apresentaram exigências ao governo de São Paulo. Entre elas, o regresso de faccionados transferidos para o regime disciplinar da Casa de Custódia de Taubaté. Para o autor, o modelo de prisão adotado no Brasil é ineficiente por distintos fatores, dentre os quais o fato de conceber o aprisionamento na ótica de “um sistema de poder fechado em si mesmo, polarizando os conflitos entre presos e equipe dirigente”, com isso, as rebeliões são os reflexos visíveis da inoperância das instituições constituídas (SALLA, 2006, p. 280).

O terceiro evento aconteceu cinco anos após a rebelião de 2001, também promovido pelo PCC, e repercutiu mundialmente, tornando-se conhecido como a rebelião do “Dia das Mães” ou do “Dia do Salve”, em maio de 2006. Durante o evento, presos rebelaram-se inicialmente no sistema penitenciário do estado de São Paulo, porém o conflito evoluiu para presídios nos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Minas Gerais (DIAS, 2011a; TORRES, 2019).

Pode-se afirmar que a rebelião do Dia das Mães foi decisiva para demonstrar ao país e, internacionalmente, o elevado nível de articulação da maior organização criminosa que atua nas prisões brasileiras, especialmente porque, “ [...] Desta vez, a organização do PCC inovou em relação à rebelião de 2001, especialmente ao adotar ações dentro e fora das prisões, fato que demonstrou força e desafiou os poderes constituídos pelo Estado” (TORRES, 2019, p. 112-113).

Em fevereiro de 2019, Marcola, a principal liderança do PCC, e outros 21 membros da cúpula da organização foram transferidos para o Sistema Penitenciário Federal (SPF). A transferência ocorreu para evitar possível resgate da liderança do presídio de Presidente Venceslau, localizado no estado de São Paulo. Mas, antes disso, o PCC havia comandado um massacre nas prisões brasileiras em busca de hegemonia[13].

O conflito teve início em período anterior, mais especificamente entre os anos 2015 e 2016, quando as facções deram as primeiras pistas de que uma batalha estaria em curso no interior das prisões e para além delas. Conflito identificado pelos especialistas Manso e Dias (2018) como “Guerra”, que visava a expansão, o domínio e as cooptações de membros e, sobretudo, o controle do mercado de drogas pelo PCC. O incidente que teve interlocução e dissidências iniciais, principalmente entre as facções PCC, CV, FDN e PGC, anunciou uma era de massacre de presos nos anos de 2017 e 2019, no estado do Amazonas; no ano de 2017, no estado de Roraima; e no ano de 2019, no estado do Pará, além de homicídios pulverizados nos demais estados do país (TORRES, 2020).

A Inteligência, o Crime Organizado e as atribuições do Departamento Penitenciário Nacional

Imerso nesse contexto de expansão do crime organizado, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) atua como órgão executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, responsável pelo fomento da Política Penitenciária Nacional. Com isso, dentre outras atribuições, tem a competência de acompanhar e fiscalizar a aplicação, em sentido amplo, da execução penal no Brasil.

Assim, o Depen ocupa-se de estabelecer diretrizes nacionais para a execução de políticas de atendimento ao preso e ao egresso, da fiscalização dos estabelecimentos penais, e tem a responsabilidade de assistir tecnicamente, com recursos financeiros[14] e materiais, e promover formação profissional às unidades federativas. Além da incumbência, na esfera da custódia, de coordenar e supervisar os estabelecimentos prisionais federais (BRASIL, 1984).

A nova Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen), instituída pelo Decreto Nº 9.662, de 1º de janeiro de 2019, emerge, como veremos, para incorporar novas atribuições ao Depen, sobretudo, aquelas concernentes a “dirigir, planejar, coordenar, controlar, avaliar e orientar as atividades de inteligência no âmbito do Departamento Penitenciário Nacional” (BRASIL, 2019).

Vale ressaltar que as atribuições do Depen são também desafios à gestão, considerando o contexto de deterioração das condições de custódia a que são submetidos os encarcerados e, em especial, os movimentos de controle da população encarcerada por parte de facções criminosas.

Por outro lado, é esse exame preliminar da conjuntura de aprisionamento que ajuda a explicar os diversos episódios de enfrentamento ao Estado por meio de assassinatos, motins e rebeliões nas prisões (DIAS, 2011b; SALLA, 2006; 2007; SALLA; ALVAREZ, 2012; FELTRAN, 2018).

Esses acontecimentos, especialmente as rebeliões, estão relacionados, em certa medida, ao processo de institucionalização da inteligência penitenciária no país. Cabe considerar, ainda, que as ações orquestradas contra o Estado, sobretudo, aquelas ocorridas a partir do ano de 2001, coincidem no tempo com o início de investimentos em infraestrutura e representam “um marco nas políticas de segurança pública”, como a criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) para presos faccionados e a concepção do “Sistema Penitenciário Federal (SPF), com alterações na LEP[15], no ano de 2003, e o fortalecimento gradativo do Departamento Penitenciário Nacional (Depen)” (TORRES, 2019, p. 126-127).

Contudo, as organizações criminosas continuaram operacionalizando a produção de ações de enfrentamento ao Estado[16], as quais estão imbricadas ao cenário e nas preocupações da Segurança Pública, da Defesa e com impacto no Desenvolvimento Nacional.

Identificam-se, no rol das ações contra o Estado, os crimes de roubo a banco (modalidade criminosa conhecida como o novo cangaço brasileiro), ou seja, crimes cometidos contra as instituições financeiras do país; o tráfico internacional de drogas e armas; e ainda o histórico de rebeliões ocorridas nos anos de 2001, 2006, 2017 e 2019.

Os precursores da inteligência no Depen

Nesse cenário, constituído pelo crescente encarceramento e pelas insurgências de grupos criminosos, deu-se também o início da mobilização de atores institucionais que atuavam na Coordenação-Geral de Inteligência (CGIN) da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal (DISPF), criada em 2007, e alimentavam o anseio sobre a criação de uma coordenação-geral de inteligência penitenciária do Depen com protagonismo nacional, desde o ano de 2009. O anseio era motivado pelas demandas apresentadas pelas unidades federadas, que visualizavam a necessidade do Departamento organizar e disseminar uma Doutrina Penitenciária Nacional.

Nessa direção, a proposta, ainda incipiente, consistia na ampliação do escopo de atuação da Coordenação-Geral de Inteligência (CGIN/DISPF), que protocolarmente tem a atribuição restrita à função de subsidiar, com assessoramento de informações, a Diretoria do Sistema Penitenciário Federal (DISPF/Depen), setor responsável pela custódia em penitenciárias federais, no âmbito do Depen.

Nesse ínterim, no ano de 2011, o delegado da Polícia Federal Washington Clark dos Santos, que atuava como diretor da CGIN[17], contribuiu para ampliar esse diálogo e novas ações articuladas com os sistemas penitenciários estaduais, fato que resultou, no ano de 2013, na constituição da Doutrina Nacional de Inteligência Penitenciária (Dnipen), publicada por meio da Portaria Nº 125, de 6 de maio de 2013, e classificada no grau de sigilo reservado[18].

Assim, a Dnipen surge como resultado de três articulações do Depen, quais sejam: diálogo com os representantes dos Organismos de Inteligência Penitenciária; realização do I Encontro Nacional dos Chefes de Organismos de Inteligência Penitenciária, no ano de 2012; e as reuniões do Grupo de Trabalho para elaboração da Doutrina Nacional de Inteligência Penitenciária, em março de 2013 (DEPEN, 2013).

A partir daí, com o advento da Dnipen, a CGIN/DISPF/Depen expandiu o seu protagonismo junto aos órgãos estaduais, ampliando ainda mais a sua articulação no período compreendido entre os anos de 2014[19] e 2018, principalmente por intermédio da difusão da Doutrina Nacional de Inteligência Penitenciária, via a oferta de 52 edições do Curso Básico de Inteligência Penitenciária para outros Órgãos (CBIPENO). No período, foram formados 2.000 servidores públicos, sobretudo, estaduais, relacionados às inteligências e demais áreas e órgãos, como, do Ministério Público, da Polícia Militar, da Polícia Civil, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e das Forças Armadas.

Na ocasião, a CGIN também ofereceu formação, com o suporte da Escola Nacional dos Serviços Penais (Espen) para cinco turmas, nos cursos de: a) Manejo de Fonte Humana (Modelado da Polícia Federal); b) Entrevista com o uso de técnicas adaptadas para o sistema penitenciário a partir das bases de conhecimentos da Polícia Federal e da ABIN; e, ainda, c) Análise dos Seis Canais de Comunicação: veracidade e credibilidade da informação e Entrevista Perfilativa, após a formação de cinco servidores em “análise comportamental e em entrevista investigativa”, que contou com treinamento no instituto Emotional Intelligence Academy (EIA), em Manchester, na Inglaterra (DEPEN, 2017)[20].

Contudo, vale sublinhar que a fase embrionária da diretoria se vincula à instituição do Núcleo de Inteligência Penitenciária (Nipen), subordinada ao gabinete da direção do Depen/MJ, mediante a Portaria Nº 179, de 14 de março de 2016, sob o comando da agente federal Marlene Inês da Rosa (DEPEN, 2016a)[21].

A iniciativa visava oportunizar visibilidade à inteligência penitenciária, sobretudo, diante dos enfrentamentos promovidos pela facção Primeiro Comando da Capital contra o Estado na última década. Como já demonstrado, nos anos de 2015 e 2016, o PCC buscava ampliar o domínio de território dentro e fora das prisões. Com isso, encontrava-se em curso um grande conflito entre PCC e o grupo de coalizão formado inicialmente pelo Comando Vermelho (CV), pela Família do Norte (FDN) e pelo Primeiro Grupo Catarinense (PGC), que posteriormente agrupou outras facções dissidentes, com o objetivo de fazer oposição ao PCC e, assim, resistir ao seu projeto hegemônico, que visava o controle das prisões e do mercado de drogas no país (MANSO; DIAS, 2018; TORRES, 2020).

Nesse cenário, mesmo que tardiamente, o Depen vislumbrava a necessidade de prospectar conhecimentos e técnicas, e difundir modelos de inteligência penitenciária oportunos para prevenção e redução de danos em ambientes penitenciários. A partir daí, cogitou-se implantar a Rede Nacional de Inteligência (Renipen) e articular a cooperação entre as atividades de inteligência federal e estaduais. A Renipen seria desenvolvida a partir do Plano de Inteligência Integrada do Sistema de Justiça Aplicada do MJ.

Esse empreendimento contou com o acordo celebrado entre o Ministério da Justiça (MJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) (TOCANTINS, 2016), que visava, entre outras ações, promover visitas in loco nas unidades prisionais e nas administrações penitenciárias dos estados brasileiros[22]. Contudo, o Núcleo foi extinto e o trabalho descontinuado durante a troca de gestão, no ano de 2017.

Mãos à obra – a interlocução e o processo de institucionalização da Dipen no Ministério da Justiça e Segurança Pública

No início do mês de novembro de 2018, durante período de transição governamental, foi anunciada a nova composição do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que, por sua vez, elencou o nome do delegado da Polícia Federal (DPF) Fabiano Bordignon – que havia ocupado o cargo de diretor da Penitenciária Federal de Catanduvas (PFCAT) nos anos de 2009-2010 e 2012-2013 –, para conduzir o Departamento Penitenciário Nacional, na condição de diretor-geral. Desde então, deu-se o início do período de transição no órgão.

Por ocasião da transição, o DPF Bordignon convidou Washington Clark dos Santos, para retornar ao Depen. A conjuntura política foi oportuna para Washington Clark – que havia participado de gestões anteriores – relembrar a respeito da demanda antiga dos servidores e argumentar sobre a importância da criação de uma diretoria nacional pelo Depen. Para Clark, essa diretoria seria responsável pela articulação da inteligência prisional com os sistemas prisionais dos estados e visaria “a integração e celeridade de conhecimentos, a uniformização de linguagem e procedimentos e, principalmente, a construção de uma base nacional de cadastro de presos no Brasil” (CLARK, entrevista, 2020). Por fim, colocou-se à disposição.

Cabe destacar que a proposta tem relação com os anseios, as vivências e as experiências acumuladas entre os anos de 2009 e 2013, quando havia ocupado os cargos de Diretor da Penitenciária Federal de Campo Grande (PFCG), de 2009 a 2011, e Coordenador-Geral de Inteligência (CGIN/SPF/Depen), no período de 2011 a 2013.

O ministério sustentava, “ao menos no plano discursivo”, a bandeira de combate à corrupção e ao crime organizado, e com isso havia apresentado metas aos subordinados, sendo o implacável combate à corrupção, à criminalidade organizada e à redução dos crimes violentos as principais diretrizes da gestão. Nesse contexto, a pauta do fortalecimento do sistema prisional pela via da inteligência penitenciária tornou-se oportuna.

O projeto para a criação da diretoria foi apresentado ainda durante o primeiro mês de transição, que teve início em 19 de novembro de 2018. O convencimento sustentava-se, inicialmente, nas seguintes expectativas: a) disseminar uma doutrina nacional consubstanciada e legitimada pelo MJSP sobre inteligência prisional; e b) fomentar, instituir e profissionalizar as inteligências estaduais e das unidades penais, para que pudessem qualificar a gestão do conhecimento e das informações estratégicas oriundas das unidades prisionais do país.

De acordo com Bordignon (2020), a favor havia o fato de que o novo ministro tinha familiaridade com a temática relacionada à “criminalidade organizada, como PCC e CV, e também conhecia toda a expertise de inteligência penitenciária do SPF, por ter sido Juiz Corregedor da PFCAT/PR, por vários anos” (BORDIGNON, entrevista, 2020). As palavras do entrevistado revelam o nome de duas organizações criminosas com amplo poderio no sistema penitenciário.

Porém, Washington Clark não reconhece que a proposta inicial tenha vínculo específico com os enfrentamentos e levantes do PCC, ou seja, a proposta não guardava vínculo com nenhuma organização criminosa (Orcrim), em particular, e considera que “tal iniciativa visava alinhar-se ao desígnio da Inteligência Penitenciária como ferramenta de combate ao crime organizado como um todo, discutido e interpretado global e abrangentemente” (CLARK, entrevista, 2020).

Fabiano Bordignon, no entanto, ressalta que a existência das organizações criminosas no Brasil é um grande desafio para a segurança pública:

Há pelo menos 40 organizações criminosas em atuação nos estados e nas unidades prisionais brasileiras. A grande maioria delas surgiu a partir do descaso histórico com a gestão disciplinada das unidades prisionais brasileiras e a falta de investimentos em estrutura e pessoal. A percepção de que era necessário frear o poderio delas, a partir de uma articulação de dados e inteligência nos cárceres brasileiros, foi decisivo para a criação da Dipen (BORDIGNON, entrevista, 2020, grifo nosso).

Pode-se afirmar que os arranjos proporcionados pela transição de governo, aliados às trajetórias dos indivíduos com vinculações anteriores com o Sistema Penitenciário Federal (servidores do Depen e da PF) e envolvidos naquele momento no processo de institucionalização, ajudam a compreender o sucesso e a efetividade da ação empreendida.

Assim, a partir das articulações e dos convencimentos iniciais, o MJSP avalizou a criação da diretoria no âmbito da execução penal, compreendendo que a iniciativa seria parte do conjunto de ações e novas perspectivas do recém-recriado Ministério da Justiça e Segurança Pública, no combate ao crime organizado, que atua dentro e fora das prisões, fato que pode impactar, sobremaneira, para a redução de crimes violentos no país.

A Diretoria de Inteligência Penitenciária do Ministério da Justiça

A institucionalização da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen) do Ministério da Justiça foi regulamentada pelo Decreto Nº 9.662, de 1º de janeiro de 2019, pelo Presidente da República. O advento da Dipen à estrutura do Depen fez com que o órgão ampliasse de três para quatro diretorias, com aporte de incrementos da ordem de 25% durante a reestruturação do Departamento. O organograma na Figura 1 expõe a estrutura inicial da nova diretoria.

Organograma inicial da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen)
Figura 1
Organograma inicial da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen)
Elaborado a partir de informações disponíveis em Brasil (2019).

A diretoria origina com as atribuições robustas de dirigir, orientar, avaliar, coordenar, planejar e controlar as agências de inteligência penitenciária nos âmbitos federal e estadual, além da missão de “elaborar estudos e pesquisas para o aprimoramento das atividades de inteligência penitenciária e de enfrentamento ao crime organizado” (BRASIL, 2019), conforme o disposto no art. 36 do Anexo I do Decreto Presidencial Nº 9.662.

Por sua vez, como consequência das competências indicadas no decreto, a Dipen implantou Observatórios Regionais de Inteligência Penitenciária (Oripen) nas cinco regiões do Brasil, como “órgãos consultivos permanentes e auxiliares da Diretoria de Inteligência Penitenciária do Departamento Penitenciário Nacional”, na direção de promover a integração com os entes federados (DEPEN, 2020b) e atender à previsão do art. 36, VI, que visa “promover, com os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência, o intercâmbio de dados e conhecimentos, necessários à tomada de decisões administrativas e operacionais por parte do Departamento Penitenciário Nacional” (BRASIL, 2019).

Os Observatórios como possibilidade de articulação com os estados

Os Observatórios Regionais de Inteligência Penitenciária (Oripen) foram instituídos pela Portaria GAB-Depen Nº 11, de 9 de janeiro de 2020, e são constituídos por cinco divisões regionais, localizadas nas regiões Norte (Manaus/AM), Nordeste (Ceará/CE), Sudeste (Presidente Prudente/SP), Sul (Curitiba/PR) e Centro-Oeste (Campo Grande/MS) (DEPEN, 2020b).

As Divisões Regionais de Inteligência Penitenciária caracterizam-se pela fixação de Agentes Federais de Execução Penal, todos recrutados pela Dipen, em cidades das 5 regiões geográficas do Brasil, interagindo com toda a comunidade de inteligência e, em curto espaço de tempo, obtendo resultados relevantes no tocante à detecção e neutralização de ameaças a servidores, instalações e sistemas prisionais (CLARK, entrevista, 2020).

Os Oripen são integrados pelos chefes de divisão regional da Dipen/Depen; pelos coordenadores das Agências de Inteligência Penitenciária das Secretarias de Administração Penitenciária estaduais que compõem a divisão de cada região; e pelos representantes do setor de Inteligência da Penitenciária Federal localizada na região (DEPEN, 2020b).

Compete aos Oripen monitorar e avaliar eventos com iminência de riscos à segurança pública e aos sistemas penitenciários, consubstanciando em relatórios para o compartilhamento de dados com a Diretoria de Inteligência Penitenciária. O compartilhamento tem especial atenção às informações relacionadas às organizações criminosas que atuam nas prisões e, ainda, “sobre egressos ou foragidos vinculados àquelas facções, em suas respectivas regiões” (DEPEN, 2020b). Com a medida, os Observatórios são responsáveis pela comunicação de ações pertinentes aos sistemas penitenciários estaduais e federal, entre as quais os registros de casos efetivos ou casos tentados de rebeliões, motins, óbitos, fugas ou resgates (DEPEN, 2020b).

A Portaria GAB-DEPEN Nº 11/2020 atribui ao Observatório Regional o papel de mediador e propositor de meios necessários à modernização e ao fortalecimento institucional das Agências de Inteligência Penitenciária estaduais e no Distrito Federal. Entre as ações propostas encontram-se os “planos para ações regionalizadas […], com a utilização de equipamentos do Depen, para varredura eletrônica e extração de dados de dispositivos móveis arrecadados em unidades prisionais” (DEPEN, 2020b).

A inteligência como mecanismo de enfrentamento ao crime organizado no Brasil: ações e resultados

A criação da Diretoria de Inteligência Penitenciária, certamente, inaugurou um novo período no Depen, com possibilidades regimentares que propõem a gestão integrada das agências de inteligência penitenciária brasileiras e, sobretudo, com ações consubstanciadas nos marcos legais da Política Nacional de Inteligência (PNI), da Estratégia Nacional de Inteligência (ENI) e do Plano Nacional de Inteligência (PNI), e partícipe do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Ações que, em tese, instituídas poderão tanto coibir o domínio das facções criminosas sobre os demais custodiados do sistema de justiça criminal quanto reduzir os frequentes enfrentamentos ao Estado que ocorrem, rotineiramente, por meio de assaltos às instituições bancárias e de valores, tráfico nacional e internacional de drogas, entre tantas outras ações arranjadas a partir do sistema penitenciário brasileiro.

Mas em que medida a institucionalização da Diretoria, como órgão de fomento à Inteligência Penitenciária nos estados e no Distrito Federal, vem contribuindo para o combate do crime organizado no Brasil?

O ex-diretor Washington Clark dos Santos destaca que:

o resultado mais expressivo da Inteligência Penitenciária é, sem dúvida, a contribuição para a diminuição dos índices de violência no país. Impossível dissociar tal decréscimo e impacto na segurança pública sem vinculá-lo às ações, por todo o país, para controle das unidades prisionais, tais como aperfeiçoamento de procedimentos de segurança, monitoramento e segregação de líderes de facções criminosas, implementação de recursos tecnológicos e agilidade no intercâmbio de conhecimentos de inteligência. (CLARK, entrevista, 2020).

Para ratificar a informação, o Relatório de Gestão – Resultados 2019 indica os caminhos percorridos e auxilia na compreensão dos planos e das ações empreendidas no primeiro ano da Dipen. Segundo as informações disponibilizadas pelo órgão no Relatório de Gestão 2019, a diretoria vem atuando em consonância com as orientações do MJSP, em três eixos de trabalho, a saber: Gestão Integrada; Capacitação e Estrutura (DEPEN, 2019).

As ações do eixo “Gestão Integrada” relacionam-se “ao aperfeiçoamento da gestão de processos, doutrina e métodos de planejamento”; as do eixo “Capacitação” dizem respeito à revisão e ampliação “de conhecimentos dos profissionais de inteligência e à promoção da segurança orgânica”; enquanto as do terceiro eixo, relacionadas à “Estrutura”, “visam à melhoria da arquitetura de TI e inovações tecnológicas” (DEPEN, 2019, p. 16).

O Relatório indica, ainda, que o novo modelo de gestão implantado pela Dipen é “pautado pela retomada da essência da atividade de inteligência, em uma reestruturação generalizada e no estabelecimento de processos e metas” (DEPEN, 2019, p. 16), que visam a consolidação em resultados assertivos.

Ações e resultados encontrados

Entre esses resultados encontravam-se: a elaboração de 353 relatórios de inteligência pelos Observatórios e pela Diretoria; 700 pareceres pertinentes às inclusões ou permanência de custodiados no SPF; manifestações sobre segurança da informação; prospecção sobre a implementação de softwares, além de outras ações descritas (DEPEN, 2019, p. 16).

De acordo com o Relatório de Gestão, no ano de 2019, foi estruturada a Rede Nacional de Inteligência Penitenciária (Renipen). Cabe observar que esse mecanismo estava previsto desde a criação do Núcleo de Inteligência Penitenciária (Nipen), no ano de 2016. A estruturação da Renipen visou

produzir conhecimentos úteis e oportunos para subsidiar estratégias de melhorias do sistema prisional e de combate ao crime organizado. Para tornar mais célere o tráfego de conhecimentos sensíveis, ligados a cada sistema penitenciário estadual, o Depen trabalha para integrar as bases de dados e conhecimentos de inteligência penitenciária em repositório único, hospedado e mantido pelo MJSP. (DEPEN, 2019, p. 12, grifo nosso).

Sendo assim, a estruturação permitiu: (i) melhorar a interlocução do Depen com os entes federados; (ii) iniciar o processo de integração de bases de dados sobre as pessoas custodiadas; (iii) ampliar a integração do Depen com os demais membros do Sistema Brasileiro de Inteligência; (iv) além de possibilitar investimentos na capacitação e atualização dos profissionais de inteligência penitenciária (DEPEN, 2019).

O Departamento também anunciou outras ações implementadas durante o primeiro ano de vigência da Dipen. Foram elas:

  1. ✔ A atualização da Doutrina Nacional de Inteligência Penitenciária (Dnipen), publicada originalmente no ano de 2013.

    ✔ A organização de dois Encontros Nacionais de Chefes de Inteligência Penitenciária no Ministério da Justiça e Segurança Pública, que contaram com a participação de todos os estados e do Distrito Federal.

    ✔ Cursos de Inteligência Penitenciária para o Paraguai, realizado em Assunção, e para a Bolívia, realizado em La Paz. Os cursos visavam proporcionar a aproximação e a interatividade entre as agências de inteligência do Brasil e dos países vizinhos “no combate às facções criminosas e ao crime organizado” (DEPEN, 2019, p. 23). A interação com as inteligências dá-se estrategicamente, considerando a expansão e transnacionalização do crime organizado para os demais países da América do Sul.

    ✔ A implantação inicial da plataforma Cronos: “ferramenta para armazenamento e tramitação segura dos documentos de inteligência em parceria com a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do MJSP” (DEPEN, 2019, p. 12). A plataforma Cronos encontra-se implantada no âmbito do Depen, e em fase de expansão para as inteligências estaduais.

    ✔ A participação no Fusion Center ou Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF), numa rede de cooperação que visa prevenir e combater a expansão do crime organizado, “especialmente à lavagem de dinheiro por organizações criminosas nacionais e transnacionais, ao tráfico de armas e drogas, ao contrabando, à corrupção e ao terrorismo”[23] (DEPEN, 2019, p. 12).

    ✔ A participação no Centro de Cooperação Policial Internacional (CCPI/PF/RJ), que atua em eventos relacionados à cooperação internacional com a Argentina, a Bolívia, a Colômbia, o Paraguai e o Peru. Entre as ações desenvolvidas, o Depen subsidia com dados referentes ao ingresso de presos estrangeiros nos estabelecimentos prisionais e nas bases de dados nacionais. A iniciativa da Dipen tem como um dos objetivos “identificar a estrutura e alcance das principais organizações criminosas em atuação em nosso continente” (DEPEN, 2019, p. 12). Nesse sentido, vale ressaltar que o Brasil vem alcançando protagonismo “ao promover a instalação de banco de dados voltado à congregação de informações relacionadas à população carcerária do Brasil e dos países com assento no CCPI” (DEPEN, 2019, p. 12).

    ✔ Com tudo isso, em âmbito nacional, a Dipen assumiu a gestão sobre a atualização de dados do Sistema Sisdepen – Indivíduos, sistema de integração de base de dados que congrega as informações das pessoas presas no Brasil. Em dezembro de 2019, o sistema gerenciava 72% da população prisional (DEPEN, 2019, p. 12). A intenção é promover o acesso online aos dados nacionais para todos os estados brasileiros e o DF, ainda no ano de 2020. Na atualidade, os estados de São Paulo, do Tocantins, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Mato Grosso do Sul, além do Sistema Penitenciário Federal, acessam os dados unificados.

No período analisado, as articulações da Dipen desdobraram-se em eventos e ampliação das relações regionais, nacionais e internacionais. Nessa direção, destaca-se a participação na Conferência Birregional do El Pacto (Programa de Assistência contra o Crime Organizado Transnacional), que reuniu representação de 32 países, no mês de setembro de 2019, no Uruguai, para dialogar sobre o desenvolvimento de medidas alternativas à pena privativa de liberdade.

O encontro serviu para ampliar e fortalecer as redes em construção em torno das relações interinstitucionais de enfrentamento ao crime organizado. A iniciativa, de base europeia, atua “no âmbito da cooperação regional comunitária para a América Latina e Caribe” (DEPEN, 2019, p. 22), e busca ampliar a cooperação entre as gestões dos sistemas penitenciários da Europa e da América Latina, mediante a homologação da Red de Cooperación Penitenciaria del Mercosur (Redcopen).

No campo das trocas de conhecimento sobre organizações criminosas, o Brasil sediou o “ 2º Encontro de Coordenação Transnacional no Combate a Organizações Criminosas em Sistemas Penitenciários e Coordenação Interinstitucional para o Combate às Organizações Criminosas em Sistemas Penitenciários”, no mês de junho de 2019, sob a organização do Depen/MJSP (DEPEN, 2019). O evento reuniu representantes dos sistemas prisionais estaduais.

Projetos em andamento e desafios

O Relatório de Gestão – Resultado 2019 apresenta, ainda, os projetos em andamento na Dipen, destacando-se o PNESP, o Palasnet e o Sisdepen Mobile, os quais se encontram em fase de consolidação.

Esses projetos são mecanismos estratégicos da inteligência penitenciária, em regra, contra a expansão das organizações criminosas. Dentro dessa dinâmica, não por acaso, a implantação do Painel Nacional de Eventos do Sistema Prisional (Pnesp) permitirá ao Depen acompanhar simultaneamente “em tempo real” os eventos relacionados a motins, rebeliões, resgates, entre outros acontecimentos que ocorram nos estabelecimentos prisionais das unidades federadas. Segundo o diretor da Dipen, Márcio Magno[24], o mecanismo “está pronto e será disponibilizado às unidades da federação” (MÁRCIO MAGNO, entrevista, 2020).

Já o Palasnet se trata de um sistema tecnológico que acumula uma base de conhecimento singular para compartilhamento de informações de inteligência penitenciária nacional, a partir de informações recolhidas pelo Sisdepen Indivíduos e por intermédio do qual será possível intercambiar as informações na Rede Nacional de Inteligência Penitenciária (Renipen), no Depen e com demais países que assinarem o acordo de cooperação internacional (Redcopen).

O diretor de inteligência afirma que o sistema se encontra em fase de aprimoramento, para posterior disponibilização em ambiente virtual, “com dupla camada de segurança, inclusive, para acesso por servidores dos sistemas penitenciários das unidades federativas e de outros países do Mercosul”[25] (MÁRCIO MAGNO, entrevista, 2020).

O planejamento do órgão prevê repasse fundo a fundo aos estados para aplicação gradativa em inteligência penitenciária, de modo a equipar com ferramentas tecnológicas, viaturas e estrutura física compatível com as atividades de inteligência desenvolvidas pelas unidades integrantes da Redcopen.

Dentro dessa dinâmica, impõem-se os desafios de ampliar, cada vez mais, a interlocução da DIPEN com os demais atores envolvidos; a profissionalização e padronização de linguagem e de procedimentos de inteligência penitenciária; a captação de dados coletados sobre os custodiados no Brasil, em tempo real, isto é, informações cadastrais das administrações estaduais e do DF (interoperabilidade); a implementação de projetos voltados à identificação biométrica de presos (individualização de cadastros – fim das múltiplas identidades de presos); a ampliação do grupo de profissionais da Dipen; a autonomia para projetos de Tecnologia da Informação e Comunicações; a ampliação da capacidade de monitoramento dos parlatórios das penitenciárias federais; a ampliação da capacidade de monitoramento nas penitenciárias federais, entre outras ações, ainda incipientes, que colocam-se como desafios para o Departamento Penitenciário Nacional. Porém, são desafios com emergente necessidade de superação, sobretudo, na perspectiva do MJSP se antecipar, estrategicamente, às situações de ameaças proporcionadas pelas organizações criminosas que atuam nas prisões brasileiras.

Notas Finais

Compreender os processos sociais que perpassam pela expansão do encarceramento, pelo surgimento e pela consolidação de organizações criminosas nas prisões, que influenciaram a institucionalização da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen) no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), foi o objetivo deste artigo. Como vimos, a criação da Dipen deu-se por meio do Decreto Presidencial Nº 9.662, que elencou entre suas atribuições as funções de dirigir e controlar as agências de inteligência penitenciária no Brasil.

Porém, pode-se afirmar que o advento da Dipen resulta do desencadeamento de uma questão carcerária constituída pelo crescente encarceramento. Esse déficit histórico de vaga, aliado à falta de investimentos em infraestrutura e, principalmente, à inoperância do Estado em cumprir sua função de integração social por meio de políticas penitenciárias, favoreceu uma escalada de violência que, por sua vez, passou pela gênese e pelo fortalecimento de inúmeras facções criminosas no sistema penitenciário, destacando-se, dentre elas, a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), no ano de 1993.

A partir daí, rebeliões lideradas pelo PCC passaram a acontecer sistematicamente no país; por exemplo, as rebeliões de 2001 e 2006 e os conflitos com outras facções com início nos anos 2015 e 2016, quando teve início uma batalha envolvendo o PCC, o CV, a FDN e o PGC, de dentro para fora das prisões, com o objetivo de demarcar território, domínio e cooptar adeptos, e com especial interesse no controle do mercado de drogas. O conflito gerado entre as facções desdobrou-se numa era de massacres sem precedentes entre os anos de 2017 e 2019, principalmente nos estados do Amazonas, de Roraima e do Pará.

Assim, a institucionalização da diretoria foi gestada num contexto de progressivo encarceramento, que perpassava por significativos levantes contra o Estado brasileiro.

Por outro lado, o período se caracteriza também pela mobilização gradativa de investimentos do governo federal e, em especial, pela organização de esforços do Departamento Penitenciário Nacional – com o objetivo de se antecipar às situações de ameaças oriundas das organizações criminosas –, dentre os quais se destacam: (i) a criação do Sistema Penitenciário Federal (SPF), com 5 penitenciárias inauguradas desde o ano de 2006 para custodiar e isolar lideranças de organizações criminosas; e (ii) a gradativa institucionalização da inteligência penitenciária, a partir dos precursores – CGIN, Dnipen e Nipen –, que levaram à consolidação da Diretoria de Inteligência Penitenciária (Dipen) no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 1º de janeiro de 2019.

O advento dessa diretoria, que se propõe gestar de maneira preventiva as ações ocorridas no sistema prisional, planejando, coordenando, integrando, orientando e supervisionando, como agência central, a inteligência penitenciária em âmbito nacional, via Rede Nacional de Inteligência Penitenciária (Renipen) e Divisões Regionais de Inteligência, oportunizou a produção de documentos e informações que permitiram neutralizar possíveis atentados aos servidores, rebeliões e crimes planejados pelas organizações criminosas.

Observa-se que a institucionalização da diretoria favoreceu a ampliação do diálogo e a troca de informações de inteligência com os estados, o DF e os demais órgãos de inteligência do governo federal. Com isso, vem se consolidando o processo de integração de bases de dados sobre as pessoas custodiadas (interoperabilidade). Em concomitância, amplia a capacitação e atualização dos profissionais de inteligência penitenciária. No campo das perspectivas, a Dipen vislumbra firmar termo de cooperação entre as gestões dos sistemas penitenciários da Europa e da América Latina por meio da homologação da Redcopen.

Nessa direção, considerando a existência de constante simbiose entre inteligência e tecnologia da informação, a Dipen atua para institucionalizar um serviço integrado de informação a partir da implantação de ferramentas, como o Painel Nacional de Eventos do Sistema Prisional (Pnesp) e o Palasnet, alimentado pelo Sisdepen – Indivíduos, para intercambiar as informações na Rede Nacional de Inteligência Penitenciária – Renipen, no Depen e em demais países que assinarem o acordo de cooperação internacional.

Certamente, a criação da Dipen e as distintas ações instituídas e/ou em andamento, como vimos, resultam das ações do Estado para coibir os enfrentamentos das organizações criminosas, sobretudo, as ações produzidas pela facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Conclui-se, assim, que, mesmo tardiamente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública implantou a Dipen como mecanismo fundamental para prospectar e difundir conhecimentos na área da inteligência penitenciária e, em especial, para propiciar prevenção e redução de violência dentro e fora do sistema penitenciário brasileiro, a qual segue em exercício, no âmbito da atual Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).

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Notas

[1] Esta pesquisa foi iniciada durante a realização do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE/ESG - 2020). Na atualidade a investigação integra o Estágio Pós-doutoral, sob o título: “A Inteligência Penitenciária como Política de Segurança Pública no Brasil: limites, possibilidades e o enfrentamento às organizações criminosas”, realizado no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Pós-doutoramento supervisionado pela Professora, Doutora, Maria João Leote Carvalho, no CICS.NOVA FCSH (Grupo de investigação: RG2 - Cidadania, Trabalho e Tecnologia. Linha de pesquisa: Direitos, Políticas e Justiça) e pelo Professor, Doutor, Carlos Etulain, vinculado ao Núcleo de Políticas Públicas (NEPP) e ao Observatório de Violência, Segurança Pública e Penitenciária, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
[2] Dados do Sistema de Informações Penitenciárias (Sisdepen) referentes ao ano de 2020
[3] Com o advento do terceiro governo Lula, em 24 de janeiro de 2023, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) tornou-se Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
[4] O artigo faz uso da nomenclatura Departamento Penitenciário Nacional (Depen) para dialogar sobre o período analisado.
[5] Para compreensão do conceito de Arqueologia, ver MACHADO, 1998.
[7] Para compreensão sobre disciplina e poder disciplinar, ver Foucault (1987).
[8] Dias, Salla e Higa, inclusive, vão além, observando que as Comissões de Presos (CS) instituídas pelo governo de São Paulo não obtiveram êxito em consequência da rejeição por parte de servidores penitenciários, setores políticos, parte da imprensa, parlamentares e autoridades do judiciário, que “condenaram aquela iniciativa de recomposição da gestão prisional” (DIAS; SALLA; HIGA, 2014, p. 3 apud TORRES, 2019, p. 181).
[9] “O Estatuto, composto por dezesseis dispositivos que explicitavam diretrizes de obediência para os filiados, consolidava a organização criminosa sob o lema ‘Paz, Justiça e Liberdade’. Percebe-se que o lema da facção se baseia numa analogia aos ideais da revolução francesa: Liberté, Egalité, Fraternité. A subsunção às regras do PCC se dá pelo batismo ao partido e a permanência dos sujeitos é condicionada à obediência ao estatuto do partido. Em 2011, o Estatuto sofreu atualizações e passou a contar com dezoito diretrizes, privilegiando regras de condutas e acrescidas ao tripé inicial as ‘[...] palavras igualdade e união’ (LEIMGRUBER; TORRES, 2017, p. 72, grifo das autoras), reformulando o lema para Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União, conforme indicam as dezoito orientações do PCC aos filiados” (TORRES, 2019, p. 121).
[10] A guerra é motivada pela tentativa de domínio das penitenciárias, com o objetivo de controlar o comércio de drogas e armas, os empreendimentos de outras modalidades criminosas, por exemplo, o roubo a banco no âmbito nacional e a pirataria fluvial na região Norte brasileira. O PCC visa, também, ampliar a expansão comercial para os demais países da América do Sul, como a Bolívia, o Paraguai, o Uruguai, a Colômbia, a Venezuela, o Equador, o Peru e a Argentina (TORRES, 2019, p. 131).
[11] Como indicado no estudo Prisão, educação e remição de pena no Brasil (TORRES, 2019, p. 54-55), existe uma simbiose entre a elevação dos indicadores de prisão e as alterações legislativas no período analisado: “No caso do Brasil, o endurecimento da legislação pode ser constatado, sobretudo, a partir de 1990 com o advento da Lei dos Crimes Hediondos (Lei N. 8.072/90). A legislação alterou o ordenamento jurídico ao incluir outros crimes à lista dos hediondos e elevou a dosimetria da pena (Dias, 2011a), fato que dificulta as decisões judiciais na concessão de outras medidas cautelares, diversas à prisão, a exemplo da fixação de fiança pecuniária, fato que permitiria, ao acusado, aguardar o trâmite do ato processual em liberdade. A ‘nova’ Lei de Drogas Nº 11.343/2006 também é identificada pelos especialistas (Campos; Alvarez, 2017; Jesus et al., 2011) como outro fator preponderante para a ampliação da punição. A legislação suspendeu a concessão de liberdade provisória ao elevar para 5 anos de prisão a pena mínima para o crime de tráfico de drogas, dentre outras restrições. O artigo 44, da legislação, impossibilita a concessão de liberdade provisória ao acusado, vedando ‘[…] a conversão de penas privativas de liberdade em restritivas de direitos’. Assim, a partir da aplicação da norma jurídica, verificou-se que ‘[…] muitos operadores utilizam a restrição da liberdade provisória como mera justificativa para manutenção de prisões provisórias, independente de análise sobre sua necessidade’ (Jesus et al., 2011, p. 128). Em síntese, a lei de drogas, 11.343/2006, impactou significativamente nos indicadores de aprisionamento no Brasil. Campos e Alvarez (2017, p. 55) indicam o crescimento de 345% no número de prisões pelo crime de tráfico, entre os anos de 2005 e 2013. Enquanto outros pesquisadores também relacionam o encarceramento provisório ao crime de tráfico como resultado de um ‘[…] fenômeno decorrente da falta de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes […]’ (Campos e Alvarez, 2017, p. 55)”.
[12] “Em decorrência da intervenção e mortes dos homens alojados no Pavilhão 9 da Casa de Detenção/Carandiru, no estado de São Paulo, foram denunciados, criminalmente, 120 policiais militares pelos crimes de homicídio e lesão corporal” (TORRES, 2019, p. 21).
[13] “Em janeiro de 2017, 56 pessoas foram mortas durante guerra entre as facções no Complexo Penitenciário Anísio Jobin (Compaj), Manaus (AM), e outras 57 mortes ocorreram em maio de 2019, no Compaj e outros estabelecimentos prisionais do estado do Amazonas (UOL, 2019). Também em 2017, a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista, RR, foi palco de 33 mortes resultantes do conflito (O GLOBO, 2019).

Em 2019, 62 homens foram mortos no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA) (G1, 2019) alvos dos conflitos entre as facções Família do Norte (FDN) aliada à facção Comando Vermelho (CV) e a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que busca hegemonia nas prisões do país” (TORRES, 2020, p. 170).

[14] A gestão, a assistência financeira e material aos estados são realizadas por meio da execução de recursos do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen.
[15] O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) foi previsto pela Lei Nº 10.792, de 2003, que trouxe alterações para a Lei de Execução Penal e o Código de Processo Penal brasileiro, com a previsão de sanções àqueles que cometerem crimes de subversão à ordem e/ou disciplina interna dos estabelecimentos prisionais, por exemplo, integrando ou liderando rebeliões (BRASIL, 1984, p. 11). Contudo, a legislação foi alterada pela Lei N° 13.964/2019, que se tornou conhecida como “Pacote Anticrime”, apresentado pelo Ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional. Segundo Barcelos (2020, p. 56), a legislação atualizada “tem como características as seguintes peculiaridades: a) duração máxima de dois anos, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, podendo ser prorrogado por períodos de um ano; b) recolhimento em cela individual; c) visitas quinzenais de duas pessoas por vez, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, com duração de duas horas; d) direito do preso à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol, em grupos de até quatro presos, desde que não haja contato com presos do mesmo grupo criminoso; e) entrevistas sempre monitoradas, exceto aquelas com seu defensor, em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, salvo expressa autorização judicial em contrário; f) fiscalização do conteúdo da correspondência; g) participação em audiências judiciais, preferencialmente por videoconferência, garantindo-se a participação do defensor no mesmo ambiente do preso (Art. 52, I a VII, LEP). Três são as hipóteses para a inclusão no RDD: a) quando o preso provisório ou condenado praticar fato previsto como crime doloso, conturbando a ordem e a disciplina interna do presídio onde se encontre; b) quando o preso provisório ou condenado representar alto risco para a ordem e à segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; c) quando o preso provisório ou condenado estiver envolvido com organização criminosa ou milícia privada, bastando fundada suspeita”.
[16] Pode-se dizer que, por um lado, os conflitos penitenciários e as recorrentes ações do crime organizado ordenadas do interior das prisões causam a sensação de permanente estado de anomia social e, com isso, a redução do grau de confiança da sociedade nas instituições de justiça e segurança pública. Por outro lado, tem impacto na garantia do desenvolvimento nacional, o qual é um dos objetivos fundamentais da república e previsto no art. 3º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Durkheim (2012) analisa a criminalidade a partir da formação de um estado de anomia social, em decorrência da ausência de normas jurídicas capazes de regular o afrouxamento das normas éticas e morais para regimentar a coletividade na sociedade industrial. Nessa direção, o ordenamento jurídico ajustaria as condutas e reproduziria a coerção social necessária, ao instituir sanções ao criminoso. Assim, os desarranjos caracterizados pela ausência de solidariedade social seriam combatidos por intermédio de sentimentos coletivos que estabeleceriam coesão no corpo social (DURKHEIM, 2012).
[17] Gestão do Diretor-Geral Augusto Eduardo de Souza Rossini.
[18] Partes da doutrina encontram-se disponíveis em meios digitais, contudo, considerando a sua classificação de grau de sigilo reservado, optou-se por não as utilizar neste estudo.
[19] No dia 24 de setembro de 2014, foi nomeado Abel Barradas como Coordenador-Geral de Inteligência (CGIN/DISPF), tornando-se o primeiro servidor de carreira a chefiar a pasta no Depen.
[20] Informações disponíveis em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/agentes-federais-de-execucao-penal-dao-continuidade-em-curso-que-teve-inicio-na-inglaterra. Acesso em: 4 set. 2020.
[21] De acordo com o art. 2º, o Nipen ocupava-se das seguintes atribuições: I – prospectar conhecimentos e técnicas de ações de inteligência penitenciária em ambientes prisionais nas unidades da Federação; II – difundir modelos de melhores práticas em inteligência penitenciária junto às unidades da Federação; III – promover a integração das estruturas de inteligência penitenciária das unidades da federação; IV – implementar a Rede Nacional de Inteligência Penitenciária – Renipen; e V – articular interface de cooperação entre as atividades de inteligência penitenciária federal e as atividades de inteligência penitenciária das unidades da Federação. Parágrafo único: As atribuições do Nipen não se sobreporão às atribuições previstas no art. 43 da Portaria nº 674, de 20 de março de 2008, da Coordenação-Geral de Inteligência Penitenciária, vinculada à Diretoria do Sistema Penitenciário Federal.
[22] Consultoria realizada pelo pesquisador Guaracy Mingardi.
[23] “Dentro deste escopo, a DIPEN/DEPEN desempenha suas funções como integrante deste Centro, realizando tanto a coleta/busca e compartilhamento de dados e conhecimentos, como a produção de documentos de inteligência – subsidiando a execução de ações táticas e operacionais, em assessoramento para tomada de decisão por parte da Coordenação do CIOF” (DEPEN, 2019, p. 12).
[24] Diretor de Inteligência Penitenciária, no período de 26/06/2020 a 18/05/2021
[25] O diretor complementa que o país está “Aguardando reforço do marco legal de criação da REDCOPEN, na qual o PALASNET foi eleito para ser o sistema oficial de troca de informações penitenciárias do MERCOSUL. Outros países do mundo estão interessados em aderir, mas a efetiva implementação no MERCOSUL e demais países depende de regulamentação internacional que já está sob a responsabilidade da ASINT/MJSP. A REDCOPEN está sendo denominada pelo EL PAcCTO (União Europeia) como a Interpol do Sistema Penitenciário (MÁRCIO MAGNO, entrevista, 2020). Informações acerca da REDCOPEN estão disponíveis em: https://www.elpaccto.eu/noticias/ampliacion-de-la-redcopen-despues-de-los-buenos-datos-obtenidos/. Acesso em: 5 set. 2020.
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