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Resiliência familiar no contexto do programa Caminhar em Família
Giselle Elias Miranda; Ana Tomás de Almeida; Maria Angela Mattar Yunes
Giselle Elias Miranda; Ana Tomás de Almeida; Maria Angela Mattar Yunes
Resiliência familiar no contexto do programa Caminhar em Família
Family resilience in the context of the Walking in Family program
Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educación, vol. 9, núm. 0, Esp., pp. 132-145, 2022
Universidade da Coruña
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Resumo: A reunificação familiar é um processo complexo que se inicia com o acolhimento residencial da criança e/ou jovem na instituição e continua após o regresso a casa, podendo contribuir para consolidação e sucesso das medidas de proteção. O presente estudo teve como objetivo analisar as dinâmicas geradoras dos processos de resiliência em famílias após implementação do Programa “Caminhar em Família” que visa a reunificação familiar por meio de promoção de competências parentais durante o acolhimento. Foi desenvolvido um estudo de caso qualitativo de caráter descritivo e retrospectivo. A amostra não probabilística foi composta por 4 famílias, sendo 5 progenitores e 6 crianças/jovens que saíram do acolhimento no ano de 2019 e estavam aptas à reunificação. A participação das famílias no programa permitiu confirmar o fortalecimento da resiliência no sistema relacional de pais e filhos graças à compreensão, capacitação e empoderamento suscitados nas diferentes etapas da medida de proteção. A associação conceitual de dois modelos teóricos da resiliência familiar das autoras Froma Walsh e Lietz e Strenght possibilitou identificar diferentes forças e recursos individuais e familiares na gestão da crise e respostas específicas às necessidades das famílias nos diferentes estádios do acolhimento e reunificação. Os resultados reforçam a importância de programas socioeducativos que privilegiam o fortalecimento das dimensões promotoras de aspectos saudáveis que compõe a resiliência em famílias. Estes elementos devem ser os norteadores das intervenções para uma reunificação familiar segura e estável.

Palavras-chave: acolhimento residencial, programas de intervenção, proteção da infância, resiliência familiar, reunificação familiar.

Abstract: Family reunification is a complex process that begins with the residential care of the child and/or young person in an institution and includes the period after their return home, and can contribute for the success of protection measures. The present study aimed to analyse the dynamics that generate processes of resilience in families after the implementation of the “Walking in Family Program”, which intends to give support to family reunification through the promotion of parenting skills during institutionalization. A qualitative, descriptive and retrospective case study was developed. The non-probabilistic sample consisted of 4 families, 5 parents and 6 children/young people who left foster care in 2019 and were able to reunify. The participation of families in the program confirmed the strengthening of resilience processes in the relational system of parents and children triggered by the understanding, training and empowerment raised in the different stages of the protection measure. The conceptual association of two theoretical models of family resilience of the authors Froma Walsh and Lietz and Strength, enabled us to identify different individual and family strengths and resources in crisis management and specific responses to the needs of families at different stages since the children’s entry in residential care to their returning home. The results reinforce the importance of socio-educational programs that reinforce and encourage dimensions that promote healthy aspects that build resilience in families. These elements could guide interventions for safe and stable family reunification.

Keywords: child protection, family resilience, family reunification, intervention programs, residential care.

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Artículos

Resiliência familiar no contexto do programa Caminhar em Família

Family resilience in the context of the Walking in Family program

Giselle Elias Miranda
Universidade do Minho, Braga, Portugal
Ana Tomás de Almeida
Universidade do Minho, Braga, Portugal
Maria Angela Mattar Yunes
Universidade Salgado de Oliveira, São Gonçalo, Brasil
Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educación, vol. 9, núm. 0, Esp., pp. 132-145, 2022
Universidade da Coruña

Recepción: 15 Julio 2021

Revisado: 19 Marzo 2022

Aprobación: 20 Marzo 2022

Publicación: 29 Abril 2022

O acolhimento residencial de crianças e jovens foi a segunda medida de promoção e proteção mais aplicada em Portugal no ano de 2019 (ISS, 2020). Ainda que a reunificação familiar fosse vislumbrada e muitas vezes sucedida, as frequentes reentradas das famílias no sistema de proteção alertam para a necessidade da criação de propostas de intervenções que proporcionem efetivo impacto nas realidades experienciadas por estas famílias, principalmente no que tange às medidas existentes para o favorecimento das aptidões necessárias à reunificação familiar.

Para aprofundarmos esta dialógica e à luz do interesse contínuo na atuação profissional baseada em evidências, surge a presente investigação que está integrada em uma parceria estabelecida entre a Universidade do Minho (Portugal), a Universidade de Lleida e a Universidade de Barcelona (Espanha). Esta parceria tem como intuito a implantação, estudo e avaliação do programa de apoio às competências parentais no processo de acolhimento e reunificação familiar intitulado “Caminhar em família” (Balsells et al., 2015) ao contexto português. Na linha das ‘intervenções baseadas na evidência’ (Axford, Elliott, & Little, 2012; Fixsen, Naoom, Blase, Friedman, & Wallace, 2005; Gottfredson et al., 2015), o “Caminhar em Família” caracteriza-se por ser um programa estruturado, com objetivos, estratégias e métodos explícitos, permitindo estabelecer uma relação lógica entre um racional teórico e as mudanças a alcançar na proteção, bem-estar e desenvolvimento de crianças, pais e famílias.

O programa é destinado às famílias com filhos entre os 8 e 16 anos que foram retirados em resultado de uma medida de proteção à infância e para as quais existe um prognóstico para a reunificação. Tendo como principais objetivos promover a aceitação e o envolvimento com a medida de proteção, bem como facilitar e consolidar a reunificação familiar, o programa assenta em três eixos teóricos: (i) parentalidade positiva e proteção da infância; (ii) participação/protagonismo da criança no processo de acolhimento e reunificação familiar; e, (iii) fomento da resiliência familiar. Por sua vez, outro dos aspetos mais relevantes do programa é a metodologia grupal utilizada para a aprendizagem de estratégias eficazes à resolução de problemas quotidianos. O programa desenvolve-se em 5 módulos e cada um deles inclui 3 sessões. Cada sessão apresenta atividades para realizar com filhos e filhas, com pais e mães e com a família em conjunto. Mediante as atividades do programa que dão ênfase às dimensões cognitivas, emocionais e comportamentais da aprendizagem e desenvolvimento de competências pretende-se potenciar a redução do tempo de acolhimento e o sucesso da reunificação. Os 5 módulos distribuem-se em 2 fases de implementação. Os primeiros dois destinam-se a apoiar as famílias a compreender a medida e melhorar a qualidade das visitas. Os três subsequentes destinam-se a apoiar as famílias com prognóstico de reunificação e pretendem apoiá-las nas mudanças e ajustamentos para a boa convivência familiar. A implementação do programa é realizada pela equipa técnica das instituições de acolhimento que recebe formação adequada sobre o modelo teórico e o desenvolvimento prático do programa.

No âmbito deste programa socioeducativo, a promoção dos aspetos da resiliência familiar no trabalho com famílias em situações de desproteção justifica-se pela importância de uma intervenção voltada não apenas para os desajustes e fragilidades que circundam estes sujeitos, mas sobretudo para o fomento de capacidades e reconhecimento de pontos fortes que possam contribuir para as mudanças pessoais e dinâmicas familiares (Balsells et al., 2014). Ao compreender que a intervenção baseada na construção de forças é uma estratégia relevante para atuar com as famílias em situação de risco, Lietz e Strength (2011), sugerem um modelo teórico dos processos de resiliência familiar a partir de dez fatores de forças, concretamente: dar/receber apoio social, espiritualidade, criatividade/flexibilidade, definição de limites, iniciativa, comprometimento, insight, comunicação, humor e avaliação. Estes processos são identificados como forças e recursos das famílias no decorrer do acolhimento e na reunificação familiar. Na presente investigação, pretende-se contrastar os dados coletados com o referido modelo teórico no intuito de analisar associações e divergências no modo como as famílias do estudo construíram estratégias para reagir às dificuldades e realizarem as mudanças necessárias para alcançarem a reunificação dos filhos. Além do referido modelo de Lietz e Strenght (2011), o referencial teórico de Froma Walsh (1996, 1998, 2005, 2016) será utilizado para subsidiar reflexões acerca de elementos e dimensões da resiliência familiar. Em sucessivas teorizações desenvolvidas por Walsh (1996, 1998, 2005, 2016), a autora propõe que sejam estudados os processos-chave da resiliência em famílias, os quais fundamentam uma proposta de "funcionamento familiar efetivo". O panorama conceitual é apresentado dentro dos três domínios: sistema de crenças da família, padrões de organização e processos de comunicação (Yunes, 2003, 2015; Walsh, 1998, 2005). Estes processos podem estar organizados e expressarem-se de diferentes formas e níveis, pois servem várias constelações de valores, recursos e desafios das famílias (Walsh, 1998). O referido modelo sugere ainda a importância de estudos qualitativos para a compreensão de processos que “impelem ou impedem” indivíduos ou grupos a buscarem soluções nas situações de adversidade. Concomitantemente, estas escolhas teóricas resultam do interesse em buscar evidências e associações entre os processos de resiliência específicos e relativos à situação de acolhimento e reunificação. O presente trabalho buscou identificar os processos-chave da resiliência familiar envolvidos nos contextos de crise, o que pode favorecer a compreensão e fortalecimento dos aspetos cognitivos, comportamentais, sociais e emocionais envolvidos nas dinâmicas familiares. O objetivo deste trabalho consiste em analisar as dinâmicas mobilizadoras dos processos resilientes nas famílias ao longo da participação no Programa “Caminhar em família” implementado em instituições de acolhimento nos distritos de Braga e Porto, na região norte de Portugal, com as bases conceituais do modelo de Lietz e Strength (2011) e os pressupostos de Walsh (1998, 2005).

Método

Trata-se de uma investigação qualitativa realizada através da metodologia do estudo de caso de caráter descritivo e retrospetivo.

Participantes

Os participantes foram selecionados através do método não probabilístico de amostragem intencional, no qual cabe ao investigador julgar a adequação e participação dos sujeitos junto ao estudo (Marotti et al. 2008). Sendo assim, a amostra foi composta por 4 famílias, totalizando 11 indivíduos, que cumpriram a medida de promoção de proteção em meio de colocação (acolhimento residencial) e alcançaram a reunificação dos filhos junto ao seio familiar no ano de 2019 ou estavam aptas para o efeito. Dentre estas quatro famílias, a amostra foi composta por 6 crianças do sexo feminino que deram entrada nas instituições de acolhimento quando tinham idades entre 6 e 15 anos (M= 11,33; DP = 3,24).

Instrumentos

Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas e grupos focais para a coleta de dados com os participantes. A aplicação dos instrumentos decorreu no final do programa “Caminhar em família” e contemplou as crianças (filhos dos pais e das mães) e os pais que participaram do programa.

Os guiões de perguntas fazem uma primeira abordagem geral do tema e, em seguida, compreendem um conjunto de questões que abordam as opiniões e experiências sobre o programa ou atividades específicas do “Caminhar em família” como, por exemplo, o que motivou a começar e depois a continuar a participação nas sessões, mudanças de comportamento e de perceção depois da participação, satisfação e sugestões para melhoria do programa. As entrevistas ocorreram no primeiro semestre de 2019.

Procedimentos

As famílias do estudo estiveram inseridas no Programa “Caminhar em Família”. O programa elenca quatro fases enfrentadas pelas famílias desde a retirada do filho até a reunificação familiar e trabalha estas fases em paralelo com a teoria dos cinco estádios da resiliência familiar de Lietz e Strength (2011). Para isto, ao longo dos módulos, abordam-se os processos perpassados pela família desde a chegada da criança e aplicação da medida até a consolidação da reunificação familiar. A implementação é realizada pela equipa técnica das instituições de acolhimento que recebe formação adequada sobre o modelo teórico e desenvolvimento prático do programa. Por meio da parceria pré-estabelecida entre investigadores da Universidade do Minho e os Centros Distritais da Segurança Social – CDSS, o programa “Caminhar em Família” foi implantado em determinadas instituições de acolhimento residencial na região norte de Portugal. Foram agendadas entrevistas com as crianças/jovens e os seus progenitores e esclarecidos junto de todos os participantes os objetivos do encontro bem como as questões éticas e de confidencialidade do estudo. Os áudios foram gravados com a respetiva autorização dos sujeitos e foram posteriormente transcritos e tratados.

Análise e tratamento dos dados

As informações obtidas no âmbito desta investigação foram tratadas recorrendo à análise de conteúdo (Bardin, 2011). Conciliou-se uma estratégia de análise mista, partindo uma codificação aberta em que se examina o texto através de dimensões teóricas, realizando comparações e perguntas (Gibbs, 2007). O processo de codificação do conteúdo das informações apoiou-se na grelha de categorização elaborada para avaliação do programa “Caminhar em família”. Esta grelha foi desenvolvida pelo GRISIJ, grupo composto por investigadores da Universidade de Lleida e Universidade de Barcelona.

A análise de conteúdo foi realizada utilizando uma abordagem dupla para permitir combinar os conteúdos emergentes da fala dos participantes (abordagem da base para o topo) e os aspetos conceituais que nos sugere o modelo teórico da resiliência dos dez processos específicos ao acolhimento e reunificação, acima descrito (abordagem do topo para a base). Assim, a primeira etapa da análise foi textual, selecionando parágrafos, fragmentos e citações importantes das transcrições. A segunda etapa foi conceitual, considerando o referencial teórico sobre a resiliência familiar. O tratamento e a codificação dos dados foram realizados com o software de análise qualitativa Nvivo 12 (Qualitative Data Analysis Software [QDAS]).

Resultados

Com a finalidade de promover uma melhor compreensão, esta secção organiza-se segundo as categorias de análise, neste caso, os cinco estádios da resiliência familiar do modelo de Lietz e Strength (2011): Sobrevivência, Adaptação, Aceitação, Crescimento e Desenvolvimento e Ajuda aos outros. A figura 1 sistematiza a análise de conteúdo composta pelas categorias referentes aos cinco estádios da resiliência familiar e a associação das mesmas com o corpus da análise. Em paralelo, serão feitas aproximações conceituais dos estádios representados pelas categorias com os processos-chave de resiliência familiar apresentado por Walsh (1998): sistema de crenças, padrões de organização e processos de comunicação.


Figura 1
Figura 1

Associação entre categorias e corpus de análise

Sobrevivência

A comunicação da medida e retirada da criança do seio familiar é a fase em que a família se sente mais fragilizada. Este período é relacionado ao estádio da Sobrevivência no qual os envolvidos ainda não estão preparados para enfrentar a situação, mas estão tentando lidar com o ocorrido. No decorrer deste estádio os fatores de força ligados à aceitação do apoio social e à espiritualidade costumam estar presentes no discurso dos envolvidos.

Em todas as entrevistas e grupos focais deste estudo, as famílias referiram as fontes de apoio que encontraram para reagir à crise, contemplando nestas, quer a equipa técnica da instituição de acolhimento, quer os familiares ou os amigos do agregado familiar.

De notar a ausência de referências à espiritualidade que é mencionada, tanto na obra de Lietz e Strength (2011) como de Walsh (2016), como um fator influente na capacidade dos envolvidos avançarem face às dificuldades. Todavia, no nosso estudo, esse fator não foi observado no discurso dos participantes.

Adaptação

O estádio da Adaptação compreende as mudanças que as famílias fizeram para incorporar a nova situação em suas vidas, ou seja, os hábitos, comportamentos e rotinas que foram introduzidos a partir da medida de proteção. Os fatores de força frequentemente relacionados a este estádio dizem respeito aos aspetos inerentes a esta adequação, tais como a criatividade e flexibilidade para lidar com a situação, a iniciativa dos envolvidos para assumirem o controle e agirem de acordo com as necessidades da família e a capacidade das famílias na definição dos limites para separar o sistema familiar de influências, indivíduos e situações prejudiciais. Os fatores de força relacionados à criatividade/flexibilidade foram observados na fala de três crianças/jovens, sendo notável a abertura das mesmas para vivenciar o acolhimento com uma postura positiva e otimista. Esta postura possibilitou que essas crianças ultrapassassem os receios iniciais da inserção no acolhimento e permitiu-lhes uma melhor adaptação à instituição.

A definição de limites foi mencionada por duas famílias, respetivamente por dois progenitores e uma jovem. Durante as entrevistas estes participantes contaram como começaram a perceber comportamentos e atitudes que não eram sadias para o sistema familiar, principalmente com os aspetos relacionados à negligência. Foi observado que a intervenção da equipa técnica teve uma contribuição positiva para a construção deste processo, nomeadamente, o aconselhamento dos pais. Uma filha também reforçou como a mãe interveio neste nível, principalmente pela imposição de regras e limites antes não estipulados. Três pais e três crianças/jovens apontaram o que percebemos como o fator de força da iniciativa. A compreensão das necessidades de mudanças mobiliza as famílias a tomar o controle da situação e assumir uma nova postura. Consequentemente, os ajustes esperados acontecem e passam a fazer parte do sistema familiar de maneira mais autônoma.

Aceitação

A aceitação da medida ocorre quando os envolvidos passam a adotar a situação como um novo modo de vida do sistema familiar. Devido à retirada dos filhos, as famílias demonstram iniciativa para fazerem ajustes no seio familiar. Todavia, a aceitação é um passo à frente e diz respeito ao momento em que o envolvimento e a compreensão implicados na intervenção mudam e a família passa a valorizar o acolhimento, reconhecendo-o como útil para o funcionamento de suas famílias (Lietz & Strength, 2011). Os fatores de força discutidos neste estádio incluem comprometimento, comunicação, insight e humor. O fator de força relacionado com o comprometimento foi identificado no discurso de três pais e dois filhos. A palavra “lutar” foi destacada em alguns discursos e expressa o empenho e esforço que os indivíduos colocaram neste processo. O “estar presente” também foi um fator visto como relevante tanto para os pais quanto para os filhos. Este desejo de voltar a ter a família reunida é visto como uma engrenagem propulsora que possibilita que a família ganhe motivação e participe de maneira ativa e responsável rumo a reunificação familiar. Neste percurso a comunicação é fortemente referenciada como um fator relevante e que apresenta alterações após a entrada da família no sistema de proteção. Três filhos comentaram a melhoria na comunicação, tanto por parte deles quanto por parte dos pais, após terem entrado na instituição de acolhimento. Muitas vezes, anteriormente à aplicação da medida, as famílias apontam certa fragilidade na verbalização e expressão de seus sentimentos e pensamentos, ou mesmo negligenciam a importância destes aspetos. Todavia, no decorrer do processo os envolvidos passam a valorizar a comunicação intrafamiliar e apontam como esta abertura para o diálogo fortaleceu o relacionamento entre eles.

A relação do fator humor também foi destacada por três crianças participantes do estudo. Apesar do novo contexto em que foram inseridas, as crianças sinalizaram a destreza para gerir a situação com boa disposição e humor ao experienciarem momentos de alegria e diversão junto dos colegas do acolhimento ou mesmo da família. Neste processo de aceitação da medida, o insight sobre as dificuldades da família também foi assinalado por uma mãe e duas crianças participantes. Mais do que reconhecer, os indivíduos compreendem a crise que a família enfrentava e, por consequência, são capazes de progredir e alcançar o cumprimento de seus objetivos.

Crescimento e Desenvolvimento

A trajetória das famílias rumo a reunificação é marcada por um período em que os envolvidos não só compreendem e aceitam a aplicação da medida, mas encontram significado nas adversidades. Esta fase da resiliência familiar é atrelada ao crescimento e desenvolvimento, pessoal e sistêmico que a família adquire durante a situação de acolhimento. No discurso das quatro famílias participantes do estudo foi observada a maneira como estes avaliaram e (re)significaram a experiência. A aprendizagem das dimensões emocionais, comportamentais e cognitivas foi um ponto fortemente referenciado como chave para a mudança individual. Esse aspeto está também alinhado com o sistema de crenças de Walsh e explica que a interpretação de uma experiência desafiadora como aprendizagem confere-lhe um sentido transformador.

Ajuda aos outros

O processo de resiliência familiar desenvolve-se desde o estádio de sobrevivência, no qual as famílias apontam a importância de receber o apoio social, para uma postura solidária de ajuda aos outros, em que os sujeitos expressam o desejo de auxiliar outras pessoas que estejam a passar por situações semelhantes. A valorização das relações interpessoais é também um dos elementos mais apontados como renovador no modelo de Walsh (2005). Em geral, nesta etapa do acolhimento residencial, as famílias já estão aptas para se reunificarem com os filhos. Membros das quatro famílias participantes do estudo sinalizaram a importância e o desejo de ajudar os outros seja no núcleo intra ou extrafamiliar e compartilhar com os outros os seus avanços como indivíduos e famílias, usando processos de comunicação claros e transparentes.

Discussão

Para a discussão teórica deste estudo retomaram-se as referências de dois principais modelos conceituais que elegemos para análise da resiliência familiar, nomeadamente, o modelo dos dez fatores de forças familiares identificadas no processo de resiliência familiar (Lietz & Strength, 2011) e a teoria dos processos-chave da resiliência familiar descritos por (Walsh, 1996, 1998, 2005). Devemos lembrar que os principais processos da resiliência familiar são mutuamente interativos e sinérgicos. Por exemplo, uma visão sobre as forças da família incentiva a pensar e a formular juízos sobre a medida de proteção (sistema de crenças), apoia e reforça a conexão entre os indivíduos (processos organizacionais) e constrói a resolução colaborativa de problemas (processos de comunicação) (Walsh, 2016). O modelo dos dez fatores de forças familiares identificadas no processo de resiliência familiar corrobora este aspeto transacional da resiliência quando faz referência aos “estádios” para salientar os fatores psicológicos responsáveis pelo fortalecimento da resiliência e descreve como as experiências diferentes desencadeiam novos processos e consolidam os anteriores à medida que se avança no acolhimento em vista à reunificação. O processo de reorganização, que está implicado nas mudanças de estádio, supõe a transformação qualitativa de aspetos cognitivos, emocionais e comportamentais, ao invés de reduzir os estádios a etapas por que as famílias passam ou progridem de maneira linear para aumentar a resiliência (Lietz & Strenght, 2011, p.03). Quando Walsh (2005, 2016) distingue a organização dos processos-chave da resiliência familiar em três domínios: sistemas de crenças, padrões de organização e processos de comunicação, refere que os sistemas de crenças surgem das interações sociais/familiares e influenciam a maneira como as famílias atribuem sentido às adversidades. Para Walsh (2005), diante dos eventos estressores, as famílias resilientes constroem um sistema de crenças comum capaz de orientá-las para a superação e crescimento. Este domínio pode ser correlacionado aos fatores de força propostos por Lietz e Strength (2011) que dizem respeito à espiritualidade, iniciativa, comprometimento, criatividade/flexibilidade e avaliação. O comprometimento e a iniciativa (Lietz & Strength, 2011) são dois fatores que identificamos com a perspetiva positiva de Walsh (2005) para descrever os processos de encorajamento e concentração das forças e potencialidades da família para agir diante a crise. No discurso dos participantes foi observado o compromisso em fazer as mudanças necessárias e a capacidade de assumir e gerir novas atitudes. Por exemplo, os filhos mostraram-se mais dispostos a auxiliar e a colaborar com os pais nas tarefas domésticas. Notou-se também mudanças a nível comportamental, a saber, a diminuição da agressividade e discussões intrafamiliares. Outro fator de força que pode ser comparado dentro do domínio dos sistemas de crenças é a avaliação (Lietz & Strength, 2011). Isto porque, de acordo com Walsh (2005), extrair significado das adversidades é uma maneira das famílias não apenas compreenderem como também apreciarem e valorizarem a experiência. Ao repensarem a crise como um desafio manejável e possível de se superar, desperta-se um sentimento de coerência entre os membros da família em que estão todos unidos para lutar por um mesmo objetivo. No presente estudo esta avaliação e atribuição de significado às vivências do acolhimento foram evidenciadas tanto por parte dos pais como dos filhos. Por seu turno, os padrões de organização atuam como amortecedores dos choques familiares diante da crise (Walsh, 2005). Na organização familiar, a resiliência é sustentada como uma estrutura flexível, pela conexão (coesão) entre os membros da família e pelos recursos econômicos e sociais (Walsh, 1996, 1998). O apoio social (Lietz & Strength, 2011), associado, na teoria de Walsh, ao elemento correspondente aos recursos sociais e econômicos, foi referenciado por todos os participantes do estudo, que descreveram diversas maneiras pelas quais se sentiram apoiados, seja dentro do contexto intrafamiliar ou por meio de atores externos, tais como a equipa técnica da instituição, amigos e vizinhos. Aspetos relacionados à flexibilidade foram citados no estudo, principalmente pelas crianças e jovens após a chegada às instituições de acolhimento. Para Walsh (2005) este é um processo determinante na resiliência. Isto porque diante as adversidades as famílias começam a desenvolver novas condições, ajustam-se aos relacionamentos e reorganizam modelos de interação para se adaptarem ao ocorrido. Balsells e colaboradores (2014) também corroboram esta perspetiva ao apontar que o sentido positivo, a adaptabilidade, a flexibilidade, a confiança, a segurança e a autonomia favorecem a reunificação familiar. De acordo com Walsh (2005) uma crise pode desestabilizar a coesão do núcleo familiar. Todavia, a conexão entre os membros é fundamental para o bom funcionamento da família. A resiliência baseia-se no apoio mútuo, colaboração e compromisso para enfrentar esta fase. Em conjunto, pais e filhos precisam respeitar as diferenças entre eles e definir limites saudáveis (Lietz & Strength, 2011). No discurso dos participantes, o modo como as famílias experienciaram este estabelecimento de limites foi evidenciado, testemunhando ainda serem capazes de valorizar o resultado destas mudanças. No que tange aos processos de comunicação deve-se destacar que são fundamentais para a promoção da resiliência pois contribuem para trazer clareza sobre a situação, estimulam a expressão emocional aberta do agregado familiar e direcionam para formas de resolução colaborativa dos problemas (Walsh, 2005). Os fatores de força do humor, insight e comunicação (Lietz & Strength, 2011) podem ser associados a este domínio. Aqui o insight e o subdomínio clareza parecem-nos intrinsecamente ligados, nomeadamente quando, a partir da compreensão da crise que a família enfrenta, os membros são capazes de dar um passo adiante para alcançar o cumprimento de seus objetivos. É igualmente refletido nos dados que a comunicação das opiniões e sentimentos passaram a ser mais fluidas. Os indivíduos assinalaram como esta abertura para o diálogo fortaleceu o relacionamento entre eles. Alguns indivíduos foram capazes ainda de encontrar alegria e momentos de humor em situação de grande dor e causadoras de muito sofrimento, dando sinal da capacidade de aceitação e de destreza para gerir a situação.

Concluímos que os resultados encontrados no presente estudo sugerem que a participação no programa de competências parentais durante o acolhimento e reunificação familiar “Caminhar em família” promoveu forças familiares demonstradas em dois modelos teóricos de resiliência. Ademais, auxiliou os participantes individualmente quanto em família a expressarem suas potencialidades em busca da saúde familiar. Nove dos dez fatores de força da resiliência familiar foram observados nos discursos das famílias do presente estudo. Semelhante aos resultados de Lietz e Strenght (2011), a análise de conteúdo demonstrou que as famílias descrevem necessidades específicas diferentes no decorrer da medida de proteção e que, para cada estádio, os indivíduos identificaram distintas forças individuais e familiares capazes de os auxiliarem a lidar com a medida de acolhimento.

Através da integração dos modelos teóricos de Froma Walsh (2016; 2016a) e Lietz e Strenght (2011) foi ainda possível observar e compreender as mudanças verificadas na dinâmica relacional das famílias e os resultados em processos de resiliência familiar associadas ao contexto de acolhimento residencial. Ressaltamos ainda que a constatação desse estudo sobre a correspondência entre os processos e os domínios da resiliência familiar podem ser definidos e ampliados para outras situações de adversidade.

Material suplementario
Referências
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Notas

Figura 1
Figura 1

Associação entre categorias e corpus de análise

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