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Tranca ou tratamento: a aplicação da medida de segurança no contexto da saúde mental
Revista de Psicologia, vol. 13, núm. 2, pp. 55-70, 2022
Universidade Federal do Ceará

Estudos Teóricos


Recepción: 26 Febrero 2022

Aprobación: 03 Junio 2022

DOI: https://doi.org/10.36517/revpsiufc.13.2.2022.4

Resumo: O artigo debate o gerenciamento das medidas de segurança, analisando as legislações brasileiras e as políticas públicas de saúde mental correspondentes à temática, implantadas a partir de tentativas de superação de paradigmas positivistas prevalentes no judiciário brasileiro. Trata-se de garantir o tratamento ambulatorial, independente da motivação da custódia no contexto de interface entre saúde mental e segurança pública para prevalecer a Lei 10.216/2001, em detrimento do Código Penal, retrógrado, pautado na custódia e na punição, e não no tratamento nos dispositivos de saúde mental no território. O panorama dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTPs) e as inovações práticas produzidas a partir da parceria entre os campos da saúde mental e do direito no país são analisadas nas suas contribuições à produção de novas políticas públicas. Conclui-se que, apesar dos investimentos pontuais em programas especializados, também apresentados neste artigo, ainda é incerto o término da internação compulsória em ECTP, em prol do encaminhamento urgente e direto dos sujeitos portadores de transtorno mental em conflito com a lei aos dispositivos da rede de atenção psicossocial no país.

Palavras-chave: Medidas de segurança, Estabelecimentos de Custódia e Tratamento.

Abstract: This article discusses the custodial sentence management by analyzing Brazilian law and the mental health public policies concerning this topic that were adopted from initiatives that have tried do overcome prevalent positivistic paradigms in the Brazilian judiciary. This paper advocates that the outpatient treatment should be maintained considering the interface between Mental Health and Public Security, regardless of the reasons for the custody, as such, it would meet Brazilian law 10.216/2001 guidance towards treatment in psicossocial devices over custody and punishment-oriented Brazilian penal code. The custodial and treatment institutions (CTIs) and the practical innovations created as a result of a partnership between both Brazilian Mental Health and Law fields of knowledge are investigated by observing their contributions for new public policies production. Despite scarce investments in specialized programs, it concludes that the end of the CTIs compulsory hospitalization is yet uncertain. It advocates urgent addressing of mental health patients in conflict with the law to Brazilian alternative psychosocial devices.

Keywords: Security measures, Custodial and Treatment Institutions, Mental Health, Social Memory.

Introdução

O artigo analisa os debates acadêmicos contemporâneos sobre o gerenciamento estatal da medida de segurança (MS) nos campos do judiciário e da saúde mental no Brasil. A medida de segurança é aplicada juridicamente nos casos de inimputabilidade ou semi-imputabilidade, por associação entre infração e transtorno mental, desenvolvimento mental incompleto ou abuso de drogas (álcool e outras substâncias psicoativas), além de englobar os casos de superveniência de transtorno mental durante o período de cumprimento da pena privativa de liberdade (PPL).

O histórico dos manicômios judiciários nos estados brasileiros contempla a abertura e a manutenção contínua de unidades desde a década de 1921, inclusive após a Lei n.10.216/2001, da Reforma Psiquiátrica, que veda a internação e a restringe somente à insuficiência dos recursos extra-hospitalares no tratamento. A Reforma Psiquiátrica é um movimento do campo da saúde mental que teve seu início no final da década de 1970 e início da década de 1980, período de resistência à maciça hospitalização psiquiátrica, ancorada em denúncias de mercantilização da saúde mental e das suas funestas consequências nas décadas de redemocratização do país (Amarante, 1994; Arbex, 2013). Diante da legislação supracitada, a restrição à internação é extensiva ao cumprimento da medida de segurança; todavia, ela não é aplicada em larga escala pelo judiciário, cujas práticas dos juízes reforçam o encarceramento em massa, apesar do Código Penal vigente já contemplar a imediata possibilidade de direcionamento do sujeito com transtorno mental em conflito com a lei ao tratamento ambulatorial em saúde mental.

Esse dispositivo jurídico – a medida de segurança - permanece inabalável nas legislações brasileiras, pois apenas a reforma de seu funcionamento final, a reinserção psicossocial do portador de transtorno mental em conflito com a lei, e não a deliberada prisão sob a suposta nomeação de tratamento, persiste na berlinda, na maior parte do país. Há duas aplicabilidades possíveis no caso da inimputabilidade: o cumprimento da MS em tratamento ambulatorial ou a internação compulsória em Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátricos (ECTP.). No caso da semi-imputabilidade, pode-se optar juridicamente pela pena privativa de liberdade (PPL), com redução de ¼ de tempo de cumprimento, em vez de MS. Em debate, permanecem apenas o local de cumprimento do tratamento (nível ambulatorial ou ECTP) e a discussão sobre a composição intersetorial na gestão estatal dos riscos sociais, ou seja, os dispositivos necessários à reabilitação psicossocial dos atingidos pela medida de segurança (Centros de Atenção Psicossocial, Centro de referência de assistência social, Estratégia de Saúde da Família, entre outros dispositivos). Os embates discursivos nos campos em análise ainda não apontam o efetivo rompimento da internação compulsória em ECTP nos percursos da população-alvo da legislação da medida de segurança. Suprimir a internação compulsória asilar no judiciário na legislação garantiria o direito ao ingresso imediato do sujeito portador de transtorno mental em conflito com a lei aos dispositivos da rede de saúde mental e viabilizaria superar a dicotomia: saúde mental x justiça.

Outra relevante fundamentação normativa neste debate, além da supra citada lei, a Resolução n.4, de 30 de Julho de 2010, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, preconiza a substituição do modelo de cumprimento de medida de segurança pelo modelo antimanicomial., em serviços de saúde mental no território, no prazo de dez anos (CNPCP, 2010). Assim, o prazo já expirou, e não há previsão do cumprimento da decisão recomendada no período pretendido pela norma jurídica.

Por outro lado, as recentes reformulações da política pública de saúde mental sancionadas em governos neoliberais e de extrema direita no país a partir de 2016 caminham na contramão do discurso antimanicomial. Tais reformulações contemplam o aumento da remuneração na modalidade de tratamento por meio de internação hospitalar psiquiátrica pelo Estado brasileiro, associado à incorporação dos hospitais psiquiátricos e das comunidades terapêuticas à rede de atenção psicossocial (RAPS.).

Infelizmente, este fato evidenciou uma notória inversão da lógica de criação de uma rede substitutiva à internação psiquiátrica na atenção à saúde mental, entre outras medidas nocivas à RAPS (Delgado, 2019). Em síntese, a RAPS se pauta nos princípios da autonomia, da liberdade e no exercício da cidadania no território, e o enfraquecimento dos dispositivos territoriais pode refletir diretamente na alta progressiva e nos avanços previstos nas desinternações nos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

Contrapondo-se ao atual negacionismo da memória da Reforma Psiquiátrica no país, destacamos os locais atuais de internação, os ECTPs na qualidade de lugar de prováveis abandonos por meio de ruptura dos laços sociais com as famílias e com a sociedade e de violências explícitas ou veladas, além de relativizarmos a necessidade do “cuidado” e do “tratamento” do sujeito com transtorno mental em conflito com a lei em ECTP, em função das denúncias de múltiplas violações dos Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (2015). Diante das premissas referenciadas, destacamos a relevância da investigação dos campos discursivos da medida de segurança e da internação compulsória, a fim de examiná-los em profundidade, sem reducionismos ou tentativas de totalização.

A metodologia adotada neste artigo baseou-se em levantamento de literatura relativa ao tema em discussão a partir das plataformas Google Scholar e Academia, considerando a produção relevante a partir da década de 2010. As palavras–chave, em combinação plena, que orientaram a busca pelos textos foram: Saúde Mental, Medidas de Segurança, Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. No que tange à procura de legislações, esta contemplou o período de 2001 à atualidade no que concerne à temática Saúde Mental e Justiça, em especial, Medida de Segurança.

Em meio às discussões dos avanços e retrocessos nas políticas públicas de saúde mental, este artigo aborda também experiências multiprofissionais legitimadas juridicamente, que almejam conjugar a medida de segurança aos preceitos que ancoram a Reforma Psiquiátrica em três diferentes estados brasileiros: o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) em Minas Gerais, o Programa e Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI) em Goiás e o Programa de Cuidado Integral a Pacientes Psiquiátricos no Piauí (PCIPP).. Substituir as instituições manicomiais predominantes no cumprimento da medida de segurança, por meio de práticas instituintes pontuais em estados específicos, implica dar visibilidade à falência do mecanismo da internação em ECTPs e ao descompasso das atuais políticas públicas de saúde mental no sistema prisional brasileiro.

Importa destacar que este artigo compartilha da posição de que a garantia do direito ao tratamento nos moldes antimanicomiais evitaria o ingresso desses sujeitos no sistema carcerário brasileiro e o consequente conflito entre casos considerados de “polícia” e casos avaliados como do âmbito do campo da saúde mental. Em outros termos, ao invés do acionamento imediato da internação compulsória asilar do judiciário em ECTP, defende-se aqui o acionamento da atenção urgente dos múltiplos dispositivos de saúde mental, que englobam o tratamento ambulatorial ou a internação temporária em instituição de saúde mental, logo após a ocorrência da situação de infração jurídica, independentemente da gravidade do adoecimento ou do ato infracional.

A Internação Compulsória na Medida de Segurança

A produção acadêmica sobre a temática da MS contém a marca transdisciplinar; vários campos de saber, a exemplo da Psicologia, da Psiquiatria e do Direito, se debruçam sobre o descompasso entre a necessidade da modalidade de internação compulsória no âmbito jurídico, a sua fundamentação teórico-prática e a urgência em colocar em práticas os preceitos da Lei da Reforma Psiquiátrica n.10.216/2001, que almejava substituir os ordenamentos jurídicos anteriores correspondentes à internação compulsória (Gomes, 2013; Santos & Segundo, 2014; Faria, 2017; Prado & Schindler, 2017; Resende & Maciel, 2018). Pretende-se discutir a temática da relação entre saúde mental e justiça à luz de diálogos possíveis e limitados à finalidade do artigo, entre ordenamentos jurídicos da MS e políticas de saúde mental a partir de 2001, até a inclusão explícita da MS no seu âmbito.

A MS foi concebida no Código Penal Brasileiro de 1940, que produziu a concepção de presunção da periculosidade como categoria jurídica abrangente de portadores de transtorno mental infratores da lei. Combinou o cumprimento de pena privativa de liberdade (PPL) e a posterior medida de segurança (MS), abrangendo categorias amplas, tais como: doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, uso de drogas, reincidência e filiação a grupo de contraventores (Código Penal [CP], 1940: Art. 78). Focado no agente que cometeu o ato ilícito, o reconhecimento da periculosidade se baseia na “(...) sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha ou torne a delinquir” no futuro (CP, 1940: Art. 77), fatores que envolvem o campo de ação inicial da perícia psiquiátrica e psicológica nos Manicômios Judiciários que não constarão do escopo da análise deste artigo. Contudo, é relevante ressaltar que a mera supressão do termo “periculosidade” ou substituição por outros termos na legislação (culpabilidade), ou em nomenclatura de exames existentes não abole o seu uso operacional nas justificativas das perícias psiquiátricas em MS na atualidade (Mecler, 2010). Assim, a MS é pautada na possibilidade de o indivíduo compreender o ato ilícito e de se comportar em respeito às leis sancionadas na sociedade, uma premissa fundamental na distinção da culpabilidade ou não, ainda presente na atualidade. Nesse contexto, os inimputáveis são incluídos por serem incapazes de compreender e se autodeterminar a todo momento; e os semi-imputáveis, por serem parcialmente incapazes, visto que, na ocasião do delito, estavam incapacitados de compreender ou de autodeterminar o comportamento, por consumo abusivo de álcool e outras drogas, passíveis de redução de 1 a 2/3 da PPL, caso o juiz não eleja a MS no caso.

As medidas de segurança, nesse código, subdividem-se em detentivas e não detentivas. No primeiro caso, no prazo de 1-6 anos mínimos na concepção original da lei, comparados ao tempo previsto do ato ilícito no caso de PPL, com internação em manicômio judiciário, casa de custódia e tratamento, colônia agrícola instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional ou seção especial de outro estabelecimento. No segundo caso, a não detentiva concentra-se na liberdade vigiada, na proibição de frequentar determinados lugares ou o exílio local. Consta período de prova de um ano após o cumprimento; se novo ato ilícito não ocorre, extingue-se a MS.

Cabe ressaltar os pilares fundamentais dessa legislação de 1940, pois o trabalho e a reeducação ou a educação do infrator no local da internação não constam na doutrina atual, que não disponibiliza o acesso ao direito à educação durante o período de encarceramento, conforme as regras mínimas preconizadas pelas Organizações das Nações Unidas (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2016). A atualização legislativa implica o reconhecimento de ações inexistentes e/ou sem efeitos sobre a MS; o trabalho e a educação não têm o potencial de reduzir o tempo de permanência, como ocorre na PPL até o presente momento. O único critério que permanece validado é a cessação de periculosidade, determinada pela avaliação médico-psiquiátrica, único especialista plenamente chancelado na legislação vigente. No campo da saúde mental, a concepção de periculosidade se torna discutível, mediante a constatação de que a recidiva, na MS, parece depender da vulnerabilidade do sujeito, que contempla inúmeras dimensões: individuais, familiares, sociais e ações programáticas da rede de saúde mental local (Santos, Pinto & Farias, 2020).

No ano de 1984, a reforma do Código Penal de 1940 excluiu a aplicação de sansões penais sucessivas, ou seja, a aplicação de PPL e posteriormente, a MS, no caso de persistência da periculosidade, o chamado Sistema Duplo Binário e criou o Sistema Vicariante, em que um tipo de sentença é mutuamente excludente, implicando a decisão de sansão unitária (ou MS ou PPL). No entanto, a Lei 7210/84 de Execução Penal possibilitou a substituição da PPL pela MS nos casos de eclosão de transtorno mental grave durante o cumprimento de PPL, após uma Avaliação Pericial Psiquiátrica da sanidade mental do preso prevista em Lei, denominada de Exame de Superveniência, que pode ratificar a atuação do Psicólogo em equipe multiprofissional em decisões conjuntas. Nessa alteração legislativa, restringiu-se, também, a MS detentiva à internação em manicômio judiciário e, na sua ausência, em estabelecimento psiquiátrico específico, ou MS restritiva de tratamento ambulatorial.

Outros efeitos desta reforma judiciária de 1984 consistiram na redução do tempo mínimo a 1-3 anos, com o prazo máximo indeterminado até a cessação da periculosidade (ou outras avaliações de mesmo teor, como risco de violência ou termos equivalentes) avaliada pela perícia psiquiátrica, no mínimo semestral, ou no máximo, anual. Apesar dos avanços legislativos supracitados, as tênues reformas do referido Código Penal logram os direitos e as garantias mínimas pré-existentes na pena privativa da liberdade dos imputáveis: a progressão de regime e a visita íntima, entre outras medidas consideradas “regalias” no cárcere. Viola, ainda, a Constituição de 1988, ao permitir a internação por tempo indeterminado, pena perpétua inexistente juridicamente no Brasil. Em busca de uma decisão conciliatória, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 527 em 13 de maio de 2015, que determina que a MS não seja maior do que a PPL que seria aplicada ao delito cometido; e, desta forma, tenta evitar que a MS seja utilizada como pena perpétua, fato que infringe os Direitos Humanos; todavia, sua aplicação não é consensual no judiciário brasileiro.

Caetano (2019) ressalta a incompatibilidade entre a Constituição de 1988 e a MS e indica que o artigo 5º inciso XLV e LVII . substitui a adjetivação “delinquente” do agente do ato ilícito presente nas legislações anteriores. Esse termo, que englobava até então imputáveis e inimputáveis, é substituído por “condenados”, ou seja, as sansões penais retributivas recairão apenas nos imputáveis. Por conseguinte, a Constituição de 1988 orienta a aplicação de sanção penal baseada no critério de “culpabilidade” e não mais na “periculosidade” do agente infrator, um dos ambíguos conceitos herdados do Direito Positivista, base conceitual que se restringiu a medida de segurança no Código Penal vigente.

Há, também, a Lei 9.455/97, que, em seu artigo 1, parágrafo II, determina “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”, uma das características do crime de tortura. Assim, expõe a inconstitucionalidade da internação compulsória na MS como sansão penal.

A Lei n. 10.216/2001 (Brasil, 2001) promove uma mudança paradigmática com relação às doutrinas jurídicas anteriores, ao enfocar os direitos e a proteção dos indivíduos com transtorno mental, alterando a base do discurso tutelar do judiciário, ao vedar a internação em instituições com características asilares. A internação em estabelecimento não asilar só é plausível e indicada na ausência ou insuficiência de recursos extra-hospitalares, comunitários, com prioridade para o tratamento nos dispositivos territoriais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), direcionada à alta planejada com o objetivo de reinserção social. Nos casos de crises psicóticas agudas, as internações devem ser direcionadas para as unidades psiquiátricas de hospitais gerais; entretanto, as demandas urgentes e em grande número são, com frequência, encaminhadas para as emergências dos hospitais psiquiátricos especializados. Os avanços da Reforma Psiquiátrica ainda não foram incorporados plenamente pelas práticas judiciais do país, em geral legitimadoras da custódia e da sanção determinadas pelo Código Penal vigente, apesar das recomendações n.4, n.113 e da portaria n. 26, do Conselho Nacional de Justiça, postularem a adequação jurídica à legislação antimanicomial (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2010, 2011), implementação que ainda ocorre a passos lentos, somada à estagnação quantitativa de Centros de Reabilitação Psicossocial (CAPS), por baixo investimento governamental.

A longa permanência de pacientes mantidos sob internação compulsória foi uma prática frequente nos períodos seguintes à abertura dos manicômios judiciários, atuais Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), um dos espaços de sequestro, de disciplinarização contínua de corpos (Foucault, 2013), visto que populações encarceradas há muito não eram contempladas pelas políticas públicas, permanecendo institucionalizadas por períodos indefinidos nas malhas da rede jurídica. Durante décadas, a desinternação era vinculada ao retorno familiar, uma exceção à regra geral da perda dos vínculos socioafetivos dos internados, que permaneciam internados com a única certeza na vida, a da morte institucionalizada.

Apesar dos complexos fatores que envolvem a discussão sobre a internação em HCTPs, o escopo deste artigo envolve a delicada relação entre a saúde mental e a área jurídica, que possui questões conceituais e práticas específicas. Neste caso, as mudanças dos paradigmas de tratamento e internação em HCTPs não ocorrerão sem o abalo das bases conceituais reducionistas que sustentam as práticas da Psiquiatria Forense e do Direito Positivista, ambos os campos retroalimentados pela associação entre loucura e periculosidade vigente na formação profissional dos especialistas da área, reforçada por preconceitos sociais. Uma das evidências deste panorama traçado é que, apesar dos avanços promovidos pela Reforma Psiquiátrica, os alicerces dos manicômios judiciários foram parcialmente abalados no mínimo com 10 anos de atraso pelas mudanças no campo da saúde mental no Brasil. Reconhecer a pessoa com transtorno mental infratora na qualidade de usuário da rede de atenção psicossocial já produziu uma grande diferença nas ações conjuntas interinstitucionais de desinternação jurídica, e o esboço de novos tipos de políticas públicas desencadearam mudanças tardias, porém necessárias e bem-vindas, nas ações técnicas em ECTPs brasileiros, conforme analisaremos na terceira seção do artigo.

Os ECTPs no Contexto do Encarceramento Brasileiro

Nesta seção, exploramos brevemente a situação dos ECTPs estaduais na atualidade, compreendendo os dados censitários como uma forma de delimitar um panorama nacional, em sua potencialidade e limitações no uso em políticas públicas.

O único censo brasileiro específico sobre a custódia e o tratamento psiquiátrico (Diniz, 2013) contemplou a visitação em 26 ECTP., incluindo HCTPs e Alas de Tratamento Psiquiátrico (ATP), conforme mostramos na tabela 1. Cabe, contudo, ressaltar a ausência dessas instituições nos seguintes estados: Acre, Amapá, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Roraima e Tocantins. Muitas indagações são evocadas em função do extenso volume de dados obtidos, ainda sem possibilidade de comparação longitudinal, na falta de replicação de novos censos e/ou a produção de bancos de dados específicos, compartilhados entre os campos judiciários e da saúde mental, acerca da população abarcada pela MS, confinada compulsoriamente.

A ausência de ECTPs em alguns estados brasileiros suscita dúvidas acerca dos locais de encaminhamentos de casos pretensamente de MS, que estariam em delegacias, alas de presídios ou penitenciárias, ou mesmo em instituições de saúde mental privadas autorizadas na custódia da MS, sem desconsiderar as transferências de casos para outros estados com instituições de custódia especializadas (ECTP).

O exame das estatísticas oficiais relativas ao contexto de encarceramento brasileiro fornece dados relevantes sobre a interseção entre as penas privativas de liberdade e a medida de segurança. Segundo informações colhidas até junho de 2017, e publicadas no ano de 2019, consta o total de 726.354 pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário, a terceira posição de maior população carcerária do mundo. (Moura, 2019). Nos dados, a MS é responsável por 0,85% do total de encarceramentos, desprezando-se parte relevante dos presos provisórios elegíveis à medida de segurança, indefinidos ou ausentes na estatística dos dados – remetidos às Casas de Custódia., por desconhecimento do estado psiquiátrico do encarcerado, ou diretamente, sem perícia especializada, aos ECTPs para acompanhamento da crise psicótica. Isto significa que a categorização geral de “presos provisórios”, ou seja, sem condenação definitiva, cujo total é de 33,01%, poderia apresentar um percentual significativamente maior caso contemplasse os casos de MS. Os casos de presos provisórios, sem avaliação de peritos na entrada do sistema penal, são comuns nos espaços dos ECTPs, principalmente aqueles com histórico de dependência química, encarceramentos crescentes em função da política de guerra às drogas e da criminalização da pobreza adotadas pelo Estado brasileiro (Kolker, 2016). A lei 12.403/2011, artigo 319, fundamenta a aplicação da medida cautelar e a internação provisória na forma de proteção social, após a perícia médica concluir a inimputabilidade (incapaz de entender ato ilícito/MS) ou semi-imputabilidade (perda parcial da compreensão do ato ilícito/redução de PPL ou MS) do indivíduo. No entanto, frequentemente, as ações jurídicas são baseadas em indícios comportamentais observados pelo juiz, executadas sem perícia médica., desconsiderando a gravidade do quadro clínico ou o potencial ofensivo do ato ilícito. Na ordem jurídica processual, há a denominada “captura” do indivíduo que remete à internação compulsória em ECTP, logo após a infração no contexto familiar e/ou comunitário, principalmente quando a infração for praticada com violência e/ou grave ameaça ou risco de reiteração do ato.

A provável subestimação do quantitativo da medida de segurança discutida acima estende-se para além do âmbito público, como os casos de internação compulsória judicial em clínicas psiquiátricas particulares e nas comunidades terapêuticas, seara da institucionalização privada, inclusive de ordem religiosa, notoriamente manicomial, mediante as possibilidades econômicas familiares (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017). No último caso, o livre-arbítrio da família se contrapõe à decisão jurídica de tratamento ambulatorial, transformando o tratamento em liberdade do sujeito com transtorno mental em conflito com a lei em internação, por meio de convênio particular ou pelo Sistema Único de Saúde. Portanto, os referidos casos de institucionalização compulsória no cumprimento de medidas de segurança são invisibilizados nas estatísticas oficiais e representam inúmeros dados não computados na totalidade.

A localização geográfica dos ECTPs no Brasil, distribuídos pela maioria dos estados brasileiros, retrata a dimensão territorial da dispersão da medida de segurança em regime de internação nos diferentes estabelecimentos jurídicos estatais utilizados para o confinamento de aproximadamente 4 mil sujeitos com transtornos mentais em conflito com a lei (Diniz, 2013). Vários recursos poderiam ser disponibilizados no gerenciamento de dados da medida de segurança no judiciário. Podemos citar, entre eles, censos estaduais periódicos, notificação compulsória de transferências e desinternações institucionais de portadores de transtornos mentais, reunidos em bancos de dados, sigilosos, específicos, compartilhados entre o judiciário e a saúde mental, com estatística oficial publicizada anualmente. Todas as propostas supracitadas auxiliariam no municiamento de previsão de novas vagas nos dispositivos de tratamento em saúde mental e no turn-over dos casos, avaliando o alcance das propostas dos programas implementados no país, que operam nas esferas governamentais ou iniciativas privadas.

Partimos do pressuposto de que os estados sem HCTPs podem transferir a demanda por internação compulsória para outros dispositivos judiciários próximos, ou manejá-la por meio de ações inovadoras junto à Rede de atenção à saúde mental (RAPS), qualificando a atenção especializada dos portadores de transtorno mental infratores junto ao judiciário nas MS. Por inovações gerenciais na MS incluímos ações alternativas, especializadas, já legitimadas pelos campos da saúde mental e justiça brasileira. Portanto, elegemos, para a presente discussão, os programas conectores multiprofissionais exitosos e participantes do prêmio Inovare10, descrito brevemente na seção subsequente, para uma investigação preliminar das dinâmicas interações, funcionamentos e contribuições à Rede de Atenção Psicossocial no atendimento às MS.

Inovações Gerenciais na Medida de Segurança

O gerenciamento da medida de segurança recebeu tênues mudanças no seu tempo de existência, conforme discutimos nas transições discursivas da internação compulsória, mesmo após a regulamentação da Lei da Reforma Psiquiátrica. Apesar desta situação, alguns magistrados e equipes multiprofissionais têm construído alternativas frente às situações inusitadas dos portadores de transtorno mental em conflito com a lei nos estados brasileiros, colocando em prática modificações relevantes na relação entre os campos jurídico e da saúde mental, nos ensaios inaugurados.

Para efeito deste debate, a seleção desses programas deveu-se ao destaque nas respostas às principais situações presentes nos estabelecimentos de custódia e tratamento brasileiros, quer seja, a superlotação dos ECTPs e a falta de equipes multiprofissionais, e também ao fato de serem os únicos que trabalham com a temática MS e terem concorrido ao prêmio Innovare de inovação nos funcionamentos jurídicos, os dois primeiros na edição de 2009 e o último na edição do ano 2017. Os três programas também consideram as orientações adotadas pelo campo jurídico concebidas a partir da Lei n.10.216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica, que prioriza o tratamento ambulatorial ao invés da internação judiciária compulsória: o “Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário” (PAI-PJ) em Minas Gerais, o “Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator” (PAILI) em Goiás e o “Programa de Cuidado Integral a Pacientes Psiquiátricos” (PCIPP). O último programa mencionado associa uma oferta de trabalho multiprofissional terceirizado, em rápida e dinâmica expansão nos estados brasileiros, à “Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei” (EAP).

A construção do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) teve início em 1999, em resposta a um período de lotação máxima do HCTP Jorge Vaz, em Barbacena (MG), e o redirecionamento da demanda para o hospital psiquiátrico público local, solução pautada no artigo 96 do Código Penal vigente. A proposta do projeto-piloto de um dispositivo conector, de mediação entre o judiciário e a rede de saúde psicossocial, foi apresentada em 02 de março de 2000 e oficializada em Portaria Conjunta n. 25/2001. No fluxo indicado no serviço, o paciente é encaminhado pelo juiz à equipe multiprofissional do PAI-PJ, que formula um plano de ação, visando ao acompanhamento do processo, à discussão com o perito e à articulação intersetorial, com ênfase nos laços de sociabilidade e nas relações de convivência do paciente psiquiátrico infrator (Brisset, 2010a, 2010b; Carneiro, 2011). Apesar da experiência demonstrar a possibilidade de dispensar a internação em HCTPs, com 2% de reiteração de ilícitos de baixo teor ofensivo e crimes contra o patrimônio, esta iniciativa bem-sucedida e a vigência da Lei n.10.216/2001 não inibiram a inauguração de um ECTP no estado de Minas Gerais em 200211.

Por sua vez, o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI) é concebido após uma sequência de acontecimentos na malha judiciária no estado de Goiás. Primeiramente, a proibição de recolhimento da internação compulsória no Centro Penitenciário de atividades Penitenciária de Atividades Industriais em 1999. Em segundo lugar, duas tentativas fracassadas em erigir um HCTP no estado, pela inadaptação arquitetônica de um presídio de segurança máxima e a não observância de regras de instalação de unidade hospitalar, que tornou insalubre a edificação de um novo HCTP nas imediações do Lixão de Trindade. O programa de Goiás desloca a discussão da medida de segurança da área de segurança pública para a rede de atenção psicossocial e enfatiza a terapêutica como principal foco de atenção (Caetano, 2010, 2013, 2018). O fluxo do serviço é iniciado com a demanda do juiz de avaliação psicossocial do caso diretamente à equipe multiprofissional no âmbito da saúde mental. Os afetados juridicamente pela medida de segurança são encaminhados para a rede de atenção em saúde mental do SUS ou conveniada, com articulação intersetorial prevista na política pública de saúde mental. O resultado da reiteração é em torno de 5% de atos ilícitos de menor potencial ofensivo, geralmente vinculados ao abuso de drogas. Cabe destacar que o estado de Goiás se mantém sem HCTP, apesar da proximidade com um ECTP no Distrito Federal.

O Programa de Cuidado Integral a Pacientes Psiquiátricos (PCIPP) no Estado do Piauí (TJ-Piauí, 2016; Pereira et. al., 2017; Costa et.al., 2017) deriva de problemáticas semelhantes àquelas citadas acima. Em função da superpopulação e da falta de equipes de tratamento no local, há a interdição da recepção dos casos de medida de segurança no Hospital Penitenciário Valter Alencar e na Colônia Agrícola Penal major Cesar de Oliveira, e o remanejamento dos casos de MS, sem previsão de alta, para o Hospital Areolino de Abreu (HAA), único hospital psiquiátrico da região, provocando colapso da assistência psiquiátrica local e forte resistência inicial dos profissionais. Em seguida, promoveu-se uma reestruturação no sistema prisional do Piauí, com a extinção do Hospital Penitenciário Valter Alencar, enquanto ECTP, transformando-o em Unidade de Apoio Prisional (UAP), um local de passagem para detentos com problemas de saúde, ou em retorno do SUS, com a implantação de duas equipes de Avaliação e Acompanhamento das medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei (EAP).

Implementado pelo Provimento do Poder Judiciário do Estado do Piauí n. 9, de 28 de abril de 2016, o PCIPP tem as EAPs como principal alicerce12. Nesse programa, termos relevantes são alterados: os tipos de medida de segurança (cautelar, provisória ou definitiva de internação ou tratamento ambulatorial) são englobadas no termo “medida terapêutica”. Há, ainda, a substituição do usual termo projeto terapêutico singular (PTS), que consiste em propostas de condução terapêutica construída pela equipe e usuário, por “plano de ações integradas” que trata da intermediação entre os setores de saúde mental e justiça envolvidos na MS, diferenciando as EAPs das equipes em saúde mental pré-existentes. Essas equipes específicas foram criadas pela portaria n.94, de 14 de janeiro de 2014, do Ministério da Saúde, e vinculadas à Política nacional de atenção integral à saúde das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional (PNAISP) da Portaria interministerial n. 1, de 02 de janeiro de 2014 (Brasil, 2014), voltadas à promoção e prevenção de agravos à saúde no sistema penitenciário e inclui equipes de saúde mental.

O EAP é um mecanismo conector da PNAISP que propõe o fechamento da porta de entrada dos HCTPs e a facilitação do processo de desinstitucionalização na rede de atenção psicossocial, mas exclui a oferta de cuidados terapêuticos e da peritagem. Abrange os casos de MS em diversos momentos: do inquérito policial em curso (em custódia ou liberdade), cumprindo medida de segurança, prisão provisória, réu solto com incidente de insanidade mental instaurado, liberação condicional da medida de segurança (no primeiro ano após a desinternação) e, no caso de MS extinta, com demanda judicial ou do CAPS como forma de garantia de sustentabilidade do projeto terapêutico singular. No PCIPP, o sujeito permanece em local separado na prisão, com os devidos cuidados de saúde até a realização do exame de sanidade mental pela perícia psiquiátrica, com exceção do réu solto (processo ainda passível de recursos), que fará o exame em liberdade. O exame de sanidade mental indicará o tipo/modalidade da medida terapêutica, direcionando o ponto inicial de entrada das EAPs, a fim de realizar o plano de ações integradas de cada caso, em interação contínua com o judiciário, até a extinção da medida. Não há registro de casos de reinternação no recente PCIPP iniciado em 2016 (ibid. TJ-Piauí; Pereira et. al.; Costa et. al., 2017).

Cabe ressaltar que as experiências inovadoras descritas não resultaram necessariamente no fechamento dos ECTPs nas proximidades. No Estado de Minas Gerais, por exemplo, há três unidades penais psiquiátricas, há um HCTP no Piauí e, na extensão do Estado de Goiás, há uma Ala de Tratamento Psiquiátrico no Distrito Federal, conforme a. tabela 1. Contudo, pode-se afirmar que as propostas se somaram aos múltiplos “nós” existentes entre a rede conectora da RAPS e o Judiciário, melhorando a capacidade dos fluxos envolvidos, com limites e possibilidades a serem observados em revisão contínua.

Considerações Finais

Os ideais da luta Antimanicomial enunciados, de forma potente, por meio dos lemas “Por uma sociedade sem manicômios” e “Trancar não é tratar” não devem ser direcionados apenas a um determinado grupo de portadores de transtorno mental, posto que sua aplicação deve contemplar todos que apresentam sofrimento mental, inclusive aqueles em conflito com a lei. A naturalização da internação compulsória na MS conduz os portadores de transtorno mental ao encarceramento, sem a resolutividade do tratamento territorial na Rede de Assistência Psicossocial, além de agregar-lhes novos estigmas, apesar da frágil condição de saúde mental indutora do ato infracional. A situação do portador de transtorno em conflito com a lei não é simples, mas requer implicação dos campos de saberes envolvidos em torno da escolha dos dispositivos de tratamento e reinserção psicossocial.

As experiências inovadoras descritas no artigo indicam certa autonomia dos estados da federação para lidar com as MS após a Lei n.10.216/2001, no processo que vai desde a constatação do ato infracional cometido à escolha do tipo de encaminhamento de cada caso. Ainda assim, a permanência dos HCTPs e/ou possíveis transferências dos casos para outros estados denotam a preferência do judiciário pela internação compulsória, principalmente daqueles casos com maior vulnerabilidade social, mais suscetíveis à determinação do judiciário. Assim, a denominação “presos provisórios” parece escamotear toda sorte de sujeitos vulneráveis, que aguardam sintomáticos, mas sem diagnóstico, a possibilidade de serem descobertos dentro da massa carcerária e alçar à condição de paciente judiciário.

A produção de novos dispositivos que articulem efetivamente os campos da saúde mental e justiça, substitutivos da internação em HCTP, é necessária e urgente. Estruturados de forma a atender os preceitos da Lei n. 10.216/2001, acreditamos que têm, como função, oferecer condições de reintegração social e a manutenção dos vínculos continentes da nova fase de vida do desinternado, frequentemente com laços familiares fragilizados ou perdidos, com a finalidade de manutenção da baixa recidiva, por meio de manutenção de direitos e tratamentos especializados.

Os três programas em saúde mental e justiça apresentados no artigo sugerem uma compreensão distinta das problemáticas do transtorno mental e do ato infracional de forma inovadora, chancelados pela Lei Antimanicomial. Estes encontram o potencial do tratamento de portas abertas, multiprofissional, para os portadores de transtorno mental em conflito com a lei. Em comum, todos constituíram-se como respostas institucionais à precariedade e à insalubridade das condições de tratamento dos usuários de saúde mental em HCTPs, que se operacionalizam na superpopulação carcerária e nos poucos recursos materiais e humanos de trabalho existente nesses espaços manicomiais. Os programas mencionados deslocam seus focos para a terapêutica e não mais na retribuição punitiva ao ato infracional correspondente ao ato de prender com a finalidade de “tratar”. No ideário, todos esses programas compartilham as práticas de reestruturações das instituições do sistema prisional, com a finalidade de estreitar as portas de entrada e ampliar as portas de saída do sistema penitenciário; ou seja, não eliminar a MS no judiciário, porém demonstram uma visão geradora da baixa reiteração em novos atos infracionais constatadas por autoavaliações programáticas.

Os desafios estão postos pelos programas específicos existentes, mas ainda demonstram fragilidades frente ao crescente movimento de Contrarreforma Psiquiátrica em resposta às demandas da psiquiatria de mercado (Associação Brasileira de saúde Coletiva [ABRASCO], 2018), ameaçadores do crescimento e da manutenção da RAPS e dos serviços alternativos mencionados. Pairou uma grande ameaça aos serviços prestados pelo dispositivo conector denominado EAP, revogado exatamente no dia 18 de maio, dia simbólico da luta antimanicomial, pela Portaria GM/MS n. 1.325. O processo de extinção da EAP foi revertido após inúmeros setores da sociedade denunciarem a arbitrariedade e clamarem pela garantia da manutenção do modelo alternativo ao tratamento da internação compulsória, associado ao êxito do Projeto de Decreto Legislativo n.249, de 2020, que sustou a referida portaria.

Mediante a complexidade da temática delineada, tornam-se fundamentais reavaliações contínuas das formas de gerir a medida de segurança em andamento, com a finalidade de maior aprimoramento das ações governamentais e não governamentais voltadas ao portador com transtorno mental em conflito com a lei.

Material suplementar

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