Relatos de Experiência

E QUANDO CONTARMOS NOSSAS HISTÓRIAS? RELATOS EM UMA FORMAÇÃO RACISTA

AND WHEN DO WE TELL OUR STORIES? STORIES IN A RACIST DEGREE

Manoel Nogueira Maia Neto Neto
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brazil

E QUANDO CONTARMOS NOSSAS HISTÓRIAS? RELATOS EM UMA FORMAÇÃO RACISTA

Revista de Psicologia, vol. 13, no. 2, pp. 80-90, 2022

Universidade Federal do Ceará

Received: 26 January 2022

Accepted: 26 April 2022

Resumo: Situando o campo onto-epistemológico do espaço universitário, este texto volta-se para a contestação da produção de conhecimento científico e, com isso, possibilitar marcar o não-marcado (privilégio do saber) e citar sobre o mal falado (racismo). Para isso, situa-se que a entrada na universidade de sujeitos historicamente construídos como objetos científicos acarreta tensões através da exposição de um curioso silenciamento acerca da produção da ficção de neutralidade de um certo tipo de sujeito-sistema (homem, branco, cis, hétero). Neste escrito, ocorre a marcação da localização da autoria (negra, homem, cis, gay) como uma estratégia de produção de autonomia, do negro falar sobre si, marcando a trajetória como parte do fazer ciência - não como novidade e, sim, como uma re-inauguração anti-racista. Com o objetivo de tentar responder “Quem pode falar?” (KILOMBA, 2019, p. 33), organiza-se a partir daqui uma “contação de histórias” biográfica e coletiva sobre os atravessamentos de uma formação racista para pessoas negras, a qual pretende se ater sobre as tensões, os racismos e as negociações das questões raciais na área da Psicologia.

Palavras-chave: Epistemicídio, racismo, antirracismo.

Abstract: Situating the onto-epistemological field of the university space, this text turns to the contestation of the production of scientific knowledge and, thus, making it possible to mark the unmarked (privilege of knowledge) and to quote about the amiss spoken (racism). It is situated, the entry into the university of an object historically constructed to produce through the exposition of a strange silencing about the fiction of a type of neutrality of a system (man, white cis, hetero) ). In this writing, the location of authorship (black, male, cis, gay) is marked as a strategy for the production of autonomy, for black people to talk about themselves, marking the trajectory as part of doing science - not as a novelty, but as an anti-racist re-inauguration. With the aim of trying to answer “Who can speak?” (KILOMBA, 2019, p. 33), it organizes itself into a biographical and collective “storytelling” about the crossings of a racist formation for black people, which intends to focus on tensions, racisms and the negotiations of issues races in the field of Psychology.

Keywords: Epistemicide, racism, anti racism.

Introdução

Este texto se dá embasado por um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), partindo de uma graduação em Psicologia, realizado e defendido há alguns anos. Seguindo em caráter de escrita e posicionamento onto-epistemológico (pessoa negra e dissidente sexual) marcados textualmente, os quais serão melhor detalhados nas próximas páginas, os temas orbitados se darão envolta das tensões raciais na formação acadêmica, estando em aproximação a um compartilhamento experiencial narrativo biográfico e coletivo, social, politicamente e epistemologicamente postos a partir da construção do referenciado TCC.

A entrada na universidade de pessoas as/os quais historicamente foram construídas/os como objetos de científicos levam, com isso, a uma tensão a partir da exposição de um curioso silêncio acerca da produção da invenção de universalidade e neutralidade de um certo tipo de sujeito cognoscente, produzindo uma “ficção higiênica” que desconsidera e desassocia a subjetividade na produção de conhecimento e, no geral, do fazer humano. Ou seja, para tais sujeitos oculta-se o “fato de que a sua posição na sociedade e seus marcadores identitários, tais como raça, classe e gênero, são partes constituintes não apenas dos resultados de suas análises como também das próprias perguntas que movem sua curiosidade intelectual” (Cruz; Lemos & Jesus, 2020, p. 245).

Em exercício de contestar o lugar de reconhecidos autores brancos referências nos estudos sobre as negritudes no campo das Ciências Sociais, na segunda metade do século XX, como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, Lourenço Cardoso (2010) lembra que se utilizando da “neutralidade” do sujeito científico - como comumente faz a branquitude a partir da negligência em se pautar como um lugar particular/não-universal - estes não realizaram autocrítica racial na construção de seus estudos, ou seja, “não refletiram sobre a possibilidade de que o conhecimento que produziram seja também autoconhecimento” (p. 625). Insistentemente afirmando ser universal, o pensamento colonial - assim como a branquitude e as pessoas brancas neste - dramatiza um ato sintomático de resistência, de negação sobre a própria doença-universalidade (Veiga, 2019).

“Eu, como mulher negra, escrevo como palavras que descrevem a minha realidade, não com palavras que descrevem a realidade de um erudito branco, pois escrevemos de lugares diferentes” (Kilomba, 2019, p. 59). E continua: ”Este [periferia] também é um lugar de onde eu estou teorizando, pois coloco meu discurso dentro da minha própria realidade” (p. 59). Dispondo sobre o ensino psi, Lucas Veiga (2019) traz sobre o impregnado colonialismo nas Psicologias advindas desde a formação universitária. Nisso, é perceptível que em diversas abordagens teórico-filosóficas clássicas ensinadas na graduação, há a prevalência do comum: homens, brancos, europeus ou estadunidenses, héteros, cisgêneros. “Ao limitar-se as conceituações brancas e européias sobre saúde mental e sofrimento psíquico, a psicologia brasileira deixa de contemplar 54% da população do país, composta por negras e negros” (p. 245).

Considerando esses pontos, ocorre a marcação da localização deste autor como uma estratégia de produção de autonomia, do negro falar sobre si (Souza, 1983), marcando a trajetória como parte do fazer ciência. Isso não como novidade e, sim, como uma re-inauguração anti-racista para além de uma perspectiva colonial-racista sobre a produção de um texto afetivamente elaborado, individualmente situado e pessoalmente referenciado, leva-se em conta Kilomba (2019), a qual afirma contesta o silenciamento científico que força o binarismo universal/específico; objetivo/subjetivo; racional/emocional; imparcial/parcial, uma ficção onto-epistemológica.

Breve contextualização da negritude acadêmica

Nesta seção, algumas filiações/referências de autores/as negros/as serão presentificadas. A primeira delas, Neusa Santos Souza (1983), psiquiatra e psicanalista negra, em Tornar-se Negro, livro que faz divisão nos estudos contemporâneos sobre as Relações Raciais e os efeitos nocivos do racismo para pessoas negras (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017).

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienantes. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. [...] Aqui esta experiência é a matéria prima. É ela quem transforma o que poderia ser um mero exercício acadêmico, exigido como mais um requisito de ascensão social, num anseio apaixonado de produção de conhecimento. É ela que, articulada com as experiências vividas por outros negros e negras, transmutar-se-á num saber que - racional e emocionalmente - reinvidico como indispensável para negros e brancos, num processo de libertação (Souza, 1983, p. 18).

Grada Kilomba (2019), que é portuguesa de ancestralidade africana, em Memórias de Plantação, traz uma cena significativa. Quando doutoranda na Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, Kilomba é interrompida logo na entrada da biblioteca por uma funcionária branca: “‘Você não é daqui, é? A biblioteca é apenas para estudantes universitárias/os!’. Perplexa, parei. No meio de dezenas de pessoas brancas circulando ‘dentro’ daquele enorme recinto, eu fui a única parada e verificada na entrada. Como ela poderia saber se eu era de outro lugar?” (p. 62, grifo da autora). E, logo depois, compreende que “Estou imobilizada porque, como mulher negra, sou vista como ‘fora do lugar’. A capacidade de corpos brancos têm de se mover livremente naquele recinto resulta do fato de eles estarem ‘no lugar’ (...) Eu sou marcada como diferente - ‘Você não é daqui’” (p. 62, grifos da autora), registrando, com isso, um certo tipo de afeto-diáspora², fora-lugar.

A partir de trabalho em grupo focal com estudantes da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Santos Filho e Bonfim (2020, p. 62) apontam os efeitos do racismo institucional, afetando a saúde mental destes discentes, em seus desempenhos acadêmicos e também na autopercepção corporal - “Contudo, ainda que vivenciando essas agressões sistemáticas, os estudantes conseguem montar estratégias de resistência e enfrentamento para permanecer na Instituição” (p. 62).

De modo consonante, em projeto de extensão realizado junto à comunidade negra acadêmica (discentes, docentes e técnicos) da Universidade Federal do Ceará (UFC), sob objetivo de compreender os atravessamentos do racismo no contexto universitário que podem impactar, por exemplo, na evasão acadêmica de discentes, Maia Neto e Oliveira (2019) apontam alguns achados nos relatos espontâneos das/os participantes em suas experiências grupais, como rodas de conversa e cine debates. Dentre esses, três foram os achados significativos: o impacto de cenas racistas vividas na infância para o reconhecimento-identidade racial; a afetividade e o sentimento de solidão da pessoa negra; e, por fim, a relação entre universidade, pertencimento e empoderamento.

Enquanto alunos/as egressos/as e profissionais, é interessante destacar o relatório do Conselho Regional de Psicologia da 11ª Região/Ceará acerca das condições de trabalho do profissional psicólogo com o objetivo de investigar as condições laborais, as características destes trabalhadores e suas formas de atuação (Pequeno, 2019). De maioria católica, entre 20 e 30 anos, recém formadas (pico de egresso universitário em 2016), vindas majoritariamente da UFC e Universidade de Fortaleza (UNIFOR), com principal área de atuação em Social (via Políticas Públicas), o perfil profissional é feminino e de cor parda (47,8%), seguida de raça branca (42,6%) e preta (7,3%). Ou seja, a maioria das profissionais psicólogas cearense considera-se negra (preta e parda), 55,1%.

Com isto, juntamente aos seres individual, coletivo e institucional, por exemplo, que são atravessados pelos racismos, às psicólogas cearenses também são perpassadas pelos dilemas raciais desde seu reconhecimento identitário enquanto cor/raça “parda”, o que é apontado no próprio relatório: “Importante frisar a ambiguidade da referência parda que destaca a miscigenação, mas também o embranquecimento da população” (Pequeno, 2019, p. 5). Mesmo não sendo aprofundado neste escrito, explicita-se que a união entre o mito da democracia racial e a ideologia de branqueamento populacional, construiu-se um limbo racial-identitário para pessoas ditas pardas (enquanto posição política, não de cor) resumido no dilema “Branco demais para ser negro, preto demais para ser branco” (Gomes, 2019, p. 70).

Percurso de pesquisa

Neste ponto, segue-se em confluência com Nêgo Bispo (2019, online) e seu questionamento onto-epistemológico: “Como contracolonizar? Um dos movimentos mais importantes para contracolonizar é sair da teoria e priorizar a trajetória. Eu digo que a minha trajetória é que precisa sustentar o meu discurso, senão o meu discurso não tem sentido”. Com isso, é possível assumir uma questão essencial: e quando nós contarmos nossas histórias? Aproxima-se também de Neusa Santos Souza (1983), quando esta traz em sua pesquisa a busca não para tematizar o/a outro/a ou compreender junto ao/à outra/o e, sim, uma busca por relegitimar o lugar do/a negro/a, o qual já se deu tão insistentemente cientificizado como objeto de análise (Schucman & Martins, 2017). Com isso, a maioria das referências, as quais são entendidas como filiações, são de pessoas negras que pautam as relações raciais e os atravessamentos do racismo.

O núcleo dessas filiações, como Nascimento (1980), Souza (1983), Fanon (2020), Kilomba (2019), Evaristo (2016) e Carone (2018), veio do cronograma-base de um coletivo afetivo de pesquisa, formado por estudantes e profissionais de Psicologia, o qual se objetiva em reaver referências bibliográficas racialmente implicadas, mas pouco utilizadas nas formações acadêmicas. Além dessas, foram encontradas outras filiações as quais se detém em implicar esta área psi, tais como Veiga (2019) e Schucman e Martins (2017), assim como outras fontes de pesquisa que se aproximaram em questionar as problematizações acerca do saber científico-universitário e a entrada de pessoas fora do circuito hegemônico nesse espaço de saber-poder, por exemplo Nêgo Bispo (2019) e Cruz, Lemos e Jesus (2020).

Buscou-se também filiações não-acadêmicas/literárias, por exemplo Jesus (2014) e Nascimento (2019a), que objetivavam compreender e problematizar as tensões raciais, implicando, com isso, suas trajetórias negras biográficas e/ou coletivas, ofertando, em resumo destas referências, comungar com escritas vivas e dos vividos acerca de negritudes desde uma perspectiva “desde de dentro” destas.

Contação de histórias: considerações para iniciar

Para jamais esquecer, faço agora a minha vez (Costa, 2019)³.

Tenho vinte e poucos anos. Filho de Mariana e José, que fez aborto paterno - quando o pai abandona o núcleo familiar. Minha avó (materna) é Zélia e meu avô (materno) é Ronaldo. Minha criação foi pela via materna. Minha avó sempre dizia “Quem pariu Mateus que balance” para minha mãe, que trabalhava três turnos como professora de escola pública. Hoje trabalha manhã e tarde, aos 50 anos. “Você carrega o nome do seu avô, tem que ser homem que nem ele”, outra coisa que minha avó dizia, dessa vez para mim, que carrego “Neto” como sobrenome. Ela parou de dizer isso pelos meus 16 anos de idade, quando me assumiram bixa à minha mãe. Levo o nome do meu avô, homem branco, que dizia “Você vai ser advogado ou médico. (...) Negócio de político não, pra ficar ali tem que roubar que nem eles”. Um dos meus tios tentou ser prefeito da minha cidade, não conseguiu, não saberia roubar como eles.

“As dificuldades corta o afeto do povo pelos politicos” (Jesus, 2014, p. 33).

As filhas receberam como segundo nome Maria, os homens, José. Há forte devoção católica na minha família. Minha avó faz uma imagem de corpo linda quando está com os joelhos no chão rezando e segurando um terço que meu tio trouxe da Itália ou outro que ela tem de presente. Ela tem uns terços quebrados que de vez em nunca eu ajeito. Algumas fotos 3x4 de familiares (minhas, dos meus e de gente que nunca vi que são família) ficam acima das imagens de santos remendados. Todos os filhos dela foram professores, o que diz muito da educação para se libertar. Liberdade vem de muitos caminhos para minha avó: sair de um casamento com um homem “bruto”, que ela amava e ainda traz saudades de luto depois de uns 10 anos de falecimento, mas que tiveram agressões e limitações de toda forma de dignidade, e de muitas outras coisas que eu não sei as palavras. Acho que nem ela ainda. Deve ter havido algo de amor, eu não consigo ouvir que teve, mas sim, pode ter tido.

Todos os filhos amam meu avô, apesar de terem na cabeça alguma memória de agressão física horrenda, que acontecia raramente, pois essa era mais a responsabilidade da minha avó: bater. “Por que vocês amam ele, então?”, perguntei para meu tio Marcos e minha mãe na sala. Só minha mãe depois voltou a tocar no assunto e dizia que não sabia. A pergunta ficou nela.

“— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?” (Evaristo, 2016, p. 9).

Desde a primeira neta, minha avó dizia algo mais ou menos assim: “Tomara que Deus me dê tempo o suficiente para ver essa menina crescer….”, fazendo o ritual de carinho anual de beijo nos pequenos. No quarto neto nascido, eu ria com meu tio: minha avó seria imortal. Cada neto, mais 18 anos de vida para ela e, assim, vai-se o tanto de créditos de anos com Deus. Quando ouço, acho algo bonito, de ela querer estar presente, de esperança nisso. Ter mais dias. Agora-aqui digitando, percebo que uma mulher negra dizer isso desde os 40 e poucos anos diz muito sobre o tempo dela. Ela continuar falando isso mostra algo sobre nosso (meu e dela) tempo. Não foi preciso ler texto algum para ela sentir perigo maior e pedir tempo à Deus. É estranho colocar minha avó na categoria “mulher preta”, acho ela mais a minha avó ainda. De algum jeito, acredito que identificar e escorregar em identidade social é guardar um movimento de vida importante para mim.

Temos muitos segredos de família, talvez por isso eu use tanto “palavras”, “costura”, “legibilidade”, “dicionário” nos meus textos acadêmicos. Quando se levanta do chão depois de rezar, minha avó anda devagar e praguejando pela casa com sua companheira, Suzy (uma cadela branca pequena, silenciosa, amável com todos da família e valente com estranhos), que ficava atrapalhando o caminho. Minha avó não fala “eu te amo”. Percebi há uns dois anos que falava sim, eu não ouvia. E entendi, como meu princípio de gente e psicólogo, que as pessoas falam sim - e muito.

“Cada um tem seu próprio dicionário”, então sempre estranho quando uma palavra forte segue no enredo de discurso de alguém quando eu atendo na clínica: “o que é choro?”, questiono curioso. Já eu não choro. Meu psicólogo perguntou “quando você vai chorar na terapia?”, com oito meses de sessões. E ele fez a pergunta certa. “Não sei…”, continuo respondendo. Só quando eu vi o filme Que horas ela volta?, exatamente no final, eu chorei. Minha mãe estava no sofá do lado e não entendeu. Eu sim. Chorei porque sabia que não era culpa dela. Era maior e fora somente de uma escolha individual dela. Chorei porque sou negro. Minha avó e mãe, especialmente, não se consideram mulheres negras ou de ancestralidade indígena. Acho que ninguém da família sabe disso, ser negro ou chorar.

Acho que percebi também que sou o único dos netos da minha avó que nasceu mais próximo de ser considerado negro.

Minha mãe teve sua primeira filha, minha meia irmã, quando era jovem (perto dos 24 anos). É estranho estar na mesma idade que minha mãe começou a ter filhos. Há uma foto específica que minha mãe aponta e diz “às vezes perguntavam se eu não era empregada dela”. Quando pequena, ela tinha cachos dourados, pele branca.

Tempos em tempos desejei ser de outra família. Lembro sempre que nosso lema, vindo da minha avó, é que a educação, fazer faculdade, dá liberdade. Questionei isso há uns meses. Ainda acredito nesse lema, que trouxe todos os quatro filhos dela para a docência. “Isso não foi fácil”, assim começam todas as histórias do quanto minha avó impôs isso contra o que poderia dar errado e, talvez, contra a vontade blasé do meu avô, que não acreditava nem pagava escola para todos.

Eu bancava isso, o ditame da minha família, quando fazia meu curso, onde ainda tem professores brancos que não sabem manejar uma relação de docência. Alguns não deveriam estar nessa relação de poder, pois há responsabilidade, nem cuidado. “Leve para a sua terapia”, falam quando sentem medo, não sabem como manejar ou bancar o “lixo”, que é a humanidade (dos alunos) nesses tempos modernos. Li Bauman e isso faz sentido. Há muito medo nos docentes. Não acredito na educação universitária, mas ainda estou nela, já no mestrado. Isso é confuso de argumentar: há algo errado na maneira como se está ensinando e, esquecemos de destacar, nos relacionando na academia. Não há diploma fora do país que dê conta disso.

Fazer a monografia foi um terço desistência da universidade, outra parte formalidade para se formar e o último terço saber que é possível algum remendo. Me seguro nisso: vejo um “joelho quebrado” na minha área que vale a pena remendar. Acredito que há pessoas negras demais para ficarem se adoecendo em um ambiente negligente e falsamente acolhedor das diferenças, mas estou fazendo parte de vários espaços aquilombados, curiosamente liderados por não-docentes ou por autogestão. Espaços potentes. Ainda não sei muito sobre isso.

Para a pessoa negra sustentar se manter na academia e não ir embora tem que haver algo entre não sentir dor, se levantar constantemente, (às vezes) negociar a reação - um braço do controle racista, controlar a réplica e exigir controle - e relembrar o porquê de estar ali. Acredito que as pessoas negras são abusadas em diversas ou todas camadas na universidade, especialmente, porque ainda tem o discurso que diz, toscamente, que racismo é quando alguém é agredido verbalmente por outro sujeito lá acolá, jamais perto. Como se tivesse nada a ver com um corpo docente do meu Departamento de Psicologia composto exclusivamente por pessoas brancas, exceto por uma mulher negra. Esse é um posicionamento onto-epistemológico marcado, o da branquitude. Mesmo assim, insistentemente, há possibilidades de linhas de fuga e aquilombamento que vão se fazendo devagar como necessidade tão real como fome, aprendi.

Por uma possível curiosidade, digo que a extensão das várias páginas da monografia utilizada como base neste texto, me veem da posição de ter espaço, tema, método e paradigmas científicos, as narrações de dor (principalmente) e de cura (de modo inaugural) para provar insistentemente que o racismo é atuante e presentificado, incide nas pessoas negras que nos comprometemos socialmente, incide em nós-estudantes-profissionais e nas nossas ferramentas de prática e conhecimento. Apresentar muitas - e irrefutáveis - provas.

De tanta incidência narrativa individual coletiva, neste lugar político de cansaço com o fim de graduação, consigo balbuciar uma reflexão de “Eu não estou aqui”, me referenciando ao TCC ou à própria graduação. É uma boa frase para dar ritmo de “não se deixar capturar”, desapegar do trabalho feito ao mesmo tempo que ocupar essa autoria, que, como apontei no início com Lázaro Ramos (2017), é minha e também não só minha. Nisto, como objetivo e cansaço, responsivo e branco-instigador (Nascimento, 2019b), o modo de narrar neste trabalho comumente se fez em costurar reflexões e responsabilizações às invisibilizações das identidades raciais de branquitudes, majoritariamente, e, às vezes, instigadora para não-brancos.

Por último, trago uma memória sobre a funcionalidade daquela minha monografia, envolvendo uma sensata colocação, feita em supervisão, por minha orientadora. O contexto é que li Iray Carone (2018), que traz a reflexão sobre o cotidiano social, pois a desmistificação ideológica-teórica do racismo é de difícil tradução no dia-a-dia: produzir conhecimento, mas a vida cotidiana não muda com a mesma velocidade. “Essa monografia serve de nada enquanto não for para se fazer algo real, material mesmo”, disse. “Você está falando isso no atual contexto de deslegitimação da universidade brasileira?” e assim se deu a sensatez de quem tem mais tempo, vê dos lados, do alto e nas sublinhas. No final, recebi um: “monografia [e a produção acadêmica como um todo] é filha que nasce para o mundo. Desapegue e deixe ir”.

Já um amigo mais velho disse que tinha um tom de desleixo nesse meu argumento, que há um impacto invisível, necessário e transformador em enunciar o que nós, sujeitos negros e negras, criamos e fazemos, especialmente este sendo um texto da nossa área. Outro sensato. Agora, consigo bancar um pouco de cada um e timidamente me posicionar que este texto serve para o mundo, para o mundo material do dia-a-dia, o mundo da época que irredutivelmente pertenço (como traz Fanon, 2020), para apocalipticamente (Mombaça, 2016) plantar outros mundo possíveis, brilhantemente negros (Nascimento, 2019), que talvez eu não terei acesso. Plantando um mundo para minha família, de gentes todas, que não poderei colher os frutos. Segue-se o futuro em hoje.

Considerações para finais

Para considerar conclusões, há uma memória. Em um grupo afetivo de pesquisa, logo no começo de um encontro para a leitura de Pele Negra, Máscaras Brancas (Fanon, 2020), primeiro capítulo O negro e a linguagem, estávamos comentando sobre nossos nomes e sobrenomes. Agora, escrevendo não esqueço de uma aula sobre adestramento de Nêgo Bispo.. Comentei sobre o significado do meu primeiro nome, o qual era algo sobre “Deus conosco”. Poucos sabem desse nome, me acostumei a detestar. Quem descobre pergunta: “Valha, é um nome tão lindo!” - eu sorrio de lado. Ouvi sobre os usos dos sobrenomes Silva ou Souza, como o de Neusa, no qual o batismo cristão era com marca de ferro quente no lombo para esquecer os procedimentos de origem ou para sobreviver à violência colonial desde lá.

Lembrei que, na minha família, as pessoas que nascem ditas “mulheres” recebem “Maria”, como segundo nome, e os ditos “homens”, “José”. Como susto, alguém comenta “Eu também!” e, assim, foram contadas histórias sobre uma outra família, que até então eu não conhecia tão bem. Vários de nós compartilhávamos um, dois ou quase todos os sobrenomes de origem portuguesa. Logo eu, “minha cara meio de caboclo”. A memória ficava me pescando: ou pegava ar-fora ou afundava-dentro. Em outro susto, pareceu óbvio e comentei, ainda sem jeito: “o que nos liga é o colonialismo…”. Nomes, memórias e cidades me interessam, sendo, neste escrito, um exercício de fazer aparecer alguns sinais de violência hegemônica em prol da própria sinalização para uma possível cena de seu fim ou, menos, de sustentar encantamentos para tal.

Assim, segue-se aqui pela promoção de agouro em busca de explodir as estratégias feitas de falhas e que produz falhas contra pessoas negras, como as iniquidades em Saúde, que falam sobre o entroncamento entre sustentar um Brazil, um país anti-negro, em prol de uma violência de matar e deixar morrer. “O Brasil precisa dar errado urgentemente” (Simas & Rufino, 2020, p. 15) e, com isto, seguir na possibilidade de fazer errar, falhar as falhas que impedem um maior cuidado para com a comunidade negra. Nisto, reafirma-se o valor da desobediência e, também, do emburrecimento.. Enfim, sinto que somos muitos em lembrar disso (do ato de cuidar) e de querer que esse mundo dê errado logo, o mais urgente possível, e, nisto, sem esquecer que “Sem a comunidade, qualquer coisa que façamos é apenas uma trégua temporária entre um indivíduo e sua situação particular” (Lorde, 2020, p. 66).

Referências

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Veiga, L. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31 (1), 244-248.

Notas

1 Clélia Prestes (2020, p. 63, grifos meus) narra a linha histórica que liga Neusa Santos Souza a outras importantes figuras da história das Psicologias: “Juliano [Moreira], Nise [da Silveira] e Neusa compartilham o fato de terem se graduado na Faculdade de Medicina da Bahia, de terem seguido depois para o Rio, dedicando-se à psiquiatria e cuidado humanizado de psicóticos, de terem trabalhado no mesmo hospital [de 1903-1930; de 1946-1970; no anos 1980, respectivamente] e de serem figuras revolucionárias no campo psi. Uma diferença é que Nise é amplamente conhecida, recentemente teve inclusive um filme dedicado à sua vida, enquanto Juliano e Neusa, figuras apagadas. Não descarto a possibilidade de ela ser mais conhecida por ter uma produção mais recente que Juliano, e talvez mais abrangente que Neusa, nem desconsidero o brilhantismo de Nise. Questiono, no entanto, o reconhecimento no campo psi não ser proporcional, no caso das figuras negras ou da temática das relações raciais”.
2 Lucas Veiga (2019, p. 245) entende a violência como língua-mãe que atravessa e faz produzir efeitos nocivos às subjetividades (e coletividades) negras. Um destes é o afeto-diáspora é entendido como a sensação de se estar fora do consenso de integração, de se sentir permanentemente fora de casa ou da possibilidade de ser, de modo genuíno, acolhido onde se mora. “O povo negro vive, desde sua saída forçada da África, num ambiente antinegro, racista, que opera com inúmeros dispositivos para exterminá-lo. Não há descanso e muito menos possibilidade de se sentir em casa, mesmo estando no Brasil há cerca de 500 anos” (Veiga, 2019, p. 81).
3 Em sua monografia, a bixa fortalezense Rodrigo Lopes Costa escreve: “Para que isso nunca seja esquecido. Para que o passado não se repita. Não há mais tempo de ser ingênua. A história, de fato, tem exigido crueldade de nós, bixas. Esse tem sido um processo de cura. Para que saia do meu corpo e não me adoeça mais, torno essa violência visível” (2019, p. 55, grifo da autora).
4 “Ao falar do colonialismo, eu uso sempre como metáfora o adestramento de animais, porque é o que eu fiz. Quando uma pessoa vai adestrar um animal, qual é a primeira coisa que ela faz? Me ajudem aí, alguém tem um cachorro? Qual é a primeira coisa que você faz com ele? Bota um nome. Nominar é um ato de dominar. (...) Por que os colonialistas nos chama no burro? Porque nós não aprendemos o que ele quer que nos aprenda. Nós nos recusamos a ser adestrados” (Bispo, 2019, online).
5 “Quando nós falamos tagarelando e escrevemos mal ortografado, quando nós cantamos desafinando e dançamo descompassado, quando nós pintamos borrando e desenhamo enviesado não é porque estamos errando, é porque não fomos colonizados”, declama Nêgo Bispo (2019, online).
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