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SUS E SAÚDE COMPLEMENTAR: A EXPERIÊNCIA DA SAÚDE MENTAL EM VENÂNCIO AIRES/RS
Revista de Psicologia, vol. 13, núm. 2, pp. 198-212, 2022
Universidade Federal do Ceará

Relatos de Pesquisa


Recepción: 31 Enero 2022

Aprobación: 16 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.36517/revpsiufc.13.2.2022.14

Resumo: Nas últimas décadas têm se observado o aumento da inserção dos profissionais de Psicologia nos campos articulados às políticas públicas no Brasil. O município de Venâncio Aires/RS tem uma política diferenciada em relação aos atendimentos de psicoterapia, que consiste no credenciamento de profissionais psicólogos para prestação de serviço de consulta de atenção especializada a pacientes do SUS em conformidade com a Lei nº 8.666 de 1993. Este estudo tem por objetivo refletir sobre a prestação de atendimento psicológico no campo da saúde complementar a partir da experiência deste município. Assim, apresentamos a análise de quatro entrevistas realizadas com profissionais que atendem nessa modalidade. A análise qualitativa dos dados foi realizada a partir do construcionismo social de Mary Jane Spink. Esta foi organizada a partir de três eixos temáticos, os quais apontam especificidades em relação a essa prestação de serviço no município. Concluímos que a estratégia de credenciamento adotada pelo município estudado ao mesmo tempo que viabiliza a garantia do direito ao acesso à serviços de saúde mental, acaba igualmente por evidenciar especificidades e tensionamentos no modo como a rede de saúde mental articula-se.

Palavras-chave: Psicólogo, saúde complementar, psicologia, psicoterapia, saúde mental.

Abstract: In recent decades, there has been an increase in the insertion of Psychology professionals in the fields linked to public policies in Brazil. The city of Venâncio Aires/RS has a differentiated policy in relation to psychotherapy care, which consists of the accreditation of professional psychologists to provide specialized care consultation services to SUS patients in accordance with Law No. 8,666 of 1993. This study aims to reflect on the provision of psychological care in the field of complementary health based on the experience of this municipality. Thus, we present the analysis of four interviews carried out with professionals who work in this modality. The qualitative analysis of the data was carried out from the social constructionism of Mary Jane Spink. This was organized from three thematic axes, which point out specificities in relation to this service provision in the municipality. To conclude that a health accreditation strategy implemented by the municipality deepened the right at the same time as mental health guarantee services, equating by showing specificities how a tension network is articulated.

Keywords: Psychologist, complementary health, psychology, psychotherapy, mental health.

O SUS e a experiência de Venâncio Aires/RS: considerações iniciais

A Psicologia tem sido convidada a responder a inúmeros desafios na atualidade. Contribuir de forma mais ativa em políticas públicas é um deles e, para isso, é necessário compreender as relações que se estabelecem neste cenário de forças e interesses, assim como identificar demandas e possibilidades em sistemas tão complexos, movidos por diferentes intersubjetividades. Podemos entender as políticas públicas como ações, programas, projetos, regulamentações, leis e normas que o Estado criou para administrar de forma mais igualitária os diferentes interesses sociais. Sendo então, a soma das atividades dos governos que agem diretamente ou por delegação (Polejack, Totugui, Gomes & Conceição, 2015).

A Constituição de 1988, reflexo de ampla mobilização social, instituiu um sistema de seguridade social, amparado na previdência, na saúde e na assistência social, que reconhece oficialmente o direito às estruturas democráticas e à proteção social para toda a população, inclusive para os não-segurados. A partir desse momento, há mudanças da concepção clássica de atenção, com seus fundamentos assistencialistas e curativos, para uma visão que se sustenta em um conceito ampliado de saúde, entendida como condições de vida. Tal mudança de paradigma proposto a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) na década de 1990, teve como um de seus objetivos principais a reorientação do modelo assistencial a partir da Atenção Básica, atuando no nível primário de atenção através da Estratégia de Saúde da Família (ESF) (Alexandre & Romagnoli, 2017).

Neste sentido, as pesquisas de Meira e Nunes (2005) e Pires (2009), sobre a atuação no âmbito da clínica psicológica, destacam que tal quebra de paradigma possibilita que as práticas psicológicas passem a visar e a intervir frente às demandas das classes menos abastadas. Todavia, apontam que mesmo com tal deslocamento nas práticas de atenção em saúde da população a área clínica manteve seu status ao longo dos anos, de maneira que é possível constatar que ela ainda é́ bastante contemplada nos cursos de graduação em Psicologia no Brasil.

Do ponto de vista histórico, desde a década de 70, a formação em Psicologia esteve mais voltada á clínica, tanto que tal atendimento era legitimado por parcela da sociedade como sendo prática da Psicologia. Neste contexto, a clínica se estabeleceu rápido e era considerada nobre, marcando assim de modo intenso não somente os currículos, como também, o imaginário social em termos da figura do (a) psicologia (a) (Dimenstein, 2000).

Apesar da inserção cada vez maior dos profissionais nos serviços de saúde, hoje ainda há uma grande parcela da população brasileira que tem dificuldade de acesso ao serviço público, de maneira que acabam sofrendo com constantes problemas pertinentes á prestação estatal relacionada á saúde (como a demora e até mesmo a ausência de atendimento, bem como a carência de recursos humanos) o que o torna deficiente em vários aspectos (Silva & Simcic, 2021).

Diante de tal deficiência (s) na assistência à saúde da população, as iniciativas público-privadas, passam a proliferar na atualidade. Um exemplo disso, é a saúde complementar, regulamentada por meio da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993 e suas alterações, a qual veio como meio de fortalecer e reforçar a capacidade do Estado, através da iniciativa privada, de aumentar e complementar a sua atuação em benefício público (Silva & Silva, 2019; Sausen, Cardoso, Baggio & Mueller 2021).

A referida lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. No contexto desta legislação, embora determinados procedimentos sejam realizados por instituições de saúde privada, são consideradas ações do setor de saúde pública, devido à existência do contrato ou convênio entre ambas. E como parte integrante do (SUS) deve seguir às diretrizes deste, nos termos do art. 199, da Constituição Federal de 1988 (assistência à saúde é livre à iniciativa privada) (Sausen et al., 2021).

Segundo o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (2007), a saúde complementar deve ser compreendida através de ações e serviços de saúde que, embora sejam prestados por pessoas jurídicas de direito privado, são consideradas ações e serviços públicos de saúde em razão da existência de uma relação jurídica específica. Neste sentido, ao firmarem contratos ou convênios com o SUS, integram esse Sistema e submetem-se a todas as suas diretrizes, princípios e objetivos, conforme a Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, e serão consideradas, para todos os fins, instituições-organismos do SUS.

Ao serem consideradas “instituições-organismos do SUS” temos um jogo de forças que se constitui entre o público e o privado. Neste interjogo, o público não se restringe a um território que diz respeito aos interesses do coletivo da sociedade que é gestada pelo Estado, neste sentido pode-se inferir que a saúde complementar, enquanto estratégia de acesso e garantia do direito à saúde, pode gerar fragilidades em relação à essa garantia na medida em que não há equilíbrio dos interesses privados com os interesses da saúde pública, ou mesmo o cumprimento de códigos éticos de conduta (Silva, Turci, Oliveira & Richter, 2017; Lara, Guareschi & Bernardes, 2016). Ainda Lara, Guareschi e Bernardes (2016) referem que, no que tange à privatização da saúde, as relações entre o público e o privado se tornam estratégicas para a efetivação de uma política que se quer pública e ao mesmo tempo privada.

No âmbito do SUS, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), considerada ação prioritária para a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), busca constituir uma rede de cuidados que visem assegurar às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso álcool e outras drogas, um atendimento integral e humanizado (Brasil, 2011). Indica-se que as RAPS sejam formadas por serviços territoriais, como: Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), hospital-dia, equipes de Atenção Básica, Consultório na Rua, Centro de Convivência, ambulatório especializado, Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Sala de Estabilização, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), emergência hospitalar, serviço de atenção em regime residencial, Serviço Residencial Terapêutico (SRT), Unidade de Acolhimento, leitos de psiquiatria em hospital geral e serviço hospitalar de referência, assim como estratégias de reabilitação psicossocial, com os quais seja possível projetar práticas que operem no processo de transformação do modelo de cuidado em saúde mental (Roquete, 2019; Lima & Guimarães, 2019).

A contextualização realizada acima, nos subsidia a pensar sobre o credenciamento de profissionais com graduação em Psicologia para a prestação de serviços de consultas de atenção especializada para pacientes do SUS no município de Venâncio Aires/RS. Este município fica localizado na área central do Rio Grande do Sul, a cerca de 130 quilômetros da capital e integra a região denominada Vale do Rio Pardo. Conforme estimativa de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 71.973 habitantes residem no município, o que o coloca como o 31º mais populoso do estado do Rio Grande do Sul. Na última década, foi registrado um crescimento populacional superior a 9%.

Em relação à saúde, o município organiza-se com serviços que vão desde a atenção básica até o atendimento hospitalar. A rede pública conta com mais de 20 postos de saúde (incluindo UBS e ESF’s), além dos serviços especializados, como o CAPS II, CAPS AD e CAPSIA. Importante trazer que, o Hospital São Sebastião Mártir (HSSM) é referência para Venâncio Aires e para a microrregião, que abrange os municípios vizinhos de Mato Leitão, Passo do Sobrado e Vale Verde.

No campo da assistência à saúde mental da população, o município tem uma política diferenciada em relação aos atendimentos de psicoterapia, que consiste no credenciamento via chamamento público de profissionais com graduação em Psicologia a prestação de serviços especializado através de convênio firmado com a Secretaria Municipal de Saúde. Com base no edital nº 002/2020, consultado no site institucional, o serviço a ser contratado pela Secretaria Municipal de Saúde, dirige-se a profissionais com graduação em Psicologia, com habilitação jurídica, portanto, é preciso ter um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), pois através disso a Receita Federal identifica empresas e organizações e pode acompanhar suas movimentações financeiras.

Além disso, para estar habilitado ao credenciamento é obrigatório, estar com Regularidade Fiscal e Trabalhista, bem como com regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal e estar com regularidade de situação junto ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas. Como também, deve-se apresentar a inscrição do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), a cópia dos diplomas e títulos de especialidade e possuir o registro profissional no conselho regional ativo. O credenciamento de profissionais da Psicologia ocorre desde o ano de 2014 por meio de um edital de chamamento público que é publicado anualmente.

O serviço contratado pela Secretaria Municipal de Saúde através deste convênio com os profissionais, refere-se a atendimento psicológico caracterizado como Psicoterapia, os atendimentos são realizados no consultório do próprio profissional da Psicologia, e os pacientes podem ser encaminhados por toda a rede de saúde e sócio-assistencial do município. A marcação de consultas é efetuada em um sistema online chamado de “CONSULFARMA”, assim como as evoluções dos atendimentos realizados, o controle dos atendimentos e o monitoramento da população atendida. Este credenciamento iniciou no município em virtude da rede pública não estar dando conta das demandas oriundas do campo da saúde mental, e, pela gestão não poder exceder o número de servidores estatutários no município.

A oferta de Psicoterapia através deste convênio refere-se a uma forma de atuação e também se caracteriza como uma estratégia do município na oferta de serviços no âmbito da saúde mental à população local. Sendo assim, este trabalho ao colocar em análise o convênio mencionado, a partir das materialidades produzidas pela pesquisa, apresenta reflexões iniciais sobre uma trama complexa que tem como protagonistas sujeitos individuais e coletivos. Para tanto, o artigo está organizado da seguinte forma: em um primeiro momento, apresenta-se os caminhos metodológicos utilizados, a seguir, são apresentados os resultados e a discussão das análises das entrevistas, para evidenciar os sentidos atribuídos pelas psicólogas à sua prática e, por fim, as considerações finais.

Caminhos metodológicos da pesquisa

Este estudo apresenta a primeira etapa da pesquisa/intervenção, aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Santa Cruz do Sul - RS, sob o parecer nº CAAE 44006821.6.0000.5343, na qual foram convidados a participar da pesquisa os sete profissionais Psicólogos (as) que se encontravam credenciados, no ano de 2020 e/ou no ano de 2021, junto à Secretaria Municipal de Saúde de Venâncio Aires – RS para a realização de atendimento psicoterapêutico para o SUS no contexto do consultório privado. A Secretaria Municipal de Saúde informou o contato telefônico dos (as) Psicólogos (as) credenciados (as) para que a pesquisadora entrasse em contato com estes, que poderiam ou não aceitar participar de forma voluntária da pesquisa.

Cabe sinalizar que por questões éticas em relação a confidencialidade dos sujeitos da pesquisa, todos os excertos são apresentados com nomenclatura própria para garantir o anonimato. Assim, as profissionais entrevistadas foram apresentadas por nome de Poetistas escolhidos aleatoriamente. As interlocutoras desta pesquisa, portanto, foram quatro psicólogas que compõem a rede de assistência em saúde mental na perspectiva da saúde complementar junto à Secretaria Municipal de Saúde de Venâncio Aires/RS. Conforme observado em campo, essas psicólogas estão atuando há, no mínimo, um ano nessa modalidade, e possuem algum tipo de formação complementar à graduação em Psicologia, a qual encontra-se em andamento ou já foi concluída.

Com o intuito de caracterizar as interlocutoras desse estudo, Florbela tem 37 anos, formou-se em Psicologia há cinco anos, especializou-se em Terapia Cognitiva e faz um ano que atua na modalidade de credenciamento pelo município de Venâncio Aires/RS para atendimento aos pacientes do SUS no âmbito do consultório privado. Cora Coralina tem 29 anos, formou-se em Psicologia há cinco anos, possui formação complementar em Avaliação Psicológica e atua há quatro anos na modalidade. Cecília tem 28 anos, formou-se em Psicologia há cinco anos, realizou a formação em Terapia de Casais, atualmente encontra-se cursando uma pós-graduação em Psicanálise, e atua na prestação de serviço a partir da saúde complementar há dois anos. Adélia tem 56 anos, formou-se em Psicologia há trinta e três anos, possui Pós-Graduação em Recursos Humanos, sua experiência profissional encontra-se articulada à sua atuação em Posto de Saúde e em CAPS AD e, desde 2014 está credenciada junto à Secretaria Municipal de Saúde de Venâncio Aires/RS para a prestação de serviço no âmbito de seu consultório privado de pacientes encaminhados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

A escuta das narrativas aconteceu por meio de entrevistas individuais semiestruturadas, que visavam possibilitar aos participantes discorrerem sobre o tema proposto. A entrevista foi organizada considerando os seguintes grupos de informação: prática das psicólogas credenciadas (como realiza os atendimentos), suas atividades no âmbito do convênio (tempo que um paciente fica em atendimento e alta), dentro e fora do Sistema Único de Saúde (setting e desafios enfrentados), os pontos positivos e negativos do credenciamento e a forma de registro das evolução dos prontuários no sistema CONSULFARMA.

Após o esclarecimento dos procedimentos éticos e científicos, as psicólogas entrevistadas autorizaram, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a sua participação de maneira voluntária na pesquisa. O tempo médio das entrevistas foi de 35 minutos, e estas aconteceram em um ambiente que proporcionou livre expressão e garantiu o sigilo das informações que estavam sendo trazidas. A análise das entrevistas foi realizada tendo como referência teórico-metodológica a análise das práticas discursivas e de produção de sentidos, conforme proposta por Spink (2001, 2007, 2010).

Dito isso, a partir da proposta desta autora, foram construídas categorias gerais temáticas que atendiam os objetivos da pesquisa, e após, organizados os conteúdos das entrevistas realizadas com as interlocutoras. Neste momento foram observados os processos de interanimação dialógica, ou seja, atentamos para onde acontece uma conversação, onde os enunciados de uma pessoa são endereçados a uma ou mais pessoas, e esses se interanimam mutuamente. Desse modo, priorizamos discussões em torno das temáticas levantadas, de modo a dar visibilidade às práticas relacionadas às perguntas realizadas. Construímos, os mapas de associação de ideias, e os conteúdos foram organizados a partir de três eixos temáticos, os quais nortearam a análise e discussão dos dados.

As práticas psicológicas a partir da experiência do município de Venâncio Aires/RS

Inicialmente cabe contextualizar que, o contato para o agendamento da primeira consulta com os profissionais de Psicologia, credenciados junto à Secretaria Municipal de Saúde, é realizado pelos pacientes do SUS via telefone. O telefone do profissional é fornecido pela Secretaria de Saúde do município, que é o responsável por controlar a lista de pacientes em espera para este tipo de atendimento.

Após o agendamento da consulta, nesta primeira escuta, faz-se um acolhimento às demandas daquele sujeito, bem como recebe-se um encaminhamento do local de referência, onde constam informações básicas. O contrato de trabalho é firmado com o paciente do SUS no consultório privado, ou seja, as combinações iniciais e formais de como vai ocorrer os encontros, os horários, o tempo de atendimento, alta e esclarecimento sobre o papel do psicólogo. Explica-se as especificidades do convênio com a Secretaria Municipal de Saúde para o paciente do SUS, assim como, realiza-se a coleta de assinatura a cada atendimento na guia individual.

Dito isso, as psicólogas entrevistadas, através de seu credenciamento passam a poder atuar em seu consultório privado no atendimento às demandas encaminhadas por toda rede socioassistencial e de saúde do município. Neste sentido, a prática pode acabar se voltando para a intimidade e privacidade dos indivíduos, além de caracterizar um dos aspectos mais importantes da cultura profissional da Psicologia, que é o fato da profissão estar colada ao modo de ser do sujeito, à sua compreensão de si, mais do que em qualquer outra (Benevides, 2005; Dimenstein, 2000).

Percebemos na fala das entrevistadas que não há uma regra de como fazer os atendimentos, porém, todas fazem em um primeiro atendimento uma escuta de demandas. E, quando questionadas sobre como vêm realizando os atendimentos no âmbito deste credenciamento, houve falas como a de Florbela: “o primeiro atendimento, a primeira consulta é de anamnese, de levantamento das principais demandas... e aí eu observo a necessidade de uma terapia mais breve ou mais longa, vou atendendo de forma mensal quinzenal ou semanal” e “eu fui fazendo o que eu achava que era mais correto a se fazer”. “A gente nunca teve nenhuma reunião na verdade de como a gente deveria fazer, então eu fui fazendo o que eu achava que era mais correto a se fazer”. (Cora Coralina). “Faço o contrato de horário e tudo ... como a gente vai trabalhar. E aí eu atendo geralmente no início, no primeiro mês, semanal e aí eu vou vendo se quando é possível passar pra quinzenal eu passo, a maioria eu mantinha quinzenal e no final quando já estava se preparando pra alta eu atendia mensal” (Adélia).

Tais falas apontam para especificidades desse fazer no que tange as estratégias que foram sendo implementadas pelas psicólogas entrevistadas para a operacionalização de suas práticas – “levantamento das principais demandas, observação das necessidades, periodicidade dos atendimentos, indicadores e preparação para a alta” [grifos nossos]. Cintra e Bernardo (2017) ao estudarem sobre a atuação do Psicólogo no SUS, em especial, na atenção básica, apontam que este profissional se depara com situações complexas no que tange ao sistema.

Dentre estas complexidades, as entrevistadas referem que uma formação voltada para políticas públicas seria um importante instrumento para que o psicólogo, ao sair de sua graduação, já tivesse um olhar para essas questões e, dessa forma pudesse implementar práticas alinhadas com os preceitos do SUS. Corroborando o que os autores apontam, entendemos que as interlocutoras desta intervenção também se deparam com as complexidades que o SUS evidencia no que tange aos seus desdobramentos, princípios e diretrizes para ação/intervenção no processo saúde-doença.

Ao estarem credenciadas ao SUS e atenderem em consultório privado, tais profissionais, acabam por demandar uma abertura para outro tipo de exercício clínico, pois este caracteriza-se por ser um setting dentro-fora, atento às relações de força que se entrelaçam, por isso, acabam por serem convocadas a reinventar a dimensão da clínica (Alexandre & Romagnoli, 2017).

Dimenstein (2000) ao estudar a inserção do Psicólogo em instituições públicas de saúde, aponta que estes profissionais passam a se deparar com uma clientela e com um tipo de demanda bastante diferente substancialmente das que atende na clínica privada. Tal aspecto impõe alguns impasses ao psicólogo no campo da Assistência, apesar de que, o modelo clínico de atuação privada hegemônico entre os psicólogos - a psicoterapia individual - ainda é geralmente transposto para o setor público.

A dimensão apontada pela autora, confirma-se nas falas das interlocutoras deste estudo, combinações no que tange às regras e contratos iniciais com os pacientes do SUS. Também é possível perceber a partir dos excertos trazidos acima que tanto Florbela quanto Adélia acabaram por criar suas próprias regras/estratégias no contexto deste credenciamento, e uma das razões para isso, foi a ausência da oferta de uma capacitação.

Diante disso, as interlocutoras nos contam que nesta fronteira do “dentro e fora” do SUS foram reproduzindo um fazer que lhes era familiar, “Então é mais ou menos do que é um paciente particular né, por exemplo, deixo 50 min” (Cora Coralina). Já, as outras dizem, “Eu atendo em horários normais né, vou marcando como horário de particular... meu atendimento dura meia hora, 40 minutos” (Florbela) e “Primeiro atendimento eu explico o funcionamento do Sistema Único de Saúde, falo a questão de duas faltas consecutivas e o paciente não justificar daí perde a vaga, isso eu estabeleci para ter menos falta” (Cecília).

No que tange ao tempo que os pacientes ficam em acompanhamento, as mesmas dizem não ter um tempo, mas apontam que este pode vir a variar de quatro meses a até anos. Dialogar sobre o processo de alta é um trabalho realizado pelo psicólogo já nos primeiros atendimentos com o paciente, onde é colocado os objetivos e a demanda do tratamento. Sabe-se que, não há um término ideal, pois nunca desaparecem todos os conflitos no sujeito, nem mesmo os sintomas, assim como, nem se consegue todas as modificações estruturais desejadas e não se alcança uma personalidade totalmente integrada. Isso também foi encontrado no estudo realizado por Cintra e Bernardo (2017), no qual os psicólogos entrevistados, apontaram que se pode observar uma relativa variação no tempo utilizado no momento da alta, porém, não há critérios consolidados ou algum tipo de protocolo a ser utilizado no processo.

Outro aspecto que destacamos, está relacionado ao modelo de atendimento adotado pelas psicólogas, que pode ser caracterizado como sendo atendimento clínico individual e curativo, na medida em que priorizam a remissão dos sintomas, como aponta interlocutora Cora Coralina: “Ah veio com tais e tais demandas e a gente foi trabalhando em cima disso, ta conseguindo lidar de forma mais saudável ... Então a gente vai conversando e vai vendo se ele também está conseguindo e se sentindo seguro”.

Na fala de uma das entrevistadas, Adélia, entendemos que, apesar de atender sob a ótica do modelo de atendimento clínico individual e curativo (voltado para a remissão de sintomas) trabalha e lida para além da queixa do sujeito, porém, não mostra se trabalha através de uma abordagem que considera os aspectos sociais que circunscrevem as queixas dos atendidos: “A gente consegue ir mais a fundo assim, consegue pegar uma dinâmica maior, parece que nas unidades de saúde assim é aquela coisa, vai tratar aquilo ali só ... E aqui não, a gente trabalha uma coisa mais ampla”.

As narrativas das entrevistadas mostram as práticas convencionais, aquelas que, historicamente a Psicologia desenvolveu a partir da visão da clínica tradicional, centrada no plano individual. Apesar de haver uma crítica, por trazerem o modelo privatista de atuação para um modo de trabalhar onde a realidade é outra, não se pode desconsiderar que, para a maioria dos casos atendidos por estas credenciadas, esse tipo de atendimento é importante e necessário, desde que não produza uma lógica individualizante. Ao mesmo tempo, delegar serviços para a iniciativa privada - na saúde complementar - também tem como resultado que os serviços de saúde, como o CAPS, fiquem menos sobrecarregados, e que mais atendimentos sejam ofertados à comunidade local (Cintra & Bernardo, 2017; Sausen et al., 2021).

Dentro e fora do Sistema Único de Saúde: laços e desenlaces

O setting terapêutico se constitui como uma base sólida e constante para iniciar o processo terapêutico. A segurança de um local que, em silêncio permeia todas as sessões, traz ao terapeuta e ao paciente seus papéis claros e técnica definida. Assim, o terapeuta pode encontrar soluções quando até mesmo algo lhe foge do controle, pois estará em um ambiente seguro e regras fundamentadas por ele na sua forma de agir. Mas, o setting vai além das conjunturas físicas do espaço de terapia ou dos acordos do contrato, isto é, o mesmo é resultado da maneira como o relacionamento do terapeuta e paciente se ajusta, pelos princípios éticos, pelo pacto terapêutico e pela confiabilidade mútua (Moreira & Esteves, 2012).

Quando questionadas sobre o setting terapêutico, no contexto da prática clínica do credenciamento, falam que este permite uma maior adesão e aproximação paciente-terapeuta, o que legitima o que foi caracterizado pela literatura citada acima. Desta forma, podemos destacar os excertos: “ser no meu consultório eu acho bem confortável pra mim né, porque eu tô ali, é prático, acho ótimo” (Florbela), “É principalmente questão de estrutura. É uma estrutura melhor, tem a questão do sigilo muito maior... eu gosto” (Cecília). E, Cecília também traz: “Às vezes uma pessoa que está no SUS, no CAPS, por exemplo, eles têm a equipe de lá como referência, então quando vai no teu consultório me parece que a pessoa se sente mais acolhida, e a gente vira referência”.

Todavia, duas interlocutoras, em especial, ao caracterizarem o setting terapêutico, afirmam não fazer distinção, tendo vista o contexto do credenciamento e a forma com que o paciente do SUS é encaminhado, caracterizando tal questão da seguinte maneira, “Não vejo dificuldade nenhuma nisso, nem os pacientes, porque eu não diferencio um paciente SUS de um paciente particular, o tratamento é o mesmo, o que é diferente é a forma de pagamento” (Florbela), e Cora Coralina fala: “Independente se é paciente SUS ou particular pra mim é uma pessoa que está ali, procurando atendimento e eu tenho que dar o meu melhor ... pra mim sempre mais ou menos na mesma linha particular e SUS”.

Os excertos trazidos nos remetem a modos diferentes de entender a composição do setting terapêutico neste “dentro e fora” do SUS repleto de complexidades. No que se refere aos desafios encontrados no dia-a-dia no contexto dessa atuação junto aos pacientes do SUS, três entrevistadas referem passar por situações complexas, ponto que é importante ser discutido e pensado, juntamente com o que trazem sobre paciente SUS e paciente particular, pois estar dentro e fora do SUS traz vários entraves. Algumas narrativas: “Também já teve situações de surtos né, coisas mais graves” (Cecília), “Tentativa de suicídio, ideação suicida, assim de tu ter que ficar uma hora em atendimento com o paciente, ligar pra familiar, ir pro hospital, coisa braba. Então isso eu acho muito grave, isso não é paciente pra nós” (Adélia), “Então tu entrar em contato com o serviço e eles te falar que todo mundo que está na fila precisa e é grave. Então a gente também acaba tendo uma limitação” (Cora Coralina).

Estas falas nos remetem a três aspectos: atenção à crise, redes e gestão do cuidado. Atenção à crise em saúde mental é o nome dado a um conjunto de práticas de cuidado desenvolvidas no âmbito do modelo comunitário de atenção e se desenvolve junto a usuários em situações entendidas como agudas e graves, como trazem algumas credenciadas. Nos parece necessário pensar que, o cuidado ofertado nos momentos traduzidos como situações de crise, como mencionado pelas entrevistadas como um desafio, ainda é marcado pela institucionalização e por medidas involuntárias como principal resposta.

Todavia, a atenção à crise em saúde mental se constitui como um aspecto que indica se a rede de atenção fornece uma resposta manicomial ou promotora de saúde mental e protetora de direitos nos momentos de maior fragilidade e sofrimento dos usuários (Dias, Ferigato & Fernandes, 2020; Cruz, Guerrero, Scafuto & Vieira, 2019). Mas, as interlocutoras referem que, precisam em alguns momentos, ficar com esse paciente do SUS em crise dentro do consultório, pois muitas vezes os serviços da rede não conseguem dar conta da demanda ou até mesmo o paciente mostra-se resistente a ser encaminhado a outro profissional, de outro serviço.

A partir do que Roquete (2019) nos ensina sobre gestão de crise, no que tange ao gerenciamento das adversidades e a construção de um ambiente mais saudável de trabalho, entendemos que no caso do município estudado, as ações de cuidado tem se restringido a intervenções pontuais e fragmentadas, o modelo biomédico tem sido utilizado como referência, o que acaba por produzir não só a fragmentação do processo de trabalho, como também a fragmentação das relações entre os serviços de saúde.

O lugar das psicólogas credenciadas na rede de saúde e assistência em saúde mental ofertada pelo município é na Atenção Especializada (AE). A Atenção Especializada consiste no conjunto de conhecimentos, ações, práticas e técnicas assistenciais articuladas a partir de processos de trabalho de maior densidade tecnológica e são organizadas de forma hierarquizada e regionalizada. É integrante da Rede de Atenção à Saúde, operacionalizado em articulação e em harmonia com a Atenção Básica - com referência e contra referência - a fim de promover a continuidade da assistência de acordo com as necessidades de saúde da população (Solla & Chioro, 2012).

Sendo assim, é importante que o profissional de saúde fique atento ao problema, mas não perca de vista o todo, não olhando apenas a queixa e a doença, mas sim ter um olhar para a pessoa e suas necessidades, com objetivo de cuidar integralmente (Brasil, 2013). As interlocutoras compõem a rede de atenção especializada, mas acabam extrapolando o que lhes é atribuído enquanto profissionais contratadas no âmbito da saúde complementar, o que acaba interferindo em sua prática, pois ao assumir pacientes em situação de crise se percebem sem o apoio da rede de saúde mental.

Des (articulação) da rede de saúde

O terceiro e último eixo temático a ser apresentado consiste em um debate pertinente sobre a desarticulação da rede de saúde do município. Afinal, quem não percebe quem, o Psicólogo credenciado ou a rede de saúde? Se todos são SUS, que rede é essa? O que está se passando? Neste sentido, Viana e Lima (2016) referem que situações de rede de saúde não se “conversarem”, por mais que pareça trivial, não o é na realidade de alguns serviços de saúde. E as assertivas que são referidas são dados da realidade e precisam ser repensadas, visto que esse debate é real e angustiante para alguns dos profissionais.

Segundo autores como Amaral e Bosi (2017) e Lima e Guimarães (2019) o termo rede, no campo da saúde, refere-se a uma percepção acerca da organização dos serviços de saúde e de suas relações e articulações de pessoas ou ações em saúde. As redes expressam os modos de inter-relação entre pontos, estes pontos são os serviços, instituições, atores, dispositivos, ações, unidades de saúde, arranjos organizativos, equipes, usuários. Neste sentido, a rede ultrapassa a união de serviços, ela é mais, ela requer adoção de elementos que deem sentido a um entrelaçamento de ações e processos, equivale a estruturas abertas em constante mudança, totalidades compostas por partes interligadas, elementos variáveis, conexões e parâmetros.

No decorrer das entrevistas realizadas, as interlocutoras trouxeram em suas narrativas questões bem importantes no que tange à rede e a desarticulação com a rede de saúde do município. As psicólogas referiram problemas na comunicação inclusive com colegas que fazem o mesmo trabalho de credenciamento, e também com a Secretaria Municipal de Saúde, que é a responsável por intermediar os atendimentos. Tais questões ficaram evidenciadas nas seguintes falas, “Quando eu comecei no credenciamento eu procurei colegas, mas na verdade ninguém me passou informação né, então eu tive que correr atrás sozinha, isso é uma coisa né, não somos articuladas” (Cora Coralina). “Pois é, sabe que até hoje, com todo esse tempo, eu não sei como é que tem que fazer as evoluções, ainda não cheguei a uma conclusão e também ninguém soube me explicar” (Adélia). “Parece que é tudo a deus dará, nem sei quantas pessoas tem na fila, nem quantos psicólogos, nem nada. A gente não está nada integrado, é solitário... não temos referência, somos nossa própria referência, então cada um faz como acha” (Cecília).

Além disso, as interlocutoras deste estudo também evidenciam em suas falas uma espécie de desarticulação da rede como um todo, ou seja, as credenciadas não se percebem articuladas a rede de saúde local nem tão pouco tal rede de saúde articula-se com as credenciadas, este interjogo de (des)articulações das relações é retratado por Cecília:

Eu encaminhei um paciente pra ir no CAPS, eu dei um encaminhamento daí o paciente chegou lá pra marcar e disseram que não precisava encaminhamento. Daí outros eu encaminho sem papel e daí eles falam que precisa, essas coisas, o que a gente faz então? Manda ou não? Não sei se o CAPS tem um padrão, mas se eles têm a gente deveria ter, uma normativa, não sei, fazer isso e isso, isso. Então talvez até de eles saberem quantos psicólogos têm credenciados, saber o que a gente faz, quem a gente atende. Ter reuniões.

A rede de saúde de um município coordena diferentes ações de saúde, e o trabalho das credenciadas junto ao SUS é um deles, especialmente quando se fala em atenção especializada. Mesmo com a criação da RAPS há fragilidades que permeiam os serviços de saúde, como a precarização dos vínculos profissionais.

As psicólogas entrevistadas compõem a rede de serviços do município, porém, percebemos em seus depoimentos uma falta de articulação da rede. Essa desarticulação fica evidente no momento em que, só há contatos das credenciadas com os outros serviços de saúde através dos encaminhamentos. Essa prática isolada destes profissionais acaba causando alguns prejuízos para o cuidado em saúde mental dos pacientes do município de Venâncio Aires (Amaral & Bosi, 2017; Lima & Guimarães, 2019).

De acordo com Mendes (2001, 2009), os sistemas fragmentados de atenção à saúde são organizados por componentes isolados e de forma hierárquica, orientados para a atenção às condições agudas e crônicas. O autor diz ainda que estes são voltados para indivíduos, onde os sujeitos são os pacientes e há ênfase nas ações curativas e reabilitadoras e os sistemas são de entrada aberta e sem coordenação da atenção. A organização de uma rede de serviços reporta à questão da fragmentação ou integração do sistema de serviços de saúde, questão que se constitui como um dos dilemas do Sistema Único de Saúde. Segundo Lavras (2011), o SUS se encontra fragmentado em consequência da fragilidade do processo de articulação entre as instâncias gestoras do sistema, entre os serviços e entre as práticas clínicas desenvolvidas por diferentes profissionais, o que acaba impedindo o acesso e a continuidade da atenção.

Mendes (2001) caracteriza os sistemas fragmentados pela descontinuidade da atenção, de maneira que os pontos de atenção à saúde funcionam sem integração, normalmente sem o uso de sistema de inteligência que organize o mesmo. O conceito de rede como organização dos serviços de saúde está presente no desenho político institucional do SUS, onde através da Constituição Federal e da Lei 8.080 legitima-se a ideia na qual as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada. Segundo o autor, para que haja implantação de sistemas integrados, há um conjunto de fatores facilitadores, que são: existência de uma cultura de integração; valorização de ações promocionais e preventivas; implantação de sistemas microrregionais de serviços de saúde; capacidade de conciliar a diferenciação, aumento dos pontos de atenção à saúde, com a integração e comunicação dos pontos de atenção à saúde; existência de uma atenção primária resolutiva como porta de entrada do sistema; domínio sobre as tecnologias de integração; entre outros.

Ao introduzir a saúde complementar em Psicologia para oportunizar o direito à saúde da população, o cuidado em saúde no contexto das redes é central para que se materialize o efeito público em relação ao privado. Assim, pode-se notar que, a partir do momento em que as políticas públicas passam a ser pensadas e executadas pela iniciativa privada, essas políticas acabam tendo características da lógica mais individualizante (Cintra & Bernardo, 2017)

Neste sentido, é relevante pensarmos na coordenação deste serviço prestado pelas credenciadas no município de Venâncio Aires, para que consiga traçar uma maior delimitação sobre a organização dos fluxos entre os serviços. Compreendemos ser importante que exista hierarquização das demandas, conversa entre as redes e outras questões importantes no que tange a rede de saúde mental. Por fim, podemos pensar que o município possui como estratégia a utilização dos serviços da iniciativa privada como forma de aumentar e complementar a rede de saúde mental existente, esta rede como verificamos é por vezes desarticulada e fragmentada e a busca da saúde complementar se dá como forma de garantir um serviço à sua população.

Considerações finais

A partir do objetivo de refletir sobre a prestação de atendimento psicológico no campo da saúde complementar na experiência do município de Venâncio Aires – RS, foi possível observar que esta forma de atuação se configura como estratégia potencial na garantia do direito à saúde, mas que também pode dar origem a situações complexas que dizem respeito ao SUS no que tange seus desdobramentos, princípios e diretrizes. Como também, impasses sobre a fragmentação da rede, a desarticulação dos serviços e a impotência das credenciadas frente a algumas situações vivenciadas.

Assim como, o estar dentro e fora do Sistema Único de Saúde e a desarticulação da rede de saúde do município foram pontos importantes observados nas falas das interlocutoras da pesquisa. Portanto, não está ‘dentro’, em uma vivência ‘interna’, não se trata de uma experiência individual, mas constituída no ‘entre’ das relações, de maneira que, o modo de gestão do cuidado no município acabou por não dar condições de fluxos e os contrafluxos das pessoas, das situações e das informações entre os diferentes componentes das redes.

As estruturas que estão disponíveis no SUS e sua capacidade são insuficientes para dar conta de toda a demanda de atenção à saúde mental. Neste sentido, o município em questão utilizou desta estratégia para reduzir alguns déficits de serviços, e as psicólogas contratadas vêm desempenhando este papel, que diz respeito a abarcar as demandas que os outros serviços não conseguem atender.

Dito isso, o modelo de atendimento analisado neste estudo oportuniza tanto o atendimento psicológico aos pacientes do SUS, quanto oferece oportunidade de trabalho às profissionais credenciadas. Porém, deve-se atentar à importância de atividades para o fortalecimento de um coletivo (comprometidas com a transformação do status quo e com a produção de sujeitos autônomos e solidários), em tempos de primazia do individualismo, de forma que, quando se foca em um atendimento clínico individual e curativo, a concepção de saúde passa a ligar-se à ideia de ausência de doenças, como se fosse possível isolar os sujeitos de seu contexto social, econômico e político. Esta configuração pode acabar colaborando com o desmonte do SUS, pois se os atendimentos seguirem operacionalizados a partir de tal modus operandi a demanda pode vir a não cessar, e isso liga-se ao fato também da forma com que a organização e gestão do cuidado estão configurados no município estudado.

O desafio é pensar uma prática clínica emergente no âmbito da saúde complementar, que possibilite uma atuação em consonância com os propósitos das políticas públicas, priorizando práticas centradas em contextos e grupos, com ações de caráter preventivo e que valorizem uma pluralidade de abordagens, ou seja, uma ação inter e multidisciplinar que possibilite um diálogo entre as diferentes áreas e conceitos. Essa visão diferenciada poderá integrar distintos conhecimentos com o objetivo de dar sentido às coisas.

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