Relatos de Pesquisa
Reflexões acerca da maternidade entre mulheres usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro
Reflexões acerca da maternidade entre mulheres usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro
Revista de Psicologia, vol. 13, núm. 2, pp. 184-197, 2022
Universidade Federal do Ceará
Recepción: 28 Octubre 2021
Aprobación: 31 Enero 2022
Resumo: O artigo tem como objetivo discutir as vivências e decisões a respeito da maternidade no contexto da vulnerabilidade social, um tema complexo e desafiador e que vem nos convocando a reflexões. Atuamos com a realidade de um público invisibilizado, marcado pelo estigma da incapacidade para o exercício dessa função, por viverem nas ruas e serem usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Como principal aporte metodológico utilizamos questionários semiestruturados e narrativas colhidas em entrevistas livres, e pudemos reconhecer especificidades que atravessam a realidade de mulheres em situação de vulnerabilidade social e as expectativas quanto ao exercício maternidade. Mapeamos um cenário desconhecido, não apenas para o mundo acadêmico, mas também para as políticas públicas. Os dados quantitativos materializam um cenário pouco estudado e as narrativas nos trazem versões não reducionistas da maternidade entre mulheres em situação de risco e vulnerabilidade social. Tendo a Teoria Ator-rede como principal referencial teórico, os resultados encontrados apontam para formas transversais de exercer a maternidade no grupo estudado reconhecemos, bem como a importância de ações coletivas e integradas para que essas mulheres saiam da invisibilidade e exerçam suas escolhas. Discutimos também efeitos e desdobramentos da ausência de políticas públicas efetivas junto a esse público, reconhecendo a complexidade desse tema.
Palavras-chave: Maternidade, políticas públicas, teoria ator-rede, vulnerabilidade social, psicologia social.
Abstract: The article aims to discuss the experiences and decisions regarding motherhood in the context of social vulnerability, a complex and challenging issue that has been calling us to reflect. We work with the reality of an invisibilized public, marked by the stigma of inability to exercise this function, for living on the streets and being crack users in the city of Rio de Janeiro. As main methodological support we used semi-structured questionnaires and narratives collected in free interviews, and we were able to recognize specificities that go through the reality of women in a situation of social vulnerability and the expectations regarding motherhood. We mapped out an unknown scenario, not only for the academic world, but also for public policies. The quantitative data materialize a little-studied scenario, and the narratives bring us non-reductionist versions of motherhood among women in situations of risk and social vulnerability. Having the Actor-Network Theory as the main theoretical reference, the results found point to transversal ways of exercising motherhood in the studied group we recognize, as well as the importance of collective and integrated actions for these women to come out of invisibility and exercise their choices. We also discuss the effects and consequences of the absence of effective public policies, recognizing the complexity of this theme.
Keywords: Maternity, public policies, actor-network theory, social vulnerability, social psychology, social vulnerability, social psychology.
CONTEXTUALIZANDO A PROPOSTA
O perfil das pessoas que se encontram em condição de rua na cidade do Rio de Janeiro - segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos/RJ (SMASDH/RJ) - é majoritariamente masculino, preto, de baixa escolaridade e em idade entre 25 e 49 anos. Em consonância com a realidade nacional, observamos a prevalência desse perfil ainda no primeiro levantamento dessa população. Segundo o estudo feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), edição nº 74 de março de 2020, vimos que : “São em maioria homens (82%), negros (67%), jovens (43,21% dos homens e 52,23% das mulheres até 35 anos), com baixa escolaridade (17,1% é analfabeto)”. (Silva, Natalino, & Pinheiro, 2020, p. 8).
São muitas as razões que justificam esse perfil, tais como: o processo histórico escravocrata, a exploração e a não valorização de atividades de baixa qualificação. Nos tempos atuais, a informalidade e a precariedade dos vínculos profissionais se perpetuam e reforçam a condição de desigualdade e exclusão social. Por outro lado, o Brasil sofre graves consequências pelo histórico abandono do poder público aos verdadeiros interesses de sua população e pelo investimento tardio e falta de continuidade das propostas em políticas públicas.
Se historicamente os homens pretos com baixa escolaridade são postos à margem da sociedade, quando pensamos a condição das mulheres percebemos mais uma camada para o reforço da invisibilidade e de vulnerabilidade. Segundo aponta o IPEA (2020, a partir de 2012 o crescimento da população em situação de rua no Brasil cresceu 140% atingindo a marca de 222 mil , pouco antes da pandemia. A tendência é de um aumento ainda maior em função da crise econômica agravada pela pandemia da Covid-19.”
O número de mulheres em condições miseráveis não é tão expressivo quanto o de homens, segundo a SMASDH, correspondendo a 19% dos atendimentos. Porém, esses números vem crescendo e o cenário encontra-se agravado pelo desemprego e a insuficiência das ações governamentais frente à pandemia. O grau de vulnerabilidade e exposição a riscos é maior entre elas, visto que sofrem mais violências nas ruas tem suas demandas menos visibilizadas nos serviços de atendimento a essa população.
O conceito de vulnerabilidade social, segundo Ivo (2008), surgiu nos anos de 1990 sobre o fenômeno da pobreza com base na perspectiva da impossibilidade de performance das potencialidades humanas. Criou-se a métrica IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) como instrumento de mensuração da pobreza dando origem ao conceito de vulnerabilidade social, tomando como indicadores a volatilidade da renda e a ausência de amparo do Estado na figura de políticas públicas e inclusivas.
Importante destacar que, apesar da visível ineficiência e do atraso das políticas públicas em promover o acesso à saúde, moradia, educação e bem-estar social, houve no país, entre 2003 e 2016, ações governamentais efetivas para a redução da desigualdade e suas consequências. A implementação do Programa Nacional de transferência de renda Bolsa Família com suas condicionalidades de frequência escolar, pontualidade no calendário de vacinas e periodicidade na atualização cadastral junto ao órgão da assistência social, proporcionaram nesse período uma redução da condição de pobreza extrema em todas as regiões do país.
. . . ênfase nas ações de combate à pobreza a partir dos anos 2000, com políticas de assistência social focalizadas e descentralizadas. Nota-se também a reorientação da noção de cidadania para o plano econômico, a partir do interesse do Estado em possibilitar a integração dos pobres ao mercado. Por meio de programas de transferência de renda, a ação pública passa a ser endereçada do ‘sujeito do trabalho’ para o ‘sujeito do consumo’ (Ivo, 2008, p. 6)
Neste sentido, o artigo em questão aborda o tema da maternidade de mulheres em situação de risco e vulnerabilidade no Rio de Janeiro. Fruto de uma pesquisa que se deu entre 2014 e 2018, permanece como temática atual e com desdobramentos que ainda podem gerar novas incursões de investigação. Nosso principal objetivo é trazer algumas reflexões acerca desse fenômeno desdobrando-se em dois aspectos fundamentais: a naturalização da mulher como cuidadora de crianças em qualquer circunstância e a falta de uma política de apoio que considere as nuances dessa realidade. Traçamos essa discussão a partir de alguns autores/as da Teoria Ator-Rede (TAR) que compreendem a experiência como múltipla, heterogênea e afetada por diferentes atores humanos e não humanos, desconsiderando as dicotomias ou primazias de um elemento sobre o outro.
Uma das principais apostas da TAR é a de seguir os atores, acompanhar as suas práticas, reconhecer os agenciamentos que sustentam a rede e a mantém acontecendo. Nas palavras de Latour (2012), interessa-nos o que faz-fazer e ao nos dispormos a discutir a maternidade no campo das vulnerabilidades sociais, buscamos trazer uma realidade viva que fala por si.
Com aprovação do comitê de ética (CEP/UERJ 48097915.30000.5282) e seguindo as pistas da TAR, nossa proposição metodológica envolveu dois momentos fundamentais que se entrecruzaram: a aplicação de um questionário e a imersão no campo, a vivência cotidiana com essas mulheres colhendo narrativas sensíveis através de entrevistas livres acerca de suas percepções, sentimentos e ações relativas a maternidade.
Para termos dimensão do cenário gestacional entre mulheres em situação de rua, elaboramos um questionário com perguntas semiestruturadas. Buscamos traçar um perfil que ainda não está mapeado pelas políticas públicas e nem organizações não-governamentais na cidade do RJ. Foram identificadas 438 mulheres nas cenas de uso da zona norte da cidade e quantificamos o número de gestações, partos e abortos entre os períodos de novembro de 2014 a outubro de 2016.
Como nos apontam Moraes & Quadros (2020), as narrativas colhidas e que sustentam nossa escrita encontram ressonância com uma política de pesquisa situada, que compreende o outro não como objeto do qual devemos extrair consequências, mas sim como alguém que detém um conhecimento peculiar, pautado na experiência. Nesse sentido, nossa metodologia busca trazer essas mulheres ditas por elas mesmas e também ecoando nossas afetações enquanto pesquisadoras.
Nos Identificamos com Aleksiévitch (2016), em sua obra sobre a participação de mulheres soviética na 2ª Guerra Mundial, quando afirma: “Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca. . . . Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A ‘guerra’ feminina tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental.” (Aleksiévitch, 2016, p. 8). Confrontando a tendência histórica de apagamento de nossas existências nos acontecimentos públicos e sociais, buscamos ouvi-las e pudemos reconhecer algumas angústias e anseios em comum que descreveremos a seguir.
Um deles refere-se a decisão de morar nas ruas ser proveniente de conflitos familiares e não de já terem nascido nessa realidade. Era comum entre essas mulheres o sentimento de dor e tristeza por estarem afastadas ou terem perdido contato definitivo de seus filhos e/ou familiares. Assim como a idealização e busca por um companheiro como forma de estarem mais protegidas nas ruas e adquirirem mais respeito perante o grupo e a sensação de pertencer a uma família novamente. Entre as experiências que viveram, há uma forte banalização e recorrência da violência física e psicológica na relação conjugal, sofrendo e perpetrando essa prática rotineiramente. Outro fator em comum é a eleição que fazem pela relação afetiva e a decisão de permanecerem nas ruas em detrimento de seus filhos. Esses, após o nascimento em sua maioria, são criados por familiares dos genitores ou pessoas próximas a elas. Há também casos em que as crianças são entregues às instituições responsáveis pelo processo de adoção. A decisão do não exercício da maternidade pode ser tomada pela genitora e externada a equipe da maternidade que inicia o processo de destituição do poder familiar conforme desejado. Porém, diante de um histórico de sucessivas gestações vulnerabilizadas pelas conjunturas ao qual muitas vivem, o Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente inicia o processo de afastamento logo após o nascimento, mediante relatório social da equipe de saúde. Portanto, são situações diferentes onde nem sempre essas mulheres são efetivamente escutadas ou lhes são dadas oportunidades de performar a maternidade devido ao seu passado.
VULNERABILIDADE E INCLUSÃO SOCIAL: CAMINHOS E REALIDADES
A falta de atenção às populações mais pobres somada a desqualificação das pautas sociais pelas gestões posteriores à 2016, tem levado ao aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade. O avanço do desemprego, que já era expressivo antes da pandemia, atingiu índices preocupantes, como afirma o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre o trimestre de junho a agosto de 2020, “o desemprego atinge recorde de 14,4%”. Esses números representam um aumento de 1,1 milhão de pessoas desempregadas no período de apenas 3 meses, atingindo um total histórico de 13,8 milhões de pessoas.
O comportamento de uso abusivo de drogas associado ao rompimento dos vínculos, também é um fator relevante para o fenômeno da ocupação dos espaços públicos. Pode ser relacionado à vulnerabilidade social, já que o preconceito e a discriminação são fortes elementos que dificultam a reinserção social. Pessoas egressas do sistema prisional ou os que buscam tratamento para dependência química encontram muitas barreiras ao tentar retomar suas trajetórias de vida. Diante disso, entre avanços e retrocessos sociais, é possível afirmar que a população em situação de rua é majoritariamente composta por pessoas que um dia tiveram uma casa, estabeleceram vínculos afetivos com familiares e suas comunidades. Devido a diferentes circunstâncias, romperam com o passado em direção a uma vida pautada no presente árido e sem condições de vislumbrar um futuro. Esse sentimento é reforçado pelas políticas públicas insuficientes para o real cenário.
O fenômeno da ocupação das ruas com objetivo de moradia e consumir drogas pode ser denominado pelo termo “cenas de uso”, que é definido por uma visão sócio-antropológica adotada por Bastos e Bertoni (2014, p. 13): “Referente a um espaço de congregação e interação social de determinado grupo social que partilha valores e atitudes, incluindo usos particulares da linguagem além de regras de vestir e se comportar.” Esse modo de organização social e sobrevivência não é necessariamente longo ou mesmo definitivo. Entretanto, a tomada de decisão de sair de casa e morar nas ruas como alternativa para os conflitos e dificuldades tem sido cada vez mais frequente. Assim, a flutuação entre esses dois mundos se estabelece para muitas/os de forma cíclica, sem que haja ruptura total com um dos espaços de identificação e de vida: família, comunidade e a rua.
Na pesquisa realizada por Bastos e Bertoni (2014) foi feita uma importante diferenciação entre os perfis de gênero em âmbito nacional, onde se confirmam as desigualdades do público feminino, como vemos a seguir:
‘As mulheres são marcadas pelas mesmas desvantagens sociais e trajetória dos homens’ . . . ‘Estas usuárias estão gravemente expostas à violência sexual. 46,63% relataram ter sofrido esse tipo de violência ao longo da vida, percentual seis vezes superior ao relatado pelos homens entrevistados, 7,49%’. . . ‘Das mulheres que gestaram ao menos uma vez na vida, mais de 60% delas referiu pelo menos uma gravidez após terem começado a usar crack.’ (Bastos e Bertoni, 2014, p. 94-95).
Quando vislumbramos a realidade dessas mulheres, precisamos tornar relevante as motivações que as impulsionaram a sair de suas casas e suas possibilidades de garantir a sobrevivência. Fatores sociais estruturais, tais como a violência sexual intrafamiliar e a violência doméstica, atravessam a vida dessas mulheres. A violência está presente de maneira cotidiana e precoce, sendo muitas vezes o fator que motiva o abandono de suas casas.
Quando passam a viver nas ruas as mulheres se veem preservadas dos abusos sofridos antes, mas expostas a outras formas e graus de violação de sua integridade. Por falta de opções adotam o sexo, muitas vezes sem o uso de proteção e contraceptivos, como moeda de troca para acessarem drogas, alimentos e segurança. Este se torna o principal recurso de sobrevivência nas ruas e uma das consequências, é o número considerável de gestações, em sua maioria sem planejamento e imbuídas de pouco desejo. Ao constatarem estarem grávidas, elas se inserem numa outra rede de relações com profissionais de saúde e assistência social permeadas por julgamentos, desejo e dificuldades de acesso ao cuidado, criação de novos vínculos, angústias e incertezas.
Escolhemos nos debruçar sobre as histórias de mulheres com sentimentos ambíguos. Às vezes experienciam a proteção e cuidado numa relação afetiva, buscando atender expectativas sociais, tornando-se responsável por amar e proteger uma criança (ainda que sozinhas), às vezes sentem a maternidade como peso ou impedimento. São seus filhos, mas não há nesse contexto muitos recursos para a consolidação de laços afetivos ou elementos que às municiem a exercer esse papel.
Tanto na aplicação do questionário quanto nas entrevistas livres o processo de aproximação e levantamento de informações íntimas é na maioria das vezes doloroso, não sendo fácil e tão pouco rápido. Era preciso estar presente, construir laços de respeito e confiança mútuos para que se sentissem seguras para falarem de um lado tão difícil de suas vidas. Compartilhamos nesse artigo a mesma concepção apresentada por Law (2004), na qual o autor aponta para a importância de considerarmos a heterogeneidade que constitui os fenômenos sociais. Nesse sentido, a proposta dessa pesquisa é não reduzir a maternidade dessas mulheres usuárias de crack e em situação de rua ao estereótipo da incapacidade e da irresponsabilidade. Trazemos uma versão colhida nesse contato com essas mulheres. Despret (2012) utiliza o termo versão para considerar os diferentes modus operandi em campo, pois acredita que o conceito de visão se refere a um ponto de vista, uma limitação para descrever as diferentes possibilidades. Aleksiévitch (2016) também dialoga sobre essa perspectiva ao afirmar que entre a realidade e o que vemos dela, está o que sentimos, tornando cada história uma versão.
Portanto, nos rastros dessas autoras e autores, não nos propomos a apresentar algum tipo de verdade ou solução para uma realidade ao qual grande parte da sociedade e das políticas públicas desconhecem. Entendemos essa produção como uma possibilidade de trazer à luz aquilo o que vimos e ouvimos em encontros com essas mulheres vulneráveis. Afinal, uma versão é também construída através de um encontro, a partir das afetações que esse encontro nos produz.
MULHERES E O CUIDAR: INVISIBILIDADE E VULNERABILIDADE
Devido à ausência de registros nos serviços públicos de saúde e da assistência social, percebemos a escassez de estudos referentes à realidade gestacional de mulheres em condição de extrema vulnerabilidade e risco social. Elaboramos um questionário semiaberto, aplicado ao longo de 23 meses (novembro de 2014 a outubro de 2016). A intenção foi de mapear a condição gestacional presente e pregressa delas. Quantificamos também a recorrência de experiências como abortos, número total de filhos vivos e por quem estão sendo criados. Esse tema se faz relevante, quando nos deparamos com a recorrência de gestações ocorridas em suas vidas. Mulheres não vistas, não recebem cuidado e atenção, mas continuam férteis e procriando sucessivamente filhos igualmente invisíveis e vulnerabilizados. A reprodução da miséria e da invisibilidade ocorre entre um grupo que vem aumentando, inclusive devido a inoperância do poder público.
Foram entrevistadas 438 mulheres ao longo de 1 ano e 11 meses de incursão no campo. Desse total 381 afirmaram já ter engravidado ao menos uma vez, representando 87% das entrevistadas. Apenas 47 mulheres disseram nunca ter engravidado, 07 delas não souberam afirmar se já tinham ou não engravidado, e 2 não quiseram responder. Foram somadas um total de 1.473 gestações ao longo de suas vidas reprodutivas, que para a grande maioria, vai além do período de permanência nas ruas. Temos aqui a possibilidade de percebermos o quão complexo e frágil é a vida de uma mulher vulnerabilizada, alternando suas possibilidades de existência entre as ruas e o exercício da maternidade em seus domicílios. Ao longo da execução da pesquisa, 67 mulheres confirmaram estarem grávidas quando entrevistadas, sendo equivalente a 15,2% do total. Apenas 6 entrevistadas grávidas não expressaram o desejo em realizar pré-natal. Em consonância com Bastos e Bertoni (2014) nesse mesmo período:
. . . aproximadamente metade das usuárias grávidas no momento da entrevista referiram ter procurado serviços de saúde (num conjunto de estabelecimentos que incluía postos/centros de saúde/ambulatório/UPAs), nos últimos 30 dias, o que chama a atenção para a baixa frequência (ou mesmo ausência) de acompanhamento pré-natal, uma vez que metade das mulheres não havia procurado qualquer serviço de saúde. (Bastos & Bertoni, 2014, p. 98).
Chamamos a atenção para uma situação preocupante que é a quase inexistência dos serviços públicos de cuidado em saúde do Rio de Janeiro nas vidas dessas mulheres e daquelas que as antecedem em seus núcleos familiares. Tal distanciamento do trabalho da vigilância e cuidado da atenção básica de saúde quanto inviabiliza o acesso ao planejamento familiar que se caracteriza por ações direcionadas à evitação, adiamento ou concretização do desejo das mulheres de engravidarem.
Ainda segundo nosso levantamento, entre as que tiveram filhos, 304 afirmaram ter feito ao menos uma vez o pré-natal, representando 69,4% das mulheres. Contudo, se comparado ao quantitativo de gestações que elas tiveram, o percentual reduz para 20,6% do total, confirmando o baixo índice de acesso à saúde neste período, estando elas ou não vivendo em situação de rua. Os dados nos apontam a quase inexistência do reconhecimento dos serviços de saúde como referência na vida dessas mulheres e que esse fenômeno não ocorre por falta de informação sobre esses espaços, mas por possível inadequação da forma como são apresentados a elas. Julgamentos prévios, falta de empatia e manejo com as singularidades do feminino por parte dos profissionais da rede de cuidado produzem um esgarçamento da relação com a equipe de saúde e o adiamento da busca pelos serviços. Quando pensamos nessa relação entre as gestantes em situação de rua, foi possível identificar algumas das dificuldades que permeiam seus cotidianos quando desejam iniciar ou dar continuidade ao acompanhamento de pré-natal. A ausência de endereço formal fixo (muitas pessoas habitam invasões ou espaços públicos de forma permanente e também são consideradas como em condição de rua), o não fornecimento de informações pessoais ou porte de documentos, embora não devessem, acabam sendo os principais fatores para a burocratização do cadastro dessas gestantes nos Sistema Nacional de Saúde (SNS), impedindo-as de serem atendidas.
Porém, ressaltamos a relevância da brevidade do cuidado por considerar as fragilidades que permeiam o bebê e a genitora mediante os seus comportamentos de riscos e as vulnerabilidades as quais estão expostos. Ações inclusivas podem contribuir de forma significativa na saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres, além de promover redução significativa da morbimortalidade materno-fetal e infantil.
A maioria das entrevistadas afirmou não ser a primeira gestação, sendo uma média de 4 gestações por entrevistada e de 3 filhos vivos por mulher. Em consonância com a realidade do restante do Brasil, o levantamento feito por Bastos e Bertoni (2014, p. 95) afirma que “o número médio de gestações e de nascidos vivos das mulheres usuárias de crack e/ou similares foi de 3,82.”
A idade média das entrevistadas é de 29 anos e da primeira gestação é aos 17 anos. Também foram quantificados um total de 1019 filhos vivos e 348 abortos declarados. A cada dado coletado e interpretado, os questionamentos a respeito das possíveis constituições familiares dessas mulheres e seus filhos foram tomando corpo, sem a pretensão de chegar a uma resposta única ou simplista, mas constatando-se que a ausências das políticas de assistência social e saúde na vida das pessoas mais vulneráveis vem acontecendo ao longo de gerações, embora possamos reconhecer alguns importantes avanços quanto a construção de uma política pública inclusiva, porém, ainda insuficiente.
Em confirmação ao alto índice gestacional nesta parcela da população, destaco os dados encontrados por Bastos e Bertoni (2014) com este público, comparado aos índices do restante da população brasileira. “Aproximadamente 46% das mulheres relataram quatro ou mais gestações ao longo da vida.’ ‘No Brasil, segundo os dados do último Censo 2010, as mulheres tinham, em média, 1,9 filhos (IBGE, 2010)’” (Bastos e Bertoni, 2014, p. 95). O total de gestações distribuído pelo quantitativo de mulheres entrevistadas se apresenta de maneira expressiva, pois possui o número de 3,3 gestações por mulher, onde o filho permanece vivo em 69,1% dos casos.
Quanto ao destino dessas crianças, é possível afirmar que, segundo relatado, 208 (20,4%) estavam sob os cuidados das mães apesar de, na maioria das vezes, não terem sido vistas com elas nos momentos em que foram entrevistadas e ao longo do convívio. Essa pode ser uma pista para que possamos reconhecer a responsabilidade financeira à distância, uma prática comum na paternidade, ou mesmo a ideia do exercício do cuidado de forma pouco sistemática, evidenciando outros modos de exercício da maternidade. Entre aquelas que reconheciam não serem as protagonistas na função do cuidar, 267 (70%), mesmo estando em situação de rua, afirmaram ter contato frequente com seus filhos. Essa informação deflagra detalhes importantes sobre a relação que essas mulheres constroem com a maternidade após os partos. O fato de estarem morando nas ruas não representa uma ausência total de referências familiares ou comunitárias em suas vidas. Podemos constatar também que a maioria delas possui uma rede de suporte para auxiliar no cuidado de seus filhos após nascerem, considerando o importante papel das pessoas que compõem suas histórias e trajetórias anteriores à decisão de morarem nas ruas. Percebemos aqui que mesmo após decidirem não serem integralmente responsáveis pelos filhos, essas mulheres ainda são referenciadas ao posto materno e ocupam esse lugar na vida dessas crianças de maneira intermitente.
Quanto às demais 595 crianças, ou seja, 58,3% estão sob os cuidados da família extensa. Essa decisão pode ter sido tomada também de forma involuntária, por ser entendida como necessária a partir de uma conclusão judicial. Mediante o desejo da genitora e/ou de familiares, a criança passa a ser de responsabilidade de um outro adulto, que em sua maioria configura o papel de outra mulher (avós maternas ou tias). Essa questão nos aponta para mais um fenômeno social prevalente, pois é comum tias e avós serem eleitas por já cuidar ou terem cuidado de outras crianças em semelhante condição, incluindo a própria genitora do bebê. Esse dado nos mostra que apesar dessas mulheres estarem morando em condições insalubres e em espaços degradantes, ainda apresentam senso de preservação em relação aos seus filhos. Prova disso está quando elegem/reconhecem ser a melhor decisão deixá-los com parentes para que possam ser cuidados conforme gostariam de fazer, mas admitem não serem capazes. Também nos chama a atenção a recorrente reprodução de um cuidado com base numa responsabilidade solitária para as mulheres que assumem a guarda de crianças que foram prematuramente afastadas de suas genitoras. Na maior parte das situações há a procedência da figura paterna, mas a efetiva participação dos homens é sazonal e, muitas vezes, beira a inexistência mesmo estando cientes dessa condição desde o início da gestação.
Ressalta-se que as mães (tias, avós, madrinhas etc.) que assumem esse compromisso, na maioria das vezes, o fazem sozinhas, tendo apenas apoios esporádicos de algumas pessoas que se solidarizam. Formando assim, a partir de um gesto que talvez caiba ser denominado de sororidade e empatia, se estabelece um elo com bases no cuidado e na solidão entre aquelas que procriam e as que assumem a função do cuidar. Esse papel em diversos momentos se dá de maneira múltipla em suas vidas, ou seja, é comum haver outras crianças sob suas responsabilidades oriundas da mesma procedência e da mesma genitora ou de outros parentes que também se encontram em condição de rua.
A justiça, quando notificada pela equipe de serviço social da maternidade, determina o afastamento simultâneo à alta médica da puérpera. Como forma de tentar viabilizar uma possibilidade de aproximação e construção futura de vínculos entre as genitoras e os filhos, elege e determina que outras mulheres próximas a elas sejam responsáveis pelas crianças. Com isso, percebemos a naturalização da ideia da mulher como cuidadora e a inexistência das responsabilidades masculinas no cuidado aos seus filhos, caracterizando uma sobrecarga e uma individualização do gênero feminino que vem sendo reforçada ao longo de gerações. Há situações em que o contato das genitoras com as crianças é restrito ou impedido, até mesmo por parentes de primeiro grau. Essa decisão aparece como condição imposta junto ao juiz pela nova responsável para assumir a guarda. Quando questionadas sobre essa postura vinda de outras mulheres que elas mesmas confiam e concordam que exercem o papel de cuidado de seus filhos de forma satisfatória, elas alegaram que essa decisão é tomada devido à falta de confiança e medo de que elas peguem as crianças e sumam.
Algumas famílias tentam estabelecer critérios para a aproximação entre as genitoras e as crianças: a condição de suspenderem o uso de drogas ou não estarem sob efeito na presença dos filhos; separação de companheiros que também estão na mesma condição (é comum muitas mulheres abandonarem casas e filhos para ficar num relacionamento); abandono das ruas como morada e que contribuição financeira para o sustento,“ajudar a comprar um leite”. A maioria dessas mulheres tenta e fracassa na mesma proporção, poucas de fato conseguem colocar em prática e sustentar essas mudanças de maneira repentina e sem uma rede de apoio. Diante do não cumprimento dessas exigências, as frustrações e novas promessas são elementos presentes na relação familiar, criando um abismo que corrobora para o distanciamento progressivo, que se materializa através da ausência na vida de seus filhos. Muitas afirmam terem optado pelo afastamento e justificam essa decisão por vergonha das condições que ainda vivem e das cobranças que sofrem para mudarem, pois a maioria dos familiares omite a real situação delas para as crianças.
Entre as que souberam informar, declararam que 15,6% do total de crianças já passou por instituições, como abrigos e casas de passagem. Esse quantitativo pode ser maior, pois o processo de institucionalização de uma criança não acontece somente na maternidade logo após o nascimento, mas também como medida de proteção ao longo de sua infância e juventude, que pode ocorrer a partir de denúncias ao Conselho Tutelar e da Vara da Infância e Juventude da Capital, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
MULHERES COM SUAS SINGULARIDADES INVISÍVEIS
As informações aqui apresentadas a respeito do histórico gestacional dessas mulheres nos apontam para um cenário antes desconhecido e invisibilizado junto às políticas públicas e a sociedade como um todo, sendo marcadas pelo estereótipo da maternidade irresponsável e negligente. Ao dirigirmos nossa atenção a essas mulheres, buscamos ampliar o olhar acerca dessa questão aproximamo-nos da proposta de Política Ontológica, conceito articulado por Annemarie Mol (1999), bem como por Mol & Law (2003).
A combinação dos termos ontologia e política sugere-nos que as condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por estas práticas. O termo política, portanto, permite sublinhar este modo ativo, este processo de modelação, bem como o seu caráter aberto e contestado. (Mol, 1999, p. 2).
Recorremos a essa proposta para fundamentar o que encontramos nesse campo e trazer outras possibilidades acerca do exercício da maternidade, incluindo essas mulheres e suas realidades. O público feminino em situação de vulnerabilidade social, bem como a relação que estabelecem com os serviços oferecidos e demais atores, no tocante às demandas singulares ao gênero, são percebidas pela ótica estereotipada da incapacidade ao autocuidado, e pela inabilidade para o cuidado com as crianças. Contudo, os modos de sobrevivência nas ruas produzem peculiaridades que nem sempre são fáceis de serem vistas e postas em cena. Assim, a forma de lidar com a possibilidade de receber cuidado e de cuidar carece de uma adequação que transcende o didatismo. Isso promove uma torção em nossas práticas de intervir e interpretar quando estamos diante desse campo. Assim, enquanto pesquisadoras e seguindo a proposta de Mol (1999), reconhecemos que há uma responsabilidade acerca da realidade que podemos produzir.
No contato com essas mulheres, percebemos que esforços precisam ser ampliados para que tenham informação necessária quanto à prevenção e cuidados com o corpo, estando ou não gestantes. Mas para tal, precisamos construir modos de acesso que as incluam e acolham e não as estigmatizam. Dessa forma, a saúde deve ser entendida como um direito social que se fundamenta a partir do vínculo, estabelecido através de diálogo num processo gradativo de corresponsabilização do cuidado com essas mulheres, ou como aponta Mol (2008), operando as práticas em saúde a partir da lógica do cuidado. Mol nos alerta que o cuidado vai muito além das prescrições, não tangencia julgamentos e vai na direção da situação vivida. Para ela: “As boas conversas no consultório não assumem o formato de confronto de argumentos; são marcadas pela troca de experiências, conhecimentos, sugestões, palavras de conforto” (Mol, 2008, p. 87, tradução nossa).
Podemos constatar de antemão ao observarmos essa realidade, afastando julgamentos e estigmas, que estamos diante de mulheres pobres, a maioria preta, com pouca escolaridade, sem profissão, em idade economicamente produtiva, que devido ao comportamento de uso abusivo de drogas, a violência e a miséria, estão sistematicamente engravidando. Muitas vezes, em circunstâncias indesejáveis, como através de abusos sofridos, devido a condição de exposição ao risco de violência sexual, a troca de sexo por dinheiro, proteção ou drogas, além de estarem majoritariamente envolvidas em relações abusivas e ausentes de apoio no que se refere aos desafios das gestações quando sucedem.
As recorrentes gestações, interrompidas ou levadas adiante atinge a realidade de muitas mulheres encontradas na condição de rua. Conforme mostra o levantamento exposto, a grande maioria afirma ter contato com seus filhos, mas não se consideram responsáveis pela criação e cuidado deles, tendo como fator agravante a própria condição de extrema vulnerabilidade imposta por morar nas ruas e consumir drogas de maneira abusiva.
Trata-se de um grande desafio para os atores envolvidos nessa rede, pois os profissionais dos órgãos de garantias de direitos (conselheiros tutelares, promotores, equipe técnica da assistência social, profissionais de saúde etc.) precisam ponderar, diante dessas experiências de reproduções desenfreadas e desassistidas, qual será a melhor decisão para o mais novo cidadão recém-chegado ao mundo. É esperado que esses profissionais encontrem respostas que garantam o direito ao exercício da maternidade por estas mulheres, mediante as condições que estão expostas, assim como não podem perder de vista, fazendo valer o direito dessas crianças em ter uma vida segura e saudável.
O resultado deflagra necessidades urgentes em políticas públicas e que essas propostas se articulem em rede de proteção e cuidado através de ações voltadas para a prevenção, assim como a ampliação e a priorização no acesso dessas mulheres ao planejamento familiar e aos cuidados de saúde vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Para melhor visualização dos dados colhidos, elaboramos o Quadro 1. Nele apontamos o número de gestações distribuído pelo total de mulheres entrevistadas, destacando a idade da mais jovem e da mais velha em cada categoria.
Tomando como referência as pistas dadas por Latour (2012), Mol (1999;2008), bem como por Mol e Law (2003) em seus estudos, ao falarmos de mulheres e o número alto de gestações a elas atribuído, não se pode fazer isso de maneira isolada e estanque, deixando de fora outros atores. Este é um fenômeno que se constitui em rede, com múltiplos agenciamentos, não sendo possível pensá-lo como decisão individual, muito menos como derivado de fraquezas de caráter ou algum tipo de incompetência pessoal. Nesse sentido, concluímos que há diferentes modos de fazer existir o corpo (Mol & Law, 2003), e que o corpo não se constitui isoladamente, mas sim a partir das fronteiras, na relação que estabelece entre o que os conecta com o meio interno e externo, inclusive humanos e não-humanos. Entre eles, apontamos uma ausência de esforços nas políticas públicas para esse público como um fator fundamental.
Nossa intenção ao expor a realidade que nos debruçamos como campo de estudos é em apresentarmos esse cenário no que abrange as possibilidades de exercício da maternidade em tal conjuntura, assim como a recorrência a qual ela se dá na vida dessas mulheres. Os dados são trazidos com a intenção de estabelecer um diálogo entre as informações quantitativas e qualitativas, evidenciando para muitos de nós uma realidade antes desconhecida e pouco acessível até mesmo aos profissionais dedicados às práticas das políticas públicas de saúde e assistência social para essa população.
Certas de que a relação que estabelecemos com o campo também é uma tomada de posição política, partimos das perspectivas de sermos mulheres e pesquisadoras, condições essas que nos atravessam, para tornar visível o que nos afeta a partir do que nos foi sensível. Percebemos que há singularidades nas histórias escutadas que nos permitem formular questionamentos acerca do direcionamento das políticas públicas voltadas para essas mulheres. Qual é a lógica que as compõem? Se as intervenções já tomam essas mulheres como incapazes, que saídas efetivamente elas têm a não ser a renúncia à maternidade?
Não queremos romantizar essa questão e muito menos fechar os olhos para as dificuldades inerentes a uma situação que envolve a proteção de menores vulneráveis. No entanto, o contato vivo com essa realidade nos faz convocar o que Mol (2008) chama de lógica do cuidado como uma alternativa à lógica da escolha. Será que é simplesmente uma escolha deixar os filhos com parentes ou designá-los para adoção ou é a plena consciência de que não há outra alternativa? Se não há outra alternativa, será que podemos pensar na decisão como escolha? Faz-se necessário refletir se as singularidades dessas mulheres excluídas, muitas vezes pela miséria e pela falta de perspectivas, estão sendo consideradas. Vê-las sob o estigma da incapacidade acaba por envolver questões morais e legalistas, gerando julgamentos negativos e reducionistas. Trazer a ideia de uma compreensão em rede, que nos permita escutar e validar as muitas histórias que essas mulheres nos contam (Almeida & Quadros, 2016) podem contribuir para políticas públicas mais sensíveis e apoiadas no acolhimento e no cuidado. Aprendemos no contato com todas essas mulheres que a decisão de renunciar ao convívio com seus filhos não apaga a marca que a maternidade imprime em suas almas. Elas se reconhecem nesse lugar, mas também desejam outras possibilidades de performar suas existências, rompem com o que está estabelecido para elas socialmente e pagam preços altos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação das mulheres em diversos cantos do mundo ainda revela muita desigualdade e discrepâncias de garantias de direitos e proteção mínima. Essa é uma questão histórica, tão antiga quanto a própria civilização.Ainda é sobre as mulheres que incidem as maiores violências, especialmente, se estiverem em situação de risco e vulnerabilidade. O que buscamos discutir nesse artigo foi tanto a fragilidade do cuidado para mulheres mães usuárias de crack, quanto a necessidade de desenvolvermos políticas públicas mais próximas da realidade que encontramos e constatamos estar crescendo, à medida que se ampliam as crises econômicas e a desigualdade social, deflagradas através da desassistência da população. Não é possível tratar essa questão focando exclusivamente na culpabilização dessas mulheres em situação de risco como um fracasso individual. Tomamos como perspectiva a ideia de Aleksiévitch (2016) quando aponta suas intenções ao reescrever a história da 2ª G. M. A partir de depoimentos de mulheres que nela lutaram, ao afirmar: “... estou escrevendo uma história dos sentimentos... uma história da alma. (Aleksiévitch, 2016, p. 38). Dessa forma, buscamos humanizar essas dores e mostrar alguns dos elementos que compõem essa rede.
Há um provérbio africano que nos diz que é preciso toda uma aldeia para cuidar de uma criança. Portanto, precisamos pensar que a maternidade, nessa circunstância, nos convoca a um cuidado compartilhado onde, para além das questões materiais, torna-se fundamental cuidarmos dos afetos, dos vínculos envolvidos nesse processo.Não podemos manter invisível aquilo que não gostamos de ver, mesmo quando não sabemos o que fazer.
Aceitando o convite que nos faz Haraway (2016) de ficar com o problema, não temos a pretensão de buscar uma solução conciliadora. Buscamos, sim, trazer pontos que consideramos importantes de serem pensados para não polarizar a maternidade no sagrado ou no profano (no caso de abandono de filhos). Ao não polarizarmos, podemos dar espaço para outras versões dessa realidade que podem gerar um esforço coletivo no âmbito da ciência e da sociedade como um todo. Cada criança que nasce é, sobretudo, uma possibilidade para o novo. Que possamos refletir também acerca de novas políticas para velhas situações.
Material suplementar
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Referências
Aleksiévith, S. (2016). A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras.
Almeida, D. J. R. & Quadros, L. C. T. (2016). A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Revista Pesquisa e Práticas Psicossociais, 11(1), 225-237.
Bastos, F. & Bertoni, N. (2014). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ.
Despret, V. (2012). Comme Faire-science: Les animaux ont-ils le sens du prestige ? In V. Despret (Eds.), Que diraient les animaux, si... on leur posait les bonnes questions? (pp. 56-67). Paris: Découverte.
Haraway, D. (2016). Staying With The Trouble. Durham, London: Duke University Press.
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Moraes, M. O., & Quadros, L. C. T. (2020) Ciência no feminino e narrativas de pesquisa: PesquisarCOM e a artesania na pesquisa, Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(3)e-3577
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