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DIAGNÓSTICOS E MEMÓRIAS: ESTUDO DE CASO DE UMA VIDA MARCADA PELO CRIME E PELA LOUCURA
Revista de Psicologia, vol. 13, núm. 1, pp. 154-168, 2022
Universidade Federal do Ceará

Estudos de Caso


Recepción: 08 Septiembre 2021

Aprobación: 02 Noviembre 2021

DOI: https://doi.org/10.36517/revpsiufc.13.1.2022.12

Resumo: Este artigo visa a discutir a categoria loucocriminoso à luz dos rastros de passagem de uma interna no extinto Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho (HCTPHH) por mais de três

Este artigo visa a discutir a categoria loucocriminoso à luz dos rastros de passagem de uma interna no extinto Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho (HCTPHH) por mais de três

décadas, denominada aqui de Maria dos Anjos, considerando: a. a conjugação dos dois enigmas da condição humana no crime e loucura, arregimentados nesse termo; b. as consequências deletérias

de um dos inúmeros diagnósticos atribuídos a ela, mais especificamente, a psicopatia; c. as sequelas subjetivas resultantes da longa internação/institucionalização bem como

os rastros de vida e as práticas de resistência esboçadas pela interna em sua trajetória institucional. Os corpora desta pesquisa são constituídos pelo prontuário da paciente,

notas de campo realizadas dentro e fora da instituição e pelas transcrições de entrevistas de pesquisa realizadas com a paciente. A análise evidenciou uma história de vida sinuosa

marcada por uma travessia por diferentes instituições custodiais e de tratamento e por sutilezas que sugerem que as estratégias de intervenção adotadas não produziram os efeitos esperados:

a condição delirante foi mantida. Ainda, aponta-se a incerteza quanto ao lugar onde a internada deveria ficar: prisão ou hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.

Palavras-chave: Crime, loucura, memória, institucionalização, diagnósticos.

Keywords: Crime, madness, memory, institutionalization, diagnostics

INTRODUÇÃO

A lógica que justificou a fundação dos manicômios judiciários, que durante o século XX mudou de denominação para hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, assenta-se na crença de que o loucocriminoso deveria ser segregado em um local especifico sob a alegação de que essas pessoas representam perigo para si próprias e verdadeiras ameaças para a sociedade. Em solo brasileiro, as ideias gestadas no continente europeu no século XIX se consolidam na segunda década do século XX, com a criação de instituições híbridas que, em seu cotidiano, devido às práticas executadas, integram estratégias de instituição hospitalar e de prisão, diante da possibilidade da determinação de uma medida de segurança para as pessoas que cometem crimes consideradas inimputáveis (Monteiro & Araújo, 2018) e semi-imputáveis (Abdala-Filho; Chalub, & Borba Teles, 2016) com a ajuda do saber médico que decide sobre a capacidade da pessoa, no momento do crime, de dispor ou não de juízo crítico para avaliar as consequências de seus atos. Ao atuar nessa seara, o psiquiatra converte-se, na condição de especialista, segundo Emerim & Sousa (2013, p. 141), em “conselheiro da punição, dizendo sobre a periculosidade do infrator: o laudo psiquiátrico concede aos expedientes punitivos poder sobre as infrações e sobre os indivíduos; quem são, o que fizeram e o que podem vir a fazer”. Diante desse parecer, a lei determina que a pessoa seja absolvida do crime cometido, sendo obrigatoriamente custodiada para fins de tratamento, por uma medida de segurança com prazo de até três anos.

Em decorrência dessas injunções, fez-se necessário a criação de lugares específicos para abrigar a categoria de criminosos motivados pelo estado de adoecimento psíquico. Nesse sentido, surgiram os manicômios judiciários na qualidade de instituições diferenciadas, tanto do hospício quanto da prisão. Incialmente, as instituições foram projetadas para abrigar, de acordo com Santana, Pereira & Alves (2017, p. 2), “criminosos monomaníacos e degenerados que comprometiam o funcionamento da defesa social, assumindo características de presídio e asilo. Revelam-se instituições híbridas, de difícil definição e com objetivos contraditórios”.

O manicômio judiciário, desde seu aparecimento, foi construído como um espaço de reclusão bastante hierarquizado de modo que, no patamar superior da estrutura hierárquica, trava-se um embate entre duas esferas de poder: o saber médico e o saber jurídico. Nos segmentos intermediários, encontram-se os profissionais que se encarregam das pessoas internadas, sendo que as mesmas ocupam o último nível da hierarquização. A estrutura é também disposta em setores diferenciados que funcionam em prol da hierarquização. No entanto, para pensadores que têm uma visão crítica, conforme aponta Bert (2009, p. 91), “o asilo isola e despreza o que o paciente diz enquanto, ao mesmo tempo, o mesmo continua lutando pelo seu direito de falar, seu direito de denunciar maus-tratos, superdosagens de medicamentos, intervenções com eletrochoques...”. Embora se apresente com as credenciais do progresso científico, o manicômio judiciário foi fundado como uma estrutura remodelada a partir do cenário produzido pela prisão e pelo hospício (Carrara, 2010), colaborando, igualmente, no agravamento das condições de vida das pessoas internadas pelas perdas subjetivas que concorreram para a produção de sombras de pessoas que, com seus sintomas, justificam, por vezes, a renovação ad eternum da medida de segurança.

Com base em seu extenso prontuário, em notas de campo produzidas pela equipe de pesquisa multidisciplinar, da qual integram os autores deste artigo, sobre atividades dentro e fora da instituição, o extinto Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho., da qual a interna nomeada neste estudo com o pseudônimo de Maria dos Anjos participou e nas transcrições de entrevistas de pesquisa, investigamos os rastros produzidos por essa “loucacriminosa”, as consequências de um de seus vários diagnósticos – a psicopatia, as sequelas subjetivas de sua longa internação bem como as estratégias de resistência por ela engendradas face à longa segregação que lhe foi imposta.

A PRODUÇÃO SOCIAL DA CATEGORIA LOUCOCRIMINOSO E A MEDIDA DE SEGURANÇA

Do entrecruzamento entre o saber médico e o âmbito das práticas jurídicas, surgiu a categoria loucocriminoso ou louco infrator, a qual já passou por várias denominações. Loucocriminoso, louco infrator, portador de sofrimento mental infrator, pessoa adulta com transtorno mental em conflito com a lei (MPF, 2011) são algumas das terminologias que foram empregadas, ao longo dos tempos, para esquadrinhar pessoas que cometeram algum crime em função de seu transtorno mental. Em meio a um campo tão controverso, no que tange à nomenclatura e aos procedimentos de reclusão e tratamento, Neri (2009, p. 115) afirma que “a Justiça vai se cercar dos saberes da Medicina e da Psiquiatria para levar a cabo o seu projeto de controle e reforma moral dos indivíduos”.

As incursões do saber médico, no âmbito das práticas jurídicas, no final do século XIX, criaram um novo cenário no campo das enfermidades psíquicas,

ou seja, “a medicina legal assume a responsabilidade sobre a apuração de diversos impasses postos no ordenamento processual jurídico” (Cunha & Boarini, 2016, p. 445). Essas categorias produzidas

em contextos sócio-históricos determinados visavam inscrever sujeitos em uma categoria produzida pelo atravessamento do saber médico no âmbito das práticas jurídicas. Em termos do acordo

e das práticas entre esses campos de saber, o loucocriminoso transformou-se em uma espécie atípica para as instituições destinadas aos loucos, bem como para os criminosos, situando-se, segundo

Paula & Camisão (2018, p. 19), no “entre lugar da prisão e do hospício, aquele cujo comportamento teve sua interpretação particular em referência às experiências

históricas vivenciadas. É o sujeito construído na literatura, na imprensa, no processo criminal”.

Essa categoria hibrida, retratada socialmente como uma mescla do crime e da loucura, juntamente com as instituições destinadas ao seu tratamento, constituem-se como fonte de enigmas, visto

que, no entender de Pinto, Farias & Gondar (2012, p. 192) “por um lado, há um conjunto de profissionais cujo olhar incide na possibilidade de recuperação ou melhora do ser doente; por outro,

há uma equipe que é determinada em função de fundamentos a serviço da segurança”. Como se trata dois campos disciplinares distintos, ou seja, o saber médico, voltado para

a promoção de saúde de pessoas enfermas, e o saber jurídico, orientado pela questão da segurança e da defesa social contra pessoas consideradas perigosas, dificilmente esses dois olhares

se conjugam, razão pela qual o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico é um espaço de tensões, não em razão das condições produzidas pelos custodiados

para tratamento em função de seus transtornos mentais, mas pela forma como tal instituição gerencia os sujeitos a ela submetidos.

Há, no entanto, uma razão para essa controvérsia. Em princípio, dificilmente o loucocriminoso se livrará da condição de potencialmente perigoso, mesmo

que tenha havido o recrudescimento de seus sintomas. Em segundo lugar, as marcas decorrentes da prática do crime tornam-se indeléveis, tanto para a sociedade quanto para as instâncias de assistência.

De certo modo, os aparatos estatais se encarregam de um controle cujo foco é a periculosidade, motivo pelo qual, em muitas instituições de reclusão, adotam-se estratégias de tratamento moral

em situação de custódia penal. Não obstante, a articulação entre o controle da periculosidade e o tratamento moral tem diferentes efeitos, visto que, no entender de Oliveira &

Rodrigues (2016, p. 314), “forja a mecânica de poderes e saberes fixados no Judiciário, na comunidade científica, nas instituições totais e nos tidos poderes laterais da justiça

como as polícias, as instituições psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas”.

A produção dessa categoria de pessoas, que encerram em si o crime e a loucura, criou condições para que fossem fundadas as instituições (Santos & Farias,

2014) que deveriam tratá-las, mas sob controle e vigilância, razão pela qual seus institucionalizados são duplamente estigmatizados: criminosos e loucos, confinados em local híbrido que mistura

prisão com hospital e custódia com tratamento psiquiátrico.

Uma nuance do processo de institucionalização do loucocriminoso consiste no entendimento de que, em meio a um cenário de incertezas quanto ao seu destino, o saber jurídico

determinava, de acordo com o artigo 3 do decreto 1.132 de 22 de dezembro de 1903, p. 2, que “o enfermo de alienação mental poderá ser tratado em domicilio, sempre que lhes forem subministrados os

cuidados necessários”. Havia, assim, um entendimento de que essas pessoas fossem encaminhadas para suas famílias, visto que não tinha sido ainda criada a instituição destinada para

a reclusão de quem comete crime em razão do adoecimento psíquico. Contudo, segundo Cunha & Boarini (2016), até a criação dos manicômios judiciários, era muito frequente

o louco e o loucocriminoso conviverem nos hospícios em alas separadas. Não obstante, a inadequação dessa última categoria aos hospícios e às prisões resultou em vários

impasses. Contudo, o processo de produção do loucocriminoso depende substancialmente da ação de aparatos estatais, visto que comporta uma dinâmica que, segundo Pereira (2013), se desenrola

em várias fases. Em primeiro lugar, em situação de crime, caso haja abordagem do aparato policial, a pessoa é detida e, a partir dessa operação policial, se produz um boletim de ocorrência

construído nas delegacias de polícia por meio de expressões que, com frequência, marcam seu destino, seja pela forma em que o crime é narrado, seja pelas observações sobre o

perfil dessa pessoa. Esse é o ponto de partida decisivo para a atribuição ulterior dos termos “criminoso” ou “loucocriminoso”. Em segundo lugar, posteriormente, na fase do inquérito,

a pessoa detida em condição de suspeição é acautelada, a critério do juiz ou de interessados, e poderá ser objeto de um exame pericial que forneça informações

calcadas no saber médico sobre o estado psíquico no momento em que praticou o crime. Em terceiro lugar, se o resultado do exame indicar um transtorno psíquico que explique a ausência de discernimento

crítico quanto à avaliação das consequências do crime no momento em que ele ocorreu fica, então, evidenciada a motivação em decorrência da doença mental para

a prática da ação. Por fim, a autoridade do âmbito jurídico declara que a pessoa é inimputável, sendo simultaneamente absolvida pelo crime e encaminhada para custódia

por uma medida de segurança para tratamento.

A rubrica de inimputabilidade resulta da inclusão da pessoa em categoria nosográfica, sendo ela doravante duplamente estigmatizada: pelo crime e pelo diagnóstico firmado pelo saber

médico. No processo de avaliação pericial, o saber médico atesta um transtorno psíquico que baliza a decretação, no âmbito jurídico, da medida de segurança.

O desfecho dessa rotina consiste na reclusão da pessoa aos manicômios, que, gradativamente, transformam-se, seguindo a cultura do sistema manicomial, sendo marcada pelo estigma da periculosidade e pela nosografia

do diagnóstico. A rubrica do diagnóstico e a presunção de periculosidade revertem-se em poderosos esteios para justificar medidas coercitivas de controle e de aplicação de procedimentos,

muitas vezes, bastante nocivos à pessoa, causando danos indeléveis. Por essa razão, é preciso destacar a amplitude e a polissemia do termo periculosidade para selar o destino de uma pessoa, conforme

afirma Barros-Brisset (2010, p. 15):

[...] falar e escutar sobre a periculosidade de alguém tem sido um assunto comum, não sendo preciso explicar o sentido do termo, pois parece que todo mundo entende do que se trata.

Esse termo tem sido habitualmente usado para justificar o comportamento de alguns indivíduos que cometem atos estranhos à ordem social, e, considerando que parece evidente a periculosidade deles, o termo também

tem sido o principal argumento para justificar o investimento em práticas e instituições que objetivam a contenção e o tratamento dessas pessoas perigosas por meio do seu rigoroso isolamento.

Ainda que atualmente a utilização desse termo tenha-se tornado banal na linguagem cotidiana, em geral, a “periculosidade” atribuída a alguém acontece e ganha fama principalmente quando

o sujeito foi o autor de algum crime de grande repercussão social. Geralmente, encontramos esse predicativo atribuído a pessoas que tiveram seus crimes transformados num acontecimento que abalou a sociedade,

tornando-se um assunto de debate público.

Da ameaça concernente à periculosidade e da violência explícita contida nos termos “criminoso” e “louco”, dificilmente há meios de a pessoa escapar,

mesmo depois de cumprida a medida de segurança pela indicação, pelo saber médico, da cessação da periculosidade. São mínimas as chances de que dispõe o loucocriminoso

para livrar-se do estigma de criminoso e “da coisificação das pessoas com transtornos mentais” (Musse, 2008, p. 3). Assim, a sentença que absolve a pessoa e determina o cumprimento de uma medida

de segurança aviva duas condições estigmatizantes: louco e criminoso, ambas temidas em função da periculosidade e das ameaças à ordem social. A medida de segurança estabelecida,

por lei, em um intervalo de tempo que não deve ultrapassar três anos, pode ser renovada, dependendo dos resultados dos exames periciais sobre a cessação de periculosidade, “única possibilidade

de saída do labirinto das medidas de segurança, na dicção do judiciário” (Mattos, 2011, p. 116). Ressalte-se que a cessação de periculosidade contempla uma sombria temporalidade,

visto que muitos são os loucocriminosos que ficam confinados até a morte em instituições asilares. A justificativa para a permanência da pessoa internada na instituição advém

do fato de que, o perito, por meio de exame, ao detectar a permanência da periculosidade, atesta que há risco de danos à própria pessoa ou à sociedade. Por esse motivo, a medida é renovada,

podendo transformar-se em regime de quase prisão perpétua, o que de fato ocorreu com a interna Maria Dos Anjos, objeto de nossas reflexões neste artigo. Nesse sentido, o parecer do saber médico

mune o juiz na decisão de renovar ou não a medida de segurança. Embora o saber médico possa apontar indícios de cessação da periculosidade, a decisão final é do

juiz.

QUERELAS E EFEITOS DE DIFERENTES DIAGNÓSTICOS: O CASO MARIA DOS ANJOS

Como já mencionado anteriormente, Maria dos Anjos teve, em seu extenso prontuário, vários diagnósticos psiquiátricos, entre eles a psicopatia. No que tange a essa categoria

diagnóstica, há uma corrente de pensadores, entre os quais Schneider (2007), que acredita que tais pessoas não se beneficiariam com um tratamento, pois a psicopatia, segundo o autor, não é

um problema concernente ao campo da saúde mental, mas sim de ordem social e emocional, restando-lhes apenas a condição de encarceramento quando praticam um crime. Para Schneider (2007), a psicopatia encontra-se

em um interstício interpretado por alguns como falha de caráter e, por outros, como morbidez. Por outro lado, há os que defendem, a exemplo de Salekin, Worley & Grimes (2010), que a psicopatia é

uma enfermidade psíquica que poderia ser beneficiada com um tratamento, destacando que ainda não foram produzidos os instrumentos adequados para intervir nessas situações. Nesse sentido, essas pessoas

poderiam ser encaminhadas aos hospitais de custódia para tratamento. A psicopatia representa, então, uma categoria limítrofe entre a psiquiatria e a justiça penal, pois enquanto esse primeiro campo

de saber a inclui no rol das enfermidades psíquicas o segundo a aborda como falha incorrigível do caráter, conforme entendem Lop (2019) e Abdala-Filho, Chalub & Borba Teles (2016). Dependendo de uma

leitura ou de outra, tem-se uma situação revestida de ambiguidades e contradições, o que, de certo modo, representa a herança de posturas da psiquiatria positivista que propunha a existência

de traços degenerativos que concorriam para o aparecimento da loucura. Não obstante, a formulação dessa categoria diagnóstica representa, para o saber médico,

“o poder psiquiátrico em termos de um instrumento para a patologização de um número cada vez maior de atos e pessoas e para a justiça a possibilidade de

uma solução cômoda para o crescente índice de criminalidade, permitindo a referência a causas mórbidas e mascarando a problemática política social” (Rauter, 2003,

p. 115).

Essas pessoas, uma vez inseridas na rubrica de inadaptados sociais ou inadequados para a vida em sociedade, terão selados seus destinos em espaços de segregação e confinamento,

compondo, segundo Lobo (2015, p. 13):

[...] a galeria de vidas detidas por uma instituição, aprisionadas pelas condições que lhes foram impostas, maldição das relações de poder

e das quais restariam alguns vestígios, poucas frases, atas apresentadas e documentos burocráticos, prontuários médicos, pequenos relatos, fotos e imagens desbordadas de má sorte.

O prontuário de Maria dos Anjos nos informa que ela foi submetida à medida de segurança no Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico Heitor Carrilho (HCTPHH) no

ano de 1985, sob a alegação de ter cometido danos patrimoniais e agressão aos funcionários de uma instituição. Ao longo de mais de três décadas de institucionalização,

recebeu diversos diagnósticos: esquizofrenia tipo desorganizado, psicose maníaco depressiva, esquizofrenia hebefrênica, retardo metal e psicopatia, este último após ter assassinado sua companheira

de quarto no Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), no ano de 1989. A partir de então, ela permanece em regime de internação em instituição custodial-psiquiátrica. No laudo pericial,

é qualificada “como portadora de psicopatia, capaz de atos de extrema violência” (Juiz de Direito, Vara Criminal da Capital, 1990). Ainda, naquele documento, o perito atesta que a paciente, em suas

várias internações, “sempre recebeu o diagnóstico de Personalidade Psicopática, não apresenta sintomatologia psicótica (...)” E continua: “estes pacientes

portadores de Personalidades Psicopáticas, em todas as partes do mundo (...) não costumam obter melhoras em ambiente psiquiátrico hospitalar (...) sugerimos que ela deva ser transferida para um presídio

feminino onde, entendemos, poderia ter melhores possibilidades de recuperação”. Desse modo, o processo avaliativo incide nos vestígios de situações para produzir evidência visando

à inserção de uma pessoa em função de uma ação praticada, em uma dada categoria sob a ótica de um estigma indelével (Miller & Milner, 2006).

O ESTUDO DE CASO MARIA DOS ANJOS

O prontuário de, aproximadamente, novecentas páginas dispostas em três volumes, da interna Maria dos Anjos, constitui a fonte principal para esta investigação. O corpus

desta pesquisa contou também com notas de campo produzidas pela equipe de pesquisa sobre atividades dentro e fora da instituição das quais Maria dos Anjos participou e transcrições de entrevistas

de pesquisa e conversas informais de que ela participou. Nessas várias fontes que integram o conjunto de dados da pesquisa, encontramos rastros nos quais se evidenciam vestígios de memória sobre o transcurso

de uma vida fortemente afetada pela prolongada institucionalização em função da qual se expressam, de forma clara, as incidências institucionais, tanto nos hospitais psiquiátricos quanto

nas prisões. Tratando-se do estudo de caso, em condições especificas como a referida, vale destacar que, conforme assinala Barbosa (2016, p. 156-157):

[...] os estudos de caso tornam-se análises dimensionais, pois reconhecem as pessoas e suas relações como dinâmicas em espaço e tempo. As dimensões, que

mesmo sem percebermos regem parte disso que chamamos de realidade são especialmente focadas nessa metodologia que visa se debruçar sobre a construção do mundo das pessoas outrora chamadas de loucas

e perigosas.

O prontuário de Maria dos Anjos contém as linhas de uma vida sinuosa marcada pelos efeitos decorrentes de passagens em diferentes tipos de instituição, retratando uma trajetória

de um percurso que se aproximou de quatro décadas de confinamento: instituição para menores infratores (antiga FEBEM), prisão, hospital psiquiátrico e hospital de custódia e tratamento

psiquiátrico (antigos manicômios judiciários).

Antes de identificarmos os efeitos da assimilação da cultura de diferentes instituições de reclusão, bem como as peculiaridades existenciais dessa desinternada, faz-se

necessário adicionar aspectos biográficos concernentes à sua travessia pela vida, extraídos das anamneses de seu prontuário e das conversas informais e entrevistas de pesquisa na quais ela

era uma das participantes.

Quem é Maria dos Anjos? Nordestina, de origem pobre, morava no interior do Estado de Pernambuco com a mãe, o pai e os dois irmãos. Ainda adolescente, iniciou sua via crucis por uma trajetória de descaminhos e desventuras, vindo de carona em um caminhão, para o Rio de Janeiro, para ficar em casa de familiares devido ao fato de seu pai ter abandonado

a família por causa do etilismo. Diante da situação de carência, principalmente econômica, mas igualmente estrutural provavelmente decorrente das sequelas deixadas pela agressividade de um

pai alcoolista, sua mãe mostrou-se impotente para continuar o seu processo de socialização, alegando não dispor de condições para criá-la, especialmente pelo fato de a mesma

ser muito bagunceira, renunciando, desse modo, a uma vida compartilhada por ambas, mãe e filha. Aos doze anos, Maria dos Anjos teve sua primeira relação sexual e começou a usar drogas, motivo que

a fez abandonar a escola aos treze anos, sem passar do quarto ano do ensino fundamental. Contudo, apesar dessa passagem pela instituição escolar, não foi alfabetizada; não sabe ler nem escrever

o que a inscreve em outra rubrica altamente estigmatizante, a de analfabeta funcional. Com a mesma idade, teve sua primeira internação em clínica psiquiátrica; durante uma crise incontrolável

quebrou moveis e utensílios da casa da tia com quem morava na cidade do Rio de Janeiro. Superada essa crise, a convivência com a tia tornou-se impossível em decorrência dos rompantes de agressividade.

Sem conseguir contornar a situação diante das dificuldades de convivência, sua tia decidiu, quando Maria dos Anjos tinha quinze anos, encaminhá-la ao Juizado de Menores da Ilha do Governador, bairro

em que morava. Diante do cenário explanado pela tia, a decisão judicial consistiu na recomendação para o Centro de Reclusão de Memores Infratores, o Instituto Padre Severino, conhecido como

um espaço tradicional de reforma e correção de jovens. Permaneceu em confinamento nessa instituição até os dezenove anos. Uma vez em liberdade, sem poder voltar para a casa da tia,

que claramente demonstrou não a aceitar de volta, e sem ter onde morar, passou a ingressar na rubrica de pessoas adultas em situação de abandono social e escolheu uma antiga e reconhecida zona de prostituição

à época próxima de um terminal portuário: a Praça Mauá, na cidade do Rio de Janeiro. Nessa nova atividade para sobreviver, começou a realizar pequenos furtos justificados pela

própria. Em meio a uma vida conturbada, Maria dos Anjos, devido a episódios de agressão as clientes e a outras prostitutas como também pelos furtos, foi obrigada a comparecer, com frequência,

à delegacia de polícia também localizada na Praça Mauá, na qual foram registrados inúmeros boletins de ocorrência por furtos e agressões. Seguindo uma vida repleta de

percalços e sem os cuidados necessários, por um lado, e pela falta de assistência do Estado, por outro, engravidou. Após o parto, Maria dos Anjos decidiu doar a criança a uma conhecida, sob

a alegação de não ter condições de criá-la. Anos depois, engravidou novamente. Por ocasião do nascimento da criança, foi levada à maternidade Pró-Matre,

primeira maternidade fundada no Rio de Janeiro há mais de cem anos, onde, em seus registros, consta que a criança teria nascido morta. Essa versão da morte do filho não foi aceita por Maria dos

Anjos que, sustenta, até sua saída da instituição em 2016, ter visto seu filho saudável. Em uma entrevista de pesquisa realizada próxima a sua desinternarão, ela nos disse “eles

tinham dado ele. Meu filho não morreu não, morreu não, disseram pra mim que morreu, mas é mentira, é mentira deles, nasceu com saúde”.

À época, se dispôs a lutar para resgatá-lo, dado seu estado de inconformismo, além do humor bastante alterado com atos visíveis de agressividade, conforme registros

no prontuário. Na tentativa de realizar o plano de recuperação desse filho supostamente perdido, Maria dos Anjos ia constantemente à maternidade (mais de uma vez por dia), na esperança de

encontrá-lo. Quando era informada, pelas autoridades da maternidade, acerca do destino de seu filho, ficava agressiva, alegando que seu filho teria sido doado para alguém pela própria maternidade. Jamais

abriu mão dessa convicção, mesmo depois dos longos períodos de internação. Diante das respostas negativas dos funcionários da maternidade, Maria dos Anjos reagia com agressividade

verbal. Porém, um dia, mais uma vez foi detida, em flagrante: em meio às respostas negativas que recebera nesse dia, perdeu completamente o controle e cortou o rosto de uma enfermeira com um pedaço de

vidro. Em suas palavras, em uma conversa informal, ela nos disse: “... aí quando eu tive alta que eu fui buscar, tinham doado ele... aí eu peguei, cortei a cara da doutora e quebrei o carro do diretor...

aí fui parar aqui.”

Essa detenção resultou em inquérito e, diferentemente das outras vezes, não foi solta, iniciando-se outra incursão institucional em sua vida. Depois de presa, na delegacia,

causava bastantes transtornos, principalmente gritando que queria seu filho de volta. Descontrolada, sem atender as ordens dos policiais e bastante agressiva, foi encaminhada, para ser contida, a uma instituição

psiquiátrica, o Hospital Pedro II. Nessa instituição, movida por uma impulsão delirante, matou outra interna com uma faca, segundo o prontuário, efetivando o seu feito com um corte na garganta,

sob a alegação de que a mesma a teria agredido e dispunha-se a matá-la. Em sua narrativa, ela nos conta: “aquela que eu matei foi me perturbar num dia que não devia, aí fui lá

e matei.” Esse episódio foi decisivo no processo diagnóstico para que o saber médico avaliasse que, no momento desse crime, Maria dos Anjos não dispunha de discernimento crítico acerca

das consequências de seu ato, motivo pelo qual foi considerada, pelo saber jurídico, inimputável. Foi, então, absolvida do crime de homicídio e encaminhada ao HCTPHH para ser tratada devido

à decretação de medida de segurança, cujo período estendeu-se de 1987 até 2009, momento de sua desinternação, com 50 anos de idade.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

O prontuário de Maria dos Anjos é expressivo sob vários ângulos. Em primeiro lugar, contém uma variedade de documentos, de vários gêneros discursivos. Laudos

periciais, encaminhamentos clínicos, ofícios de juízes, prescrições medicamentosas, memorandos intrainstitucionais, fichas de acompanhamento de setores da instituição, a exemplo

do Serviço Social, da Terapia Ocupacional e da Psicologia, entre outros, constituem um grande mosaico de informações que, muitas vezes, apresentam dados contraditórios, especialmente no que tange

aos pareceres diagnósticos. Em muitos desses documentos, observa-se claramente a divergência de posição quanto ao lugar onde ela deveria ser recluída. A título de exemplo, trazemos

um segmento retirado de um oficio da vice diretora da instituição, encaminhado ao juiz da Vara de Execuções Penais, solicitando

transferir imediatamente a referida paciente para outra unidade prisional devido a sérias agressões sofridas por parte da paciente à funcionários e a mim própria,

vice diretora, (...) a paciente não tem a mínima condição de desfrutar do tratamento hospitalar, tendo que ficar quase o tempo todo trancada em sua cela (...).

Há, também, no prontuário, um extenso número de resíduos e rastros de memória sobre a realização de tratamento psiquiátrico em condições

de custódia, sobre as instituições destinadas a essa finalidade e, sobretudo, o papel e as práticas dos agentes terapêuticos, cuidadores, assistenciais e custodiadores, o que evidencia a ambiguidade

da instituição com prevalência da orientação hospitalar, em alguns momentos, e da prisão, em outros. Em meio à diversidade e à quantidade de documentos, foram selecionados,

para este artigo, aqueles que oferecessem informações acerca da complexa produção de diferentes diagnósticos, desde sua primeira reclusão, na categoria de jovem infrator na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), até o momento que antecedeu a chegada de sua guia de desinternação, em 2009. Objetivamos, assim, problematizar os efeitos desses diferentes diagnósticos na interna, seja em termos das estratégias de tratamento empreendidas, seja sobre o lugar no qual teria

mais benefícios: prisão ou hospital. Além disso, focalizamos a atenção para o processo de produção dos estigmas decorrentes dos diagnósticos produzidos, atentando-nos

para as narrativas, por vezes contraditórias, que integram o conteúdo dos documentos.

No que tange aos aspectos metodológicos, ressalte-se que se considerou cada documento relativo aos diagnósticos de forma isolada, e procedeu-se ao cotejamento das informações

em seus conteúdos, orientandos pelas indicações de Passos & Barros (2012, p. 156) quanto à possibilidade do entendimento dos rastros e restos produzidos no prontuário com objetivo de

“traçar a transversalidade no que diz respeito aos modos de dizer, tomar a palavra em sua força de criação de outros sentidos, para afirmar o protagonismo de quem fala e a função

performativa e autopoiética das práticas narrativas”. Nesse encaminhamento, nos confrontamos com situações para as quais fez-se necessário organizar o que é redundância

e também proceder à desmontagem para extrair-se, do caso em estudo, a agitação de micro casos como micro lutas nele trazidas à cena. Com a experiência de desmontagem, consegue-se um

processo de desestabilização que produz fragmentos intensivos e partículas de sentido que nos encaminham aos contornos da trajetória de vida circunscrita pelos resíduos de memória.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O manancial de documentos que integra o prontuário, como dito acima, aponta para uma gama de temas: ameaça a terceiros, saúde, vicio na medicação de contenção,

porte de medicamentos, agressão, luta corporal, agitação. Esses temas são uma construção decorrente das informações dos encaminhamentos e são, ao mesmo tempo,

índices reveladores de atributos endereçados à interna produzidos pelos agentes terapêuticos e custodiadores do estado e explicitam as condições da internada que se desdobraram em argumentos

sólidos nas justificativas dos diferentes diagnósticos produzidos. Ainda, determinadas ocorrências são peças fundamentais na consecução dos diagnósticos: a) as constantes

incursões de Maria dos Anjos à maternidade Pró-Matre, bem como os transtornos causados aos seus funcionários, nos episódios em que reivindicava o filho que, segundo a instituição,

teria nascido morto e, b) o assassinato de uma interna que os documentos atestam como completamente dopada no Hospital Pedro II, sob a impulsão de uma motivação delirante. Essas ocorrências converteram-se

em fundamentos para o saber médico construir um quadro nosológico, mas sem unanimidade entre os profissionais, configurado em categorias diagnósticas diferentes, a exemplo da psicopatia, da esquizofrenia

hebefrênica ou mesmo a psicose maníaco depressiva.

Depreende-se, da leitura dos documentos, que a interna provocava constantes estados de tensão na instituição (“paciente encontra-se fora do convívio por ter agredido

fisicamente outra paciente”, nos informa a psicóloga na folha de evolução), fator que, de acordo com as narrativas institucionais, dificultava a sua interação com funcionários

e outros internados. Ainda, a partir das estórias que compõem o “mosaico” Maria dos Anjos, esta não se mostrou solícita para se adequar às normas institucionais, a ponto de essa

circunstância produzir questionamentos nos profissionais quanto ao lugar onde deveria ficar: prisão ou hospital, seja pela inadequação à instituição, seja devido aos vários

diagnósticos.

No tocante a essa nuance do processo de reclusão de Maria dos Anjos, vale focalizar um parecer psiquiátrico que foi alterado antes de ser oficializado, dando, assim, evidências acerca

das dúvidas do psiquiatra responsável pelo diagnóstico. O perito inicialmente escrevera, à mão, “personalidade psicopática” e, em seguida, riscou alterando esse diagnóstico

para “esquizofrenia”. Além dessa evidência, esse profissional, no laudo, questiona qual seria o melhor lugar para a internada, reproduzindo uma cultura do início do século XX, quando,

como assinala Kummer (2010, p. 30), “alguns psiquiatras entendem que os hospícios deveriam asilar todos os doentes mentais, mesmo os criminosos ou que revelassem perigosos. Outros, ao contrário, tentavam

devolver para as prisões os loucos criminosos.” Cabe salientar que as dúvidas quanto ao lugar e ao diagnóstico de modo algum minimizaram o sofrimento da interna nem amainaram a potência de

seu delírio acerca da possibilidade de encontrar seu filho ainda criança. Em nenhum momento Maria dos Anjos tornou-se cônscia de que, com o passar do tempo, seu filho, caso estivesse vivo, teria crescido,

uma vez que conservava a imagem de um recém-nascido. Em uma das entrevistas de pesquisa, ela nos diz, “porque eu pego meu neném que tá no berçário, sabe?”

No rastreamento das diferentes categorias diagnósticas, encontramos: a) “portadora de psicopatia, com potencialidade de atos de extrema violência; b) “desenvolvimento mental

retardado”, extraído do laudo de sanidade mental que faz referência a laudos anteriores; c) “quadro esquizofrênico crônico”, extraído de parecer psiquiátrico; d) na

sinopse psiquiátrica de 1993 constam dois diagnósticos: 301.7/1 (transtornos da personalidade com predomínio de manifestações sociopáticas e associais), e 301.3/9 (transtorno explosivo

da personalidade); e) na sinopse psiquiátrica do ano de 2007, consta o diagnóstico F20.1 (esquizofrenia hebefrênica).

Contudo, o grande paradoxo que sua situação evidenciava consistia em, uma vez desinternada, o que ocorrera em 2009, continuar abrigada em uma instituição de custódia

pois, pela falta de documentos, em razão da recusa em sair acompanhada da instituição para providenciá-los, não era possível o seu encaminhamento para um abrigo ou residência

terapêutica. A situação se agravava mais pelo fato de não dispor de familiares que colaborassem no processo de reinserção social. Em relação ao seu estado à época em que foi encaminhada para uma residência terapêutica, em 2016, com o fechamento da instituição, pareceu-nos evidente

que a intervenção terapêutica produziu resultados positivos, especialmente na contenção de sua agressividade. Há registros de longos períodos em que ela esteve, nas palavras

da psiquiatra, “tranquila, mantendo quadro estável, sem atividade delirante”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os efeitos negativos, bem como os danos subjetivos decorrentes da longa estadia de Maria dos Anjos, em diferentes instituições de reclusão, são de difícil recuperação

no sentido do rearranjo das condições de vidas.

A institucionalização prolongada deixou Maria dos Anjos dependente da ajuda assistencial, no tocante aos benefícios do Estado para viver em um abrigo ou residência terapêutica

uma vez que não dispõe de familiares dispostos a acolhê-la. Em certo sentido, os hábitos transmitidos pelas instituições, bem como o processo de nivelamento subjetivo, revelam-se em

indícios que retratam, de forma tímida, de sua parte, uma tentativa de manter um mínimo de singularidade, mesmo que seja em não abrir mão de sua convicção delirante. Esses indícios

são vestígios de uma trajetória de vida marcada por percalços com resultados de perdas irrecuperáveis: o filho, a juventude, o vigor físico, os vínculos familiares e as oportunidades

para gerenciar uma sobrevivência pela produção de sustento por intermédio de atividades laborais.

Assim, as instituições de reclusão que fizeram parte de sua história produziram uma pessoa quase incapaz de se autoadministrar ficando na estreita dependência de órgãos

assistenciais. A própria Maria dos Anjos tem clareza quanto a esse seu destino, visto que suas construções de memória sinalizam essa direção. Em vários registros no prontuário

no ano que antecede sua saída do hospital, ela é retratada como temerosa de deixar a instituição: “Acredito que teremos de conversar com a paciente sobre os receios dela com relação

à saída do hospital”, nos informa a médica-psiquiatra em seu prontuário.

Não obstante, a trama dos acontecimentos que conferem a Maria dos Anjos um significado à sua história por meio de suas narrativas envolve um misto de experiências e fabulações.

Provavelmente, as fabulações, ao lado de suas memórias, podem ser consideradas expressões de uma imaginação, ou seja, mecanismos de proteção frente às agruras

do cotidiano institucional e também como meio para enfrentar a violência decorrente dos diagnósticos e, ainda, a violência da própria instituição. Há um dilema em relação

à saída da instituição diante dos estigmas intricados em sua existência: mulher, negra, sem-teto, prostituta, analfabeta, criminosa e louca. O peso desses atributos negativos tem grande influência

sobre as decisões de sua vida. Ora expressa a vontade de querer permanecer na instituição, alegando gostar muito do lugar,“eu não quero mais ir embora daqui não”, porém,

segundos depois, chora, e afirma :“Eu não quero morrer aqui não”.

Considerando as circunstâncias analisadas, indagamo-nos sobre as chances de tais complicações reincidirem, sobretudo face à ausência de uma política de Estado

integral e abrangente de assistência. Sabemos, também, que as marcas dos estigmas que concorreram para a sua segregação dificilmente serão apagadas. Sendo assim, questionamos o processo de

desinternação que almeja preparar a pessoa para viver além dos muros da instituição, especialmente em razão de efeitos duradouros e alguns permanentes de longas internações.

A desinternação, após o término da aplicação da medida de segurança, parece ser um processo bastante complexo, não só pela saída

da instituição, mas pelas possibilidades de a pessoa ser efetivamente atendida, como usuária dos serviços de saúde mental, nos diferentes espaços institucionais existentes para tal

finalidade. É de conhecimento geral que o funcionamento precário de tais instituições resulta da prolongada ausência de investimentos no campo da saúde mental por parte dos governos

nos âmbitos municipal, estadual e federal que se orientam, com frequência, segundo políticas neoliberais.

A discussão apresentada neste artigo evidencia o quão complexa é a custódia do loucocriminoso para tratamento, já que a medida de segurança é um procedimento

jurídico, e o tratamento fica ao encargo do saber médico, contando com a experiência e capacidade de psicólogos, entre outros profissionais, em instituições que contemplam experiências

multiprofissionais.

A instituição manicomial tradicionalmente indicada para tratamento em muito pouco se diferencia das prisões, sendo que as intervenções do saber médico estão

sujeitas às interferências do setor de custódia, bem como devem obedecer às regras estabelecidas no âmbito jurídico. Nem sempre essas duas instâncias mantêm um diálogo.

No entanto, uma situação paradoxal evidencia-se com o fim da internação para as pessoas adultas com transtornos mentais em conflito com a lei: não podem mais ser tratadas em regime de custódia.

Face aos debates acerca dos avanços e retrocessos nas políticas públicas nos campos jurídico e da saúde mental, cabe destacar três iniciativas em âmbito

nacional, já legitimadas juridicamente, que contam com equipes multiprofissionais formadas por profissionais de campos disciplinares distintos, a exemplo da Psicologia e do Serviço Social. Tais iniciativas objetivam

articular a medida de segurança aos pressupostos que embasam a Reforma Psiquiátrica: o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) em Minas Gerais, o Programa e Atenção

Integral ao Louco Infrator (PAILI) em Goiás e o Programa de Cuidado Integral a Pacientes Psiquiátricos no Piauí (PCIPP). O programa de Goiás, por exemplo, move a discussão da medida de segurança

da área de segurança pública para a rede de atenção psicossocial, focalizando a terapêutica como principal foco de atenção, atribuindo um papel de destaque para os profissionais

do campo da Psicologia. Tais propostas exitosas (Barros-Brisset, 2010) sugerem que a integração intersetorial de campos disciplinares historicamente distintos constitui-se em uma efetiva saída para aqueles

afetados juridicamente pela medida de segurança na medida em que são direcionados aos dispositivos da rede de atenção psicossocial no país consolidando uma sólida política pública

de saúde mental comprometida ética e politicamente com os sujeitos portadores de transtorno mental em conflito com a lei.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – Brasil (CAPES).

O Hospital de Custódia e Tratamento Heitor Carrilho foi extinto pelo decreto n. 44.130 de 20 de março de 2013, publicado no D.O de 21 de março de 2013. A partir daquela data a instituição recebe o nome de Instituto de Perícias Heitor Carrilho.



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