Resumo:
Este artigo propõe contribuir com o debate existente sobre prevenção e estratégias de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres. O estudo buscou pesquisar como essa temática tem sido retratada nas produções acadêmicas brasileiras no campo da Psicologia, visando problematizar de que modo a interseção entre marcadores de raça, gênero e classe é abordada por autores(as) da área, e analisando as repercussões psicossociais da violência nas mulheres. Foi utilizado como método a revisão bibliográfica sobre o tema da violência doméstica em artigos científicos publicados especificamente da base de dados SciELO. Averiguou-se como resultado que o fenômeno da violência necessita de um amplo cuidado, aprimorando o apoio e suporte à mulher e à família acometida pelo contexto da violência, e que há grande necessidade de considerar as discussões e intervenções de modo interseccional. Como conclusão, foi possível compreender através dos estudos avaliados que existem fatores que interferem na produção e manutenção das opressões vivenciadas. Por fim, compreende-se a necessidade de a psicologia dialogar junto a outros campos de atuação, a fim de contribuir na construção de conhecimento a partir de problemas sociais, e de modo a incentivar o desenvolvimento de estudos de caráter preventivo e com estratégias mais efetivas. Psicologia; Gênero; Violência contra a mulher; Interseccionalidade.
Abstract: This article proposes to contribute for the existing debate on prevention and strategies to avoid gender violence against women. The study sought to research how this theme has been portrayed in Brazilian Academic Productions at the field of psychology, aiming to problematize how the intersection between markers of race, gender and social classes are addressed by author's field, and analyzing the psychosocial repercussions of violence against women. A literature review on the topic of domestic violence in scientific articles published specifically from the SciELO database was used as a method. As a result, it was found that the phenomenon of violence needs ample care, improving support and supporting those women and families affected by the context of violence, and that there is a great need to consider the discussions and interventions in an intersectional way. In conclusion, it was possible to understand through the evaluated studies that there are factors that interfere in the production and maintenance of the experienced oppression. As conclusion it is understood the need for psychology to dialogue with other fields of action, in order to contribute to the construction of knowledge based on social problems, and in order to encourage the development of preventive studies with more effective strategies.
Keywords: Psychology, Gender, Violence against women, Intersectionality.
Estudos Teóricos
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Recepción: 04 Agosto 2021
Aprobación: 27 Diciembre 2021
O presente artigo aborda os principais elementos discutidos na literatura do campo da psicologia acerca da violência contra mulher, debatendo sobre as práticas de prevenção, acolhimento e enfrentamento. De forma mais específica, problematizamos de que modo a intersecção entre marcadores de raça, gênero e classe é abordada nos estudos no âmbito da Psicologia sobre violência contra mulheres. No intento de compreender a relação entre esse tipo de violência a partir do campo da Psicologia, tornou-se relevante para a discussão projetar um olhar interseccional, e observar, nas literaturas revisadas, as principais repercussões psicossociais da violência nas vítimas.
A nota técnica ed. 3 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), editada em junho de 2020, traz um índice cruel para muitas mulheres brasileiras em situação de violência doméstica, que são os vários episódios violentos vivenciados por essas vítimas até chegar em resultados trágicos de mortalidade. Foram apuradas maiores restrições e dificuldades deste público em representar e efetivar denúncias junto aos equipamentos da rede de proteção no primeiro semestre do ano citado, o que resultou em poucas solicitações de medidas protetivas e repercutindo no acréscimo das violências letais.
Os dados acima apontam para a intensificação das violências contra as mulheres, um fenômeno cotidiano que se manifesta de várias formas no Brasil. Compreendido como resultante de um processo histórico que foca para questões de gênero e relações de poder, a violência contra a mulher produz diferentes impactos nas vítimas. Parada (2017) salienta para a complexidade desse tipo de violência, e ressalta a importância de considerar os elementos que atuam na produção dos atos violentos. Dentre esses elementos, as discussões de gênero são fundamentais para compreensão do problema que sustenta os crescentes índices de violência contra mulheres. As discussões de gênero aqui se alinham à compreensão de gênero enquanto performatividade (Butler, 2018), que está para além da simples diferenciação biológica entre masculino e feminino, mas ancora-se em um conjunto de elementos sociais, históricos, econômicos e culturais perpassados por ideias de valoração produzidos nesses contextos.
Vale ressaltar que, apesar das influências dos movimentos pelos direitos civis, feministas e LGBTQI da Europa e Estados Unidos na década de 1960, no contexto brasileiro, o termo “gênero” só foi citado diretamente no Brasil há praticamente quatro décadas, no final dos anos 1980, de modo que a sua aplicação é relativamente recente. Segundo os escritos de Zirbel (2007), o feminismo passou a se apropriar do seu significado, inicialmente restrito ao espaço acadêmico, e posteriormente alcançando os movimentos sociais que também lutavam pelas conquistas de direitos e emancipação das mulheres.
Do ponto de vista interseccional., buscou-se discorrer por meio dos marcadores sociais gênero, raça e classe, que são instrumentalizados no sistema de controle e exploração, impedindo o acesso a direitos básicos e acarretando, sistematicamente, em desigualdades, de modo a também agirem como produtores de opressão que acabam retendo mulheres no contexto de violência (Collins & Bilge, 2020).
Uma temática importante a ser debatida no âmbito da interseccionalidade corresponde ao significado de “mulher”, no qual deve levar em consideração os aspectos econômicos, políticos, culturais, físicos, subjetivos e de experiência. Por esse ângulo, intersecção corresponde à pluralidade, e, no enfoque da mulher, por exemplo, é fundamental a abordagem das questões de raça, orientação sexual e identidade de gênero, com o intuito de contrapor a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes (Ribeiro, 2019).
A concepção da interseccionalidade também compreende uma peculiaridade dinâmica da discriminação e do desempoderamento ocasionados por variados núcleos de poder. Por conseguinte, categorias como raça, classe e gênero não podem ser categorias averiguadas individualmente, uma vez que elas são indissociáveis e interdependentes (Costa, 2013). Porém, apesar da importância, a interseccionalidade entre gênero, raça e etnia em contextos de violência de gênero contra as mulheres ainda é pouco investigada na literatura (Smigay, 1989).
Deste modo, no processo de formação em Psicologia, é necessário indagar, debater e contribuir com projetos interventivos que abordam sobre interseccionalidade, uma vez que estão cada vez mais centrados em relações mútuas, de como e onde acontecem as conexões humanas, e não somente na individualização do ser humano. Basta observar os trabalhos interdisciplinares desenvolvidos institucionalmente: são representações práticas que visam atuar no entorno do modelo biopsicossocial, mas que ainda não são suficientes, e nem abarcam todo o campo da forma como é operacionalizado, limitando-se muitas vezes aos métodos protocolares das instituições.
Em vista dessas questões, foi realizada uma revisão bibliográfica com reflexões ancoradas na produção acadêmica de autoras do campo do feminismo, como Djamila Ribeiro (2019), Carla Akotirene (2019) e Maria Lugones (2018), em conexão com autores(as) da Psicologia Social que têm se voltado à problematização das violências de gênero e suas interseccionalidades. Nesse sentido, este estudo foi pautado na busca, coleta e compreensão acerca da violência contra a mulher, propondo-se a contribuir com os aspectos fundamentais dessa temática na introdução, seguido pela seção da metodologia, com os procedimentos científicos utilizados, sucedido pelo tópico de resultados e discussão, e, por fim, na composição de considerações finais.
Quanto aos aspectos metodológicos, optou-se pelo uso da revisão bibliográfica, utilizando-se de uma abordagem qualitativa. Para Gomes e Santos (2013), o levantamento bibliográfico pode produzir uma visão panorâmica acerca de um objeto de estudo, mantendo diálogo entre estudos culturais, identitários e históricos. A técnica utilizada na coleta e apreciação dos dados se deu através da leitura, triagem e fichamentos dos documentos, o que proporcionou uma exploração descritiva e hipotético-dedutiva. As buscas foram realizadas na Scientific Electronic Library Online (SciELO), em sua versão atualizada em 2020, levando em consideração a sua abrangência e compilação de diferentes bases de dados. Foram aplicados os seguintes filtros: “busca avançada”, “recorte temporal dos últimos 5 anos” (2016 a 2020) de publicações em abrangência nacional “Brasil” no idioma “Português”.
Adotou-se, como critério de inclusão, que as produções pertencessem à área da Psicologia, haja vista que a proposta desta revisão é analisar as produções desse campo em torno da violência contra mulher. Os critérios utilizados para definir se os artigos eram da área da psicologia foram a área de concentração dos autores (psicologia) e periódicos específicos da psicologia. Foram excluídos os artigos que não eram da área mencionada. Os documentos foram acessados entre janeiro e fevereiro de 2021. Realizaram-se três buscas, com os seguintes descritores: “Violência Doméstica Mulher” (resultou em 51 artigos); "Interseccionalidade" (resultou em 2 artigos); e “Interseccionalidade e Violência” (resultou em apenas 1 artigo).
Desse modo, por meio da aplicação dos critérios estabelecidos, foram encontradas um total de 54 referências preliminares. Após a análise inicial de títulos e resumos, percebeu-se que 45 dessas amostras pertenciam a outras áreas de produções científicas, sendo, portanto, excluídas. Com isso, foram analisadas na íntegra 9 publicações, pois essas pertencem ao campo da Psicologia (ver Fluxograma 1).
Devido à natureza de pesquisa ser classificada como básica e proceder a partir do levantamento bibliográfico, esse estudo se dispôs a responder às indagações que moveram a demarcação do objetivo geral supracitado.
Definiu-se como eixo alguns tópicos na seção de resultados e discussão da revisão bibliográfica, segmentados pelos subtópicos: A violência doméstica segundo o saber Psi; Um olhar interseccional sobre a violência doméstica; e Principais Repercussões Psicossociais das Violências nas mulheres vítimas. Eles foram organizados a partir da leitura e análise dos estudos.
Por fim, o método da pesquisa bibliográfica, juntamente com todas as fontes teóricas aqui citadas, nos propiciou fundamentação para uma melhor definição no processo de construção das hipóteses, análises e elaboração das etapas apresentadas no Fluxograma 2.
Seguindo uma linha de tempo em que essas produções foram feitas, notamos que foram elaboradas duas publicações em 2016 e duas em 2017, reduzindo para apenas um artigo no ano de 2018, mais um em 2019, tendo o acréscimo de três literaturas produzidas na área da psicologia em 2020. Essa variável na quantidade de artigos pode estar relacionada ao massivo número de mulheres em situação de violência na fase de isolamento social em domicílio por conta da Pandemia do Sars-Cov-2/Covid-19., o que pode ter sido determinante para que tivéssemos mais produções acadêmicas voltadas para a temática na área da Psicologia em 2020.
A partir desse fato, precisamos avaliar a violência contra a mulher com base nos novos contextos que surgem. Embora seja um tema já debatido e muito estudado, agora recai de forma mais contundente após a pandemia da Covid-19, pois durante o período de efetivação da quarentena compulsória e do isolamento social, logo no primeiro mês, em março de 2020, as denúncias cadastradas nos canais Disque 100 e Ligue 180 aumentaram cerca de 18%. Esses dados indicam que “as mulheres brasileiras não estão seguras nem mesmo em suas casas” (Vieira, Garcia, & Maciel, 2020, p. 2). A maior parte das agressões e feminicídios ocorre no domicílio das vítimas, onde o agressor tem fácil acesso.
No artigo 2, Campos, Tchalekian e Paiva (2020) constataram a necessidade de ampliar a rede intersetorial e o acolhimento em saúde mental das mulheres. Com base no contexto vivenciado através da pandemia, os resultados da pesquisa demonstraram que entre os fatores geradores da violência estão os indícios de “ciúme, o jogo de poder e histórico familiar” (Campos, Tchalekian, & Paiva, 2020, p. 4), além da redução na renda familiar de forma repentina, justamente por serem as mulheres as provedoras do lar, e estarem mais expostas ao risco de contrair o vírus, logo, são mais suscetíveis a perda de emprego. Notou-se também o aumento no consumo de álcool e outras drogas, inclusive por mulheres vítimas de violência.
Observou-se uma individualização da violência contra a mulher, o que repercute na redução da procura pelos serviços por parte das vítimas, apesar do aumento das denúncias no período analisado. Os autores citados acima identificaram nas análises uma quantidade mínima de pesquisas que mencionam os marcadores de raça e outras variáveis. Sendo importante considerar que as subnotificações podem causar divergências nas informações capturadas, esse mesmo apanhado menciona que as mulheres jovens, negras e desfavorecidas economicamente são as que mais realizam os registros do boletim de ocorrência relativos à violência. O mais preocupante, contudo, é constatar que, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), cerca de 52% das vítimas de violência doméstica costumam recorrer ao silêncio. Esse quadro mostra que as violações costumam ocorrer de modo contínuo e sistemático, geralmente as mulheres acabam não denunciando o agressor à polícia, nem pedindo ajuda à família, nem confidenciando aos amigos.
No artigo 1, Curia et al. (2020) demonstraram em seus resultados que há uma quantidade reduzida de estudos com caráter preventivo ou avaliações efetivas das intervenções, e que para além da práxis, o campo da psicologia tem o desafio de colaborar no enfrentamento da violência, pois ela é abastada de métodos diferenciados para compreender aspectos distintos das interações humanas e seus contrastes, o que pode auxiliar na compreensão da complexidade que permeia a violência contra mulheres. Verificou-se, na avaliação desse material, uma afirmação de que há um número menor de produções científicas nos estados brasileiros que apresentam uma predominância da violência contra a mulher. Porém, encontramos uma divergência nessa afirmação ao compararmos as regiões em que estão localizados os 9 artigos em análise.
Conforme se pode observar no fluxograma 3, na Região Sudeste, com exceção da cidade de São Paulo, foram encontrados dois artigos, nos quais foi demonstrado uma redução no número de homicídios de mulheres. (IPEA, 2020). No Nordeste (Pernambuco/Alagoas) temos o total de quatro artigos. Na região Sul, o estado do Rio Grande do Sul possui dois artigos analisados. Enquanto na Região Norte, ocorreu um destaque com o estado do Pará, apresentando apenas uma publicação.
Apesar de uma boa distribuição dos artigos selecionados quanto ao estado, região e quantidade, evidenciou-se que as pesquisas ainda são consideradas pouco exploradas nos estados brasileiros, necessitando de atenção por parte dos(as) pesquisadores(as), tendo em vista a importância social que a temática envolve. A quantidade de publicações não significa que naquela localidade a violência encontra-se controlada ou não, mas mostra que mais estudos necessitam ser desenvolvidos.
No contexto do enfrentamento à violência contra a mulher, o estudo 3, de Albuquerque (2020), buscou apresentar o projeto Lei Maria da Penha às escolas visando discutir tais efeitos. Essas oficinas têm contribuído com o diálogo sobre o tema e a síntese de uma forma nova de pensar. É relevante pontuar que a implementação da Lei nº 11.340 (Brasil, 2006), de 07 de agosto de 2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, é apreciada como uma das ferramentas importantes para a proteção da mulher.
Segundo a bibliografia sintetizada e citada por Vasconcelos e Cavalcante (2019) no estudo 4, o homem como autor da violência não recebe o foco contínuo das pesquisas que tratam sobre a violência contra a mulher, pois regularmente os dados são obtidos com base na percepção da mulher. Logo, percebe-se a escassez de pesquisas que promovam o acompanhamento dos homens, sendo importante pensar a construção da masculinidade, e, assim, transformar a cultura machista e patriarcal na qual se ancora a violência contra mulheres, e que seria bastante interessante para debates posteriores na literatura da área.
Na publicação de número 6, Stenzel e Lisboa (2017) apontam que devem ser mais debatidas em literatura as produções que buscam aprofundar a angústia psíquica. No caso em específico, centralizam as análises no agressor, não sendo o propósito de sua pesquisa autorizar ou desqualificar a ocorrência dos atos praticados, mas a de proporcionar uma escuta isenta de julgamentos, direcionada ao relato de sofrimento e independente da violência cometida, porém destinado aos profissionais que oferecem suporte em Saúde Mental ao homem que exerceu violência.
Nos resultados encontrados no artigo 5, de Miura, Silva, Pedrosa, Costa e Nobre (2018), os termos Violência Doméstica (VD) e Violência Intrafamiliar (VI) foram compreendidos na literatura e avaliados como demarcadores em evolução após a criação da Lei Maria da Penha, uma vez que expandiu o interesse por esse tema em pesquisas tanto em produções acadêmicas no viés da Psicologia, quanto em outras áreas que passaram a aderir e distinguir as definições citadas. Dessa maneira, a Lei Maria da Penha, além de definir a violência doméstica e familiar, determina as suas formas de ocorrência, que pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; destacando-se aqui principalmente a violência psicológica, quando ocorrem agressões verbais, silêncios prolongados, tensões e manipulações de atos e desejos (Martini, 2009).
Assim, foi evidenciada a relevância em abordar e refletir acerca desses termos de forma a não os minimizar em contextos microssociais, mas que haja a ressignificação, o alastramento e sua utilização para as dimensões macrossociais associadas ao Estado e à comunidade, para que seja repensada a aplicação do descritor Violência Doméstica (VD), uma vez que em determinadas situações acaba por vitimizar a mulher em instituições que categorizam esse vocabulário em denúncias apresentadas.
Na perspectiva de propor estratégias de enfrentamento à violência, a pesquisa de número 7, de Silva, Lima e Ludermir (2017), ressalta que as mães com histórico e experiências violentas acabam reproduzindo traços de agressividade na educação parental dos seus filhos, transmitindo hábitos punitivos, muitas vezes, naturalizados e aceitos no ato disciplinar. A partir dos resultados desse estudo, observou-se nos relatos das mães que viveram situações de violência uma maior probabilidade de os filhos sofrerem agressões físicas e psicológicas. Essas agressões são causadas não somente pela figura do pai no contexto mais direto da violência doméstica, mas também pela figura da mãe, uma vez que, nesse mesmo estudo, as mães admitiram o hábito de manifestar pelo menos um ato de agressão psicológica no momento de educar. Dessa forma, mães e filhos necessitam de amparo em decorrência do contexto de violência vivenciado, e caso não sejam trabalhadas questões relacionadas à educação infantil e parental mais apropriadas, a repetição desses hábitos poderá ocasionar a propagação de atos violentos deliberados no ambiente familiar.
Foi averiguado no escrito de número 8, de Santini e Williams (2016), um programa de intervenção indicando que os pareceres avaliativos desenvolvidos por profissionais no campo da Psicologia e rede intersetorial devem conter uma análise mais completa com a finalidade de reconhecer possíveis situações de perigo à integridade física, emocional e ao contexto familiar das mulheres atendidas nos serviços de suporte. As intervenções visam, então, pôr em ênfase o histórico de violência vividos pelas mulheres, além de traçar estratégias direcionadas às práticas parentais educativas e aplicação simultânea de psicoterapia.
Por fim, no artigo 9, de Barros et al. (2016), a questão emocional mostrou-se como destaque nas evidências, havendo alta predominância na comunidade analisada, destacado pelo uso do termo “violência emocional” ao invés de violência psicológica nos registros. Nota-se que a taxa de violência emocional elevada pode ser vista como achado importante para a literatura, uma vez que demonstra a necessidade de encorajar o reconhecimento dos diversos tipos de violência e sua progressão, que pode levar à situação de risco à vida.
Para tanto, torna-se relevante o empenho e envolvimento da sociedade em geral, e do ajustamento das informações que ainda são consideradas limitadas para ações preventivas e inclusivas em saúde mental, bem como de assistência na redução dos coeficientes vinculados ao “massacre” diário e de controle, perpetrado há séculos contra mulheres.
Nas análises, um número expressivo de estudos cita a prevalência da violência voltada para a população de mulheres negras e menos favorecidas economicamente, mas no geral os autores(as) não utilizaram a nomenclatura interseccionalidade de maneira explícita, apenas as publicações 1, 2, 3 e 5, de Curia et al. (2020), Campos, Tchalekian e Paiva (2020); Albuquerque (2020) e Miura et al. (2018) dão mais ênfase ao termo.
O artigo 1, de Curia et al. (2020), apropria-se do termo “invisibilidade” para afirmar que não são citados com tanta frequência os marcadores de gênero-raça/etnia nas produções, existindo espaço de aprofundamento em pesquisa para que essa intersecção tão presente e pouco visibilizada, esteja fomentada, como investimentos em políticas públicas de modo mais representativo para este público.
Outro ponto que salienta a relevância desta temática de estudo é que a violência não se apresenta da mesma forma para todas as mulheres. Algumas, por exemplo, sofrem de modo mais acentuado por viverem em vulnerabilidade de renda, o que as leva a uma dependência do cônjuge para sua sobrevivência (Prado, Sanematsu, & Wang, 2017). Percebe-se, assim que diferentes marcadores sociais de classe, raça e gênero se somam, atuando na produção de opressões e silenciamentos, corroborando para a manutenção dessas teias da violência contra as mulheres (Akotirene, 2019).
Campos, Tchalekian e Paiva (2020), no estudo 2, apontam para necessidade de aprimoramento na formação dos profissionais que atuam com vítimas de violência, propondo uma aproximação interseccional na maneira como acolhem as mulheres nas instituições. Segundo os autores, é interessante, aliás, que sejam realizadas as notificações dos casos de violência doméstica através das equipes de saúde e da rede intersetorial de atendimento às mulheres.
Por meio da coleta dessas informações é que ocorre a mensuração epidemiológica da violência contra mulheres, revertendo os dados em aperfeiçoamento da política pública de cuidado e acolhimento às vítimas. Porém, há fatores que se sobrepõem ao enorme quantitativo de subnotificações e de reforço à cultura do silenciamento e agravamento da situação. Estamos nos referindo à postura dos profissionais diante das mulheres que procuram o serviço, essa percepção da conduta ética e o discurso direcionado a mulher, são:
Fatores que vão desde os de natureza profissional (como a falta de preparo técnico para identificação e manejo dos casos) até os de natureza cultural (como a ideia de que a violência conjugal é um problema apenas da esfera íntima) e podem fazer com que os profissionais subestimem a complexidade da situação, explicando, pelo menos em parte, a frequente subnotificação de casos (Leite & Fontanella, 2019).
O debate central no texto 3, de Albuquerque (2020), é voltado para as questões de gênero, sem dissociar raça e classe. Esse fator vai de encontro com o que é debatido por outros autores(as), uma vez que abordar o tema da violência demanda a compreensão das bases históricas do Brasil. Djamila Ribeiro (2019) aponta a relação entre as questões de raça, gênero e classe na produção e manutenção das opressões, e que os discursos sociais proferidos na atualidade permanecem oprimindo, violentando e normatizando a vida das mulheres.
No escrito 5, de Miura et al. (2018), é evidenciada a relação entre violência contra a mulher e discriminação racial que reverbera no processo de individualidade das mulheres negras. Esse resultado reforça que desde o processo de colonização no Brasil há manifestações evidentes da violência contra a mulher, o que resultou em relações de desigualdades entre homens e mulheres, operando de forma estrutural um sistema de concepções pautado pela manutenção do controle, posse, subordinação e fragilização da identidade da mulher (Sobieranski & Camargo, 2020).
Desde modo, a violência contra a mulher que opera na contemporaneidade guarda traços de continuidade nas formas de exercício do poder colonial (Lugones, 2014). Trata-se, portanto, de uma atualização das violências coloniais contra as mulheres, formando uma "cultura da violência" caracterizada por práticas de perseguição, crueldade e aviltamento dos corpos de mulheres. Nesse bojo, a sociedade brasileira, tão acostumada com situações de violência, infelizmente não poderia deixar de sofrer as marcas das opressões e dos silenciamentos vividos durante séculos, em que muitos naturalizam situações de violações de direitos como um processo corriqueiro.
Spivak (2010) explica que o silêncio costuma ser imposto a indivíduos que foram colonizados. Para Gonzalez (1983) e Carneiro (2005), a sociedade brasileira fora edificada nas bases da exploração e, principalmente, da escravidão. Tal contexto deixou marcas de segregação racial e pobreza, além de um legado de violência, separação de classes e desigualdades sociais até hoje observáveis em nossa coletividade. Embora a Constituição Brasileira de 1988 tenha incorporado direitos imprescindíveis, alguns grupos ainda não são contemplados, pois a vigência de certos direitos, sobretudo por fatores históricos, não foi suficiente para promover transformações que garantissem melhores condições de vida à população negra. Como nos assegura Pimentel e Araújo (2020), o legado da escravidão gerou uma diferenciação social que atualmente reverbera nos episódios de racismo e nos índices de violências que afligem em especial as mulheres negras.
Os estudos 4, 7, 8 e 9, dos respectivos autores, Vasconcelos e Cavalcante (2019), Silva, Lima e Ludermir (2017), Santini e Williams (2016) e Barros et al. (2016), de modo indireto, reconhecem como operam esses diferentes marcadores sociais, uma vez que o modelo feminino de passividade sempre foi ressaltado e aceito na sociedade machista e patriarcal brasileira, sendo difícil desnaturalizar as formas de violências sofridas por mulheres. Conforme abordaram Faria, Silveira e Nobre (1998), o mais preocupante é constatar que, por vezes, as vítimas se limitam a sustentar práticas abusivas que não partem do seu desejo, mas de parceiros dominadores. Não restando dúvidas que durante décadas foram utilizados dispositivos de ameaça, condutas de poder e opressão contra as mulheres, o que acabou resultando na luta de mulheres em prol de legitimar suas vozes nos espaços públicos e com o objetivo de garantir o direito à igualdade (Tavares & Lois, 2016). Tais reivindicações não se detinham apenas no nivelamento dos direitos essenciais, mas foram pautados nos conflitos de relações conjugais abusivas, controle dos corpos, principalmente relacionado ao tabu da sexualidade feminina, e no aprisionamento voltado apenas para a função reprodutiva da mulher (Farias & Araújo, 2019).
A violência de gênero é um processo histórico que, como descreve Saffioti (2008), continua se reproduzindo no tempo presente através do controle, dominação e exploração de um sistema patriarcal e capitalista. A problemática da violência contra mulher no Brasil demonstra como a sociedade tradicionalmente vem favorecendo situações de opressão e silenciamento em mulheres vítimas da violência. No estudo 4, realizado por Vasconcelos e Cavalcante (2019), revela-se a banalização da violência, principalmente com mulheres, com isso, é considerado como catalisador das agressões o silenciamento devido ao receio e vergonha, seguido da falta de percepção em relação a gravidade das ameaças e de atitudes impetuosas, incluindo: dependência financeira e/ou emocional e a crença de que o agressor não oferece risco ou que retorne a cometer atos violentos. Na maior parte das vítimas analisadas nos estudos investigados, notou-se a continuidade do relacionamento abusivo mesmo diante de relatos constituídos da ambivalência entre o temor e apego.
De acordo com o artigo 8, produzido por Santini e Williams (2016), as mulheres que sofrem violência intrafamiliar apresentam uma saúde física e mental fragilizada e com queixas recorrentes de oscilação emocional, traços depressivos, crises de ansiedade, entre outros, resultando em sintomas que somatizam e repercutem psicossocialmente por conta de um histórico violento. Não é exagero afirmar que existem mulheres que passam anos em silêncio, suportando violências diversas. Com isso, observamos como um grande desafio atender os casos de violência nos serviços de acolhimento e rede de proteção, sendo difícil identificar as demandas reprimidas, e possivelmente geradas, em decorrência da violência sofrida (Zaremba, 2019).
Campos, Tchalekian e Paiva (2020), no estudo 2, argumentam que os modelos de opressão representados por narrativas de cunho machista ou respaldados por comportamentos validados costumeiramente pelo “direito” de o agressor dominar, culpabilizar, despersonalizar, silenciar e legitimar o sentimento de posse em relação a sua parceira, são alguns dos fatores de vulnerabilidade que põe em risco a segurança e vida de muitas mulheres. Esse panorama refere-se a uma sociedade que ataca e infringe repetidamente os direitos e conquistas destinados às mulheres, demonstrando uma realidade explícita quando nos referimos às mulheres negras e de classes sociais inferiores, corroborando para uma sobreposição que vai de encontro com as diversas identidades sociais, e sistemas relacionados à opressão, subjugação ou discriminação. Diante de tal cenário é que se faz necessário estratégias para redução de agravos (Silva, 2018).
Um aspecto presente no artigo 5, citado por Miura et al. (2018), é a problematização na relação entre gênero e raça no contexto da violência contra a mulher. As autoras dissertam como esses fatores de gênero, e principalmente raça, são indicadores de interferência no acesso ao sistema de justiça desse perfil, acarretando impactos e agravos nas relações psicossociais e laborais, sinalizando a importância de implementar políticas públicas que ajudem as mulheres racializadas a sobrepujarem os efeitos da discriminação e dos estigmas decorrentes da violência. A importância dos registros denota quão necessário se faz conhecer as desigualdades que assolam e permeiam as violências sofridas pelas mulheres. São subnotificações que corrompem os índices, e que divergem da realidade ora apresentada. Posto isso, percebemos a importância de desenvolver trabalhos interdisciplinares, de modo cooperativo e intersetorial com as outras políticas.
O presente estudo analisou como a temática da violência doméstica tem sido representada nas produções acadêmicas brasileiras no campo da psicologia. Esta pesquisa possibilitou contextualizar como os pesquisadores estão abordando os fatores de raça, gênero e classe em seus recursos e análises, pois essa ligação pode gerar demandas psicossociais na rotina das vítimas, necessitando, desse modo, que os estudos que abordem a categoria da interseccionalidade de forma direta, tendo em vista que parte dos artigos selecionados nesta pesquisa não o fizeram.
Verificou-se uma elevação em quantidade de pesquisas com um olhar voltado para a ciência psicológica e seus desdobramentos, porém a integração com outros saberes e áreas de atuação podem ser mais bem aproveitadas em outras pesquisas empíricas de campo ou até mesmo serem utilizadas como fontes de consulta para quem atua na linha de frente do atendimento às mulheres vítimas da violência. Em geral, as mulheres que estão em situação de violência e em vulnerabilidade social tendem apresentar uma saúde física e mental fragilizada, o que se dá de modo interligado aos contextos de produção e manutenção das opressões vivenciadas pelas mulheres. Aponta-se, ainda, para algumas limitações deste estudo como: o uso da expressão “violência doméstica” como um dos descritores de buscas e a realização das buscas em apenas uma base de dados, o que pode ter repercutido no menor número de achados. Então, sugere-se que sejam explorados em pesquisas adiante termos mais ampliados, tais como: “violência intrafamiliar” ou “violência contra a mulher”, assim como a ampliação para outras plataformas de busca.