Estudos Teóricos
Recepción: 01 Julio 2021
Aprobación: 25 Octubre 2021
DOI: https://doi.org/10.36517/revpsiufc.13.1.2022.6
Resumo: Este artigo propõe refletir sobre o filme “Eles Vivem” (Carpenter, 1988), do diretor John Carpenter, considerando as formulações de Freud e Lacan sobre a constituição do sujeito e o desenvolvimento lacaniano sobre o discurso do capitalista. Carpenter, em sua obra cinematográfica, nos apresenta o capitalismo sobre a ótica da classe trabalhadora que sofre com os efeitos causados pelo sistema. Busca-se, neste estudo, abordar, a partir da teoria psicanalítica em articulação com o cinema, a relação do sujeito com os objetos de consumo.
Palavras-chave: Psicanálise, discurso do capitalista, sujeito, consumo.
Abstract: This article proposes to reflect on the film “They Live” (Carpenter, 1988), by director John Carpenter, considering the formulations of Freud and Lacan on the constitution of the subject and the Lacanian development on the discourse of the capitalist. Carpenter, in his cinematographic work, presents the capitalism from the perspective of the working class that suffers from the effects caused by the system. The aim of this study is to approach, based on psychoanalytic theory in conjunction with cinema, the subject's relation with consumer objects.
Keywords: Psychoanalysis, capitalist discourse, subject, consumption.
O sujeito é conceituado pela psicanálise como um ser constituído por uma falta fundamental. Se Freud, desde os primórdios da psicanálise, aponta para um resto irredutível da constituição do sujeito, das Ding, Lacan, com a sua teoria do objeto a e, posteriormente, em seus desenvolvimentos sobre os processos de alienação e separação na causação do sujeito, irá enfatizar que, em última instância, o ser do sujeito refere-se a esse objeto, sem imagem, sentido ou consistência e para sempre perdido.
Em contrapartida, o discurso do capitalista, como veremos no desenvolvimento deste artigo, rejeita a falta do sujeito, oferecendo os objetos de consumo como solução para suprir o vazio que o constitui, criando a ilusão de que é possível alcançar a plenitude.
Este artigo se propõe a uma reflexão sobre o discurso capitalista na conjuntura atual, a partir de uma articulação com o filme “Eles Vivem” (1988), de John Carpenter. Carpenter, em sua obra cinematográfica, nos apresenta o capitalismo sobre a ótica da classe trabalhadora que sofre com os efeitos causados pelo sistema. Assim, será abordada neste estudo, a partir da teoria psicanalítica em articulação com o cinema, a relação do sujeito com os objetos de consumo.
Eles vivem
Será agora apresentada uma síntese referente ao início da história do filme de ficção científica “Eles Vivem” (Carpenter, 1988), dirigido por John Carpenter, visando levantar questões pertinentes ao tema em estudo e, posteriormente, uma retomada da trama em articulação com o desenvolvimento teórico apresentado.
“Eles Vivem” nos apresenta a história de John Nada, um homem simples, desprovido de bens materiais, que chega à cidade grande desempregado e sem moradia. Na busca por emprego, depara-se com o quadro de vagas vazio. Para sobreviver, John se oferece para trabalhar em um campo de obras, fornecendo mão de obra através do trabalho braçal. Frank, seu colega de trabalho, oferece um local para John morar em uma região pobre da cidade, onde a maior parte dos moradores são sem teto, vivendo em barracas. Se por um lado, o filme mostra a extrema pobreza pelo ponto de vista de John, do outro, mostra o outro lado da cidade grande, composta por diversos prédios altos, modernos e luxuosos.
Após os moradores serem atacados de forma violenta pela polícia que destrói suas moradias, John entra em uma igreja abandonada, descobrindo uma caixa com vários óculos escuros. Durante um passeio pela cidade utilizando os óculos, John percebe que esses funcionam com o intuito de mostrar a “verdade” ao seu redor. As mensagens por trás das publicidades começam a ser vistas através do seu verdadeiro significado. Mensagens que induzem o consumo e a submissão. O dinheiro é visto como um “Deus”, capaz de realizar o consumo de qualquer produto desejado.
Além disso, John começa a enxergar alguns indivíduos como alienígenas ao utilizar os óculos, porém esses voltam a parecer humanos ao retirá-los. Dessa forma, descobre que os seres humanos estão sendo controlados pelos invasores, disfarçados de pessoas. O principal objetivo dos alienígenas é a exploração dos indivíduos em prol do lucro. Entretanto, essa realidade só pode ser vista ao utilizar os óculos. John inicia sua saga, juntamente com seu amigo de trabalho Frank, ao juntar-se à resistência na luta contra os alienígenas e seu domínio sobre o planeta.
A desigualdade social apresentada no filme poderia, a relação do sujeito com o consumo marcada por uma ilusão, a exploração em prol do lucro e a impossibilidade de ver o significado por trás das publicidades senão a partir da utilização de óculos “especiais”, seria esta uma metáfora da sociedade do consumo? O que o filme pode nos ensinar sobre as relações do sujeito com os objetos de consumo? Como a psicanálise pode contribuir para esta reflexão?
O sujeito e o Discurso Capitalista
A psicanálise traz contribuições fundamentais sobre a constituição do sujeito, que ocorre através de processos psíquicos inconscientes. Freud (1915/1996) apresenta o conceito de pulsão como um estímulo interno que provém do próprio organismo. A pulsão não atua como uma força momentânea, mas como uma força constante no sujeito. Essa força é caracterizada por uma fonte inesgotável de estimulação que busca por satisfação, que só se realiza, contudo, parcialmente.
Segundo Freud (1931/2017), o sujeito estará fadado, ao longo da vida, a conciliar um equilíbrio entre as exigências da libido e do mundo externo e tende a buscar formas substitutas de satisfazer a pulsão nos objetos como forma de evitar o desprazer, mas esses não são capazes de satisfazer o desejo completamente.
Freud (1931/2017) nos mostra que na sublimação é garantida uma satisfação parcial, substituindo o objeto inalcançável por outro, em que não haverá a proibição por parte do supereu. O recalque não garante a longo prazo um equilíbrio satisfatório, pois na medida em que o recalque se rompe, causa um aumento na intensidade da libido, sendo fonte de sofrimento psíquico. Logo, o sujeito necessita descarregar o excesso de libido, deslocando a satisfação para objetos substitutos, da qual o desejo nunca alcançará sua completa satisfação. É na relação com o outro que o sujeito do desejo se constitui, marcado pela falta.
E é nesta estrutura que se insere o discurso capitalista, na medida em que este emergirá como um tipo de “promessa de felicidade”, como aquilo que viria preencher esse vazio impreenchível.
Desde os primórdios, o ser humano possui uma relação bastante articulada à sociedade e à cultura. O acúmulo de riquezas, a produção em massa e a prática do consumo surgem através do capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas como um sistema capaz de produzir efeitos sobre o sujeito inserido nesse discurso.
Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) introduz o discurso como uma estrutura de linguagem, que se produz através da cadeia de significantes. O discurso não se resume somente à palavra. É uma estrutura que vai além da palavra, representada através de atos e condutas do sujeito que constituem o laço social.
Ao abordar o discurso do capitalista, Lacan nos apresenta como uma abordagem contemporânea do discurso do mestre em relação à estrutura. Na lição de 06/01/1972 do seminário O saber do Psicanalista, Lacan (1971-1972/inédito) afirma que o discurso está articulado com os interesses do sujeito. Durante um longo período, o discurso do mestre se manteve presente na sociedade e seu deslizamento para o discurso do capitalista ocorreu de forma despercebida. Sendo assim, com as mudanças dos interesses da sociedade e dos sujeitos, ocorreu uma mutação no discurso. Enquanto o senhor antigo é representado através do discurso do mestre, o capitalista se apresenta como o senhor moderno.
Diferentemente, dos demais discursos desenvolvidos por Lacan (1969-1970/1992), o discurso do capitalista se apresenta como o único que não promove laço social. Não ocorre vínculo entre o capitalista e o proletário. O sujeito mantém uma relação direcionada aos objetos produzidos pela ciência e a tecnologia, que ocupam o lugar do saber no discurso. Como nos lembra Badin e Martinho (2018), a ciência é responsável pela produção dos objetos de consumo que são endereçados ao sujeito pelo discurso capitalista. Logo, o discurso não ocorre entre o campo do agente e do outro. Existe um circuito fechado mantendo uma relação entre o sujeito e o objeto .. No discurso do capitalista, o sujeito é reduzido a um consumidor, enquanto o objeto ocupa o lugar do outro nesse discurso. Dessa forma, percebe-se que o discurso promove uma relação do sujeito direcionada aos objetos de consumo.
Ao desenvolver a teoria do discurso do capitalista, Lacan menciona o termo mais-valia abordado por Karl Marx (1897), relacionado ao valor do trabalho para o capitalista. Somente através da produção, na apropriação da mão de obra do sujeito que é possível adquirir lucro no sistema capitalista. Segundo Lacan (1970/2003), a mais-valia é a causa de desejo do sistema que opera sobre uma produção extensa, visando à acumulação e o descarte de produtos. Essa acumulação ocorre tanto para o aumento do capital, quanto para ampliar o consumo, com o objetivo de proporcionar o gozo. Sem o consumo, o excesso na produção seria desnecessário.
Na sociedade de consumo, os objetos são produzidos pela ciência e tecnologia com o objetivo de tamponar a falta. Lacan (1969-1970/1992) identifica a ilusão instaurada por esse sistema que promove a distribuição igualitária de gozo através do acesso aos produtos. O discurso capitalista oferece os objetos com a promessa de felicidade plena, induzindo a ideia de que é possível ser completo.
O sujeito, como já foi dito, é, por natureza, um ser castrado, constituído por falta. Em O Mal Estar na Civilização, Freud (1930-1936/2010) afirma que a idealização em torno de uma felicidade plena é impossível desde que o sujeito renunciou às pulsões para viver em sociedade, podendo ser sentida somente em momentos episódicos. O sujeito estará sempre marcado pela falta, por ser constituído pela linguagem. Desde o nascimento até sua constituição, o sujeito convive diante do desamparo que lhe é próprio. Ao estar inserido na cultura, o sujeito vive constantemente em mal estar, suportando as desilusões da vida através de satisfações substitutas.
Para Lacan (1969-1970/1992), o sistema capitalista utiliza da falta fundamental do sujeito para vender a propaganda enganosa de completude. O gozo prometido não passa de uma ilusão, é impossível ser alcançado. Contudo, o discurso torna-se atraente ao sujeito que tende a buscar no real algo que o complete.
Na trama de Carpenter, o personagem Frank representa o sujeito afetado por esse sistema desigual. Ele deixou a esposa e filhos na antiga cidade onde morava, após perder o emprego em uma metalúrgica. Ao ver diversos operários sendo demitidos com frequência, teve seu salário reduzido para a necessidade da empresa. Por outro lado, os chefes aumentaram os seus próprios salários, mantendo o sistema de exploração da mão de obra em prol do aumento de capital.
Os óculos que Frank encontra na igreja e que mostram a “verdade” ao seu redor, revelando o que há por trás do véu das publicidades, surgem como meio para enxergar essa realidade, desconstruindo a ilusão instaurada pelo discurso. O outdoor com a propaganda de computadores de última geração é visto com a mensagem “obedeça”. A propaganda de viagens com a imagem do corpo feminino escultural mostra a mensagem de “case e reproduza”. Curiosamente, no momento que John pede a Frank para colocar os óculos, ele rejeita de forma agressiva, iniciando uma longa e violenta briga entre os dois. De forma irracional, Frank demonstra uma forte resistência ao colocar os óculos, como se conscientemente não quisesse ver a verdade por trás das lentes.
Zizek, em seu documentário O guia pervertido da ideologia (Fiennes, 2012), ao comentar essa cena, afirma que a ideologia não é somente imposta a nós, mas nos relacionamos com ela de forma espontânea, inclusive demonstrando apego, sendo difícil de abandonar. O desvelamento da ilusão em que se está inserido é uma experiência dolorosa para o sujeito.
Freud (1920/1990) considera que o psiquismo atua buscando estabilidade em relação aos sentimentos de prazer e desprazer. Diante das adversidades do mundo externo, o psiquismo mantém o prazer como objetivo primordial, rejeitando fatores que desencadeiam desprazer ao sujeito. Dessa forma, ao estar diante de suas angústias, torna-se mais satisfatório viver sob a possibilidade de alcançar a plenitude. Enxergar a ilusão induzida pelo discurso significaria vivenciar o desprazer diante da falta que o discurso capitalista tenta tamponar.
No filme em estudo, o mesmo fator pode ser observado no papel desempenhado pelo grupo que lutava contra o sistema, chamados de “resistência”. Durante a transmissão de uma propaganda pela televisão, o sinal é interrompido para transmitir a mensagem da resistência, buscando alertar a população sobre a manipulação e a exploração que viviam por parte de seus dominadores. Os telespectadores, apesar de serem diretamente mais afetados por esse sistema, demonstram-se incomodados com a mensagem, mudando de canal. Dessa forma, evitam vivenciar o desprazer ao enxergar a realidade que vivem.
O discurso do capitalista atua induzindo o sujeito a estabelecer relações com objetos no lugar do outro. O consumo é apresentado como solução para preencher a falta, rejeitando a castração constituinte do sujeito. Esses fatores geram efeitos, causando exclusão do laço social, isolamento e segregação. Considerando essa relação peculiar que se estabelece entre o sujeito e o objeto no discurso capitalista, cabe uma investigação acerca das especificidades dos objetos de consumo.
Os Objetos de Consumo
Diante da estrutura existente na sociedade e na cultura, observamos que a oferta de novos objetos se encontra de forma excessiva, sendo colocados à disposição dos sujeitos com a proposta de satisfação plena ao consumi-los. Na sociedade de consumo, Lacan (1969-1970/1992) diz que o ser humano é um material tão consumível quanto os produtos, considerando que o sistema se apropria da sua força de trabalho. Ao transferir horas do seu dia trabalhando para o capitalista, ocorre uma perda de gozo, visto que o sujeito sacrifica seu tempo para dedicá-lo ao senhor capitalista. Essa renúncia pode ser observada no personagem de Frank. Devido ao desemprego, precisou mudar de cidade para trabalhar, afastando-se da esposa e filhos. Em prol do trabalho, foi necessário renunciar à convivência junto aos entes amados. Por outro lado, Lacan atribui que essa renúncia de gozo visará ser recuperada pelo sujeito em outro nível, conceituado como mais-de-gozar.
De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire um status. Eis porque o introduzi de início com o termo Mehrlust, mais-de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda - alguma coisa é necessária para compensar, por assim dizer, aquilo que de início é número negativo - que esse não-sei-quê, que veio bater, ressoar nas paredes do sino, fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte - há um mais-de-gozar a recuperar (Lacan, 1969-1970/1992, pp. 47-48).
De acordo com Lacan (1969-1970/1992), a posição do mais-de-gozar é ocupada pelo objeto, como causa do desejo. Segundo a lógica do capital, é determinada a produção de objetos da qual o sujeito irá se identificar e se relacionar. Ao consumi-lo, o sujeito impulsiona o capital. Dessa forma, Lacan conclui que é o trabalho que paga o gozo. O mais-de-gozar é apreendido na dimensão da perda. O sujeito necessita compensar aquilo que foi inicialmente perdido. A relação produzida pelo discurso do capitalista envolve trabalhar, para assim, adquirir capital e consumir tudo que lhe é oferecido pelo sistema. O gozo inicialmente negado será parcialmente recuperado através dos objetos de consumo.
Em seu Seminário, livro 10: a angústia, Lacan (1962-1963/2005) conceitua o objeto a. Para evitar o equívoco de uma apreensão fenomenológica do objeto de desejo, Lacan o concebe não como objeto a desejar – objeto positivo, autônomo, constituído desde sempre – mas como um objeto negativo que não se presta à fenomenologia, não aparece. O objeto é externo a toda definição possível de objetividade, pois o seu campo é o da objetalidade – campo inaugurado pelo corte que o significante introduz. É preciso conceber o objeto de que se trata em psicanálise não como um objeto visado pelo desejo, que se situa à frente do desejo, mas atrás, como sua causa (Lacan, 1966/1998). O objeto ., enquanto revestido imaginariamente, vem mascarar o fundo fundamental de angústia que marca a relação do sujeito com o mundo.
Os objetos de consumo produzidos pela ciência são associados por Lacan (1969-1970/1992) ao neologismo latusa. O discurso do capitalista promove uma relação do sujeito com o objeto, oferecendo a promessa de completude. Latusa se refere ao excesso de objetos ofertados pelo capitalismo que surgem como forma de alcançar o gozo, relacionando-se ao objeto a. Durante sua caminhada pela cidade, o personagem de John se depara com a imensa quantidade de latusas ao seu redor. Essas são representadas através das diferentes lojas, ao expor diversos produtos em suas vitrines. A cidade demonstra-se infestada de objetos por toda a parte e com outdoors de publicidade. Os sujeitos podem ser vistos consumindo ou observando as vitrines, que expõem os objetos com o objetivo de causar o desejo.
O sistema mantém a produção massiva de novos produtos. Badin e Martinho (2018) afirmam que estes são fabricados com o intuito de ter pouca durabilidade. Após um curto período de tempo, algo recém-lançado torna-se obsoleto. Os objetos são produzidos para serem descartados. A pouca durabilidade dos produtos, assim como a produção de objetos cada vez mais avançados, alimentam o funcionamento do sistema capitalista. O sujeito, inserido no discurso que induz ao consumo busca alcançar o gozo através dos diversos produtos. Entretanto, como a satisfação absoluta é impossível de ser alcançada, o sujeito perde o desejo no objeto atual.
Segundo Viola e Vorcaro (2009), apesar da infinidade de objetos mundanos que se colocam à disposição para substituir o vazio do sujeito, essa busca é em vão. O objeto perde o seu valor na medida em que o indivíduo se familiariza com ele e, consequentemente, perdendo sua satisfação, ele vem a desejar um novo objeto, colocando-se dentro de um ciclo inesgotável e inalcançável. É a falta que provoca o desejo, mantendo essa constante repetição. Assim, o objeto . atua apenas adiando ou contornando a insatisfação provocada pelo desejo, que é satisfeito de forma parcial em objetos substitutos. A insatisfação mantém o sujeito na busca por um objeto que o complete, em uma repetição impossível de atingir total sucesso.
Lacan chama de aletosfera (de Aletéia: verdade) o lugar onde se situam as “fabricações da ciência”:
Lugar de uma verdade diferente: axiomática, puramente lógica, formalizada, referida apenas a uma articulação significante que deve sustentar a coerência interna das suas proposições. Lugar ocupado pelas "ondas se entrecruzando" -só lembrando: rádio, TV, internet, celulares -, das quais nenhuma fenomenologia da percepção nunca nos deu a menor idéia e, com certeza, jamais nos teria conduzido a elas. Lugar da insubstância, da acoisa, povoado pelas latusas, suas criações. (Baeta, 2007, p. 120)
Esse ligar nada tem a ver com a noosfera, esfera psíquica, "que estaria povoada por nós mesmos" (Lacan, 1969-1970/1992, pp. 151-53). Para Badin e Martinho (2018), a aletosfera refere-se ao mundo moderno, no qual recebemos ondas imperceptíveis através dos rádios, da TV e da internet, sendo bombardeados com propagandas diversificadas. Enquanto a latusa é singular, sendo representada através de qualquer objeto que seja atrativo ao sujeito, a aletosfera é o que provoca a atração pelo objeto.
Na obra de Carpenter, os alienígenas surgem como o principal inimigo na trama. Os invasores alcançam seus objetivos mercantis através da manipulação e da dominação do outro, causando prejuízos aos indivíduos do planeta terra. A mídia atua como responsável por atrair os sujeitos no discurso. A promoção de propagandas e outras programações televisivas mantêm os sujeitos alienados aos seus invasores. O sinal transmitido pela antena de televisão era capaz de “adormecer” os sujeitos, os mantendo cegos à sua alienação.
No fim da jornada, John e Frank descobrem que os seres humanos se mantêm ignorantes sobre os acontecimentos através de um sinal que é transmitido pelo canal de televisão, sendo manipulados pela mídia. No momento que tem acesso à antena, após diversos obstáculos para alcançá-la, John a destrói, impedindo a transmissão do sinal. Assim, os indivíduos se libertam de sua dominação, passando a enxergar a realidade sem a necessidade de pôr os óculos. Assim, com a destruição do sinal, a população volta a enxergar, despertando da manipulação inconsciente causada pelos invasores.
Em entrevista sobre o filme, o diretor John Carpenter (Exiles TV, 2016) declara que o produziu no final dos anos 80, refletindo sobre os valores que o cercavam, como a obsessão em fazer dinheiro e a ambição decorrentes da revolução conservadora nos Estados Unidos. Notou que os valores adquiridos em sua infância foram rejeitados com o surgimento dessa nova cultura. A criação do filme foi sua forma de expressar uma crítica diante desses valores, sendo uma demonstração política do mundo que vivemos hoje.
A denúncia feita por Carpenter na década de 80 é atual e necessária. Hoje, com os avanços tecnológicos no campo da comunicação, vivemos “O Dilema das Redes”, tal como denunciado pelo diretor Jeff Orlowski no documentário lançado no ano de 2020. “O dilema das redes” mostra que a televisão, por muitos anos, se apresentou como o principal meio de comunicação responsável por promover propagandas ao público. Com o avanço das tecnologias, e principalmente, com a criação das redes sociais, a internet se tornou o lugar que mais propaga anúncios, sustentando-se através desse sistema.
O sujeito do mundo moderno, ao utilizar o acesso à internet, recebe constantemente dezenas de anúncios condizentes com seus interesses. Além disso, a modernidade oferece diversas formas de consumo mais “acessíveis”, através de vitrines virtuais e compras pela internet, no qual o sujeito pode ter acesso aos produtos sem precisar mover-se. Desse modo, a latusa que Lacan se refere não se apresenta somente nas vitrines. Somos induzidos a diversos objetos através da aletosfera, que atravessa os diversos meios de comunicação.
A modernidade desenvolve novas formas de promover os objetos. A noção de aletosfera que Lacan nos apresenta demonstra-se capaz de se atualizar de acordo com os avanços na sociedade, aplicando-se em novos formatos. Para Carpenter (2016), sua obra é “mais verdadeira hoje do que foi antigamente.” Diante desses eventos que se mantêm presentes, o diretor afirma: “Eles, de fato, existem. Ainda estão entre nós” (Exiles TV, 2016). Para ele, os anos 80 nunca acabaram, pois esse sistema se mantém presente na atualidade, assim como a cultura do consumo e a forte atuação da mídia.
Considerações finais
A partir da teoria do discurso capitalista, compreende-se a representação dos invasores apresentados no filme de Carpenter. Segundo o diretor, “todos os alienígenas são membros da classe alta da sociedade que lentamente vão explorando a classe média” (Exiles TV, 2016). Tornam-se mais ricos através da exploração, causando o aumento da pobreza e da desigualdade. Para Carpenter, a escolha dos alienígenas é uma forma de demonstrar que esse sistema é criado através de seres desumanos, no qual o único objetivo é a exploração do outro.
Os invasores na obra “Eles Vivem” fazem uma representação do discurso capitalista abordado por Lacan, adquirindo mais valia por meio da força de trabalho do sujeito que impulsiona o capital, sustentando o funcionamento do sistema. Por intermédio dos meios de comunicação, como a televisão, mantém-se a transmissão do discurso que não ocorre por meio da palavra explícita. No momento em que John utiliza os óculos, é possível ver os significantes produzidos através desse discurso, como “consuma”, “submeta-se”, “compre”, “conforme-se”, “trabalhe 8 horas”, entre outros.
A mídia atua promovendo os interesses mercantis da sociedade capitalista, colaborando com o funcionamento desse sistema que induz o sujeito ao consumo e à submissão. Carpenter busca nos apresentar essa realidade a partir do ponto de vista da classe trabalhadora, representados por John e Frank, na qual ambos os personagens sofrem os efeitos desse discurso. Enquanto os alienígenas usufruem dos seus privilégios através da exploração dos seres humanos, John e Frank resistem às condições precárias de emprego e moradia, assim como o aumento da desigualdade e da violência.
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